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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.12 no.spe Rio de Janeiro set. 2020

 

ARTIGOS

 

Matou-se Getúlio: histéria*, fantasma e história

 

Getúlio was killed: histéria, ghost and history

 

Getúlio fue asesinado: histéria, fantasma e historia

 

 

Claudia de Moraes Rego

Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida - UVA. E-mail: cmrego@terra.com.br

 

 


RESUMO

A partir de um fantasma construído em análise, "Meu pai se matou" desenvolvem-se questões relativas ao suicídio de Getúlio Vargas, a carta-testamento e hipóteses sobre nossa eterna infância política. Na segunda parte, discute-se logos pharmakon e a afirmação de Lacan: "A psicanálise é a presença do sofista em nossa época, mas com um estatuto diferente.

Palavras-chave: FANTASMA; SUICÍDIO; LOGOS PHARMAKON; SOFISTA.


ABSTRACT

From a phantasy built in psychoanalysis, "My father killed himself", questions about Getúlio Vargas's suicide, the testament-letter and hypothesis about our eternal political infancy are developed. In the second part, logos pharmakon and Lacan's statement: "Psychoanalysis is the presence of the sofist in our time but with a different status"

Keywords: PHANTASY; SUICIDE; LOGOS PHARMAKON; SOFISTA.


RESUMÉN

A partir de un fantasma construido en el análisis, "Mi padre se suicidó" se desarrollan questiones sobre el suicidio de Getúlio Vargas, la carta de prueba y las hipótesis sobre nuestra eterna infancia politica. Em la segunda parte, se discuten logos pharmakon y la afirmación de Lacan: "La psicoanálisis es la presencia del sofista en nuestro1 tiempo pero con otro estatus".

Palabras claves: FANTASMA; SUICÍDIO; LOGOS PHARMAKON; SOFISTA.


 

 

O fantasma e a histéria

"Minoremos a verdade, como ela merece."
(Jacques Lacan)

A analisante relata intrigada uma fantasia de infância segundo a qual seu pai se suicidara. Contara para algumas crianças em especial para uma coleguinha da escola, que era órfã de pai. Na análise, constrói seu romance familiar ou mito individual, ou ainda sua histéria.

Gerard Pommier no livro Nacimiento y renacimiento de la escritura, escreveu: "Todo evento concernente à função simbólica, paterna, seja político ou religioso, ecoará consequentemente para cada sujeito particular como referido à sua história individual, porque sua relação ao pai mítico está contida neste evento... Quando se apresenta uma situação traumática para uma sociedade, ela terá valor de traumatismo psíquico para um grande número de pessoas, mesmo aquelas que não tenham vivido pessoalmente esta situação. Devido ao lugar peculiar ocupado pela figura paterna, um evento social poderá acarretar as mesmas consequências de um traumatismo individual e será submetido ao recalque e retornará como sintoma. E mais, este episódio poderá constituir um traumatismo transmissível para as gerações posteriores" (1996, p. 12). Esta tese de Pommier me parece bastante adequada às observações que se seguirão.

Optei por um estilo literário na tentativa de permanecer o mais próximo possível dos significantes da analisante e de sua articulação particular. Este romance familiar está relacionado a fatos cruciais da história do Brasil. Trata-se da menina Maria e seu pai G.

No escritório de G., havia uma escrivaninha sempre fechada à chave, chave esta sempre colocada, oferecidamente, na fechadura. Quando a casa ficava em silêncio, Maria intrometia-se no escritório e mais, penetrava na escrivaninha. Caverna, baú: escuro dentro. Miudezas, miudezas desimportantes. No centro, porém, como que iluminado, um jornal dobrado, amarrotado, manuseado. A menina crê não se enganar: a escrivaninha é apenas o invólucro destas folhas de jornal. Abre, soletra. Data: 24 de agosto de 1954. O rosto de Getúlio Vargas com um lenço amarrado a sustentar-lhe o queixo. Um pijama de listras com um buraco e uma mancha escura. Maria fecha o jornal, coloca-o no mesmo lugar, fecha a escrivaninha. Afunda-se na poltrona do pai. E pensa. Em nada. Pensa em uma pergunta. Pensa só na interrogação, sem pergunta enunciada. Há uma questão que não se formula.

 

 

Estas visitas são regulares e rituais. O romance começa a se construir fragmentariamente, inconsciente e involuntário. São dados, são fatos que atingem Maria, arquivando-se fora de sentido, fora de qualquer leitura. Por exemplo, o nome de seu pai tem a mesma inicial de Getúlio. Ambos têm a mesma careca de para-lamas. O rosto é semelhante. A cor da pele. No dia dos pais, Maria faz um retrato de G., cuja semelhança é comentada por todos. Fotos de Getúlio a cavalo, fotos de G. a cavalo.

