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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.12 no.spe Rio de Janeiro set. 2020

 

ARTIGOS

 

Da presunção de inocência à presunção de culpa - Psicanálise e Direito na era do despedaçamento

 

From the presumption of innocence to the presumption of guilt - Psychoanalysis and Law in the age of shattering

 

De la présomption d'innocence à la présomption de culpabilité - Psychanalyse et droit à l'ère du fracas

 

 

Renata Costa-Moura

Psicanalista. Docente da Pós-graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo e do Instituto de Psicologia da Universidade Federal Fluminense. E-mail: costamourarenata@gmail.com

 

 


RESUMO

Com a psicanálise, parte-se de breve alusão ao solo clássico do princípio de presunção de inocência, para tratar do seu instituto jurídico no liberalismo nascente, no pós-Guerra e em sua vigência na atualidade. Espera-se trazer elementos para a reflexão sobre o que pode caucionar a ideia de flexibilização do referido princípio, nas sociedades contemporâneas, marcadas pelo desenvolvimento da aliança da ciência com o capital.

Palavras-chave: PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA; CULPA; CAPITALISMO PUNITIVISTA.


ABSTRACT

With psychoanalysis, a brief allusion is made to the classical reference for the principle of innocence presumption, to deal with its later legal institute in nascent liberalism, in the post-war period and in its modern validity. It is expected that this analysis can bring relevant elements of reflection on what can make possible the idea of its flexibility in contemporary societies, marked by the development of the alliance between science and capital.

Key Words: PRESUMPTION OF INNOCENCE; GUILT; CAPITALISM PUNITIVIST.


RÉSUMÉ

Avec la psychanalyse, une brève allusion est faite au sol classique du principe de présomption d'innocence, pour en traiter l'institut juridique ensuite dans le libéralisme naissant, dans l'après-guerre et dans sa validité aujourd'hui. On espère apporter des éléments de réflexion sur ce qui peut étayer l'idée de sa flexibilité dans les sociétés contemporaines, marquées par le développement de l'alliance de la science avec le capital.

Mots Clefs: PRESOMPTION D'INNOCENCE; CULPABILITÉ; CAPITALISME PUNITIVISTE.


 

 

"Não há nada no mundo capaz de fazer um poeta desistir de escrever."
(Paul Celan, 2011)

 

O direito de cidadania à palavra - o dizer político e jurídico

Os gregos, do século V a.C. em diante, souberam preservar intacta A Trilogia de Orestes, de Ésquilo (2004), conferindo-lhe o primeiro prêmio na festividade Dionisíaca de 458 a.C. Desde então, ela tem sido referência para o que representou como acontecimento político, no contexto histórico de sua época - a destituição política que ocorria nos bastidores do conselho de Areópago. Com essa trilogia de peças teatrais, assevera Angélique Christaki (2016), "a poética trágica dá tratamento simbólico ao monstro mítico da vingança", e se elabora, na terceira parte -Eumênides-, uma "reflexão política e jurídica, adquirindo uma nova significação enraizada no acontecimento do regime democrático, no mundo clássico" (p. 159). A perpetuação de crimes (incesto, assassinato e canibalismo) desvela o trabalho de "uma culpa muda", uma "falta de palavra que se perpetua de geração em geração", "como um ódio que entrava qualquer elaboração psíquica em relação a esse real" (Cristaki p. 159). Por via de uma fundação divina -na língua trágica do poeta-, liberdade-e-seu-limite aparecem como possibilitando a responsabilização nos dizeres na pólis grega, engendrando-se em democracia ao mesmo passo em que era criado o primeiro tribunal -humano- de justiça, pela deusa Palas Atena1.

 

 

De acordo com Christaki, a fala obtém direito de cidadania no momento preciso em que a responsabilidade política e jurídica do cidadão é "liberada", acontece. "O monstro odioso e incompreensível se desloca para o coração da cidade, e se torna interlocutor no diálogo cidadão"; sendo as Erínias, por fim, transformadas em Benevolentes, guardiãs nas fronteiras da cidade. A passagem das Erínias a Benevolentes Eumênides intervém, continua, como uma marca do pacto de confiança que deu novamente lastro à palavra, "após o inaudito e o indizível terem sido acolhidos na cidade diante da lei".

Diante do "real monstruoso, que a trama poética da fala trágica borda sem que, no entanto, haja a menor esperança de que o homem possa dela se desfazer, definitivamente" (Cristaki, p. 59), é valoroso lembrar, porém, que, sem bani-las, Atena instala as Erínias na caverna da colina de Ares, não longe do local do Areópago, como uma forma de "neutralização".

Seu poder, mesmo atenuado, permanece. E o que isso quer dizer? Isso quer dizer que a sombra de uma justiça arcaica, uma justiça violenta, desregulada ameaça sempre a cidade, e pode surgir, e perturbar o funcionamento do Areópago. Os processos que temos hoje são particularmente ameaçados por esta violência, e por vezes eles podem nem ter lugar, em razão disto. Então, termino com isto. A violência de outrora pode ainda surgir da caverna das Erínias. E é importante fazer justiça à literatura que nos permite pensar este risco, este risco em nossas democracias" (Salas, 2018 s/p).

