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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.12 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2020v2p.97 

ARTIGOS LIVRES

 

Pintura, escrita e loucura: necessidade de arte, arte da necessidade

 

Painting, writing and madness: need for art, art of need

 

Peinture, écriture et folie: besoin d'art, art du besoin

 

 

Gustavo Henrique Dionisio

Departamento de Psicologia Clínica FCL Unesp Assis. E-mail: gustavo.h.dionisio@unesp.br

 

 


RESUMO

O recorte visa dar um pequeno panorama da relação arte e loucura no Brasil a partir de 3 fragmentos: 1°) elencamos os elementos médico-filosóficos que concorrem quando se tenta falar desta fricção; 2°) apresentamos um fragmento histórico significativo nesse contexto: um resgate da recepção que a crítica de arte teve diante do Museu de Imagens do Inconsciente (entre 1940-1960). 3°) Por fim, esboçamos uma reflexão sobre a escrita de Stela do Patrocínio, que se tornou um exemplo ótimo sobre os modos de pensar a relação arte e loucura hoje.

Palavras-chave: Arte brasileira; Loucura; Museu de imagens do inconsciente; Stela do patrocínio.


ABSTRACT

This article focuses on three points that can summarize some historical picture of the relationship between art and madness in Brazil: 1) it lists the medical-philosophical elements that tend to compete when we speak of this "friction"; 2) one important episode is presented in this context, and it consists in the rescue of the art reception that the art critic had about the art works exhibited by the Museum of Images of the Unconscious (between 1940-1960). 3) In conclusion, we bring some reflection on the writing of Stela do Patrocínio, which became a prime example of this reception and in the ways of thinking the relation art and madness on the present day.

Keywords: Brazilian art, Madness; Museum of images of the unconscious; Stela do patrocínio.


RESUMÉ

Cet article est divisé en trois points qui visent à donner un petit aperçu historique de la relation entre l'art et la folie au Brésil: 1) il vise à énumérer les éléments médico-philosophiques qui tendent à se concurrencer lorsqu'on parle de cette « friction » art-folie; dans l'autre coté, 2) il y a un fragment survenu au Brésil qui nous semble significatif dans ce contexte: l'accueil que les critiques d'art avaient devant les reuvres exposées par le Musée des images de l'inconscient (entre 1940-1960). Pour conclure, quelques réflexions sur l'écriture de Stela do Patrocínio sont esquissées, elle qui à nos yeux est devenue un bel exemple de cette réception et des manières de penser le rapport entre l'art et la folie maintenant.

Mots clés: Art brésilien; La démence; Musée des images des inconscients; Stela de parrainage.


 

 

Introdução

É preciso advertir sempre que, ao se tentar falar da relação arte-loucura, invariavelmente acabamos tendo que partir de um acontecimento histórico específico, verdadeiro divisor de águas neste contexto, que foi a consolidação, ainda na primeira metade do século XIX, da medicina psiquiátrica como ciência hegemônica da psique. Com efeito, é necessário fazer esse recorte de antemão, já bastante extenso e arriscado, porque implica dois pressupostos fundamentais para qualquer um que almeje tocar nesse tema: primeiro, é preciso ter em mente que a medicina psiquiátrica, de fundo claramente organicista e de mãos dadas com certa psicologia, apropriou-se da loucura como objeto privilegiado de sua pesquisa e de sua intervenção, reinterpretando-a a ponto de transformá-la em doença mental. Ora, tem-se, hoje, uma boa ideia a esse respeito porque, como se sabe, os textos de Foucault (Doença mental e psicologia e História de loucura na Idade Clássica) são particularmente decisivos quanto ao assunto. Segundo ele, a modernidade se caracteriza como sendo um período de grande exclusão dos anormais do cenário público, não muito distante do que ocorreu com a Idade Média, mas com a diferença de que isso tudo é justificado, já na modernidade, através de lentes científicas, embora esta "cientificidade" se apresentasse, no geral, excessivamente contraditória; mas, ao criar uma categorização nosológica que se espalha em proporção geométrica no corpo social - a saber, a doença mental -, exige-se, por conseguinte, a instituição de seu respectivo tratamento. Ora, ainda que o dispositivo asilar já não fosse novidade desde o século XVII, cabia agora aos psiquiatras a tarefa de separar a doença mental das demais condições indesejadas pelo social. Eis que surge, por conseguinte, um sistema asilar específico para o enclausuramento dos doentes mentais, medida complementar e imprescindível à pertinência desta mesma medicina.