O romance segue sua montagem errática, aleatória, fora de ritmo: G. é anglófilo. Esta anglofilia, que revela algo do próprio romance familiar de G., leva-o a receber o irmão mais novo de Maria com a alcunha de 'príncipe herdeiro'. Maria, tentando se filiar, pensa que é filha da rainha da Inglaterra.

A outra vertente do romance familiar, a saber, a do pai, segue-se tecendo porém, insidiosamente. As visitas ao escritório tomam uma coloração excitante, um gozo agarrado à frase: "ele se matou". Os olhos tocam o furo, o pijama, a mancha.

No dia 24 de agosto de 1954, (anos depois, Maria se casaria neste dia) Maria se recorda vagamente, mas com nitidez, que havia saído à rua com G e vira as ruas diferentes: o ar parecia trêmulo, as pessoas estavam silenciosas, tudo parecia ir devagar. Uma cor avermelhada transfigurava tudo. Este detalhe do ar trêmulo e a cor avermelhada eram muito nítidos levando-a a cogitar: seria um sonho?

Neste dia, a inspiradíssima manchete do jornal foi: "Matou-se Getúlio". Mais adiante voltaremos a este sujeito indeterminado que também é um pronome reflexivo.

As visitas ao escritório. A lógica gramatical da fantasia: Ele se matou. Ele, Getúlio, quis matar-se. Ele (G.) quer matar-se. Nós matamos Getúlio. Getúlio se matou. Eu matei G.

Segundo Maria, G. tinha um revólver envolto numa flanela amarela. Em seus frequentes acessos de raiva e nervosismo, "encenava" um enfarte para pânico da família. O romance encontra sua enunciação: "Meu pai se matou. Sou órfã de pai".

Maria 'adota' assim um outro pai, um pai que se mata matando o pai real. O romance 'meu pai se matou' encobre, como todo texto, a substituição do pai da horda primeva assassinado, por um pai simbólico. Temos aqui a elaboração de um sujeito em particular que articulou em seu romance familiar um trauma da história coletiva e erigiu o pai simbólico sobre os escombros de um suicídio real. Por outro lado, Maria, tendo captado o gozo do pai com a morte e sua ligação com a passagem ao ato de Getúlio, realizou, em seu fantasma, o fantasma do pai. Do trauma coletivo ao romance familiar, simboliza-se um pai.

O texto "Romances familiares" é de 1908, mas só foi acrescido às obras completas em alemão em 1941 e à Standard Edition em 1950. Em 1908, foi publicado como prefácio ao livro de Otto Rank, O mito do nascimento do herói (2015). Neste livro, Rank levanta a estrutura do mito do nascimento do herói através da análise de vários mitos: o herói nasce em família nobre; é afastado e deixado à morte por ameaçar o pai. É resgatado por uma família pobre. Na idade adulta, descobre a verdade e vinga-se do pai. Em outras palavras, é a estrutura mínima do complexo de Édipo e também do mito do assassinato do pai totêmico: há dois pais e um assassinato. O romance familiar do neurótico expressa a percepção da criança de que o pai é castrado; aí sim é substituído por uma figura superior. A castração do pai ou seu assassinato dá origem às substituições: o pai totêmico barrado e morto dá origem ao pai simbólico que é pai só de nome, um nome de pai, o nome-do-pai.

Será que nós, brasileiros, conseguimos uma elaboração tão boa deste trauma político quanto a da analisante? Maria, ao finalizar a análise, dizia rindo que estava vacinada contra "tiranos sedutores".

Getúlio Vargas, conforme revelou seu diário publicado recentemente, sempre que enfrentava grandes impasses políticos, pensava em se matar de forma exemplar ou em nome da honra; contudo, o pai deve ser assassinado. O pai deve aguentar, o pai não se deve suicidar. Deve esperar a queda. Deve deixar-se matar. Getúlio Vargas não soube e não quis esperar. Quis exatamente evitar o assassinato e, de fato, com seu ato e sua carta-testamento, conseguiu uma queda para o alto. Naquele dia, o Brasil inteiro, que já sinalizava o desgaste, encontrou-se de luto, consternação nacional, culpa nacional: "Matou-se Getúlio". Frase que podemos ler como referente ao suicídio e como equivalente a "matamos".

Quais os efeitos para uma sociedade de um pai que não se deixa matar? Que rouba aos filhos este ato? Será que nossa eterna infância política poderia ser pensada como um efeito do suicídio de Getúlio Vargas? Além do suicídio, há uma carta, a carta-testamento.

