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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.12 no.1 Rio de Janeiro jan./un. 2020

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2020v1p.53 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

A penectomia e seus efeitos sobre a questão da masculinidade

 

Penectomy and its effects on the question of male

 

La penectomía y sus efectos sobre la cuestión de la masculinidad

 

 

Natália Salviato NespoliI; Bárbara Moreira VieiraII; Luisa Falcheto BertoldiIII; Mariana Passamani PaivaIV

IPsicóloga Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade pela Universidade Veiga de Almeida - RJ, especialista em Transtornos Alimentares e Obesidade pela Faculdade de Medicina do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (FMHC-USP) graduada pela Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: psinatalianespoli@gmail.com
IIPsicóloga pós-graduada em Psicologia Social e Saúde pela Faculdade Brasileira Multivix. E-mail: barbaramoreiravieira@gmail.com
IIIPsicóloga residente no Programa de Residência Multiprofissional Integrada em Atenção na Terapia Intensiva pelo Centro Universitário do Espírito Santo - UNESC. E-mail: lufalcheto@gmail.com
IVPsicóloga pós-graduada em Psicologia Social e Saúde pela Faculdade Brasileira Multivix. E-mail: marianappaiva9@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente estudo discutirá algumas implicações da penectomia parcial ou total sobre a masculinidade, a fim de analisar de que forma tal amputação poderá impactar o homem. Para tal, fez-se uso de referencial psicanalítico, abordando conceitos como corpo pulsional, sexualidade, complexos de Édipo e castração, e as identificações na constituição da subjetividade balizadas pela cultura. Através de revisão bibliográfica, buscou-se lançar luz sobre a importância do pênis e a significação do primado do falo, compreendendo que a retirada do órgão pode gerar uma ferida identitária, a dessexualização do contato com mulheres e uma dificuldade no redirecionamento da sexualidade.

Palavras-chave: PENECTOMIA; PSICANÁLISE; MASCULINIDADE; CORPO; CÂNCER.


ABSTRACT

The current study will discuss some implications of partial or total penectomy on masculinity, in order to analyze in what way this man can suffer impacts due to his organ amputation. This task used the psychoanalysis theoretical concepts and other theories like drive body, sexuality, Oedipus Complex and castration, and the identifications in the constitution of the subjectivity supported by culture. Through bibliographic review, the goal was to enlighten how important the penis is and the meaning of the phallu's primacy, comprehending that the organ's removal may generate an identitary wound, the dessexualization towards interactions with females and a struggle regarding sexuality redirectioning.

Keywords: PENECTOMY; PSYCHOANALYSIS; MASCULINITY; BODY; CANCER.


RESUMEM

El presente estudio discutirá algunas implicaciones de la penectomía parcial o total sobre la masculinidad, a fin de analizar de qué forma tal amputación puede impactar al hombre. Para ello, se hizo uso de referencial psicoanalítico, abordando conceptos como cuerpo pulsional, sexualidad, complejos de Edipo y castración, y las identificaciones en la constitución de la subjetividad balizadas por la cultura. A través de revisión bibliográfica, se buscó lanzar luz sobre la importancia del pene y la significación del primado del falo, comprendiendo que la retirada del órgano puede generar una herida identitaria, la desexualización del contacto con mujeres y una dificultad en la redirección de la sexualidad.

Palabras-clave: PENECTOMÍA; EL PSICOANÁLISIS; LA MASCULINIDAD; EL CUERPO; CÁNCER.


 

 

Introdução

Dados do Instituto Nacional de Câncer (INCA), referência em informações da doença pelo Ministério da Saúde no Brasil, atualizados em 2013, apresentaram que o tumor maligno peniano representa cerca de 2% de todos os tipos de cânceres que atingem os homens, sendo considerado uma doença rara. Sua causa está relacionada a fatores como baixas condições socioeconômicas e de instrução, má higiene íntima, não submissão à cirurgia de circuncisão e, também, à infecção pelo vírus HPV (INCA, 2018).

A taxa de cura desse tipo de câncer é alta, porém, há uma demora pela procura do serviço de saúde e do início do tratamento. Essa demora se dá por motivos os quais serão trabalhados no presente estudo, uma vez que tal discussão pode implicar na compreensão sobre como o homem diante do diagnóstico de câncer peniano e frente à penectomia (cirurgia de amputação total ou parcial do órgão) enxerga e sente sua realidade e as questões vinculadas à sua masculinidade e virilidade.

Articular sobre masculinidade e a cirurgia no pênis decorrente de um câncer demanda, a princípio, um vasto estudo para entender as circunstâncias em que o câncer ocorre, suas causas, a incidência desse tipo de neoplasia nos homens, bem como suas consequências. Diante disso, por meio de um delineamento teórico que teve como base um enfoque psicanalítico, fez-se necessário analisar também a forma como a masculinidade se constitui e pode ser afetada.

A cirurgia, por si só, provoca consequências físicas, psíquicas e sexuais (INCA, 2018) que são normalmente acompanhadas por psicólogos a partir da perspectiva psico-oncológica, demarcada pelo decurso saúde-doença. Para além desse decurso, entretanto, faz-se necessário analisar os aspectos que perpassam a constituição da masculinidade, uma vez que o homem não é compreendido apenas por fatores biológicos, mas, também, por suas experiências subjetivas que podem influenciar a sua saúde física e psíquica (Backes, Rosa, Fernandes, Becker, Meirelles & Santos, 2008).