Foucault mostrou exaustivamente nesses textos (1994; 2000) em que medida a categoria de doença mental se tornou o mediador da relação entre a loucura e a razão na modernidade, uma vez que a razão seria justamente a exclusão da loucura; em outras palavras, razão e loucura (desrazão) se tornam, por ação da medicina psiquiátrica, inimigos mortais, de modo a fazer com que o louco passe a ser doente por perder a razão. Ainda assim, cabe lembrar que essa exclusão teria sido antecipada muito antes, e remonta à razão cartesiana que pretende escamotear do pensamento, isto é, do logos o pathos da loucura para que então se pudesse afirmar, de uma vez por todas, como razão "plena de si".

O outro pressuposto concerne à impossibilidade da tarefa: reconstituir a história da relação arte-loucura sem circunscrevê-la junto à aparição da psiquiatria nos conduziria a um tempo imemorial, ao próprio marco zero da história da loucura, ou seja, é muito provável que arte e loucura formem uma dupla que já anda de mãos dadas desde o início de ambas.

 

Das principais questões estéticas que permeiam o campo arte-loucura

São várias as denominações que esse tipo de arte "marginal" já ganhou ao longo do tempo: arte "bruta", arte "outra", "incomum" ou "virgem" - tais são os principais predicados que fazem parte de um conjunto de definições que, não obstante, não se encerra por aí. Além do mais, somam-se a isso quatro "poéticas" que concorrem nestas concepções: ora os trabalhos são comparados à arte primitiva, ou seja, àquela ligada a culturas de povos ancestrais, o que implica pensarmos num certo arcaísmo próprio às imagens; ora são entendidos como mais próximos da arte popular ou naif, em função de sua simplicidade, humildade até, pressupondo a idéia de uma ancestralidade comum. Em outros momentos, a questão se desloca à arte infantil, isto é, à expressão da criança, em virtude de um espírito de composição tanto instintivo, logo, espontâneo. Finalmente, a arte no hospital parece completar esse rol de manifestações que, de acordo com certas análises, têm como característica comum a "estrutura infantil de condutas" (Dionisio, 2012).

Há um dado complementar importante a esse respeito, em termos estéticos: as poéticas de evasão iniciadas nos primórdios do século XX tiveram como resultado extremo, e isso não por acaso, uma valorização hiperbólica dos desenhos das crianças e alienados. Mario de Micheli sugere, neste sentido, que todo o espírito que se vai formando da ascensão da burguesia europeia até o mito de evasão atualizado pelas vanguardas históricas configuraria, ao fim e ao cabo, um desejo incessante de procurar o que ajudaria os artistas a se alijar "das regras de uma cultura comprometida a seus olhos" (1983, p. 66). É nesse sentido que Gauguin vai à Polinésia, Kandinsky ao norte da África, Klee segue para a Tunísia e Segall acaba vindo residir no Brasil.

É precisamente disto que se trata quando pensamos no "caráter estético" das imagens originadas nesta relação arte-loucura: o mito do selvagem, e por extensão todo o processo que culmina neste espírito que aprecia o primitivo, o tosco e o bruto, não seria outra coisa senão um desejo (caracteristicamente) moderno do "encontra-te a ti mesmo". Essa procura de desenraizamento fora então uma tentativa, dos artistas, de sair de si para retornar a si, já que o saldo do retorno consistiria em ganhar uma certa isenção da chamada civilização e de seus vícios, vale dizer, uma possibilidade de se afastarem da hipocrisia, dos convencionalismos e da corrupção, não apenas no nível dos ideais mas também fisicamente.

Migrando do terreno artístico ao circuito médico, a produção expressiva dos "alienados" ganhava uma importância considerável pouco antes desses acontecimentos. A partir da segunda metade do século XIX, e principalmente com a curiosidade em torno do suicídio enigmático de Jean-Jacques Rousseau, a psiquiatria francesa se vê com os ânimos "excitados" pelo fenômeno: o reconhecimento propriamente dito de uma arte da loucura se dá por volta de 1860, "e ela é coisa de psiquiatras" - afirmam a esse respeito Frédéric Gros (1997, p. 169) e Monique Plaza (1990). Tanto o material escrito quanto o plástico produzido pelos pacientes passam a ser objeto de análise e interpretação, constituindo-se para a psiquiatria da época (embora isso se estenda até meados do século XX) como documento patográfico que autorizaria perfilá-las (o escrito e a pintura) em um mesmo degrau.