 

História: logos pharmakon, o poder das palavras

Disse Lacan: "A psicanálise é a presença do sofista em nossa época, mas com outro estatuto" (1964-1965). Bastante instigante, esta frase me fez seguir trabalhando.

Ouvi recentemente: "Não houve ditadura"; "A terra é plana", "O nazismo é de esquerda". Freud escreveu:

As palavras originalmente eram mágicas e até os dias atuais conservaram muito de seu antigo poder mágico. Por meio de palavras, uma pessoa pode tornar outra jubilosamente feliz ou levá-la ao desespero; por palavras, o professor veicula seu conhecimento aos alunos; por palavras, o orador conquista seus ouvintes para si e influencia o julgamento e as decisões deles. Palavras suscitam afetos e são, de modo geral, o meio de mútua influência entre os homens (Freud,1916/1969 p. 29).

Só para reafirmar que a verdade tem estrutura de ficção, dias atrás descobri, espantada que a famosa carta-testamento de Getúlio não é a "verdadeira" carta-testamento. Havia suspeitas sobre sua autenticidade, mas finalmente, no dia 24/08/2004, aniversário de cinquenta anos de morte, na inauguração do Memorial Getúlio Vargas, a família revelou que a carta publicada no dia 24/08/1954 não é a "verdadeira", mas a verdadeira ainda não teria vindo à luz.

Ao analisar a carta-testamento de Getúlio como um grande exemplo da questão de Austin "Como fazer coisas com as palavras?", dei-me conta de estávamos no campo da retórica. A retórica, que hoje faz parte do restrito capítulo das figuras de linguagem, ocupava um lugar nobre na filosofia, na Grécia daqueles que vieram a ser conhecidos como pré-socráticos. Minha pesquisa levou-me a B. Cassin, filóloga, filósofa, já considerada a mais importante estudiosa da sofística grega. Em 1975, num divertido imbróglio, deu aulas a Lacan sobre doxografia. A doxografia (literalmente a escrita da opinião) trata de que todos os fragmentos desta antiguidade são registros de opiniões: disse fulano, disse beltrano. Campo da retórica. Cassin mostra-nos em seu livro "Jacques, o sofista" como Lacan retoma uma série de posições sofísticas relativas à linguagem e à filosofia, seja no que diz respeito ao caráter farmacológico do discurso, seja no que diz respeito à questão do sentido e do não sentido, e ainda em relação à linguagem e ao gozo.

 

Qual o contexto político que antecedeu o suicídio e a carta?

Getúlio tinha retornado "nos braços do povo" em 1951, depois de ter sido apeado do poder em 1945 pelos militares e por um descontentamento da intelectualidade com a falta de liberdades democráticas no período ditatorial iniciado em 1937. Alzira Vargas, sua filha e principal interlocutora, sustentou um intenso diálogo por correspondência com o pai durante os anos em que, recluso em sua fazenda no Rio Grande do Sul, Getúlio descansou, vacilou, hesitou, desistiu e finalmente cedeu às pressões para voltar, tendo sido, em 1946, o principal eleitor de Gaspar Dutra à presidência. Esta correspondência, saborosíssima por seus detalhes, clima gauchesco, e principalmente pela relação com Alzira, foi publicada em 2018, em dois alentados e caprichados volumes. Foi para mim especialmente elucidativa a introdução, que consta de um texto de Antonio Candido, autor que perto estava de completar seus 80 anos (e viveria até os 98), escrito em 1997 em seus famosos cadernos e nunca publicado antes. Acredito que este achado se deveu a que a editora da Ouro sobre Azul fosse Ana Luisa Escorel, filha de Antonio Candido. A primeira frase do texto, "Viver muito favorece as revisões" parece-me apontar, sem mágoa ou remorsos ou novas 'conversões', para uma nova verdade, aquela que tem estrutura ficcional, inclusive a verdade histórica de Freud. Transcrevo:

Penso, por exemplo, em Getúlio Vargas e na luta contra ele da qual fui participante mínimo de 1942 a 1945. Penso também no conceito drasticamente negativo em que o tive desde '37 até depois de sua morte... Sentíamos falta das liberdades democráticas e do funcionamento do congresso. Mas o que eram tais liberdades? Eram um bem restrito a uma parcela mínima da população e esta parcela tinha a ilusão de que elas faziam falta a todo o povo, à quase totalidade do país que vivia à margem da civilização urbana e dos elementos culturais que caracterizavam nosso segmento social... Por isso tudo, estar contra Getúlio, com estivemos, foi por um lado ter sido meio insensíveis ao Brasil novo e involuntariamente ligados ao Brasil velho que agia em nós por atavismo porque era o de nosso pais, e avós, fazendeiros, comerciantes, profissionais, funcionários... Hoje com a poeira da história assentada, os aspectos inovadores se revelam com clareza e é curioso pensar que num país semicolonial, como era o Brasil, o autoritarismo, com seu halo inquietador de fascismo, foi talvez condição de estabelecimento das inovações (Vargas, p.9).