Diante do exposto, para se realizar tal discussão, serão levantados conceitos importantes para psicanálise que darão respaldo para a formulação do tema proposto, a fim de obter aprofundamento na análise dos aspectos subjetivos relacionados à penectomia e seu impacto na constituição da masculinidade. Para tal, será necessário correlacionar aspectos subjetivos, baseados nas noções de simbólico, imaginário e real com a ideia de corpo e adoecimento oncológico.

Outra ideia a ser considerada e correlacionada será a de gênero, que no escopo social tem as suas considerações vinculadas ao sexo biológico, enquanto que para a psicanálise há o aprofundamento nas consequências psíquicas da diferenciação anatômica, tendo em vista que "aquilo que constitui a masculinidade ou a feminilidade é uma característica desconhecida que foge ao alcance da anatomia" (Freud, 1932/1936, p. 115).

Considerando a relevância e complexidade das atuais discussões em torno das temáticas sobre gênero e sexualidade, e reafirmando a necessidade de ampliação da discussão teórico/clínica sobre tais questões, entende-se a importância de ressaltar a partir de que perspectiva o artigo abordará a masculinidade: a da cisgenereidade.

Lanz (2017) afirma haver um dispositivo binário de gênero, o qual dividiria a humanidade em mulheres e homens levando em consideração a condição biológica, dividindo-os em fêmeas e machos. Como efeito, tal dispositivo cobraria desses grupos uma adesão a certas normas de conduta, dentre os quais a autora cita o dress code, vinculado ao vestuário. Tais códigos, quando transgredidos constituiriam a matriz das tormentas vividas pelos sujeitos transgêneros - transgressores da lógica binária tradicional (Lanz, 2017).

A cisgenereidade, ótica a partir da qual trataremos a masculinidade no presente artigo, diz respeito a uma categoria analítica das relações de gênero, onde opera em uma lógica de identificação, pertencimento e reconhecimento das marcas corporais existentes do sexo biológico, inscrevendo o sujeito na cisnormatividade, esta que, segundo Vergueiro (2015) traz aspectos de normalidade no discurso e categorização social da lógica binária, dando continuidade à identificação com o sexo biológico que um sujeito nasceu.

Assim, ainda que equivoquemos, tal como propõe a psicanálise, a noção de sexualidade orientada pela biologia, nortearemos a análise que se segue por uma visão presente nos artigos consultados e ainda muito predominante no imaginário social, na qual, segundo Ceccarelli (2010) "[...] existe uma correspondência "natural" entre o sentir-se homem (sexo) e ser masculino (gênero), e o sentir-se mulher (sexo) e ser feminina (gênero) dando a impressão de que existiria uma relação direta e natural entre corpo anatômico e identidade de gênero" (p. 275).

É melhor falarmos sobre gênero a partir de identificações e traços que são reconhecidos pela cultura como masculinos ou femininos, entendendo que cada sujeito não se constitui apenas por um deles. Dessa forma, Elia (1995), Nicolau (1999/2000), Ceccarelli (2013) e Freud (1905, 1932/1936) discutem acerca do corpo pulsional perpassado pela linguagem e que, no exercício da sexualidade, irá identificar-se com as produções sociais do que é ser homem ou mulher.

Discutir sobre o masculino é fazer referência a uma constituição estrutural que está para além de um posicionamento confirmatório de identificação com o universo masculino, pois, para o homem, faz-se necessário negar a identificação feminina primária. E versar sobre a masculinidade é entender que o sujeito se constitui no limiar de uma relação triangular, onde se presume existir a função paterna, materna e a de si mesmo (Nicolau, 1999/2000).

Há ainda o contexto social contemporâneo que, conforme aponta Silva (2006), está exigindo do homem uma reflexão do seu papel, por meio da reformulação dos papéis sociais feminino e masculino, uma vez que estes passaram a ser criticados principalmente pelo feminismo a partir da década de 1960. Apesar da recorrente crítica, a ideia que ainda se encontra enraizada sobre a figura masculina é a de que homem é sinônimo de virilidade e potência, sendo aquele que não pode falhar sexualmente (Silva & Macedo, 2012).

O câncer e suas complicações causam furos no prévio conhecimento dos profissionais, principalmente do campo da oncologia, sobre a problemática da diferença sexual ao tentar compreender o novo encadeamento dos significantes e das fantasias elaboradas por parte dos pacientes. Sendo assim, coletaremos nos artigos utilizados fragmentos clínicos das análises realizadas pelos autores sobre a questão da penectomia nas práticas em saúde.

Desta forma, faz-se necessário o estudo do tema proposto, uma vez que, além de ter sido observado uma precariedade de pesquisas que tratam do assunto, analisa-se sua utilidade referente aos homens submetidos ao procedimento de penectomia e às equipes que trabalham com esse perfil de paciente. Elucidar tal ideia poderá fornecer subsídios para a significação da doença, bem como o trato e manejo com esse paciente, buscando oferecer recursos que o auxiliem nas representações simbólica, imaginária e real das consequências cirúrgicas a fim de ampliar sua compreensão.

Tentar-se-á analisar como o homem passa a enxergar sua masculinidade frente à penectomia, tendo por base que a psicanálise considera que o sujeito se constitui a partir de processos identificatórios que são fundados, também, segundo a resolução dos complexos de Édipo e castração, somados a constituição do corpo do homem na linguagem por meio do simbólico (Elia, 1995).