Esse conjunto de episódios é delineado justamente no período em que o século XIX assistia a uma marcada transformação nos campos da ciência e da arte. Já em 1857, um médico escocês chamado Browne traria a público um livro intitulado Art and madness, no mesmo passo em que Cesare Lombroso, famoso teórico da antropologia criminal e colecionador declarado de "arte asilar", publicava Genio e follia, no qual defende, por exemplo, e de modo bastante pseudocientífico, que "a loucura gera e alimenta o gênio" (Plaza, 1990, p. 21). Charcot, que teve como frequentadores de seu curso escritores do porte de Maupassant e Daudet, estudou Os demoníacos e os enfermos na arte em 1880. Na América Latina, já em 1899, o médico argentino Jose Ingenieros comunica a seus alunos La psicopatologia en el arte, que viria a se tornar livro vinte anos depois.

O interesse vai estendendo suas fronteiras por meio de outros pesquisadores, tais como Auguste Marie, que abria em Villejuif uma coleção chamada Musée de la Folie; em 1905; devem ser citados também os nomes de Vinchon, Marcel Réja, Morgenthaler, e sobretudo Hanz Prinzhorn, que foi o primeiro a afirmar a possibilidade de encontrar capacidades artísticas naqueles que foram acometidos pela doença mental. Houve ainda a confluência histórica que caminharia para a inserção da "arte dos pacientes" no campo da terapêutica e da "cura", capitaneadas pelo psiquiatra Robert Volmat desde o início da década de 1950; Volmat foi o responsável pela organização da I Exposição de Arte Psicopatológica do mundo, um congresso cuja função era somar o interesse dos "documentos" patográficos ao rol das atividades do I Congresso Internacional de Psiquiatria de Paris, em 1950.

Fica claro o que há de comum em todos esses autores - o método: trata-se basicamente da comparação da pintura do louco com a expressão dos povos primitivos, das crianças, dos artistas naif, como eu disse no início, mas também se incluem aí artistas modernos - especialmente os expressionistas. O objetivo médico mais imediato, cujo viés granjeava, a propósito, aumentar a acuidade de seu instrumento diagnóstico, exigia levar em consideração o auxílio das obras para esse fim. Uma vez entendidas como documentos clínicos, tornavam-se rapidamente provas irrefutáveis da condição mórbida de seus autores, sobretudo quando anexadas à observação empírica do doente.

Ora, a ligação entre arte e loucura, diferentemente de outras épocas, começava a ser ressignificada ali sob a ordem da vontade nosográfica. A realidade material do escrito e do desenho exerce agora a mesma função de um recurso legal, e com esta estratégia a medicina psi se impunha como detentora de uma suposta verdade que estaria escondida, em filigrana, na loucura já agora definitivamente tornada doença mental. Lombroso, por exemplo, ganhou adeptos de peso neste momento: a teorização de Morel ou de Moreau de Tours, pesquisadores eminentes à época, continuavam a aproximar o louco do gênio, de modo que ambos se encaixariam na chave da excentricidade de comportamento. Trata-se de, com efeito, uma curiosa inversão: o excêntrico é expulso do senso comum e se torna classe nosológica (à sua revelia, claro), na mesma medida em que a "superexcitação intelectual" desses indivíduos (sendo isso um dado claramente observável pelos psiquiatras) denunciaria a natureza patológica do processo criativo. A mistura feita neste momento entre o gênio e o louco refaz o caminho da violência classificatória que reafirma a força de certas ideias que soam insuportáveis à humanidade, delegando-se ao sujeito louco, mas também gênio, o lugar do homem "possesso". Trocando em miúdos, o que está em jogo para esses psiquiatras não é afirmar que o louco pode ser gênio, mas sim que o gênio pode ser louco.

Vejamos, nesta perspectiva, o que o Dr. Toulouse conseguiu escrever a respeito de Émile Zola:

não é nem epiléptico, nem histérico, nem alienado. É um neuropata sofrendo desde muito tempo de problemas nervosos incômodos e persistentes, tais como: contratura das acomodações, falso infarto, falsa cistite, enurese constante, dor difusa, idéias mórbidas de dúvida, aritmomania (Gros, 1997, p. 141).

Deste modo, o prestígio da arte produzida na loucura criativa ganhava seu espaço dentro de um quadro de táticas de poder visadas a reforçar ideologicamente os alicerces institucionais da psiquiatria, mantendo o profissional como expert no interior da lógica manicomial, função até certo ponto bastante demandada pela ordem social, leia-se, a de isolar, aprisionar, e por fim exterminar tudo aquilo que lhe é impróprio: desordem de sentimentos, incoerência, superexcitação dos nervos, debilidade, alucinação, ideias delirantes e por aí segue a lista. Fica claro então que as ideias de "genialidade (mórbida, no caso)" e de "degenerescência" somente foram aproximadas pelo uso de certas estratégias de controle, ou melhor, de uma junção arbitrária que advém de uma psiquiatria que progredia muito pouco em seu trabalho clínico.