Aqui, cabe lembrar do psicanalista Jacques Lacan, em Função e Campo da Palavra e da Linguagem em Psicanálise:

Que antes renuncie a isso [ao exercício da psicanálise], portanto, aquele que não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época. Pois, como poderia fazer de seu ser o eixo de tantas vidas quem nada soubesse da dialética que o compromete com essas vidas num movimento simbólico. Que ele conheça bem a espiral a que o arrasta sua época na obra contínua de Babel, e que conheça sua função de intérprete na discórdia das línguas (Lacan, 1966/1998a, p. 322).

Nossa indagação, portanto, não se pode furtar a interrogar a lógica dos mecanismos que caucionam as políticas que favorecem uma "suspensão", finalmente, da própria condição de possibilidade da palavra e do dizer no mundo. Com Eumênides está em jogo a travessia do encadeamento sucessivo da vingança à dimensão de alteridade simbólica. E isto fará a renomeação das Erínias em Eumênides, como marca do processo de palavra e da emergência de uma nova dicção, uma juris-dicção, advinda justamente com a limitação da sanha punitiva, vingativa, ancestral do ódio primordial.

Se, portanto, a própria condição de possibilidade da linguagem está implicada nesta travessia, neste processo civilizatório, então, como pensar, no horizonte de nosso tempo, cuja compulsão punitivista aponta justamente para a lógica de abolição do limite fundante do direito como um todo, e do princípio elementar que reconhece inocência, como presumida, ao cidadão?

Ainda que suspeito, o processo de palavra coloca um sujeito de direito como responsável. Em consequência do ato fundador desse diálogo que o sujeito responsável acontece -se libera, dizia Ésquilo- na mesma medida em que se engendra a experiência da responsabilidade no dizer político e jurídico, na cidade.

Indagamos, portanto, neste artigo de que abolição estamos falando em tais práxis contemporâneas ditas punitivistas, calcadas em um "populismo penal" que, como demonstra Denis Salas, apaga, finalmente, o peso da própria responsabilidade individual na mesma medida em que a demanda cada vez mais exigente de prevenção contra riscos afeta o direito e imprime em sua atuação uma orientação atuarial e policialesca? De fato, a gestão pautada na prevenção do risco, propõe Denis Salas (2005), "apaga a dimensão da imputação individual" (p.194), focando-a no grupo social a risco. Uma vez abolida a importância da imputação individual, é possível chegar ao desmembramento da pessoa, através de sua estigmatização em signos, e redução a um objeto de saber, do qual se extraem identificações que permitam adiantar o risco (Salas, p. 194). E Agostinho Ramalho Marques Neto (2016) acrescenta: "Vivemos a era da vigilância difusa, consentida e desejada (p.1)."

 

Pequena notícia da história do princípio jurídico

Historicamente, o princípio jurídico da presunção de inocência remonta ao direito romano, mas, na Idade Média inquisitorial, ele é invertido, já que a dúvida poderia levar à condenação. É, contudo, de sua consagração na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que emerge uma nova concepção do direito processual penal, como "reação dos pensadores iluministas ao sistema persecutório que marcava o antigo regime, no qual a confissão - "rainha das provas"- era obtida através de tortura, de tormentos, e da prisão." (Yarochewsky, 2015, p. 2). Após a catástrofe da Segunda Guerra Mundial, o princípio é reencontrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem adotada pela ONU em 19482. Torna-se princípio instituidor do próprio campo de um Estado de Direito, dito democrático. Segundo o jurista italiano Luigi Ferrajoli (2014), a presunção de inocência é correlata do princípio da jurisdicionalidade (jurisdição necessária). Logo, toma a forma de cláusula pétrea, nas mais variadas constituições - ou seja, cláusula que não pode ser alterada e, menos ainda, abolida, sob pena de constituir afronta aos próprios fundamentos do Estado democrático de direito. É natural que, em seguida, apareça como artigo inicial, destacado como fundamental, dos códigos de processo penal de tais regimes ditos democráticos desde o pós-guerra.

Toda pessoa é presumida inocente até que sua culpabilidade tenha sido estabelecida. Na Constituição da República Federativa do Brasil, em seu Art. 5º, no inciso LVII, temos: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Aparece também no artigo 9o da DDHC e em um grande número de tratados do direito internacional, inclusive na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), da qual o Brasil é signatário, em que se lê: "Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa".

Francesco Carrara elevou-o ao postulado fundamental da ciência processual e a pressuposto de todas as outras garantias do processo, segundo Ferrajoli (2014) e Yarochewsky (2015). Sendo assim, este princípio elementar incontornável só é respeitado se ele ocorre no devido processo legal finalizado, quando esgotadas todas as prerrogativas do direito de defesa, e o reconhecimento de que não há prova "in abstracto" da inocência, e que, portanto, o ônus da prova deve ficar a cargo da acusação, assim como dele deduz-se que, em caso de dúvida, o benefício é do réu, in dubio pro reo. Assim, estes direitos e garantias elementares são contidos nos códigos de processo penal e nas constituições que se reclamam democráticas.

