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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.12 no.2 Rio de Janeiro Jul./Dec. 2020

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2020v2p.46 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

Do sujeito d'efeito de linguagem ao efeito do poético: psicanálise e linguagem

 

From the subject of language d'effect to the effect of the poetic: psychoanalysis and language

 

Del sujeto del efecto del lenguaje al efecto de lo poético: psicoanálisis y lenguaje

 

 

Vanisa Maria da Gama Moret Santos

Psicanalista. Docente do Curso de Especialização em Psicologia Clínica na PUC-RJ. Email: vanisamariamoretsantos@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo tem por objetivo propor que o sujeito do inconsciente se estrutura como um d'efeito de linguagem e que, ao longo da vida, vai desenrolando em um efeito do poético, especialmente ao passar por um processo de análise. Como um defeito de linguagem, o sintoma do início de análise pode, em algum momento, evoluir para uma escrita mais livre, abrindo espaço para novas significações em torno do desejo. Sustentamos que o efeito poético metonímico, assim como o metafórico, liberta o sujeito para refazer o roteiro de sua trajetória a partir da trama significante a que se encontrava alienado.

Palavras-chave: Sintoma; Linguagem; Sublimação; Poesia; Estrutura.


ABSTRACT

This article aims to propose that the subject of the unconscious is structured as a language effect and that, throughout life, he/she unfolds in an effect of the poetic, especially when going through an analysis process. As a language defect, the symptom of the beginning of one's analysis can, at some point, evolve to a freer writing, opening space for new meanings around desire. We maintain that the metonymic poetic effect, as well as the metaphorical one, frees the subject to remake the script of his trajectory from the plot to which he was alienated.

Keywords: Symptom; Language; Sublimation; Poetry; Structure.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo proponer que el sujeto del inconsciente se estructura como un efecto de lenguaje y que, a lo largo de la vida, se despliega en un efecto de lo poético, especialmente cuando atraviesa un proceso de análisis. Como defecto del lenguaje, el síntoma del inicio del análisis puede, en algún momento, evolucionar hacia una escritura más libre, abriendo espacio a nuevos significados en torno al deseo. Sostenemos que el efecto poético metonímico, así como el metafórico, libera al sujeto para rehacer el guión de su trayectoria a partir de la trama significativa a la que fue alienado.

Palabras clave: Síntoma; Lenguaje; Sublimación; Poesía; Estructura.


 

 

No que se torne o homem coisal - corrompem-se
nele
os veios comuns do entendimento.
Um subtexto se aloja.
Instala-se uma agramaticalidade
quase insana,
que empoema o sentido das
palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos,
um inauguramento de falas.
Coisa tão velha como andar a
pé Esses vereios do dizer
(Manoel de Barros)

Neste artigo trago parte de uma pesquisa em que proponho uma nova visada para o sintoma de entrada em análise como aquilo que, a princípio, o sujeito identifica como um defeito de linguagem. Além disso, proponho pensar sobre os efeitos poéticos metonímicos no desenrolar de uma análise, uma vez que a metonímia é condição para a metáfora e seus efeitos poéticos. Faremos, para tanto, uma retomada de pontos na obra de Freud e no ensino de Lacan no que tange ao tema da linguagem e da poesia em sua conexão com a clínica da psicanálise.

Ao abandonar o método catártico e a hipnose para apostar na talking cure, Freud nos ensinou que o sujeito, com seu sintoma particular, é feito e efeito de linguagem e, por isso, também pode ser refeito a partir do processo linguageiro em um tratamento pela fala. Uma vez que uma análise convoca o sujeito a trabalhar com suas marcas fundamentais, ele terá que se haver com seu mito particular, ou seja, com aquilo que ouviu dizer sobre si e que, em última instância, culminou com o que se condensa em um sintoma perturbador, ou isso que ele identifica como um defeito. Nesse ponto, verificamos - a partir do que apreendemos com Freud e Lacan - que o sintoma é uma metáfora do sujeito sofredor, pois comporta em si uma causalidade múltipla, feita de traços significantes, um verdadeiro enxame de S1's que aponta para um saber sobre si, um S2 que se produzirá em análise.

Uma vez iniciado o tratamento pela fala, momento em que o sujeito não sabe bendizer seu sintoma, será preciso ainda caminhar em sua análise para que os efeitos poéticos metonímicos operem, levando o sujeito a se confrontar com o limite concernente à própria linguagem, pois ao Outro também faltam palavras que confiram um sentido último à própria existência. Afinal, o que marca o desejo do Outro sobre a existência do sujeito senão sua própria falta? Eis a questão com a qual o sujeito terá que se haver em algum momento de sua escrita em análise. Mas há aqueles que iniciam seu trilhamento significante com os ditos do Outro através da poesia, mesmo não se apropriando deles como um saber a mais sobre seu sintoma.

Sendo a sublimação pela via da escrita poética e criativa o destino mais nobre das pulsões, seria possível pensar que uma análise produza efeitos sobre a trama significante inconsciente de tal modo que modifique a forma do sujeito se fazer dizer como um defeito de linguagem e se autorize como um d'efeito de linguagem?

No Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (Lacan, 1970/1992), ao nomear o objeto mais de gozar, Lacan nos diz que só pode se referir ao mesmo por conta do aparato da nomenclatura, esclarecendo que tal objeto é feito e efeito de certo discurso. Discurso que, como sabemos, também é efeito de linguagem, ainda que Lacan o reduza às letrinhas com as quais matematiza os quatro discursos. De qualquer modo, seja como for, tudo o que nos cerca só pode existir por estar imerso na linguagem.

O d'efeito refere-se ao feito da linguagem em seu efeito sobre o sujeito sintomático como um defeito de linguagem. É assim que nomeamos o sintoma, como um defeito do qual tentamos nos livrar a vida inteira até descobrimos que o melhor é acolhê-lo e dele nos servir, sem a ilusão de que a linguagem possa dar conta de nosso ser.

Para entendermos melhor a proposta do sujeito como um defeito de linguagem, recorreremos à linguística diferenciando-a de nosso campo de saber, ou seja, a psicanálise. Em seu livro, Linguística e comunicação (2010), no capítulo intitulado "Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia" (Jakobson, 2010, p. 42), Roman Jakobson fala sobre o "polo metafórico e metonímico" da linguagem ao abordar o aspecto linguístico e não fisiológico das afasias. Relacionamos imediatamente suas articulações sobre os dois tipos de afasia aos estudos freudianos sobre as afasias o que, posteriormente, nos ajuda a desenvolver o que designamos em nossa proposta por sujeito d'efeito de linguagem. Tal noção aqui apresentada, condensa uma série de articulações teóricas inspiradas não somente em Freud, mas naquilo que Lacan designaria em seu ensino por sujeito. Uma noção à qual acrescentamos a ideia contida em seu axioma, "o inconsciente é estruturado como uma linguagem".

 

 

Lembremos, no entanto, que foi Freud quem abriu o caminho para nosso percurso. Não só se dedicou aos estudos sobre o caráter subjetivo das afasias, como ressaltou o aspecto linguageiro do sintoma aí implicado ao analisar as conversões histéricas, tomando o sintoma por mensagens cifradas que se referiam a cenas sexuais elididas ou mesmo deformadas, tal qual ocorre nos sonhos. É importante lembrar que foi na Interpretação dos Sonhos (1900/2013) que Freud desenvolveu sua tese sobre as leis que regem o inconsciente. Pouco antes dessa publicação inaugural, entretanto, em seus estudos iniciais, Freud colhia material importante tanto em seus estudos críticos sobre a concepção das afasias, mas também sobre a histeria. Já naquele momento, Freud conseguia vislumbrar que havia um aparelho de linguagem que regia os sintomas de base não orgânica, ou seja, supôs haver um verdadeiro sistema de representações simbólicas que mais tarde ele designaria como o Inconsciente. Marcado pelo estudo do texto freudiano, Lacan irá afirmar que o inconsciente se estrutura como uma linguagem, inspirando-se em Freud para a construção de seu axioma, como sugere Luciano Elia em seu livro, O conceito de sujeito. Afinal, ao discorrer sobre o inconsciente, Freud sempre se referia a "uma ordem simbólica, a um sistema de articulação de elementos materiais simbólicos, ou seja, à linguagem" (Elia, 2004, p. 37).

Lacan associa a descoberta freudiana sobre as leis do funcionamento psíquico (deslocamento e condensação) a seus estudos sobre Linguística, equivalendo-as à metonímia e à metáfora, respectivamente. Lacan revela a divisão subjetiva de cada um de nós relacionando-a à falta inerente à própria linguagem, pois ela também comporta um limite. Trata-se da falta de um significante que explique nossa existência no mundo enquanto referidos ao desejo do Outro. Essa falta de significante deflagra não somente que o Outro é castrado, como também o fato de que não há relação sexual, como Lacan desenvolverá posteriormente em seu ensino. A falta que herdamos do Outro é representada por Lacan através daquilo que ele designa por objeto a, marca do vazio estrutural que inaugura o desejo e que também se relaciona à angústia.

Como vemos, o conceito de sujeito em Lacan só pode ser concebido a partir do campo da própria linguagem. Mais do que revelar a influência do estruturalismo no desenvolvimento inicial de seu ensino, Lacan deixa claro, em seu retorno a Freud, de onde vem sua inspiração. Afinal, Freud já abordava o inconsciente como um sistema regido por uma estrutura de linguagem, como sabemos.

Também é verdade que Lacan se inspirou na linguística. Como sabemos, Ferdinand de Saussure (1857-1913) "inventa" o signo linguístico. Para ele, o signo linguístico é composto de uma imagem acústica (significante) ao qual estaria necessariamente atrelado um significado. Ideia que Lacan subverte ao atribuir ao significante a primazia sobre o significado, uma vez que este dependeria da articulação entre os significantes.

O renomado Curso de linguística geral (1916/2012), como sabemos, é, na realidade, o registro das aulas de Saussure feito por seus alunos e, apesar de não o ter escrito de próprio punho, produziu uma escrita com seu ato de fala, assim como acontecia com Lacan em seus seminários. O que chama atenção, logo de início do Curso, é a preocupação de Saussure em definir o objeto da Linguística. Afinal, toda ciência que se preze deve ter um objeto para chamar de seu.