Com Marcel Réja (pseudônimo de Paul Meunier), entretanto, a dinâmica arte-loucura ganha um novo impulso. Atualizado em meio a uma cultura manifestadamente modernista, Réja conclui que "a arte do louco é a arqueologia espontânea da grande arte. Ela é seu revelador absoluto", e denuncia a história originária de toda a grande arte, da caverna de Lascaux até o presente (Gros, 1997, p. 186). Cinco anos antes, Kandinsky previa essa relação trans-histórica ao perceber que "na superfície de nossa cultura uma figura se deplora, fazendo aflorar momentos de inocência" - ou seja, justamente o louco. Klee, por sua vez, sugeria que nestes, assim como nas crianças e nos primitivos, se conservaria a nossa faculdade máxima de ver. Estiveram ainda presentes nesta discussão surrealistas como Breton, Éluard e Ernst, numa espécie de conluio que cria um discurso mais ou menos homogêneo para críticos e artistas em torno da relação arte-loucura, mas agora positivada (pelos artistas) com a entrada do século XX.

Outro personagem de fundamental importância é o poeta Antonin Artaud; internado por várias vezes, costumava definir a literatura como "uma coisa que é o próprio grito da vida" (Plaza, 1990, p. 31), e serviu de estrela-guia para a reflexão da Dra. Nise da Silveira ao longo de toda a sua carreira.

Para concluir esta seção, resgato o conjunto das quatro "poéticas" que concorrem na definição da arte-loucura: o infantil, o naif (popular), o primitivo e a arte no hospital. Em comum, é importante ressaltar, há o traço de instantaneidade que entrecorta as diferentes acepções, embora ela não deva ser compreendida no sentido da pressa, isto é, de uma manufatura que seria feita de qualquer jeito, "sem arte". Como indica João Frayze-Pereira, "essa condição que faz do artista um inspirado não significa espontaneidade selvagemente criadora por oposição à disciplina profissional. Ao contrário", acrescenta, "se nos concentrarmos sobre o trabalho concreto de alguns artistas do Museu de Imagens do Inconsciente", aos quais me detenho logo a seguir, verificaremos que nenhum deles "pode ser visto pela ótica da improvisação" (Frayze-Pereira, 1999, p. 20-21).

 

Recepção e crítica: debate sobre a "arte dos loucos"

Em vista disso, cabe mostrar a recepção que a crítica de arte teve das exposições realizadas aqui no Brasil pelo Museu de Imagens do Inconsciente, que aconteceram entre as décadas de 1940 e 1960; quanto a isso, acho que vale a pena mencionar esta investigação à qual me dediquei há alguns anos sobre o "debate estético" que ocorreu naquele momento, por meio da imprensa. O ponto de partida foi então a discussão acirrada que viria a se estabelecer entre os críticos de arte Mário Pedrosa1 e Quirino Campofiorito2.

Houve em nosso país um verdadeiro clima de criação de ateliês de pintura dentro de hospitais psiquiátricos: Nise da Silveira instalou o Setor de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação no Rio - setor do qual o Museu de Imagens do Inconsciente, que surge logo na sequência, será uma decorrência "natural", enquanto Osório César3 montava uma Escola Livre de Artes Plásticas em pleno Hospital do Juqueri, São Paulo; é possível dizer que ambos foram concebidos em meio a uma "onda" de implantação de museus por aqui: os MAM, por exemplo, eram inaugurados no Rio e em São Paulo em 1947 e 49, respectivamente, enquanto que o Museu de Imagens do Inconsciente nascia em 1952.

Nise da Silveira, com a colaboração de Almir Mavignier4, organiza em 1947 uma primeira exposição no interior do grande hospital, despertando o interesse não só de psiquiatras, cientistas e profissionais da saúde em geral, mas também a atenção do circuito de arte. Essa exposição ganhou o comentário de Antonio Bento, Marc Berkowitz, Rubem Navarra, Flávio de Aquino, Quirino da Silva, Menotti del Picchia e Sergio Milliet, além do próprio Pedrosa e de seu debatedor, Campofiorito. Sobre a mostra, encontram-se minutas em vários jornais do Rio e São Paulo.A maior parte das reportagens interpretava a situação mais pelo lado científico do que propriamente estético, como se podia verificar: a mistificação do tema exposição de alienados, como em geral fora divulgada, levantava a suspeita de saber se seria possível bater o carimbo de arte naqueles trabalhos, uma tendência que se tornara quase unânime e que ainda hoje irradia vez ou outra; como será possível perceber, para esse tipo de recepção mais importa quem executa o trabalho do que a fatura propriamente dita.