Agostinho R. Marques Neto (2016) lembra que o direito penal já nasce como última ratio, e também que:

O direito penal se constituiu, ao longo de sua história, como colocação de limites ao punitivismo irrestrito dos tempos anteriores. O direito penal, como o próprio nome indica, tem caráter punitivo, estabelece penas. Mas o que o caracteriza como direito - distinguindo-o do mero ato de vingança - é que ele estabelece limites ao assim chamado jus puniendi, bem como atribui garantias aos acusados e apenados. Historicamente, o próprio talião constituiu um avanço, pois introduziu o requisito de proporcionalidade: a "retribuição" contida na pena deve ser proporcional à gravidade da lesão do bem jurídico decorrente do delito (site Empório do Direito s/p.).

O direito tece laço social pela limitação da prerrogativa do uso da violência de Estado sobre os indivíduos. Nesse sentido, o mecanismo elementar, como dissemos, da presunção de inocência no âmbito penal torna-se um princípio fundamental de civilidade "fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que ao custo da impunidade de algum culpado". (Ferrajoli, 2014).

A declaração deste direito inalienável do homem no campo da política criminal se insere mais amplamente, portanto, como verdadeiras "tábuas da lei dos regimes que se reclamam da democracia" (Dulk, 2000 p.92); algo que impõe o devido respeito ao processo legal e à garantia do direito de defesa, na condição de inflexibilizável, já que o risco de inculpação de um único inocente não se justificaria como razoável, ainda que ao custo da impunidade de algum culpado. Pela ótica político-institucional, este princípio é igualmente inflexibilizável, já que reconhece o processo penal "não apenas como instrumento de composição do litígio penal, mas, sobretudo, um instrumento político de participação, com maior ou menor intensidade, conforme evolua o nível de democratização da sociedade" (Prado, 2001).

 

A inocência presumida e o sujeito às voltas com uma culpa - dívida- estrutural

Ora, como na literatura, a história mostra que o Estado-Nação nunca impediu pilhagens imperialistas nem as mais selvagens guerras. Sempre houve os outros, aqueles cujos costumes e modos de gozo eram diferentes e que, por isso, eram apontados como estrangeiros, bárbaros, indesejáveis. Contemporaneamente, os indesejáveis em Rubens Casara (2017), aparecem como destituídos do direito à materialidade democrática, já que sem status de sujeito-consumidor, desaparece o ingresso que lhes permitiriam entrar no mundo da cidadania, diz Agostinho Ramalho Marques Neto, (2017), que também falando dos excluídos no neoliberalismo, os menciona como invisíveis, anônimos, enfim, como os ejetados do corpo social, sobre os quais incide a criminalização, como instrumento de controle. Nestes casos, a história relata a ocorrência da presunção oposta, de culpabilidade, e não raro com imposição ao réu da prova de sua inocência. O paradoxo se complexifica no fato de que o direito fala em presunção de inocência em meio à busca de uma culpabilidade eventual. O presumido inocente tem então uma suspeita que pesa sobre si, uma culpa eventual, e, sabemos, para alguns, mais do que uma culpa eventual, ela se coloca como potencial.

Por outro lado, Freud, em Le Malaise dans la culture (1930/2015), pondera que "o sentimento de culpa engendrado pela existência da consciência moral é o que permite à civilização proteger-se contra as pulsões agressivas e de destruição do homem". (p. 53). O sentimento de culpa é o pilar da criação e da manutenção da civilização, mas unicamente, podemos pensar, na medida em que a civilização proclama a inocência como presumida, "para lutar contra um sentimento de culpa por demais massivo e destrutor" (p. 53). Nesse mesmo texto, o autor inclusive chama atenção para a propensão humana a buscar bodes expiatórios que permitam a expressão dessa agressividade contra tudo o que é diferente de nós.

Em O Estranho (1919/1976a), porém, Freud se questiona, finalmente, sobre quem é esse Outro que habita, de fato, o mais íntimo de nós? Nesse texto, Freud demonstrava que o familiar que retorna na angústia, como estranho, é o que Lacan leria mais tarde como o Outro real. O estranho é justamente o retorno ao sujeito, de sua posição como objeto do gozo do Outro. É que na constituição do sujeito a linguagem nos intima, nos convoca primariamente como objetos do Outro. Ao nascer, somos lançados num mundo anterior de linguagem, e somos falados antes de falar, o que coloca a criança na condição primeira de objeto visado pelos enunciados linguísticos que partem do Outro. Por sinal, a criança pode recusar-se e contestar os enunciados do Outro, mas recusar que se lhe falem fica mais difícil. Cada estrutura psicopatológica dará um destino diferente ao efeito violento da operação da linguagem no vivente convocado a integrar a comunidade dos homens como falante.

Há todo um ensino em Lacan, para chegar à elaboração desta dimensão do objeto. Mas importa pensar que este campo da objetalidade, Lacan o concebe como a dimensão de alteridade à qual o sujeito, desde Freud, encontra-se apenso. "Um sujeito que se constitui como efeito de determinados encaminhamentos que vão configurando o campo do Outro e dando lugar ao objeto causa de desejo". O campo do objeto α é o da objetalidade, colocada pelo corte que o significante introduz. E mais especificamente pela incidência desse corte para o sujeito - que "Lacan chamou de páthos, ressaltando bem a dramaticidade do corte significante, que não é simplesmente uma intervenção geométrica. É um corte que deixa uma escansão viva" (2005, p. 227).