No capítulo III do seu Curso, Saussure fica às voltas com o dilema do objeto da nova ciência por ele inaugurada. O que realmente salta aos olhos é o fato dele dar inúmeras pistas sobre a estrutura de linguagem do próprio inconsciente, embora não o nomeie como tal. Saussure tentará, a princípio, definir o que entende por língua diferenciando-a do que entende por linguagem, uma vez que o caráter heteróclito e desnaturalizado da linguagem o impede de vislumbrar o objeto de sua ciência. Ele se questiona, "Mas o que é a língua?" Pergunta à qual acrescentaremos outra, 'O que é linguagem?'. O linguista responde a ambas, "Para nós, ela não se confunde com a linguagem; é somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente" (Saussure, 1916/2012, p. 41).

Saussure dedicou-se com afinco ao estudo dos anagramas na tentativa de descobrir o processo subjacente à criação poética que habilita o poeta à arte de uma escrita criativa. Se, na ocasião de sua pesquisa, pudesse ter lido Manoel de Barros, talvez tivesse encurtado seu caminho. Provavelmente, assim como os poetas, os linguistas precisam dar muitas voltas e errar até tropeçar na coisa.

Barros nos alertou sobre isso, "No que o homem se torne coisal - corrompe-se nele/ os veios comuns do entendimento" (Barros, 2013, p. 243). Mas não descartemos a importância dos achados de Saussure que mereceram o reconhecimento e o respeito de Lacan.

Voltemos ao capítulo III do seu Curso no qual Saussure nos diz:

[...] inicialmente, não está provado que a função da linguagem, tal como ela se manifesta quando falamos, seja inteiramente natural, isto é: que nosso aparelho vocal tenha sido feito para falar, assim como nossas pernas para andar. Os linguistas estão longe de concordar nesse ponto (Saussure, 1916/2012, p. 41)

Portanto, "A questão do aparelho vocal se revela, pois, secundária no problema da linguagem" (Saussure, 1916/2012, p. 41), o que parece corroborar a tese freudiana de que o sujeito não é um ser da natureza, limitado por seu organismo. Mesmo fazendo esses apartes teóricos, questiona-se constantemente ao longo de seu Curso. Cm isso, percebemos que Saussure insiste em sustentar um ideal cientificista, enaltecendo algumas ideias organicistas que priorizam a localização cerebral dos centros de linguagem. Ainda assim, Saussure mostra-se dividido em seu saber e insiste em questionar o que escapa ao seu entendimento. Por exemplo, menciona o fato de Broca1 ter descoberto que "a faculdade de falar se situa na terceira circunvolução frontal esquerda, atribuindo à linguagem um caráter natural" (Saussure, 1916/(2012), p. 41). Isso não o impede de, imediatamente depois, ressaltar o fato de que essa localização não se restringe à função da fala, pois englobaria também a escrita. Além disso, assinala que:

[...] as diversas formas de afasia por lesão desses centros de localização, parecem indicar: 1- que as perturbações da linguagem oral estão ligadas de muitos modos às da linguagem escrita; 2 - que, em todos os modos de afasia e de agrafia, é atingida menos a faculdade de proferir estes ou aqueles sons ou de traçar estes ou aqueles signos que a de evocar por um instrumento, seja qual for, os signos de uma linguagem regular. Tudo isso nos leva a crer que, acima desses diversos órgãos, existe uma faculdade mais geral, a que comanda os signos e que seria a faculdade linguística por excelência. (Saussure, 1916/2012, p.42) (grifo meu).

Eis aqui um momento iluminador e que tanto nos interessa na pesquisa saussuriana. Ele percebe que há uma "faculdade mais geral que comanda os signos", designando isso aí por "faculdade linguística por excelência". O linguista parece até concordar com Freud, ao insinuar que há uma instância linguageira não localizável no organismo. Aliás, vale relembrar que no importante texto metapsicológico, O Inconsciente (1915), Freud afirma que, "Nossa topografia psíquica, no momento, nada tem que ver com a anatomia [...]" (Freud, 1915/1996, p. 179). Desse modo, vemos que o aspecto subjetivo da linguagem é pregnante, pois é praticamente impossível submetê-la a uma codificação generalizável como se pretenderia fazer com a língua.

Bem antes disso, Freud já havia percebido que a linguagem não está sujeita a uma localização anatômica. Em seu livro, Sobre a concepção das afasias: um estudo crítico (Freud, 1891)2, afasta-se cada vez mais dos campos do saber médico-científico que buscavam comprovar a localização cerebral das afasias como distúrbios de linguagem estritamente de base orgânica. Esse importante livro faz conexão entre a neurologia, a psicologia e a linguística. Distingue-se desses campos, pois Freud já vislumbrava que havia algo implicado nas afasias que extrapolava a explicação de base orgânica para sua causalidade. E o que extrapola é justamente o efeito da linguagem (Outro) sobre o aparelho psíquico do sujeito, imprimindo aí uma marca apagada cujos efeitos tentam se fazer dizer, através do sintoma que se apresenta como defeito de linguagem. Para a linguística e para a neurologia, tais defeitos se reduzem à causalidade orgânica, mas, a partir Freud, o elevamos à dignidade de sintoma, ou seja, aquilo que se apresenta no corpo como uma escrita cifrada que contém uma mensagem a ser interpretada pelo próprio sujeito.

Na apresentação da tradução portuguesa do livro sobre as afasias, Coutinho Jorge chama a atenção para o fato de que, já nesse momento, Freud introduz a concepção de aparelho de linguagem. Desse modo, antecipa a noção de aparelho psíquico que só seria apresentada alguns anos depois, no capítulo VII da Interpretação dos sonhos em 1900.