 

 

As exposições dos artistas de Engenho de Dentro começaram a ganhar corpo na segunda metade da década de 1940. Reconhecendo já a "capacidade" dos participantes, Pedrosa antecipa no Correio da Manhã a síntese de sua reflexão sobre aquela arte: "o fenômeno artístico é irredutível", escreve ele, "independente de qualquer explicação puramente externa ou histórico-evolutiva, apresentando-se em todos os quadrantes, em todas as épocas da humanidade e em todas as idades individuais" (04/02/1947). Cito essa passagem porque considero que aqui o autor se dirige a uma reportagem intitulada "A exposição dos malucos" que, além desta chamada altamente preconceituosa, ainda dizia: "Nenhuma diferença existe entre a técnica e a substância das composições nas qualidades semelhantes de numerosos artistas plásticos que por aí andam soltos e louvados escandalosamente pela crítica. Se não se avisasse o público de que o certame atual é de malucos todo mundo acreditaria estar diante de frutos da escola que o antigo Ministério da Educação erigiu em padrão de beleza no Brasil e com cuja propaganda se gastaram rios de dinheiro. Prova-se, além disso, que a cura do Hospício é de graça..." Isto foi publicado em A Notícia, de 05/02/1947, e o artigo não foi assinado.

Não era incomum, então, a proposição de comparações entre as imagens produzidas pelos pacientes e certas obras provindas do modernismo, sobretudo aquela considerada de vanguarda: colocar lado a lado artistas modernos e pacientes psiquiátricos tinha uma dupla função, muito precisa, aliás: por um lado, ela consiste em desvalorizar a imagem, julgando-a como uma simples cópia da arte com A maiúsculo (Nise jurou de pé junto, até o final da vida, que os pacientes do CPPII nunca tiveram uma aula de pintura sequer ao longo do tempo que estiveram internados. Sua produção era, portanto, segundo ela, autêntica e espontânea); quanto a isso, podemos perguntar se em vez de cópia, não seriam elas imagens dialogantes com a história da arte, coisa que qualquer artista faz necessariamente para nela (na história da arte) se inscrever. Por outro lado, fazer esses paralelos é uma ação que também almeja rebaixar a arte moderna, e com ela os seus artistas, colocando-os muitas vezes sob a insígnia da degeneração, como no caso da reportagem que acabei de citar. Vale lembrar que o III Reich chegou a organizar uma exposição com esta finalidade (Entartete Kunst). Logo, tais paralelos não serviam para reconhecer a "capacidade artística" dos pacientes, mas sim para provar a demência dos que se consideravam artistas.

A grande polêmica em torno da questão se inicia com o próximo artigo de Mário Pedrosa: "Ainda a exposição do Centro Psiquiátrico". Ele tomará parte diante do que julgou ser pura má compreensão de uma imprensa que identificou justamente a arte dos loucos à arte dos artistas modernos por meio dessa redução simplista, sobretudo porque "ninguém impede que essas imagens sejam, além do mais, harmoniosas, sedutoras, dramáticas, vivas ou belas, enfim, constituindo em si verdadeiras obras de arte", escreveu, contrariando a vulgarização crescente do tema. Afinal, era óbvio que o objetivo não era expor as extravagâncias de "malucos", assim ponderou Pedrosa, mas

de educar também o público, de levá-lo a compreender que esses jovens e esses homens que se encontram "asilados" existem também como nós, tem os seus problemas que não são muito diferentes dos nossos, são sensíveis como nós outros normais, tem o que dizer até de que nos instruir, e podem viver absorvidos em atividades externas como qualquer funcionário, comerciante, doutor ou cozinheiro. Já é tempo que todos compreendem de que os limites entre o normal e o ligeiramente anormal, entre o equilibrado e o pouco equilibrado é muito facilmente transposto (07/02/1947).