 

Materiais e métodos

O estudo utiliza-se da pesquisa bibliográfica com caráter qualitativo, como meio de aliciar informações e conceitos que proporcionem a elucidação do problema proposto. Sendo o objetivo de natureza exploratória, aplicou-se a teoria psicanalítica e estudos em saúde a fim de buscar maior proximidade com o tema pesquisado e de produzir novos conhecimentos para o avanço do campo científico, com atributo de pesquisa básica.

O presente trabalho teve como proposta a exploração de noções e conceitos psicanalíticos freudo-lacanianos, recorrendo a comentadores de mesma orientação. Foram selecionados artigos e dissertações do âmbito da atuação em saúde que se tratam de pesquisas cujos sujeitos eram pacientes com diagnóstico de câncer de pênis e que haviam se submetido à cirurgia de penectomia parcial ou total, e que também abordam as questões da sexualidade, masculinidade e saúde - parte desses trabalhos também fundamentados na teoria/clínica psicanalítica.

Após a leitura dos materiais coletados, objetivou-se realizar uma análise de conteúdo a fim de reinterpretar e lançar um novo olhar sobre os documentos e textos compilados (Gil, 2002). Desta forma, em um primeiro momento discute-se sobre a o câncer, possíveis causas do câncer de pênis, suas consequências e possibilidades de tratamento. Em seguida, é trabalhado o corpo para a psicanálise, elucidando conceitos como pulsão, sexualidade, masculinidade e Complexos de Édipo e de Castração.

Por fim, pretendeu-se estabelecer conexões entre tais pressupostos que a cultura construiu do que é ser homem, a fim de analisar algumas implicações da penectomia na masculinidade, de que forma o homem cisgênero penectomizado pode perceber sua virilidade e reconhecer-se enquanto sujeito másculo.

 

O câncer

Segundo o INCA (2018), câncer é o nome dado à doença que apresenta um crescimento desordenado de células que invadem os tecidos e órgãos, podendo espalhar-se pelo corpo. Há células mais agressivas e incontroláveis que são determinantes para a formação de tumores (acúmulo de células cancerosas) ou neoplasias malignas. Em contrapartida, há o tumor benigno, caracterizado por um acúmulo local de células que se multiplicam de forma lenta e gradativa, assemelhando-se ao seu tecido original, o que diminui a probabilidade de se constituir como risco de vida.

As causas podem ser internas ou externas, podendo-se interligar. As primeiras, na maioria das vezes, são geneticamente pré-determinadas e vinculadas à capacidade de o organismo se defender de agressões do meio externo, já as segundas abordam o ambiente, os hábitos e costumes de um meio social e cultural. Somados a isso, entende-se que o surgimento do câncer depende da intensidade e do tempo de exposição a que as células estarão submetidas em relação aos agentes causadores de câncer (INCA, 2018).

Como dito acima, trataremos especificamente o câncer de pênis, de maior incidência a partir dos 50 anos, que também pode atingir homens mais jovens. Segundo o Instituto, os pacientes procuram o serviço de saúde após insistentes dores e incômodos, sendo os primeiros sintomas a úlcera persistente, ou uma tumoração as manifestações clínicas mais comuns. Tais sintomas associados a uma secreção branca (esmegma) podem ser indicativos do câncer (INCA, 2018).

Uma pesquisa citada pelo Ministério da Saúde aponta que os homens não tem o hábito de ir ao médico, o que implica diretamente em sua saúde, uma vez que as enfermidades serão diagnosticadas em estágio avançado, reduzindo o efeito dos tratamentos e, assim, aumentando a probabilidade de óbito. A partir desse cenário, campanhas de prevenção são adotadas para levar este público aos postos de saúde e, também, para "desconstruir a ideia de que o homem é um super-herói e que não precisa ir preventivamente aos serviços de saúde", como aponta o Secretário de Atenção à Saúde, Francisco de Assis Figueiredo (Brasil, 2016).

O Instituto Oncoguia (2019) divulgou uma reportagem que retrata certa preocupação com o número de amputações de pênis no Brasil uma vez que os dados estão defasados, pois, o levantamento foi realizado há 13 ou 14 anos pelo Datasus (Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde), levando em consideração apenas notificações advindas dos hospitais públicos. Comparada a outras neoplasias, como o câncer de mama ou de próstata, essa discussão está atrasada e, além disso, o fato de o câncer de pênis ser mais regionalizado corrobora para tal situação.

Em relação ao tratamento, avaliam-se a extensão do tumor e o comprometimento dos gânglios inguinais, sendo as principais intervenções realizadas a abordagem cirúrgica, quimioterapia e a radioterapia. Segundo Ferreira e Castro-Arantes (2014) estas operações podem gerar marcas físicas e psíquicas no sujeito, uma vez que seu corpo vira objeto de intervenção médica. Corpo este que, durante a vida do indivíduo, recebeu do Outro nomeações, sentido e significados, formando bordas que possibilitaram a construção e constituição de sua imagem e identidade enquanto ser humano e homem.