Com Lacan, vimos que o sintoma, que chamamos de defeito de linguagem, funciona como uma metáfora que condensa uma série de representações psíquicas sobre o sujeito das quais temos notícias através da análise, ou seja, no desenrolar de sua trama edípica. Por seu efeito poético, a metáfora leva a uma série de significações que se desdobram metonimicamente, como partes de um todo impossível de dizer. Desse modo, podemos pensar na metáfora como resultante de uma parada num determinado ponto da história do sujeito com o desejo, cristalizando-o num maldito.

Ao dividir o sujeito em suas certezas, a análise o convoca a produzir um novo saber, fazendo seu desejo circular pelas errâncias da linguagem, contrariando a noção de uma linguagem referida unicamente ao código. Em relação a esse ponto, vale a pena ler o que nos diz Luciana Brandão Carreira em Os tempos da Escrita na obra de Clarice Lispector. No litoral entre a literatura e a psicanálise, ao nos relembrar que: "Lacan sustenta o ensino que pratica afirmando que o inconsciente é estruturado como uma linguagem; uma linguagem, todavia, que não é do campo da linguística" (Brandão, 2014, p. 37).

No início de seu Curso, Saussure faz várias tentativas de definição da língua e todas apontam para seu aspecto objetivo, sistêmico e normatizante em contraste com o misterioso campo da linguagem que se apresenta como um animal indomável. Desse modo, estaria dentro do campo da linguagem tudo o que aponta para o aspecto subjetivo e sonoro da imagem verbal a qual não se confunde com o conceito a ela associado (Saussure, 1916/2012, p. 44). Pouco antes de sublinhar esse aspecto subjetivo da linguagem, Saussure tenta imprimir a ideia de que seria possível haver uma comunicação biunívoca entre duas pessoas (A e B). Até certo ponto, Lacan parece dialogar com Saussure partindo das articulações deste sobre a questão da arbitrariedade do signo linguístico, uma vez que tal aspecto sempre fora tema de reflexão desde a Antiguidade, como salienta na "Instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud" (Lacan, 1957/1998, p. 500).

Outro aspecto interessante nessas articulações iniciais de Saussure é a diferenciação que ele faz entre langue e parole, atribuindo a esta o caráter individual e psíquico do ato da fala. Tentaremos sintetizar alguns pontos relevantes sobre a forma como caracteriza a língua. Ele irá dizer que "A língua não constitui, pois, uma função do falante: é o produto que o indivíduo registra passivamente; não supõe jamais premeditação. Por outro lado, a fala, enquanto tal, é um ato individual de vontade e inteligência, no qual convém distinguir: "1- as combinações pelas quais o falante realiza o código da língua no propósito de exprimir seu pensamento pessoal; 2 - o mecanismo psicofísico que lhe permite exteriorizar essas combinações" (Saussure, 1916/2012, p. 45).

Como vimos, Saussure enfatiza que a língua é um objeto social, localizável e bem definido no conjunto heteróclito dos fatos da linguagem. Além disso, "o indivíduo, por si mesmo, não poderia nem criá-la, nem modifica-la, pois ela só existe por conta de uma espécie de contrato estabelecido entre os membros de uma comunidade" (Saussure, 1916/2012, p.46).

Outro ponto importante é o fato de que, para Saussure, a língua é um objeto de natureza concreta de estudo. Embora essencialmente psíquicos, para ele, os signos linguísticos não são abstrações, são tangíveis, passíveis de serem registrados através da escrita. Explica que é pelo fato de se poderem fixar as coisas relativas à língua que existem dicionários e gramáticas que a representem "fielmente".

Embora concordemos com Saussure quanto à materialidade sonora do significante, não podemos desconsiderar o aspecto subjetivo da construção linguageira, pois é justamente isso que nos interessa, quer estejamos no campo das artes e das letras, quer em nossa prática clínica. Afinal, é com a possibilidade de haver um estranhamento dos ditos do Outro, que uma nova escrita pode acontecer e, para que isso aconteça, é preciso errar. A psicanálise não se ocupa da língua como norma culta de modo que todo erro é um acerto de contas com o desejo como costuma dizer Antonio Quinet em seus seminários. Nosso interesse é na linguagem como errância, sendo justamente por isso que podemos afirmar junto a Freud e Lacan que o inconsciente é estruturado uma linguagem errante, ou seja, como uma licença poética. Linguagem que se relaciona com a noção lacaniana de lalangue que, por sua vez, pelo efeito de sua enunciação revela uma significação particular não generalizável ou quantificável.

Foi no escrito, "Função e campo da palavra e da linguagem", também conhecido como "O Discurso de Roma" (Lacan, 1953/1998, p.238-324), que Lacan deixou claro seu descontentamento com os rumos da psicanálise praticada pelos pós-freudianos, sendo transformada em mera prática com finalidades pedagógicas e adaptativas. Tendência que se distanciava da proposta original do próprio Freud. Nesse sentido, a Antropologia de Lévi-Strauss serviu-lhe não só de refrigério em meio à aridez que envolvia a psicanalise, como também de ponte para a Linguística de Ferdinand Saussure, pois, "A linguística pode servir-nos de guia neste ponto, já que é esse o papel que ela desempenha na vanguarda da antropologia contemporânea, e não poderíamos ficar-lhe indiferentes" (Lacan, 1953/1998, p. 286).