Finalmente surge, às claras, o antagonista: o pintor e crítico Quirino Campofiorito se posiciona, no calor da hora, ressaltando a importância deste empreendimento que tentava proporcionar aos doentes uma possibilidade para "purgar suas emoções". De acordo com ele, no entanto, por si só as manifestações dos esquizofrênicos nunca poderiam vir a ser grande arte: não havendo "controle racional" (sic) sobre a atividade, a produção ficaria reduzida "somente ao interesse médico", ainda que se possa observar o "fácil extravasamento e absoluta eloqüência psicológica" (21/02/1947) daquelas imagens. De acordo com Campofiorito,

Essa exposição de trabalhos de débeis mentais não podia deixar de assanhar a debilidade intelectual daqueles que, sem nada realmente entenderem das coisas da arte, perambulam, entretanto, de uma maneira ou de outra nos setores artísticos. Por isso tivemos a oportunidade de constatar as reportagens sensacionais e os tópicos venenosos aparecidos na imprensa, apreciando a relação que realmente existe entre esses trabalhos apresentados pelo "Centro Psiquiátrico Nacional" e certas expressões de arte em nossos dias. Naturalmente essa relação não pode ser devidamente apreciada em sua justa medida, pelos autores de tais reportagens e tópicos. O exagero que emprestam a essa relação é sempre muito ampliado, mas ainda assim, muito diminuto se o comparamos a incomensurável ignorância desses senhores. Deviam eles melhor respeitar a Arte, da qual não entendem patavina, e também saber julgar uma iniciativa que está colhendo os melhores resultados sob o ponto de vista científico, que é a prática do desenho e da pintura (...).

Não seria o interesse científico o mote principal de uma exposição como essa?, pergunta-se Campofiorito. Ora, "conquanto se tratasse de uma mostra de desenhos e pinturas", declara, "o ponto de vista científico deveria ser dominante". O caráter artístico das telas encontra seu limite com a debilidade mental (sic) dos pacientes. "Assim, mesmo a obra de arte perdurará num plano muito outro graças ao rigor da disciplina de instinto que o artista se obriga sem jamais abdicar da autoridade que a natureza lhe faculta sobre a própria consciência"... (isto é publicado em 05/03/1947). Com efeito, é preciso advertir que a confusão entre doença e debilidade mental ocorre ainda hoje, e é comum uma ser tomada pela outra; além do mais, a própria categoria de "alienados", que dificulta ainda mais a compreensão do problema, era usada com muita freqüência e pouco questionamento naquela época. Mas não demora para percebermos o núcleo da polêmica: em sua próxima nota para A Noite, na qual Campofiorito esclarece sua posição definitiva frente à arte dos loucos - em particular - e à arte moderna - em geral -, lê-se que

A obra de arte, em realidade, é a um tempo extravasamento e penetração psicológica. Por isso achamos corretíssima a velha definição de que a Arte é a natureza através de um temperamento. Da força desse temperamento depende a expressão da obra de arte. O temperamento artístico é uma força inata e incontida, com propriedade de extravasamento e penetração sentimental psíquicos.
O adulto é artista quando possui temperamento capaz de fazer vibrar seus sentimentos íntimos, extravasando-os de tal forma que a ir de encontro as suas propriedades de penetração no motivo interpretado. O contato destas duas energias acendem a luz da criação (07/03/1947, grifos meus).

O debate se torna cada vez mais agressivo. Pedrosa faz questão de alertar os leitores de que as mostras de Engenho de Dentro obedecem a critérios de seleção rigorosamente artísticos, demonstrando assim que o fenômeno da criação é - e isso eu acho particularmente potente na crítica de Pedrosa - "inerente a todo homem dotado de sensibilidade e talento, e por isso mesmo se verifica tanto na criança como no adulto, no letrado como no analfabeto, no primitivo como no civilizado, no são como no insano" (27/11/1949).

Campofiorito, contudo, mantém sua posição: a discussão só se sustenta, para ele, no que tange à saúde (ou doença, no caso) mental. A dimensão científica da mostra se fixa cada vez mais como ponto central em sua argumentação, de modo que ele não consegue ressaltar outro valor nas pinturas que não seja ligado à iniciativa de uma terapêutica ocupacional. Para ele, o artista tem a obrigação de ser um profissional "digno" e convicto de seu métier, o que não ocorreria necessariamente no exemplo dos Nove Artistas, em quem a enfermidade influenciaria de forma nociva no processo de criação, "sintomatizando-a". Deste modo, e sem esforço intelectual (que nos internados estaria ausente, segundo ele), a sensibilidade se perde e o sentido coletivo da obra não ultrapassa o do simples exercício. Campofiorito chega, inclusive, ao exame do pensamento freudiano, quando considera que sua "influência perniciosa" mais atrapalha que ajuda. O exagero das afirmações do pai da psicanálise possibilitaria os artistas a justificar suas fraquezas, em vez de "repará-las com as energias morais que a própria natureza lhes dá" (29/11/1949). Tais censuras se prestam novamente àquilo que não sem ironia ele veio a chamar de "séqüito da arte abstrata". Desse momento em diante, sua voz apresenta mais e mais indignação.