As alterações que acontecem no corpo demandam uma resposta do psiquismo (Castro-Arantes & Lo Bianco, 2013) a fim de reconhecer e interpretá-las para que o sujeito dê conta dessas modificações. Dessa forma, a linguagem se faz presente para a elaboração do câncer e seus impactos, entendendo que, para tal, se exige uma posição ética, metodológica e teórica dos saberes que tentam o compreender e atribuir sentido, uma vez que esta tentativa perpassa a possibilidade de cura ou de reabilitação que atravessarão esse sujeito (Oliveira, 2010).

 

Corpo, sexualidade masculina e cultura

O corpo não é composto apenas por órgãos e, por mais que na contemporaneidade o saber médico detenha supremacia das práticas corporais, a psicanálise acredita em um corpo indissociável da noção de subjetividade e que é guiado pelo inconsciente. Desta forma, tecer sobre subjetivo na psicanálise envolve compreender as representações pulsionais e a sua correlação com o simbólico.

 

 

O corpo para a psicanálise, segundo Elia (1995), é aquele que se constitui pela pulsão, pela sexualidade, desejo e linguagem, entendendo este como um corpo sem órgãos à medida que o Outro o nomeia e o atribui sentido. Somente o ser falante, inserido na linguagem, pode constituir um corpo, uma vez que este está para além do determinismo biológico, pois é no contato com o Outro que será investido sexualmente e poderá criar contorno e significado ao corporal.

Este sujeito pulsional, falado e afetado, será atravessado pela linguagem e pelo contato, de maneira a desenvolver fontes erógenas por toda a extensão de seu corpo, não se limitando apenas aos órgãos sexuais. Será, portanto, um corpo constituído através do sentido, do desejo e do investimento externo e interno. Freud (1905, p. 172) trata essas fontes como "... uma parte da pele ou da mucosa em que certos tipos de estimulação provocam uma sensação prazerosa de determinada qualidade".

Em relação aos órgãos sexuais no homem, o pênis se mantém como a principal fonte erógena desde a infância, e na mulher há uma transferência da excitação da zona erógena do clitóris para a da vagina (Freud, 1905). Assim, coloca-se em questão a importância e o significado das mesmas, uma vez que possibilitarão a vida sexual e influenciarão a constituição do indivíduo. Tal ideia corrobora com os achados de Oliveira (2010) que apontam que a retirada do pênis é uma a afronta à virilidade, gerando sentimento de indignação no sujeito, pois este é considerado um órgão de grande importância no sentido de obter e dar prazer.

A fim de trazer luz a estes impactos, faz-se necessário entender que o sujeito se constitui a partir de quatro termos: das determinações simbólicas que recebe deste Outro; dos objetos que serão investidos pela sua pulsão; a reflexão de si em tais objetos, e do seu inconsciente. Constituição esta que se transforma a partir dos laços imaginários e inconscientes que estabelece com o social (Elia, 1995).

A psicanálise estabelece uma teoria do sujeito segundo a qual seu advento, a sua constituição, é efeito de entrada do significante (do Outro, portador do seu desejo), na carne, no corpo vivo de um ser humano (pelo que se entende alguém que nasce banhado em linguagem) esvaziando-se este corpo de sua carnalidade e constituindo-se como corpo sem órgãos, corpo a ser erogeneizado, o sexual resulta precisamente deste encontro da matéria viva do corpo humano com um desejo que lhe era, de saída, exterior (Elia, 1995, p. 94).

A partir de 1960, o psicanalista americano Stoller (1985) dedicou-se a estudar a construção da masculinidade e sua pesquisa parte da extraordinária importância da simbiose primitiva - caracterizada como identificação do menino com o ente materno - para a constituição da subjetividade masculina. Em outras palavras, "a masculinidade nos homens não é simplesmente um estado natural que precisa ser apenas preservado para desenvolver-se sadiamente; ao contrário, ela é uma conquista" (Stoller, 1985, p. 35).

Diante do exposto, a cultura, através da linguagem, pode ser vista como este Outro que transmite significados, ideais e valores que serão absorvidos pelo sujeito em seu processo de constituição enquanto ser. Dessa forma, a construção do que é ser homem é atravessada pela cultura, pelo que esta entende como figura masculina e os significados que atribui ao mesmo, podendo afetar sua constituição.

A forma como o sujeito está inserido na cultura, o processo de identificação do complexo de Édipo e angústia da castração, bem como as consequências da diferenciação anatômica entre os sexos, produzem esse ser homem, que se constitui pela pulsão e pelo investimento sexual. Homem este, possuidor do pênis, que é visto como ser viril, potente sexualmente e detentor do objeto de desejo da mulher (Oliveira, 2010).

Estudos na área da saúde apontam que a construção cultural em torno do ser homem atribui a este uma ideia de invencibilidade e virilidade, uma vez que a educação dada ao menino orienta-se a fazer dele alguém forte e protetor. O comportamento de autocuidado ainda se encontra muito vinculado à figura feminina, colocando o homem em uma situação de vulnerabilidade física e psíquica. Tais concepções criam um obstáculo na busca do mesmo por serviços ligados à saúde, à prevenção, levando-o a chegar ao serviço com a sua doença em estágio mais grave (Braz, 2005; Gomes, Moreira, Nascimento, Rebello, Couto & Schraiber, 2011; Mozer & Correa, 2014; Pereira, Ataide, Silva, Moreira & Mendonça Junior, 2016).