"É preciso conceber o objeto de que se trata em psicanálise não como um objeto visado pelo desejo, que se situa à frente do desejo, mas "atrás" (Lacan, 1962-3/2005, p.114-5), como sua causa. Como uma "exterioridade anterior", um "exterior antes de toda interioridade" (idem, p.115), ao ponto em que o sujeito pode se apreender como forma especular que introduziria a distinção entre o eu e o não eu" (Lacan, 1962-3/2005, p.115).

Não por acaso será no Seminário A angústia que esta elaboração do objeto α se realizará. Trata-se de um objeto que intervém, constituindo a economia libidinal do sujeito, na verdade, numa inocorrência que é sempre perturbadora. Nunca é pacífica. E a manifestação mais gritante, o sinal da intervenção desse objeto α no campo do sujeito, segundo Lacan, é a angústia (2005, p.98). Ele mostra que na função geral do objeto o corpo está envolvido, não na acepção ativa que se poderia esperar, a partir da percepção, por exemplo, mas sim pelo que há aí de inerte, de extraído, de separado e que prefigura a castração. Assim, ocuparão este lugar os objetos que o sujeito perde naturalmente (o seio, os excrementos), os suportes que o sujeito encontra para o desejo do Outro (seu olhar, sua voz) e também a pulsão como atividade de revolver estes objetos, para com isto resgatar, restaurar a sua perda.

A expulsão primordial do objeto, pela operação de incidência da linguagem na criança (infans), pelo mesmo movimento, constitui o próprio sujeito, como efeito, além de suas identificações fundamentais, como a imago do corpo próprio e de sua unidade, também.

Antes deste momento, Lacan se refere a Melanie Klein (1953/1986) e à fase esquizoparanoide proposta pela psicanalista, na qual o corpo é vivido como desmembrado, como despedaçado. O seio materno, externo à criança que amamenta, é experimentado neste contexto como uma parte do corpo próprio, mas destacada; como pura descontinuidade do real sem sentido, antes que a operação da linguagem efetue seu salto, seu milagre, como diz Lacan.

O objeto externo, do texto freudiano, que retorna para o sujeito provocando estranhamento, angústia, pode também catalisar o ódio apaixonado, identificando-o unicamente em sua dimensão objetal.

Em Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia, Lacan falará do objeto, como podendo configurar-se como criminogênico:

Um de nós descreveu, na identificação do sujeito infans com a imagem especular, o modelo que ele considera mais significativo, ao mesmo tempo que o momento mais original da relação fundamentalmente alienante em que o ser do homem se constitui dialeticamente. (...) Ele demonstrou também que cada uma dessas identificações desenvolve uma agressividade que a frustração pulsional não basta para explicar (...) Essa tensão manifesta a negatividade dialética inscrita nas próprias formas em que se entranham no homem as forças da vida, e podemos dizer que o talento de Freud deu a medida dela ao reconhecê-la como "pulsão do eu" sob o nome de instinto de morte. Toda forma do eu encarna, com efeito, essa negatividade (...), Assim como a tensão agressiva ao integrar a pulsão frustrada cada vez que a falta de adequação do "outro" faz abortar a identificação resolutiva, ela determina com isso um tipo de objeto que se torna criminogênico na suspensão da dialética do eu. (Lacan, 1950/1998b, p. 143).

A entrada de Lacan na psicanálise, em 1932, faz-se a partir de dois casos de crimes: o caso Aimée, atendida por ele em Saint-Anne, e ao qual dedicou sua tese de doutorado em psiquiatria, e o caso das Irmãs Papin, adicionado à edição publicada da mesma. Aimée o leva a propor um novo diagnóstico no campo das psicoses, a paranoia de autopunição - sendo o caso das irmãs Papin, proposto pelo perito no caso, Dr. Logre, como esquizofrenia, também pensado por Lacan a partir da resolução pulsional conferida à passagem ao ato criminosa, como autopunição (Dzu Costa-Moura, 2000). Em ambos os casos, tem-se a defesa psicótica contra tal posição de objeto do gozo do Outro. Para Lacan, ambas "atingem a miragem do seu mal". Este objeto criminogênico vem no lugar do que corta uma coincidência ilusória, supressora da divergência, e da discórdia. Em Aimée, Lacan revela de forma central que "em atingindo o outro, o sujeito havia atingido uma imagem ideal que a havia fascinado ao longo de toda sua existência". Em As irmãs Papin, as duas irmãs atingem no "casal: mãe e filha, a própria imagem delas, buscando atingir o que escapava à ilusão de plenitude". "Em todo caso, encontramos em estado latente o que viria no Estádio do espelho como formador da função do Eu (1949/1988). Tal como nos é revelado na experiência psicanalítica de um «estatuto negativo do sujeito» (p. 97), na proposição desta captação pela imagem do outro, o sujeito está, antes de tudo, no campo do outro, portanto, negativamente: alienado nos significantes do Outro.