Alzira publicou também "Getúlio Vargas, meu pai" (2017), subintitulado "Memórias de Alzira Vargas do Amaral Peixoto". Neste livro, há coisas muito reveladoras não só do homem, mas também da relação com ele. Na página 89: "Oswaldo Aranha saindo de uma longa conversa com papai, parecia sombrio... Chamou-me a um canto e disse: 'Teu pai anda escrevendo umas coisas em um caderninho preto que ele esconde sempre. Hoje ele me leu algumas notas que me deixaram preocupado... fica atenta e toma conta dele"... Esperei uma oportunidade para mexer nos papéis de papai em busca do caderninho preto. Encontrei-o debaixo de jornais velhos, escondido em uma gaveta... Comecei a ler... não havia nada que pudesse me alarmar... Esqueci o incidente do caderninho preto até 1945... Procurei-o e não o achei. Interpelei-o e me disse que o havia destruído antes de deixar o palácio Guanabara".

Getúlio volta eleito em 1951. Mas o cerco volta a se fechar. Perde o controle dos militares e de sua guarda de segurança após o atentado a Carlos Lacerda. Lacerda, ele também grande orador, vinha fazendo diatribes diárias contra Getúlio. Apesar de o governo ter aberto inquéritos para apurar responsabilidades, começa-se a falar em renúncia. No dia 22, o ajudante de ordens mostra a Alzira um bilhete com a letra de Getúlio: "À sanha de meus inimigos, deixo o legado da minha morte". Alzira vai ao quarto, Getúlio está dormindo. Na manhã seguinte, 23/8, Alzira o interpela: "ue história é essa? Queres me matar do coração?" G. pega o papel e diz: "Sua bisbilhoteira. Não é nada disso que você está pensando. Você me conhece". E ficou com o papel. Ao se encaminhar para o que seria a ultima reunião do ministério, G. assina uma folha de papel e dá a caneta a Tancredo Neves. Nesta reunião, convocada às 03h00 da madrugada do dia 24/08, Alzira invade a reunião, dá um soco na mesa e convoca à resistência. Getúlio encerra a reunião dizendo que só sairia morto do Catete. Às 04h45, o país é informado da decisão de Getúlio pela licença: "Caso contrário, persistiria inabalável o propósito de defender suas prerrogativas constitucionais com o sacrifício de sua própria vida".

Getúlio acorda às 6 da manhã, mantém-se em seu quarto. Às 07h00, é informado que os militares deram-lhe um ultimato, o que significava sua deposição. Ainda de pijama e já, segundo relatos de funcionários, com algo pesado e volumoso no bolso do pijama, volta a seu quarto e, às 08h30, ouve-se o tiro. Ao lado do corpo, na mesinha de cabeceira, uma cópia da carta com sua assinatura. Antes das nove, a mensagem começou a ser irradiada pelo país, provocando uma grande comoção nas ruas.

Aristóteles, em "A Retórica", formulou a trilogia retórica sobre a persuasão de um discurso: ethos, que é a imagem de si que um orador quer transmitir; pathos, conjunto de emoções despertada na audiência do e o logos que seria a estrutura argumentativa do texto em si. Trata-se de como instituir-se como um sujeito suposto saber. Trata-se de fazer crer.

Quanto ao ethos, Getúlio apresenta-se como herói, redentor do povo por um lado e, por outro, como vítima identificada ao povo. São exemplos de colocações neste sentido: "Eu ofereço em holocausto minha vida" e "Nada mais posso vos dar a não ser o meu sangue". A estratégia retórica, o logos, é a intertextualidade: evocações do velho e do novo testamento e a do sacrifício de Cristo. Embora agnóstico e positivista, Getúlio escreve para um povo majoritariamente católico, dizendo, por exemplo: "Cada gota do meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência" ecoando o versículo bíblico: "E disse-lhes: Isto é o meu sangue, o sangue da aliança que é derramado em favor de muitos" (Mateus 26, 28) e ainda: "Mas esse povo de quem fui escravo, não será mais escravo de ninguém", ecoando: "É para a liberdade que Cristo nos libertou... não vos deixeis prender de novo ao jugo da escravidão" (Gálatas 5, 1).