Um estudo realizado por Silva e Macedo (2012, p. 212) sobre a escuta das questões em torno do masculino na clínica psicanalítica, aponta que as questões trazidas pelos homens se concentram em uma figura repleta de exigências, pois este "não pode chorar, não pode falir, não pode falhar, não pode broxar, não pode nada". As falas dos participantes apontaram para uma masculinidade muito ligada ao desempenho, atividade e exigência de uma ereção para que o homem consiga manter uma relação sexual.

Entender como a cultura perpassa o processo de identificação do homem com o papel social de ser másculo é essencial para compreender o apreço que este terá pelo pênis. A sustentação do patriarcado como fonte de poder e êxito atribuído ao que se espera do homem, inferioriza o feminino ao colocar as mulheres em uma posição de passividade potencializando e estereotipando o que é ser homem e mulher (Sampaio, 2010).

Sendo assim, entender os determinantes do comportamento masculino em relação ao processo saúde/doença requer identificar as pressões do princípio constitutivo masculino no contexto das interações sociais, evidenciando os atributos morais e simbólicos do comportamento que são atribuídos ao homem, seu corpo, sexualidade e possibilidade de se relacionar.

 

Os complexos da constituição do sujeito

De acordo com Quinet (2006, p. 9), o mito do complexo de Édipo é o contorno que se dá ao inconsciente, sendo a "ficção do nosso comprometimento simbólico". O Édipo liga-se ao complexo de Castração trazendo a questão do sexo tanto para o homem, quanto para a mulher, sendo a função imaginária do falo o ponto central do processo simbólico no desenvolvimento dos complexos. O falo inscreve-se na subjetividade da criança como falta real para menina e virtual para o menino, sendo na organização genital infantil que isto se origina.

Lacan, segundo Garcia-Roza (2009), estabelece o Complexo de Édipo em três tempos distintos, no primeiro há uma relação dual entre mãe e filho, onde o sujeito se entende como objeto de amor da mesma; o segundo compreende a entrada do sujeito na linguagem, subordinando o campo imaginário ao simbólico. Essa passagem se dá com a metaforização do Nome-do-Pai, com a entrada de quem representa a Lei e barra a criança de ser o falo da mãe; no terceiro tempo há o declínio desse Complexo e a identificação com o Pai, no qual o sujeito passará da posição de ser o falo para ter o falo, atribuindo significação a seu pênis, ou à ausência dele, no caso das meninas.

De acordo com Quinet (2006) é no primeiro tempo que acontece o estádio do espelho, no qual há a construção lógica da formação do eu através da imagem que se tem do Outro materno - objeto de identificação primária. Surge também a metáfora do Pai por intermédio de um terceiro, impondo através do Nome-do-Pai o deslocamento do desejo da mãe, que se encontrava na criança, para um outro lugar, desfazendo, então a unidade mãe e filho. Esta função simbólica acarreta a metaforização da ausência da mãe e a entrada do sujeito na linguagem.

É, portanto, através da inscrição do Nome-do-Pai que o Outro materno dá lugar a uma lei de proibição, barrando-o de ser absoluto e onipotente. Nesse tempo surge a castração simbólica, que destrói ou recalca a identificação do filho como o falo da mãe, passando então para significante do desejo do Outro. É através da metáfora paterna que o falo se coloca no imaginário do sujeito, desaparecendo e dando lugar a falta como efeito.

Garcia-Roza (2009) entende o papel do falo como mediador dos Complexos Édipo/Castração e dos processos de identificação do sujeito no desenvolvimento da estruturação edípica, uma vez que o falo, no campo simbólico, representa a falta, a busca do preenchimento do vazio e a organização da relação sexual. Aponta que no Ocidente se atribui ao Falo o símbolo de poder e completude, compreendendo que este está para além do órgão anatômico que deverá ser simbolizado.

A ausência/presença do pênis no Complexo de Castração outorga uma função simbólica de preenchimento da falta, pois a descoberta de que nem todas as pessoas o possuem gera uma ameaça a constituição da criança que o entende como essencial. A representação imaginária dessa falta estabelecerá relação com o falo imaginário, o que detém a possibilidade de preencher o vazio. Destarte, a vivência inconsciente de cada um perante essa possibilidade de perda tem participação fundamental na constituição do sujeito (Garcia-Roza, 2009).

O desenvolvimento do sujeito conta com as fases oral, anal, fálica, de latência e genital a partir de formas de satisfação pulsional e investimento libidinal elaboradas em cada corpo. Em relação à fálica, tem-se o predomínio dos órgãos genitais, se diferenciando da fase genital pelo fato de naquela a criança só reconhecer um órgão, o pênis, o que oferece condição a ameaça do Complexo de Castração (Garcia-Roza, 2009).

Tal ameaça culmina na queda do Complexo de Édipo e no interesse narcísico que o garoto tem sobre seu pênis, ao descobrir a possibilidade de sua falta através do corpo da menina. A ideia de mencionar essas fases é pensar sobre a possível primazia das zonas genitais, levando em consideração a sua inscrição no prazer, ao quanto é investido de libido nessa zona e em como esta pode servir de satisfação do desejo na busca pelo objeto (Garcia-Roza, 2009).

Na dissolução do Complexo de Édipo, devido à impossibilidade de a mãe ou o pai serem vistos como propriedades e objetos de desejo, Freud (1924) explica que, se a satisfação do amor lhe custa o pênis, haverá um conflito entre o interesse narcísico da criança relacionado a essa parte do seu corpo e a catexia libidinal investida em seus objetos parentais. Dessa forma, o menino ao sentir-se ameaçado, castrado, abandona a sua posição passiva de ser amado pelo pai para passar a identificar-se com o pai.