Podemos dizer que, situando-o - o objeto - nesta condição de êxtimo, ao mesmo tempo exterior e íntimo, catalisador da culpa, do mal - ou se quisermos, do kakón, termo utilizado a partir do psiquiatra Guiraut ([1932]1994) - Lacan indica que nos crimes imotivados, aqueles para os quais nenhuma utilidade pode ser cernida, o sujeito age por um comando vindo de fora e aparentemente sem sentido, uma busca de "cura" pela extração, eliminação, segregação deste objeto êxtimo. Retornando desde o lado de fora do campo simbólico, nas psicoses, ele o ameaça em sua própria existência, como nos casos onde esta lógica é levada a seu termo máximo. Sobre tais crimes, o psicanalista Claude Maleval propõe: "A experiência da passagem ao ato objetiva a estrutura do sujeito" (2000, p. 41). Neste sentido, os assassinatos imotivados tornam presentes o "ser de dejeto do sujeito. Eles mostram seu caráter objetal, anterior a toda alienação, sob a forma do cadáver".

Para registrar igualmente, em "Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia" (1950/1998b), Lacan também recenseia a literatura psicanalítica clássica, e discute uma série de casos no campo da neurose, envolvendo pessoas autoras de crimes, atendidas pelos mais diversos analistas, muitos dos quais ressaltando o mecanismo dos crimes em função do sentimento inconsciente de culpa. A culpa pode, portanto, ser canalizada para a autopunição. Nestes casos, a clínica do crime dá conta inclusive de uma pacificação do sujeito após a sanção, isto porque a culpa imemorial, como veremos, fica neutralizada, sob o estabelecimento de uma culpa material consignada pela lei positiva, mensurável, que atinge o corpo - ao invés do terror inconsciente - velado ou a céu aberto - da castração.

Por outro lado, Lacan também lembra neste mesmo texto de 1950, que, por mais que esteja invisível à razão moderna, premida pela economia acelerada da produção e do desenvolvimento utilitário da ciência (reduzindo-a à tecnicidade, à tékhne), esta mesma forjou o nascimento de uma criminologia calcada em uma "função sanitária" e "higienista" da pena frente ao problema do crime e do criminoso, esvaziado de suas coordenadas sociais (p. 138). À proposta utilitarista da pena como prevenção contra o crime e proteção contra sua recidiva, escapam os crimes loucos, para os quais, como assevera Jeremy Bentham, a pena seria em "pura perda" (1859), sem nenhuma utilidade. Isto porque o fato tresloucado escapa à sustentação jurídica da pena calcada e assegurada nos ganhos visados no ato infrator, como seu fim útil. Foucault, por sinal, demonstra-o com arquivos, como sabemos, desvelando toda a problemática do conceito e do estigma da periculosidade para os tempos modernos (Perrot, 1996). Lacan adverte: "Uma civilização cujos ideais sejam cada vez mais utilitários, empenhada como está no movimento acelerado da produção, nada mais pode conhecer da significação expiatória do castigo" (1950/1998b, p. 137).

 

O impossível consentimento à inocência, e o punitivismo popular

Se na justiça todo sujeito é em primeiro lugar inocente, para a psicanálise, o sujeito é, de saída, criminoso, ainda que no campo da fantasia. Tal como em Durkheim, para quem o crime é um fator social universal, para a psicanálise, como afirma Jacques-Alain Miller, "nada é mais humano do que o crime" (Miller, 2008).

Interlocutor precioso nessas complexas questões, José Rambeau, psicanalista da AMP/ECF - com larga experiência clínica inclusive em meio carcerário, em seu "Propósito sobre o impossível consentimento à inocência" (2000), corrobora com nossa indagação acerca das políticas judiciárias que concebem algum tipo de suspensão (flexibilização) da presunção de inocência.

 

 

Vejamos. Em 1916, em Os criminosos em função do sentimento de culpa, Freud propõe a figura do criminoso que comete um ato delitivo paraser punido, "para sair do embaraço no qual o estado de inocência sobre fundo de falta inconsciente o precipitava anteriormente" (Rambeau, 2000, p. 47).

Sobre tal embaraço, lembramos, Freud encontra sua fonte em um "sentimento de culpa da humanidade em geral". Como diz:

O resultado invariável do trabalho analítico era demonstrar que esse obscuro sentimento de culpa provinha do complexo de Édipo e constituía uma reação às duas grandes tendências criminosas de matar o pai e de ter relações sexuais com a mãe. [...] Nesse sentido, devemos lembrar que o parricídio e o incesto com a mãe são os dois grandes crimes humanos, os únicos que, como tais, são perseguidos e execrados nas comunidades primitivas. Também devemos lembrar como outras investigações nos aproximaram da hipótese segundo a qual a consciência da humanidade, que agora aparece como uma força mental herdada, foi adquirida em relação ao complexo de Édipo (Freud, 1916/1976b, p. 376).

Quanto ao criminoso por sentimento de culpa inconsciente, Freud em Dostoievski e o Parricídio escreve que

(...) em vez de se punir a si mesmo, ele conseguiu fazer-se punir pelo representante paterno. Temos aqui um vislumbre da justificação psicológica das punições infligidas pela sociedade. É fato que grandes grupos de criminosos desejam ser punidos. O superego deles exige isso; assim se poupam a si mesmos a necessidade de se infligirem o castigo. [...] Em autoacusações desse tipo, a psicanálise vê sinais de um reconhecimento da 'realidade psíquica' e esforça-se por tornar do conhecimento da consciência a culpa desconhecida (Freud, 1928/1976c, p. 215-216).