Como vimos, em "A instância da letra ou a razão desde Freud" (1957/1998, p. 493-533), Lacan esclarece sua real intenção em dialogar com os linguistas, em especial com Saussure e Jakobson. Lacan desejava reconduzir a experiência psicanalítica aos trilhamentos da fala através da qual o inconsciente se faz dizer. É precisamente nesse texto que traz à luz sua tese de inspiração freudiana de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, desenvolvendo suas proposições particulares ao se servir da teoria do signo linguístico.

De acordo com Saussure, o signo linguístico não une uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica. Ao longo de seu Curso, Saussure confronta-se com o fato de que não poderia haver uma reciprocidade biunívoca entre significante e significado. Sendo assim, afirma que a arbitrariedade é um dos princípios que rege o signo linguístico em uma dada língua. O melhor argumento de que se vale é explicitar o fato de haver línguas diferentes com seus respectivos signos linguísticos para representarem determinados conceitos comuns a todas elas. Por exemplo, em inglês, 'sea' é o signo linguístico utilizado para representar o que em português, representamos por 'mar\ Com Lacan, somos convocados a nos livrar da ilusão de que o significante atende à função de representar o significado ou ainda de "responder por sua existência a título de uma significação qualquer" (Lacan, 1957/1998, p. 501). Freud, porém, descobre que o inconsciente funciona como uma estrutura de linguagem, evidenciando as leis de seu funcionamento, como vimos. Como um rébus3 não só produzia sonhos, mas toda sorte de formações do inconsciente como, chistes, atos falhos, esquecimentos e o próprio sintoma.

Assim como Freud distanciou-se da biologia e da fisiologia, Lacan desvia da rota estruturalista. Nos Outros escritos (1998), no texto intitulado, "Radiofonia" (1970/1998, p.400), Lacan retoma o tema da metáfora e da metonímia, diferenciando a aplicação de sua produção de saber daquela da linguística. Nessa entrevista concedida a uma rádio belga em 1970, Lacan faz vários esclarecimentos sobre a diferença entre a psicanálise e a linguística. Primeiramente, fez questão de reafirmar sua crítica ao ideal cientificista dos estruturalistas. Um ideal que se disseminou, através do discurso universitário, propagando ideias equivocadas como, por exemplo, o erro crasso de pensar que: "o inconsciente é a condição da linguagem" e não o oposto, ou seja, que "a linguagem é a condição do inconsciente" (Lacan, 1970/1998, p. 404). É Lacan quem atribui a Freud o mérito de ter se antecipado à linguística, sustentando que "o inconsciente é a condição da linguística" (Lacan, 1970/1998, p. 403). E Lacan ainda no diz:

Mas a Universidade não disse sua última palavra, e fará disso tema de tese - a influência, na genialidade de Ferdinand de Saussure, da genialidade de Freud - para demonstrar por onde chegaram a um os ares do outro, antes que existisse rádio (Lacan, 1970/1998, p.403).

É por operar a partir do furo da linguagem, que a psicanálise não costuma ser bem vista pelas ciências, muito embora os cientistas precisem dele (do furo) e de uma barra se quiserem fazer suas rodas girarem. Aliás, justamente a novidade da barra entre S1/S2 levou Lacan a prestigiar Saussure, mesmo que discordasse dele em muitos pontos. O desvio e as críticas de Lacan não o impediram de render homenagem àquele que é considerado o pai da Linguística moderna. Especialmente porque Saussure foi o primeiro a ter formalizado o algoritmo do signo linguístico que funda essa ciência, ou seja, S/s como vemos em "A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud", nos Escritos (Lacan, 1957/1998, p. 500). Com esse algoritmo, evidenciou-se, como dissemos, a importância da barra que separa o significante do seu significado. Para Lacan, a barra do signo linguístico merece especial atenção justamente porque ela funciona como barreira à significação. A psicanálise enfatiza a importância desse traço entre S/s, pois é justamente isso que faz barreira à chamada "arbitrariedade" do signo linguístico defendida pelo próprio Saussure. Para Lacan, o que importa ressaltar é que não há uma correspondência entre significante e significado, ainda que estejamos falando a mesma língua. Ele elabora uma teoria do significante partindo do algoritmo: S/s, que deve ser lido do seguinte modo, "significante sobre significado, correspondendo o 'sobre' à barra que separa as duas etapas" (Lacan, 1957/1998, p. 500). O traço, portanto, tem o valor de barra o que privilegia a função do significante em detrimento da ordem do significado. O significante é da ordem do nonsense e não tem relação arbitrária com determinado significado, ou seja, o significante pode significar qualquer coisa. Lembremos que, "a estrutura do significante está, como se diz comumente da linguagem, em ele ser articulado" (Lacan, 1957/1998, p. 504). Além disso, é justamente pelo fato de sempre se antecipar ao sentido, que é possível ao significante comportar em si o efeito de poesia, ou seja, de promover metáforas. Aliás, como vimos, a condensação metafórica é o que vemos acontecer, nas formações do inconsciente, como o sintoma e o sonho.