Ao se incluir o Nome-do-Pai no Outro, o sujeito entrará na ordem simbólica, instaurando a cadeia de significante no inconsciente, o que implicará na sua posição frente ao sexo e existência enquanto sujeito neurótico. O processo de identificação do menino com o pai aparecerá como suporte do ideal do eu "cuja matriz simbólica é o significante do Nome-do-Pai" permitindo ao homem se ligar à significação da virilidade e a mulher a de ficar na posição de objeto de desejo do mesmo (Quinet, 2006, p. 13).

Em nota de rodapé sobre os Três Ensaios, acrescentada em 1920, Freud argumenta que a primeira teoria sexual criada pelas crianças é a da existência do pênis em todos os seres, sendo este perdido pelas mulheres devido à castração. Tal ideia, muitas vezes, deixa no menino certo desprezo à figura feminina, enquanto esta passa a invejar o pênis. Entende-se, então, o masculino como não castrado e o feminino como sujeito castrado.

Tendo por base as discussões em psicanálise em torno do falo, entende-se que o pênis, apesar de não significar o falo, tem papel primordial na constituição do homem, colocando em questão como a penectomia pode afetá-lo, pois:

Para Freud, o órgão masculino não é apenas uma realidade que poderíamos encontrar como referência última de toda uma série. A teoria do complexo de castração resulta em atribuir ao órgão masculino um papel prevalecente, desta vez como simbólico, na medida em que a sua ausência ou a sua presença transforma uma diferença anatômica em critério principal de classificação dos seres humanos ... (Laplanche & Pontalis, 2001, p. 167).

Nicolau (1999/2000) afirma que durante o Complexo de Édipo a nossa sexualidade é organizada em torno do falo, da posição adotada diante do mesmo e da atribuição de ter ou não o ter, reconhecimento obtido através do Complexo de Castração (Grassi & Pereira, 2001). Sendo assim, entende-se que ninguém nasce homem ou mulher, mas se constitui.

Uma das formas descrita por Grassi e Pereira (2001) do homem reconhecer sua virilidade e masculinidade, será através do contato sexual ativo, particularmente com as mulheres, mundo feminino do qual se afastou para poder se constituir. Compreende-se, portanto, que a construção da masculinidade não se dá de maneira tão simples, sendo entendida, segundo Oliveira (2010, p. 69) "como o resultado da resolução do complexo de Édipo e da consequente localização do homem na cultura".

 

As implicações da penectomia na masculinidade

Com a entrada do sujeito na linguagem, através da instauração do Nome-do-Pai no Outro como lei e significante do desejo, o homem passará a receber e atribuir sentido ao seu corpo, contornando-o de significações e identificações que possibilitarão a escolha do seu objeto sexual e a sua posição na partilha dos sexos (Quinet, 2006).

Entende-se a sexualidade humana como efeito da linguagem que marca o inconsciente do sujeito, função da qual o homem depende para começar a elaborar as formas de se relacionar com o Outro e de se entender como tal. Nesse processo, o homem irá absorver, através da cultura, as atribuições que lhe são conferidas, sempre partindo do seu processo de identificação e de escolha de objeto para reforçá-los (Braz, 2005; Gomes, et al., 2011; Mozer & Correa, 2014; Pereira, et al., 2016; Silva, 2006).

Os efeitos advindos do câncer de pênis através da submissão do sujeito a penectomia parcial ou total, podem ser entendidos como efeitos castrativos da masculinidade, uma vez que este terá dificuldades em provar ou reafirmar sua virilidade sexual. Rodrigues Junior (1995) aponta ainda que, a atividade sexual satisfatória para o homem advém de dois aspectos: através do corpo e de seu psicológico.

Se, segundo Castro-Arantes e Lo Bianco (2013, p. 6), "para haver uma constituição corporal se faz necessário uma operação", o impacto radical da cirurgia demandará do sujeito uma articulação entre real, simbólico e imaginário a fim de reelaborar sua posição subjetiva frente ao abalo, e, consequentemente, a sua posição frente à castração.

Entendendo o complexo de castração como a maneira que o sujeito irá lidar com as impossibilidades e impasses de sua vida, este será convocado a elaborar os limites impostos a um corpo sexual e mortal. Assim, o seu lugar como ser desejante, sujeito de condutas sexuais e de discurso que se relaciona com o outro, precisará significar a penectomia e sua masculinidade.

Considerando a amputação parcial ou total do pênis uma possibilidade de tratamento do câncer, faz-se necessário entender como esta será internalizada e simbolizada pelo sujeito, uma vez que o adoecimento e as marcas orgânicas podem gerar uma distorção na identificação que possui do seu Esquema Corporal (Nespoli, 2016).

Vê-se que o corpo é imaginariamente construído na relação com o Outro que barra o sujeito, que o ameaça e o insere em um campo que permitirá dar contorno ao seu corpo. Um corpo orgânico, de sensações fisiológicas, que através do Esquema Corporal pode se relacionar com o mundo, atrelado a sua Imagem Corporal, do ponto de vista subjetivo entendida com as possibilidades de gozo.