Apresentadas as coordenadas fundamentais freudianas, convidamos José Rambeau a enunciar sua tese:

A inocência não tem inscrição no inconsciente. Não há significante disponível no Outro para vir responder - da mesma forma como não há significante no Outro para significar a morte, o sexo, ou a Mulher. A inocência se apresenta como um significante ímpar (hors pair) segundo a definição lacaniana de falo, o que significa que não há oposição inocente/ não inocente, aliás em justiça pleiteia-se não culpado, e não, como se esperaria "inocente". Não há prova da inocência, só há presunção de inocência. O sujeito falante não pode fazer reconhecer sua qualidade de inocente, então, senão se reportando a provas de sua não culpabilidade. Isto quer dizer que a medida da inocência não pode se efetuar senão a partir de um outro lugar, a saber, a partir da dialética significante culpado/não culpado. (...)

Fora desta dialética da culpabilidade não há inocência possível, e nem nenhuma salvação para aquele que tomaria a via de reivindicá-la. É que a qualidade da inocência recobre tudo o que o sujeito humano vive fora, ou antes, entre os acontecimentos que marcam as inscrições significantes que dão sentido a sua vida. De alguma forma, é o estado do vivente se agitando fora do sentido, tudo o que o sujeito vive em seu dia e que não obstante não se inscreve em uma cadeia significante. A inocência é, de alguma forma, o estado de gozo de antes do verbo, da matéria gozante, antes de sua mortificação ou circunscrição pela mordida do significante (o cometimento da falta original no mito fundador de Adão) (...).

De onde se sobressai que convocado a dizer sua inocência, o sujeito só pode experimentar o horror diante deste estado que se furta a toda significação, a toda garantia. De forma que pode ser tentador para um sujeito se reconhecer culpado de uma falta que ele não cometeu, em razão da falta de uma inocência atestável. Isto para conseguir alguma paz consigo próprio, quiçá reencontrar seu lugar de sujeito falante na cadeia dos discursos que fazem laço social. Frente ao não senso de sua inocência, ele pode preferir ficar orientado por uma culpabilidade. (...) Na medida em que a inocência não existe na ordem das significações, um sujeito presumido inocente não pode fazer a confissão de inocência como ele faria de uma falta. Ele não pode consentir ao que não se inscreve no campo da linguagem" (RAMBEAU, 2000, p.47-48).

Podemos indagar sobre as práxis jurídicas. Se elas se estabelecem pela limitação do poder de punir, como vimos, em um processo de palavra e têm como efeito a suspensão do retorno para o sistema ancestral de vingança/expiação, então entendemos que o princípio da presunção de inocência venha ser proferido. Diante da impossibilidade estrutural de consentimento à inocência, o direito responde em ato, instituindo o referido princípio constitucional como uma proteção prévia.

Aos deveres, une-se a proclamação de direitos elementares.

Mas, como cernir o que torna possível jurídica, social e politicamente a suspensão, ainda que excepcional, deste princípio? Ocorre abordarmos em nossos cursos a experiência da responsabilidade na era do risco e a correlata demanda por segurança. Seguindo este fio, vamos ao sonho de angústia que precede às Meditações de Descartes, à Segurança, Sicherüg em Kant, comentada por Lacan (1963/1998c), chegando ao panóptico e à defesa da sociedade em Foucault, até, mais recentemente, à François Ewald, filósofo que se dedicou diretamente ao estudo do problema do risco, na modernidade tardia. No contexto jurídico, descobrimos junto a grandes juristas contemporâneos, como Denis Salas ou Pedro Estevam Serrano e Rubens R. R. Casara, entre outros, que a presença nas decisões judiciais do clamor popular por segurança tem sido pensada como uma espécie de mutação, que se daria à partir dos anos 90, e de forma aguçada depois do 11 de setembro de 2001, expresso no discurso político que requer assegurar e punir. Encontrando no direito um eco, este aquiesce à demanda infinita por segurança, deixando seu lugar de dizer o justo com autonomia decisional, em sua função de contrapoder. Esse desvio moralizante da função judicante tem sido tratado no Brasil em diversas pesquisas empíricas nos autos de processos, além de em textos de muitos que compõem esta obra, quase à evidência - Denis Salas chamou de uma "democracia de opinião" (2005 p. 174) e Rubens Casara (2015) ressaltou sua deriva formando o que nomeou de "Processo penal do espetáculo", na era da "Pós-Democracia" (2017), de uma "Sociedade sem lei" (2018). Deslizando a responsabilidade do Quid Juris, para o que se proporia como uma resposta às reivindicações dos Costumes, isto equivaleria a deixar o princípio fundador da legalidade jurídica - sua própria limitação - ao crivo do juízo no nível do senso comum presente nas mais diversas e variadas reinvindicações particulares dos costumes em sua realidade mercadológica e de sua moral vigente. Facilmente e mesmo forçosamente, - diríamos, com a psicanálise -,o espelhamento da demanda punitivista das massas tem de localizar a falta, a culpa, a dívida, nas figuras do Outro. Veremos adiante, mas, por sinal, o próprio termo vingança, desde suas origens, remete à reivindicação.