Vale lembrar que os católicos condenam o suicídio, negando-lhe, à época, o último sacramento, a encomendação da alma e até a missa de sétimo dia ao suicida, mas Getúlio transformou o seu suicídio em uma imolação e um ato redentor. Até o Arcebispo o perdoou, encomendando missas em seu sufrágio. Certamente, esta carta chegou a um destino: fez coisas, a comoção nacional, produziu efeitos imediatos e no longo prazo. E continua voando no século XXI.

Uma vez que a retórica tinha como mestres os sofistas, vamos tentar aproximar-nos destas duas frases de Lacan: "A psicanálise é a presença do sofista em nossa época, mas com outro estatuto" (Lacan, 1964-1965) e "Minoremos a verdade tal como ela merece" (Lacan, 2003, p.227).

Os sofistas, isto é, os sábios, acreditavam que a verdade é múltipla, relativa e mutável, mas o termo veio a ser associado à desonestidade intelectual. Eram professores itinerantes que cobravam para ensinar a retórica, a arte de convencer para introduzir os jovens ricos na condição de cidadãos na ordem da pólis, a política.

O que é a sofística? Para Aristóteles, é uma sabedoria aparente, mas não é real. Outras definições: filosofia de raciocínio verbal sem solidez, uma das modalidades do não filosofar, pseudofilosofia, filosofia das aparências e aparência de filosofia. Para Barbara Cassin, o sofista seria o alter ego negativo da filosofia. Como poderia o psicanalista ser a presença dessa turma em nossa época?!

O campo compartilhado entre a psicanálise e a sofistica é o discurso em sua relação rebelde com o sentido. Esta relação rebelde com o sentido passa pelo significante, pelo performático e por sua distância com a verdade da filosofia.

O logos pharmakon, logos é a palavra e pharmakon é uma palavra daquelas que Freud referiu como antitéticas. Barbara Cassin prefere chamá-las de ambivalentes. Derrida dedicou um lindo trabalho a elas, "A farmácia de Platão". Pharmakon é remédio e veneno. Freud não se referiu a pharmakon, mas em várias ocasiões falou do "antigo" poder mágico das palavras. Muito cientificista, precisava remeter a magia a um passado.

Ora, tanto o sofista quanto o analista trabalham com a palavra, com a fala. Prendem-se à palavra e ao discurso em si mesmo, sem relação com a realidade. Para Aristóteles, o sofista não tem olhos, só ouvidos, o que é muito semelhante à atenção flutuante do analista. A fala do analista e do sofista é performática, cria efeitos, age no mundo. Aristóteles diz do sofista: os sofistas falam por falar, pelo prazer de falar. Lembro-me dos famosos discursos de Getúlio, com sua famosa voz pausada, meio hipnótica ou os discursos de Lula, arrebatadores, veia saltada ou dos histéricos discursos de Hitler e dos longuíssimos discursos de Fidel que chegavam a oito horas de duração. Diz Lacan, cuja transmissão oral, presencial também criava efeitos de afeto no auditório e comportamento de rebanho: "A psicanálise quer dizer a observação do fato de que o ser falante passa seu tempo a falar, falar em pura perda" (1982, p.116): em pura perda, no sentido de que não é para isso ou para aquilo. É o falar em si, o gozo da fala.

Este parece ser o novo estatuto que Lacan propôs. Os sofistas, assim como os analistas,

[...] põem em jogo a força do dizer para induzir um novo estado e uma nova percepção do mundo legíveis na clareza do a posteriori. Aí encontramos o fato como ficção, minorando a verdade como ela merece. Há somente interpretações e interpretações de interpretações (Cassin, 2017, p.68 ).

E, digo eu, há a interpretação dominante.

A questão que se coloca para nós hoje, em nossa época, como disse Lacan da dele, que não é a nossa, época da pós-verdade, é, diante de fatos de fala como "o nazismo é de esquerda" ou "não houve ditadura": será que fake news é também a presença do sofista em nossa época? De fato, os sofistas eram conservadores politicamente e a favor da oligarquia. Mas, indo além disso, é importante observar que a psicanálise, como presença do sofista em nossa época, se refere a um esvaziamento do sentido e da verdade, como possível de ser dita toda, e as fake news não! Ao contrário, estas veiculam sentidos e verdades toda. A psicanálise revela, reitera e desnuda que é da estrutura do discurso a relação rebelde com o sentido. É o pas-de-sens de O Aturdito, o im-passe do sentido.

 

Referências

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* Histéria é minha proposta de tradução para hystoire, neologismo de Lacan que amalgama histoire com hystérie.

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