A caturrice (digamos assim) de nossa crítica não ultrapassará o plano artístico em que possam ser situados os trabalhos desses enfermos. O rigor de nossa opinião opor-se-á apenas ao exagero a que está chegando a crítica de arte, cuja atitude reflete o pernicioso sectarismo que já existe no terreno artístico e para o que a exposição "9 artistas de Engenho de Dentro" está servindo de simples pretexto (11/12/1949).

Não demora Pedrosa percebe o positivismo de tais declarações, e Campofiorito ganhará finalmente a pecha do "representante da crítica hostil": sua solicitude com relação aos emblemas diagnósticos que garantem ou não o atestado de artista justifica o tom de blague de Pedrosa. De fato, Campofiorito jamais concederia o selo de arte para aquelas obras - o que acabou dando ainda maior visibilidade a elas, como não poderia ser diferente! O grande interesse dos artistas e da crítica pelo fenômeno de Engenho de Dentro (uma "sobrevalorização", diria Campofiorito) era o principal objeto de sua condenação: já é possível perceber o quanto ele estava mais preocupado em censurar aqueles que se diziam artistas de vanguarda do que olhar para as imagens da exposição, e em seu derradeiro posicionamento propriamente estético sobre as Imagens do inconsciente, já não era mais possível esconder: "se alguns artistas produzem coisas que a esses trabalhos se assemelham", confessa, "é preciso considerar que nesse fato reside a debilidade dessas obras" (p. 65, antídoto, grifos meus).

Já a posição de Pedrosa é, como vocês podem perceber sem dificuldade, radicalmente oposta. A respeito de um dos internos (Carlos Pertuis), e já passado o debate, declarou (ali pelos anos 1980): "Sua arte é feita de essência, límpida, e quer, acima de tudo, ser inteligível" (Pedrosa, 1994, p. 164). Destaco esse último predicado porque ele vai na exata contramão do que toda visão mais conservadora costuma dizer a respeito das obras de muitos pacientes. Ora, a exigência de simetria, ordem, e organização arquitetônica em Carlos não seriam provas incontestáveis de sua inteligência pictórica? Afinal, como um psicótico internado há tanto tempo, crônico e, portanto, incurável, poderia almejar tamanha inteligibilidade?

É preciso admitir, no entanto, que a situação atual é bastante diferente, e isso por uma série de fatores. Percebe-se, por exemplo, e sem muita dificuldade, que a cultura vem sofrendo um alargamento real de fronteiras para que trabalhos como esses pudessem ser vistos na atualidade sem tanta estigmatização. No estado contemporâneo da arte, neste sentido, ninguém duvida mais que Arthur Bispo do Rosário seja um artista; do mesmo modo, pouquíssimos de nós concordariam que Stela do Patrocínio não seria poeta, ainda que possamos nos perguntar, justamente, sobre a "inteligibilidade" de seus escritos -sobretudo quando lemos algo como:

O futuro eu queria
Ser feliz
E encontrar a felicidade sempre
E não perder nunca o gosto de estar gostando
O que eu penso em fazer da minha vida
É encontrar a felicidade, ser feliz Ficar gostando e não perder o gosto
Ser feliz
Encontrar a felicidade
E não perder o gosto de estar gostando [,]

o que não retira, definitivamente, sua potência poética. Mas, a meu ver, a questão continua sendo difícil, pois ela exige saber onde ainda se podem encontrar trabalhos com tamanha força literária. Os manicômios, em sua grande maioria, estão fechados - ainda bem! - o que não impede, infelizmente, que sua lógica (ou seja, a lógica manicomial) continue se reproduzindo nas instituições ditas abertas, como é o caso de certos Centros de Atenção Psicossocial, e que a rigor deveriam ser substitutivos ao grande hospital. É evidente que não se pretende com isso generalizar o problema; no entanto, não é mentira dizer que a lógica do manicômio pode operar em equipamentos supostamente abertos, sendo eles específicos ou não à Saúde Mental. Jean Dubuffet, principal pensador da arte bruta, acreditava que os presídios e os asilos de velhos seriam as próximas oficinas de criação bruta, virgem, louca etc. A conferir.

Nesse sentido, há outra questão importante e que precisa ser abordada com o pensamento de Hans Prinzhorn, primeiríssimo psiquiatra (ele também era historiador da arte) a tratar certas imagens produzidas pelos esquizofrênicos como arte com a maiúsculo, independentemente da condição psíquica de seu autor, reflexão que se deu em plena passagem do século XIX para o XX, ou seja, bem antes da rusga entre Mario Pedrosa e Quirino Campofiorito. Para Prinzhorn (1984), caberia então perguntar: o que há aí de esquizofrênico? O que justifica, pela via de uma imagem confeccionada por um sujeito, a possibilidade de diagnosticá-lo, por exemplo? E mais: o que, a rigor, autoriza alguém a dizer que "se pinta assim, esquizofrênico, se assado, paranoico", e daí por diante?