Em a Vontade de Punir, ensaio sobre o populismo penal, Denis Salas (2005) interroga o furor punitivo que invade as sociedades democráticas, perceptível como propõe, desde a pedra gravada no palácio de justiça na Bélgica, ao 11 de Setembro de 2001 nos Estados Unidos, passando pela legislação compulsiva, como diz, na Europa... "por todo lado, especializa-se uma polícia que ausculta uma sociedade percebida como ameaçadora".

Não seria, portanto, a responsabilidade de sujeito suprimida, quando o suspeito é presumido culpado - sem que a imputação de fatos provados tenha sido cabalmente estabelecida? A vontade de punir deve prevalecer "não importando que a democracia gagueje, perca o fio de seu dizer", diz Salas ( 2005, p. 180).

Um criminoso não pode ao mesmo tempo ser um inimigo político e um sujeito responsável (p. 173) (...). Se é verdade que a figura do outro perigoso domina a nova economia penal, tiremos as consequências: a responsabilidade perde seu ponto de apoio individual e desaparece atrás do risco delinquente. (...) a ruptura é tanto mais clara com os modelos que lhe permitiram pensar a pena (dissuasão, retribuição e reabilitação) sendo todos em uma referência ao homem culpado (Salas, 2005, p.187).

 

Imagem

Se levasse a sério o conselho benjaminiano de valorizar a produção de dardos imagéticos -super-imagens/figurações- do presente3, e, então, nos tardássemos sobre uma imagem que fornecesse matéria à imaginação quanto ao que trazemos aqui, qual seria?

Walter Benjamin, com efeito, fala de uma imagem do tipo instantâneo fotográfico, que pode ser pensada como

(...) aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal, a do ocorrido com o agora é dialética - não de natureza temporal, mas imagética. (Benjamin, 2006, p. 505)

Cabendo ao crítico de arte, ele mesmo um artista, extrair da singularidade da obra, das reminiscências do passado que ela veicula, uma exemplaridade tal do momento crítico no tempo presente, que o efeito é um certo alargamento do pensamento, para além da cognoscibilidade. Imobilizando o "fluxo vivo da existência", a imagem fotográfica aparece-lhe então num estranhamento nascido do confronto entre o "teor coisal" da obra e o momento histórico ao qual pertence o crítico. Só a partir do estranhamento gerado neste encontro, que seu "teor de verdade" pode surgir.

Evocamos Paul Celan. Como se sabe, o poeta judeu, nascido na Romênia, esteve prisioneiro no campo de trabalhos de Buzau, e seus pais foram assassinados pelo regime nazista. Longe de recuar, Celan faz de Auschwitz o evento histórico paradigmático de sua poesia. Em O meridiano, imagens de corpos fragmentados se expõem como emblema de sua poesia.

Para Jorge de Freitas Teodoro (2018):

Campo enegrecido avança sobre o leitor, submetendo-o à condição de receptor do testemunho irrefutável do sobrevivente e da herança memorialística dos mortos (...), submetendo-o à tarefa de dar legibilidade aos restos prenhes de negatividade e memória, que se acumulam e repousam no testemunho irrefutável da catástrofe. De modo que podemos questionar com Celan: a quem subsiste o direito de proferir tal testemunho irrefutável? A essa questão apenas uma resposta é permitida: aos mortos, àqueles que submergiram até o fundo da barbárie e não tiveram forças para retornar. (Teodoro, 2018, p. 61)

O que trazemos como über-bild / super-imagem não vem de uma obra de arte, mas, fazem um "arrêt sur image", um tardar-se sobre uma imagem que obteve grande impacto na nação, extraída de um evento recente. Trata-se de uma imagem, na verdade, advinhada, por meio de relatos envolvendo como os de Celan, "mortos que submergiram até o fundo da barbárie". Impossível esquecer como o Brasil amanheceu na aurora de 2017. Corpos dilacerados dão-se a ver na mídia nacional. Mesmo quem não os viu, imaginou-os pelos relatos: rios de sangue, 56 cadáveres, montanha de crânios, de cabeças decapitadas jorrando vermelhidão no interior de um presídio. Olhos expulsos de suas órbitas, celulares apensos a cabeças destacadas dos corpos mortos, cenas de tortura, presos impondo a outros presos assistirem o terror da tortura, canibalismo (houve quem tivesse de comer olhos alheios) e do massacre diante de si.

Tais fatos ocorreram em uma unidade do sistema penitenciário do estado do Amazonas, em Manaus, no Complexo Anísio Jobim- COMPAJ /AM, reatualizando o massacre do Carandirú, prisão paulista, no ano de 1992 com 111 mortes violentíssimas, e mais recentemente, em 26 de maio de 2019, duplicando praticamente o número de mortes, sendo que ao todo, nestes dois anos, somam-se 222 mortes, na mesma penitenciária Compaj / AM.

Foi tal o quadro trazido aos noticiários do Brasil inteiro, no primeiro dia de 2017, como se a "explosão do calendário" - como diz Walter Benjamin sobre estes momentos que marcam socialmente uma suspensão do tempo homogêneo e vazio, puramente quantitativo, como o do calendário-, fizesse da ocasião propícia a faísca do acontecimento.