Ao transpor a barreira do signo linguístico (ou a do recalque, como a entendemos), a metáfora promove múltiplos efeitos de significação, mas é a metonímia que eleva o efeito do poético ao máximo, justamente porque o furo aponta para um gozo a mais, esse que reverbera pela enunciação. Não costumamos nos emocionar ao lermos um dicionário, um anuário ou a ata de uma reunião de trabalho, a menos que isso aí seja proferido de tal modo que nos faça chorar.

É justamente em "A instância da letra no inconsciente" que Lacan demonstra como um significante pode significar qualquer coisa através do clássico exemplo em que trabalha o signo linguístico (Homens-Mulheres/ Porta 1-Porta 2). A partir daí, ele nos ensina que o sentido é precipitado pelo pareamento de significantes opostos, ou seja, é preciso haver outro significante ao qual um significante se articule para que um sentido se precipite. O signo em questão exibido nas plaquinhas esmaltadas sobre as portas indica, portanto, referem-se a banheiros, mas Lacan nos mostra como o mesmo signo pode ser interpretado diferentemente. E para nos provar sua tese, contará uma anedota que resumimos nos seguintes termos: ao chegarem a uma estação de trem, um casal de jovens irmãos exclama: "Olha, diz o irmão, chegamos a Mulheres; Imbecil, responde a irmã, não está vendo que chegamos a Homens? " (Lacan, 1957/1998, p. 502-503). A partir de então, Lacan nos faz ver que o que realmente importa no que tange ao signo linguístico e à cadeia significante na qual está inserido e através da qual se articula é o fato de podermos nos "servir de uma palavra para expressarmos algo completamente diferente do que ela diz" (Lacan, 1957/1998, p.508). Por isso, a importância da poesia para a psicanálise, pois o texto poético nos ensina a escutar para além do dito, a não acreditar no contexto ou nas aparências, pois sempre enganam, mesmo que, por outro lado, revelem que há algo por debaixo dos panos que recobrem o reino perdido de todos nós.

A poesia de Manoel de Barros nos ensina muito sobre como as palavras se empoemam.

O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.

Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa liberdade com a luxúria convém
(Barros, 2013, p.243).

Embora imersos na linguagem, tanto o analisante como o poeta conseguem driblar o recalque ao transpor a barra, imprimindo um sentido a mais à palavra encarcerada, libertando-a do sentido cristalizado pelo dito. Tanto os furos no texto do analisante, como o corte nas associações fazem o poema e o sujeito acontecerem e a trama da letra no inconsciente se tece como uma escrita pulsante, oscilando entre metáforas e metonímias. Sobre esse momento de abertura do inconsciente tão frutífero em metáforas, Lacan dirá:

A centelha criadora da metáfora não brota da presentificação de duas imagens, isto é, de dois significantes igualmente atualizados. Ela brota entre dois significantes dos quais um substituiu o outro, assumindo seu lugar na cadeia significante, enquanto o significante oculto permanece presente em sua conexão (metonímica) com o resto da cadeia. Uma palavra por outra, eis a fórmula da metáfora, e, caso você seja poeta, produzirá, para fazer com ela um jogo, um jato contínuo ou um tecido resplandecente de metáforas (Lacan, 1957/1998, p. 510).

Essa referência de Lacan ao "tecido resplandecente de metáforas" leva-nos de volta à Interpretação dos sonhos (Freud, 1900/2013). Mais precisamente ao capítulo VI desse livro, trecho em que Freud tenta destrinchar seu "Sonho da monografia botânica". Vemos que a análise da palavra "botânica" do sonho funcionou como "um verdadeiro ponto nodal em que convergem inúmeras cadeias de pensamento" (Freud, 1900/2013, p.304-305). Compara o inconsciente a uma fábrica de pensamentos onde o poeta-tecelão, com seu pedal, move a um só tempo mil fios. O poeta ao qual Freud alude é Johan Wolfgang Goethe (1749-1832), cuja obra-prima, Fausto, em sua parte 1, contém o seguinte poema:

Um só pedal mil fios move,
As lançadeiras, disparando, vão e vêm,
Os fios invisíveis não se detêm,
E um só golpe mil junções promove
(Goethe apud Freud, 1900/2013, p.305).

Trata-se de uma alusão certeira e maravilhosa, pois, ao fazê-la, Freud evidencia o funcionamento poético do inconsciente-tecelão de Goethe através da obra Fausto. Como sabemos, o poeta alemão levaria quase toda a vida para finalizar esse poema trágico, considerado por muitos uma das maiores obras primas da literatura alemã. Em outras palavras, o inconsciente, através do falasser, nunca cessa de tecer sua obra. Desse modo, uma única palavra - como acabamos de ver com Lacan - pode fazer jorrar "um jato contínuo ou um tecido resplandecente de metáforas".

Na interpretação do Sonho da monografia botânica, Freud demonstra como a palavra "botânica", dentro do relato do sonho, condensa uma série de representações a ela associadas, resultando, desse modo, numa pletora de sentidos. Por isso sustentamos que o sujeito d'efeito de linguagem pode reescrever-se infinitamente, enquanto durar, como um poema in progress. Para que a criação metafórica tenha lugar, ou seja, para que um dito tenha efeito de poesia, é preciso que o sujeito em sua referência à castração esteja escondido 'entre' dois significantes, provocando um efeito enigmapoético sobre a verdade que o move, como já apontamos anteriormente.

