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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.12 no.1 Rio de Janeiro jan./un. 2020

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2020v1p.126 

ARTES

 

Do construtivismo à figuração do desvario pulsional: Ivan Serpa no CCBB*

 

From constructivism to the figuration of drive disorder: Ivan Serpa at CCBB

 

Del constructivismo a la figuración del trastorno del impulso: Ivan Serpa en CCBB

 

Du constructivisme à la figuration du trouble de la pulsion: Ivan Serpa au CCBB

 

 

Betty Bernardo Fuks

Psicanalista. Profa. do Programa de Pós-graduação stricto sensu em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida (UVA-RJ). Bolsista de produtividade do CNPq e da Funadesp. E-mail: betty.fuks@gmail.com

 

 

Não é sempre que o Rio de Janeiro tem o privilégio de expor a obra de um filho pródigo considerado, no Brasil e no exterior, um dos maiores artistas plásticos da modernidade. Nascido no bucólico bairro do Méier, o jovem Ivan Serpa encontrou no Museu de Arte Moderna, no início da metade do século XX, um espaço hospitaleiro ao desejo de criação artística e de transmissão. O MAM, marco da arquitetura moderna brasileira, de hospedeiro, aos poucos, também se tornou hóspede da genialidade de Serpa que, como professor da escola de Artes do museu, criou ateliers e cursos livres de pintura, além de uma escolinha de artes para crianças.

 

 

Foi nessa atmosfera criativa e abençoada pelo esplendor da baía de Guanabara e pela exuberância dos jardins de Burle Marx espraiados ao longo do Aterro do Flamengo, que o pintor, desenhista e gravurista soube transmitir a muitos de seus jovens alunos, Hélio Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape, Franz Weissmann e Aluízio Carvão, o amor à arte. Todos eles alcançaram um lugar expressivo na vanguarda artística brasileira do século XX. Mas a verdade é que os frutos da transmissão atravessam as gerações. No século XXI, algumas das crianças que tiveram a sorte de frequentar as aulas de Serpa no museu, tornaram-se artistas plásticos de primeira grandeza; a ceramista Alice Felzenszwalb, conta que, quando menina, nos anos sessenta, se encantava com as aulas e os desenhos do professor que exerceu e exerce, até hoje, uma grande influência sobre o seu trabalho.

 

 

Decerto, como testemunha Ferreira Gullar num vídeo sobre a vida e a obra de Serpa, o "lado educador", "lado formador" do artista foi tão forte quanto sua relação com a pintura. Arriscando-se sempre a viver uma nova experiência artística, Ivan Serpa, criador de uma obra extensa e múltipla, sabia exercer o dom da transmissão com fé e paixão, permitindo que cada aluno pudesse conquistá-la de modo subjetivo, único.

A atual retrospectiva da vida de Ivan Serpa, sob a curadoria de Marcus de Lontra Costa e Hélio Márcio Dias Ferreira, exibe 200 obras do artista espalhadas nos salões do majestoso Centro Cultural Banco do Brasil. Em cada um deles, é reservado ao espectador um encontro com as diferentes fases de criação do artista. Aos poucos, atravessamos em retrospectiva, num misto de perplexidade e encantamento, o universo múltiplo e plural de Serpa. A obediência dos curadores ao tempo cronológico funciona como uma bússola que norteia a produção inconsciente do artista. Uma marca importante, sem dúvida, pois revela que a subjetividade em jogo nas diferentes épocas de produção não escapa de estar subsumida ao invisível e ao que não tem nome nem nunca terá, a fonte inesgotável do dom artístico.

No primeiro dos salões, a produção dos anos de 1950 faz jus ao que reconhecem críticos e estudiosos na obra de Serpa: marco da estética construtivista no Brasil. As telas desse período ecoam o movimento abstracionista moderno. Cada uma delas testemunha a opção singular do artista em sua determinação de aderir às formas geométricas e ao estilo de pintura extremamente colorido da pintura abstrata, sem se deixar fixar pelo concreto. "Eu só posso pintar o que sinto", dizia o artista que também se juntou ao neoconcretismo - movimento artístico-literário que surge como reação ao excessivo racionalismo do concretismo.

Ivan Serpa não parou por aí: abraça a arte figurativa quando decidiu desenhar expressões trágicas representativas do mal-estar de sua época. A coleção de quadros e gravuras da "série negra" é um testemunho contundente do horror do artista à guerra e ao ódio entre os homens. O pano de fundo dessa série, segundo os curadores da retrospectiva, foi a guerra do Vietnã e a fome que então se alastrava pela África nos anos sessenta. Corpos esqueléticos, rostos sombrios e figuras angustiadas despertam o que nos causa o verdadeiro horror: o estranho estrangeiro que habita, ao mesmo tempo, dentro e fora de nós mesmos.

Nesse trânsito pelo pulsional, Ivan produz obras icônicas que formam o conjunto da fase "Mulher e Bicho". Toda a sensualidade emanada das telas desse período opera chocantes contrastes com as telas da "fase negra". Entretanto, ambas as séries trazem ao espectador a certeza de que o artista traduz algo importante sobre o homem e o mundo que o rodeia. A exposição dos objetos pessoais de Serpa e as cores dos quadros em homenagem à "Mangueira" retratam, singelamente, as pequenas e grandes paixões de sua vida.

Por fim, mergulhamos na Op Erótica, a série que marca o retorno de Serpa à linguagem construtiva. Desde aí, passamos às pinturas "Geomânticas", feitas às vésperas de sua morte ab-rupta e prematura. Estas telas, segundo os estudiosos de sua obra fazem parte de uma das mais importantes de suas experiências estéticas.

 

 

Ao fim da exposição, enquanto caminhava em direção ao saguão do CCBB, ocorreram-me duas lembranças: a primeira diz respeito ao reconhecimento de Freud de que poetas, escritores e artistas "conhecem entre o céu e a terra, muitas coisas que a sabedoria escolar ainda não pode imaginar"; a segunda revela algo sobre a minha relação pessoal com Ivan, desenvolvida durante o pouco tempo em que tive a sorte de ter sido sua aluna na escolinha do MAM, quando garota. Não consegui aprender a desenhar, por mais que o mestre tenha se esforçado para ensinar-me. Mas agora, passados 65 anos desse encontro, pude compreender que Serpa foi quem me transmitiu as letras que resgatei e conquistei ao me deparar com o texto de Freud, quando pude enunciar o desejo de exercer a arte de me tornar psicanalista.

 

Referências

SERPA, Ivan. In: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa8922/ivan-serpa. Acesso em: 18 de Mar. 2020. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7        [ Links ]

CCBB Rio. Ivan Serpa em exposição no CCBB Rio. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=NIE-gNH0S40        [ Links ]

SERPA, Ivan. 90 anos de nascimento. In: De lá para cá. https://tvbrasil.ebc.com.br/delapraca/episodio/ivan-serpa-90-anos-de-nascimento        [ Links ]

 

 

Recebido em: 05/03/2020
Aprovado em: 10/05/2020

 

Comentário crítico da retrospectiva Ivan Serpa: a expressão do concreto.
* Centro Cultural do Banco do Brasil, maio de 2020.

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