 

Considerações finais

Levantar o problema da presunção de inocência, hoje, não pode prescindir desta tarefa de dar legibilidade aos restos prenhes da catástrofe da tragédia anunciada do punitivismo (5), como os de Compaj - tragédia que vem se perpetuando em incessantes repetições do mesmo horror. Para além de culpados ou inocentes -tal Polinices para Antígona-, cada um desses corpos exige retorno, como exigem cada um dos que são privados do direito de não serem expostos às graves condições do parque concentracionário brasileiro, antes da conclusão do devido processo legal.

Segundo a edição de 8/12/17, o Departamento Penitenciário Nacional -Depen, órgão vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, o mais recente Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - Infopen - apresenta dados consolidados referentes a todo o ano de 2015 e o primeiro semestre de 2016. Assim, o total de presos hoje no Brasil é de 726.712 pessoas, dos quais 40% dos encarcerados são de presos provisórios, número que segue em constante progressão, tendo dobrado, de 2005 a 2016. O relatório constata, ainda, que 89% da população prisional encontram-se em situação de superlotação, indo nacionalmente até o dobro das vagas disponíveis, independentemente do regime de cumprimento da pena. - Sendo a maior taxa de ocupação registrada no estado do Amazonas, com 484%.

Teriam todos estes presos provisórios grau suficiente de periculum libertatis acima do direito fundamental e constitucional à liberdade, exigido pela lei para a condenação cautelar? Sabemos que metade destes serão inocentados, após terem sido presos por anos, ou terão seus crimes prescritos antes do final do processo transcorrido em privação de liberdade, ou ainda receberão o relaxamento da privação de liberdade depois de cumprido pena até em nível excedente ao que cumpririam caso condenados tivessem sido.

Podemos então dizer, de alguma forma, que a tragédia do despedaçamento de Compaj, tomada como über-bild - super-imagem, dá a verdade do despedaçamento da própria juris-dicção na cidade que o envolve? Não testemunham esses corps, cadáveres destroçados, o real da política punitivista da era do risco, cujo horizonte, como vimos, é o puro sem-sentido, antes de toda alienação ao significante pelo sujeito desejante, condição absoluta4 de um corpo social, político, jurídico?

Não figuram, enfim -cada um destes presos em forma de cadáveres, anônimos "pelos quais não se faz luto" 5 , o termo ao qual nos leva esta política pautada, como diz Lacan, "nos grandes aglomerados econômicos, nos levando a fenômenos de segregação cada vez maiores" - cuja jurisdicionalidade - cedendo aos imperativos de gozo, determina no horizonte, a revogação do indispensável trabalho da civilização, com os efeitos de desmembramento e agonia da cidade que a fabrica? Tais presos do Compaj - quer condenados ou provisórios -, recolhidos como refugos, rejeitos da produção, como cacos da história dos massacres cotidianos que ali experimentam, não se nos apresentam como instantâneos que revelam uma imagem utópica no horizonte da subjetividade de nossa época, fotografias saturadas de agoras?

Por fim, nunca é demais lembrar - a banda de Möebius ajudando a figurar - a rigor, não há fora e dentro da prisão.

 

Notas

1 Segundo Jaa Torrano, tradutor da trilogia para o português: "Na disposição desde o início de ouvir a ambas as partes e encontrar o que ambas têm em comum como o desfecho da causa e o termo da justiça, a Deusa Palas Atena, presidindo a primeira sessão do conselho no Areópago, dá a palavra às contrapostas Erínias, oferecendo ao acusador a precedência na instrução da questão (E . 582-4). Bem longe de pronunciarem um discurso ininterrupto, como se esperaria que fosse a prática mais frequente no tribunal, as Erínias dão ocasião à [alteridade?], e conduzem uma sequência de interrogações a Orestes que por fim o reduz a apelar ao Deus Apolo e calar-se. Ainda que inusitado e inesperado no tribunal, esse método interrogativo praticado pelas Erínias inegavelmente lembra o método de que Sócrates, segundo Platão, não desdenhou nem mesmo quando fez sua defesa no tribunal. Não menos que reduzir o adversário ao silêncio, o método interrogativo busca estabelecer os termos em que estão de acordo o mestre condutor do diálogo e o discípulo interrogado." (Torrano 2001, p.8)

2 Artigo 11. 1. Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público, no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.

3 Na edição de 03/01/2017 do site do Consultor Jurídico- Conjur https://www.conjur.com.br/2017-jan-03/massacre-prisao-manaus-resultado-punitivismo-estado

4 O objeto a em Lacan, em sua função de causa, é dito condição absoluta. À diferença do incondicionado kantiano, não fenomenalizável, o termo vem indicar sua condição como causa de desejo, tomando-a como uma grandeza negativa - para situar o problema por um próprio opúsculo kantiano.

5 Judith Buttler, citada por Agostinho Ramalho Marques Neto em conferência no Seminário Internacional de Cooperação Brasil-Reino Unido: Direitos Humanos, Saúde e Justiça, RJ, dias 8 e 9 de agosto de 2017.

 

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