Qual seria o significante oculto senão aquele que aponta para o desejo, isso que sob a barra do recalque, desliza metonímica e incessantemente? Desejo que, com Lacan, dizemos ser do Outro nos dois sentidos que a partícula "do" comporta. Mas se ao Outro também falta o significante que apazígue o sujeito em sua constante indefinição sobre o amor que lhe falta, só resta insistir em colher da floresta de significantes algo além do princípio do prazer. O poeta, como o sonho, jamais pode ser visto no momento do seu ato. Quando muito, sua letra nos deixa os rastros de sua passagem.

Em A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud (1957/1998, p. 496), somos convocados a nos questionar junto a Lacan sobre o sentido da letra desde Freud em sua referência à poesia. De que letra se trata senão daquela que marca o sujeito do inconsciente enquanto um ser de linguagem? É preciso lembrar que, para além da fala, "...é toda a estrutura da linguagem que a experiência psicanalítica descobre no inconsciente" (Lacan, 1957/1998, p. 498). Dito de outro modo, só há análise porque há linguagem. O sujeito do inconsciente só existe porque Freud inaugurou o discurso que nos cabe o qual é tributário do discurso que o funda, ou seja, o da histérica, sendo através deste que o sujeito d'efeito de linguagem faz circular as letrinhas e os sons de que é feito. Letras que chamamos de traços mnêmicos com Freud e que juntas se transformam, com Lacan, em um enxame de significantes, (S1). Para o poeta, o significante não tem que responder por sua existência, a título de uma significação qualquer. Isso é libertador! Não só em relação à clínica, mas também no que se refere à produção poética e artística, pois desobriga o sujeito de ter que fazer sentido a qualquer custo. Nesse sentido, a poesia é resultado de um trabalho do sujeito com a letra do inconsciente. Embora não seja uma formação do inconsciente, a poesia pode funcionar como um significante que represente o sujeito para outro significante do mesmo modo que os significantes produzidos em análise.

Por essa via, as coisas não podem fazer mais que demonstrar que nenhuma significação se sustenta a não ser pela remissão a outra significação: o que toca em última instância, na observação de que não há língua existente à qual se coloque a questão de sua insuficiência para abranger o campo do significado, posto que atender a todas as necessidades é um efeito de sua existência como língua (Lacan, 1957/1998, p. 501).

O poema é uma obra de arte que funciona como um significante que antecede o sentido das coisas que poderá vir a representar, mas aprioristicamente, não tem um sentido único. Só o leitor/analisante poderá, individualmente, operar a mágica da decifração do poema que o fisgou. O poema, como obra de arte nos ensina que o significante nunca se reduz a uma significação, pois a estrutura do significante está no fato dele ser articulado, como dissemos. Daí a importância da recomendação de Freud de que os analistas se interessassem por poesia, o que Lacan seguiu à risca.

Em relação à clínica, o fato de o significante não significar nada por si mesmo permite ao sujeito atribuir novas significações para a metáfora à qual se reduziu ao longo de sua história. É a 'pedra' do sintoma que a análise coloca para correr, pelo rio da metonímia, desbastando-a até chegar ao pó-ético do sinthoma. A escrita em análise renova, por sua insistência, a esperança de um desejo de mudança. Certa vez, no auge da angústia, escrevi um poema sobre um bilhete rosa que dizia de minha intenção de sair pra dentro. Aliás, isso só possível por se tratar de uma operação lógica com a linguagem que só o inconsciente comporta. Afinal, "...é na cadeia do significante que o sentido insiste, mas que nenhum dos elementos da cadeia consiste na significação de que ele é capaz nesse momento" (Lacan, 1957/1998, p. 506). O aparente nonsense que caracteriza a poesia moderna e a arte, especialmente a surrealista, ilustra bem o que chamamos de "a razão do inconsciente", cuja lógica ultrapassa as exigências léxico-gramaticais.

Lacan reconhece a importância do surrealismo e da poesia moderna no que tange à produção disso que ele apontou como centelha poética. Isso nos leva a pensar que a magia iluminante da poesia reside no furo de sentido que só se produz por efeito da inadequação da própria linguagem ao código. Um furo frutífero, pois leva o sujeito a insistir na produção de novos sentidos, metonimicamente, diria. Nem sempre o deslizamento metonímico resulta em efeito poético, pode apenas produzir um texto truncado, confuso, sem nenhum apelo estético. Lacan afirmará que a metáfora se coloca no ponto exato em que o sentido se produz no não senso (Lacan, 1957/1998, p. 512), aludindo também ao chiste como algo que se produz do mesmo modo. É preciso esclarecer que, por estar menos propensa a produzir significações, a metonímia leva a uma perda de sentido, não produzindo o efeito apaziguador de uma metáfora. Por outro lado, seu efeito poético pode ser ainda maior justamente por ser inexplicável a olhos vistos. A linguagem do inconsciente é plena de pensamentos oníricos, absurdos e paradoxos, revelando não haver contradição entre sim e não. No antro da linguagem, tudo é positivado. Assim, Lacan se distancia e se diferencia bastante da noção de linguagem implementada pela linguística. Diferentemente desta que acredita na viabilidade de uma comunicação clara entre emissor e receptor, a psicanálise pressupõe um furo estrutural e estruturante à linguagem, o qual se impõe à mensagem destinada a se fazer compreensível.