Desta forma, os conceitos de Françoise Dolto, apresentados por Nespoli (2016) colocam em questão a possibilidade de as marcas físicas causadas pelo câncer ou por seu tratamento gerarem um trauma orgânico nesse Esquema, bem como consequências para a Imagem, uma vez que esta depende da elaboração e significação que o sujeito atribuíra aos processos de adoecimento e tratamento.

O falo para Freud e Lacan, conforme analisaram Laplanche e Pontalis (2001), deve ser entendido como forma de significação que proporcionará uma lógica fálica que irá orientar o sujeito durante o seu processo de constituição e identificação sexual. Dessa forma, não se trata do pênis em si enquanto órgão masculino, mas sim de uma representação com valor imaginário, que retrata a virilidade e o poder do primado do falo.

Segundo Grassi e Pereira (2001), para que o sujeito se identifique como homem, depende de uma associação entre pênis e falo, pois, uma vez que se sente possuidor do primeiro pode sustentar imaginariamente a posse do segundo. A pesquisa feita por Oliveira (2010), com sujeitos penectomizados, aponta para uma dificuldade destes em manter sua posição masculina, pois perderam o suporte imaginário.

Um exemplo clínico registrado em tal pesquisa é o da penectomia total realizada em J. S., de 49 anos. Neste homem, o sujeito relata a sua tentativa de manter relações, mas com uma "mulher conhecida" pois esta "sabe que não ofereço perigo e tem dó de mim", entretanto, ressalta que tal experiência teria sido para ele um "encontro entre duas mulheres" (Oliveira, 2010, p. 81).

A função fálica possibilita a distinção entre os sexos feminino e masculino a partir da dialética de ter ou não ter o falo, viabilizando que o sujeito se posicione na ordem simbólica ao identificar-se enquanto homem ou mulher (Quinet, 2006). Oliveira (2010, p. 57) identificou, utilizando-se de entrevistas, que o papel do homem está atrelado à potência do pênis no ato sexual, por meio de falas como "não sou homem p'ra mulher", "um homem morto" e que "um homem que nasceu para ser homem" deve se limitar à penetração no ato, pois mulher gosta do pênis.

Diante disso, observam-se os impactos que a penectomia traz aos sujeitos, principalmente relacionados a perceber-se homem e mulher, atravessados pela grande significação que a cultura subjaz ao sentido da masculinidade. Como afirma Ceccarelli (2013, p. 8), "ao longo da história da cultura ocidental, a dualidade presença/ausência [do pênis] transformou a diferença sexual em um instrumento ideológico, que determinou relações fixas entre homens e mulheres.".

Ceccarelli (2013) faz uma leitura de Freud e Lacan sobre o modelo falocêntrico, colocando o pênis e as atribuições deste e de sua representação imaginária, o falo, como objeto de desejo feminino por excelência, e significante de identificação. Dessa forma, pode-se pensar na sexualidade e masculinidade afetadas com a retirada concreta do órgão masculino, uma vez que entra em cena a sua virilidade e coloca-se em questão a sua posição enquanto homem.

Segundo Kehl (1995), a cultura do falocentrismo sofre um abalo ao reconhecer o homem a partir da sua potencialidade fálica, pois a perda do pênis coloca em questão a associação entre virilidade e desempenho sexual, tão necessária para reconhecer-se como homem pelo discurso social. Oliveira (2010) e Grassi e Pereira (2001) perceberam tanto em sujeitos penectomizados quanto em sujeitos com disfunção erétil, a diminuição do contato sexual com a parceira, bem como certa dificuldade de responder ao desejo dela.

Oliveira (2010, p. 97) observou que a masculinidade está associada à convicção do homem sobre o que uma mulher deseja, "um homem que a faça gozar com o pênis". Dessa forma, percebeu-se que é principalmente na relação amorosa com a mulher que surgem os maiores impactos diante a penectomia, pois é, também, a partir desta que o homem espera ser reconhecido enquanto tal.

Outro ponto a ser elucidado é a dificuldade em deslocar a pulsão vinculada à sexualidade genital para outras partes do corpo, tanto do próprio sujeito quanto do de sua parceira, indo de encontro com o discurso da reabilitação. A fixação da pulsão no órgão coloca em questão a ferida na virilidade e masculinidade, pois o insucesso sexual é visto como uma ameaça para se constituir como homem (Grassi & Pereira, 2001).

Após a amputação parcial do pênis, F.F.C., de 69 anos, relatou que a sua vida ficou "normal" e que pode "passar sem sexo", até comentou que sente vontade de ter relações sexuais com a sua "mulher de fora" quando esta encosta nele, mas que acaba ficando "parado para mulher", pois não tem mais "talento para mulher" (Oliveira, 2010, p. 81). Tal excerto de relato ilustra o afastamento do contato com mulheres pelo fato não mais possuir por completo o órgão que poderia proporcionar prazer a ele e às mulheres, e coloca em cena a questão do deslocamento da pulsão.

Freud (1915) trabalha com o conceito de pulsão não totalmente delimitado, compreendendo que esta nunca se torna objeto acessível à consciência, dessa forma para sustentar o reconhecimento de tal ideia, utiliza a noção de afeto e ideia, para representá-la psiquicamente. O autor coloca a pulsão como sendo um conceito entre o somático e o psíquico, ou seja, a representação psíquica dos estímulos que ocorrem dentro do corpo anatômico, entendidos como sua fonte.