 

 

Partindo da Intepretação dos sonhos (Freud, 1900/2013), Lacan nos ensina sobre a instância da letra no inconsciente (Lacan, 1957/1998, p. 513). Logo de início, enfatiza que, para Freud, o sonho funciona aos moldes de um rébus. Por isso: "[...] as imagens do sonho só devem ser retidas por seu valor significante, isto é, pelo que permitem soletrar do "provérbio" proposto pelo rébus do sonho." (Lacan, 1957/1998, p. 514). Assim, no sonho, o significante apresenta-se ligado à imagem fazendo-nos notar que o sonho, enquanto formação onírica é uma imaginarização do simbólico.

No capítulo VI da Interpretação dos sonhos, Freud ressalta que nossa tarefa enquanto analistas é de "[...] investigar as relações do conteúdo onírico manifesto com os pensamentos oníricos latentes e pesquisar os processos que levaram este a se transformar naquele" (Freud, 1900/2013, p. 299-300). Assim, aprendemos que as imagens 'absurdas' do conteúdo onírico se apresentam como um texto enigmático cuja interpretação revela algo do desejo inconsciente ali impresso, chegando mesmo a comparar isso que se produz no relato do sonho com a poesia. Freud também nos lembra de que o analista precisa se abster de levantar objeções contra o suposto nonsense associado ao sonho, advertindo-nos de que, como um representante do desejo, o sonho só pode ser aludido pelas partes, cabendo ao sonhador imprimir sua própria significação metafórica através do relato do sonho. Afinal, as imagens oníricas não fazem sentido algum para o analista; no entanto, "as palavras, assim combinadas não carecem mais de sentido, mas podem resultar na mais bela e mais profunda das sentenças poéticas". (Freud, 1900/2013, p. 300).

Embora os sonhos pareçam longos e cheios de infinitos detalhes, seu conteúdo manifesto, ou seja, o relato propriamente dito, costuma ser bem curto. Freud atribui esse fato ao trabalho de condensação do material psíquico envolvido nesse processo. Por isso, assim que acordamos o sonho nos parece muito claro. Temos, inclusive, a impressão de que sonhamos a noite toda e de que havia uma infinidade de cenas entre o sono e o despertar. Ao longo do dia, contudo, tais imagens vão se reduzindo, como uma calda, até se condensarem em uma sentença, um extrato (extract). Desse modo, quando o analisante diz, por exemplo, "sonhei que pegava onda no mar com um bando de amigos velhos cujos corpos pareciam jovens e saudáveis", ele editou/eclipsou, condensando uma série de cenas. O conteúdo manifesto funciona como uma metáfora por condensar uma série de detalhes (pensamentos oníricos) importantes que poderiam se desmembrar ao longo de dias, semanas, meses, anos se assim o sujeito insistisse em analisar cena por cena atribuindo a elas novas significações. Desse modo, percebe-se que o sonho não é uma tradução fiel dos pensamentos oníricos, mas sim uma representação lacunar e, portanto, enigmática, que aponta para uma série de possíveis associações. Aquilo que está omitido, ou seja, o que foi eclipsado na condensação das representações é, certamente, algo importante e revelador do desejo inconsciente do qual o sujeito só tem algumas pistas.

Como nos sonhos, a poesia metonímica é também uma sequência de imagens, podendo levar o leitor a experimentar certo torpor inebriante, justamente pelo efeito do poético metonímico que, por nada pretender significar, provoca o desejo pela busca de significações. O efeito poético metafórico não ocorre sem a substituição de uma palavra por outra, mesmo que não comportem uma similitude. Diferentemente, o efeito do poético metonímico leva a uma perda de sentido, deixando à vista o furo da linguagem, ou seja, algo que aponta para o desejo. Para Lacan, "... é na cadeia significante que o sentido insiste, mas que nenhum dos elementos da cadeia consiste na significação de que ele é capaz nesse mesmo momento" (Lacan, 1957/1998, p. 506). O efeito do poético metonímico "preenche" o sujeito de nadas, vazios frutíferos de significações. Se, por exemplo, lemos um poema em voz alta, é possível que os "furos" na escuta provoquem equívocos interessantes, justamente por efeito da polifonia a que o significante está sujeito (Lacan, 1957/1998, p. 506-507). Essa também deve ser a base da escuta flutuante que faz equívoco. Desse modo, o ato falho produzido pelo efeito do poético metonímico é certeiro em sua referência ao desejo do sujeito d'efeito de linguagem que comparece não mais como um defeito ou um erro, mas antes como uma licença poética do sujeito errante.

 

Notas

1 Pierre Paul Broca (Sainte-Foy-la-Grande, 28 de junho de 1824 — Paris, 9 de julho de 1880) foi um cientista, médico, anatomista e antropólogo francês responsável pela descoberta do centro de uso da palavra no cérebro, conhecido como ‘Área de Broca’. http://pt.wikipedia.org/wiki/Paul_Broca

2 Estou utilizando a versão portuguesa feita por Renata Dia Mundt do livro de Freud, Sobre a concepção das afasias: um estudo crítico (1891) da editora Zahar, 2014.

3 Rébus é um enigma figurado que consiste em exprimir palavras ou frases por meio de figuras e sinais, cujos nomes produzem quase os mesmos sons que as palavras ou frases representam.

 

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Recebido em: 10/08/2020
Aprovado em: 01/11/2020

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