Entendendo, em conformidade com as proposições supramencionadas, que o corpo é pulsional, compreende-se que uma mutilação no físico, como a amputação do pênis, pode gerar uma quebra ou desorganização da pulsão, haja vista que é retirada do sujeito uma parte do seu corpo, um objeto que era fonte de investimento libidinal e afetivo. Assim, estando a pulsão no limiar do físico e somático, entende-se que a sua desorganização pode gerar impactos tanto na soma, quanto na psique.

Ferreira e Castro-Arantes (2014) tiveram como base a experiência clínica com pacientes com câncer, buscando compreender como as marcas físicas causadas por esta doença, ou pelos tratamentos da mesma, podem gerar marcas psíquicas. Pacientes mencionaram o não reconhecimento de si após cirurgias que os mutilaram, pois, essas mudanças quebraram o contorno que fora atribuído e identificado aos seus corpos, exigindo dos mesmo a reformulação do que entendem como seu corpo, sua boca, seu pênis, enfim, seu reconhecimento como sujeito.

A falta de representação desse trauma levou tais pacientes a um afastamento social, a servir ao outro de outra forma, a não se colocar mais como objeto de desejo para o outro, visto que a mutilação retirou a possibilidade de ser reconhecido como homem e mulher. Dessa forma "a urgência subjetiva é disparada quando a dimensão do real está em jogo, nesse caso, na falta de representação a partir da mudança do corpo pelo tratamento cirúrgico" (Ferreira & Castro-Arantes, 2014, p. 55).

Os efeitos sobre a sexualidade psíquica precisam, portanto, ser mais investigados, pois não é especificamente no orgânico que se encontra a problemática, mas sim nos danos no imaginário e no simbólico provocados, pois o sujeito perdeu o que sustentava, a sua imagem de pai, de potente e viril. Desta forma, o sujeito deverá buscar novos significantes para reconstruir seu corpo pulsional (Oliveira, 2010; Grassi & Pereira, 2001).

Em vista do que foi exposto, nota-se que a construção da masculinidade é complexa, envolvendo a resolução do complexo de Édipo, o posicionamento frente à castração e a consequente localização do homem na cultura. Tal construção confronta-se com a falta do órgão sexual em relação à ideia que o sujeito mantinha de sua autoimagem masculina, uma vez que o pênis possui valor simbólico para a constituição dessa autoimagem (Oliveira, 2010).

 

Considerações finais

Destarte, o respaldo da Psicanálise nos conteúdos simbólico, imaginário e real, possibilita a compreensão de como o sujeito se constitui, bem como a possibilidade que este tem de atribuir sentido às consequências do diagnóstico do câncer. Pensar conceitos como desejo e fantasia pode viabilizar aos sujeitos condições para se reorganizarem diante a sua imagem viril e suas questões de sexualidade posteriori à penectomia.

A compreensão do corpo pulsional constituído através das relações e processos de identificações, amplia a visão do homem para além do biológico, lançando luz a necessidade de olhar para a singularidade do sujeito e a relação que esse estabelece com a doença (Perestrello, 1989).

É através da penectomia que pode surgir uma falta de sentido na elaboração e "reorganização no registro imaginário e simbólico que se articula não somente à imagem corporal, à filiação ao universo dos homens, mas também ao direcionamento da pulsão, não satisfeita pelas vias da genitalidade" (Oliveira, 2010, p. 99).

O corpo, agora marcado pelo câncer, deixa de ser reconhecido pelo sujeito, por seu narcisismo, uma vez que ainda não se estabeleceu uma representação ou registro para o eu, o que faz com que essa doença cause estranhamento e marcas psíquicas que levarão a uma ferida em sua identidade enquanto homem (Ferreira & Castro-Arantes, 2014). Assim, entende-se que após a amputação se estabelece uma dimensão traumática da sexualidade dos indivíduos, impondo-lhes a necessidade de criarem novas significações que possam sustentar sua masculinidade, uma vez que perderam o suporte imaginário do falo (Oliveira, 2010).

Por isso, o trabalho com esses sujeitos evidencia a necessidade de intervenções para além da psicoeducação, pois esta restringe-se a intervenções que tentam determinar novas formas enrijecidas de se satisfazer e alcançar o orgasmo. Entende-se que o trabalho não está em querer afirmar as possibilidades padronizadas de erogenização do corpo, mas sim na reelaboração inconsciente dos destinos pulsionais que serão particulares a cada sujeito (Oliveira, 2010).

Percebe-se que, para alguns sujeitos, há o recalque do seu desejo, pois a perda do pênis o impossibilita de responder ao que se entende de desejo feminino, levando-os a evitarem o contato sexual. Seu corpo ainda não foi reinvestido libidinalmente, seja por precisar da confirmação da mulher para que possa ser homem, quanto pela perda de seu atributo fálico perante o Outro (Oliveira, 2010).

Isto posto, observou-se uma maior necessidade de pesquisas acerca do tema proposto, uma vez que a masculinidade se atualiza de acordo com o contexto social, através do discurso do sujeito. Sendo a escuta um meio de promover a elaboração psíquica do câncer para o sujeito, é de desejar um maior suporte a estes pacientes nos ambulatórios, antes e após a cirurgia, com o intuito de se lhes propor um olhar e uma prática de bem comum, do individual ao coletivo, para a promoção da qualidade de vida e do autocuidado.

 

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Recebido em: 09/09/2019
Aprovado em: 04/03/2020

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