Quanto a esse aspecto, podemos recorrer à própria Nise da Silveira: se por um lado ela empenhou sua análise na construção de paralelos entre a condição psíquica de seus pacientes e a história mitológica universal (quando, nesse sentido, ela aponta em que medida esse mesmo geometrismo simétrico de Carlos poderia ser entendido como um procedimento de defesa contra a desordem interna que o avassala, ou quando interpreta suas mandalas como tentativa de autocura frente ao esfacelamento e caos de sua vida psíquica, isso tudo reconhecidamente via Jung), ela somente o fez para que possa compreender melhor a situação psíquica de seus protegidos, de modo que nunca se preocupou em fazer destas imagens teste psicológico ou documento patográfico, algo trivial no campo psiquiátrico, como vimos.

Prinzhorn também acreditava haver uma incoercível necessidade de expressão no ser humano, uma vontade que consiste na "exteriorização do que na psique é essência irredutível ou a ponte de comunicação do 'eu' com outrem". Não "há expressão sem estrutura", acrescenta de sua parte Mario Pedrosa, "por mais rudimentar que [ela] seja". Afinal, "todo fenômeno expressivo se organiza pela simbiose do elemento psíquico e do elemento formal", completa. Trata-se, portanto, de uma necessidade de expressão sem finalidade específica embora tenha sua finalidade, que seria, pura e simplesmente, expressar (Pedrosa, 1994, p. 209).

Vale a pena dar relevo a um outro dado: é muito comum que tais artistas corram ao largo das "características reguladoras da atividade profissional", de modo que seus trabalhos são relativamente independentes e assim escapam "dos padrões habitualmente reconhecidos na síndrome da artisticidade" (Zanini, 1981, p. 7). É preciso reconhecer, por exemplo, que no contexto institucional em que estamos, ou seja, que abriga ou até estimula essas produções mesmo sendo ele um hospício, há invariavelmente a intervenção de determinados espectadores, críticos de arte e afins que acabam organizando e apresentando as obras. É o caso das exposições do Museu de Imagens do Inconsciente; da descoberta de Arthur Bispo do Rosário, que se credita a Frederico Morais; ou mesmo do livro "Reino dos bichos e dos animais é meu nome", de autoria de Stela e organizado por Viviane Mosé (2001). Ora, trata-se de uma proteção excessivamente ambígua, quase irrepresentável: como, tendo como pressuposto a aparelhagem manicomial, é possível pensar na figura do artista independente? Não obstante, Victor Musgrave ter aventado a possibilidade de não chamar tais artistas de outsider, como fez no catálogo da exposição Arte Incomum, mas de insider, não parece que a discussão pode parar por aí, pois, ainda que esses indivíduos estejam no "epicentro" da cultura artística, isto é, "exatamente à beira das fontes de criatividade cujas forças enigmáticas cavalgam qual os cavaleiros do Apocalipse" (Musgrave, 1981, p. 11), nunca um artista condenado à internação psiquiátrica veio a fazer parte do circuito propriamente dito de arte por sua própria conta: é provável que nenhum deles chegasse a sobreviver da sua própria produção, por exemplo. Para deixar clara minha posição, a meu ver nem é o caso de exigir algo desta ordem, pois vários dentre esses indivíduos sequer tem a ambição de se afirmar como artistas ou mesmo credita autoria própria aos seus trabalhos - alguns desenvolvem algo apenas para responder a impulsos "místicos", outros para dar conta da vontade dos deuses (ou dos demônios), como é o caso de Bispo do Rosário. A rigor, eles não desejam criar obras de arte, tampouco parecem querer vê-las circular, ou ainda vendê-las, e este fato é de extrema importância.

A questão fica aberta ao debate. No nosso caso, no entanto, creio poder afirmar que a "arte dos loucos" se manifesta ainda como uma espécie de pêndulo equidistante entre o que pertence e o que é excluído pela cultura oficial. Assim, sua marginalidade pode até ser entendida no sentido psiquiátrico do termo, já que é muito mais comum constatá-la nos equipamentos de saúde - sejam eles prisionais ou não - quando é o caso de ser arte, evidentemente, e não nos museus. E digo isso um tanto categoricamente, sem grande medo de errar: do que pude constatar até hoje, todos os artistas desta linhagem que conhecemos no Brasil possuem a marca da institucionalização, e talvez justamente por ela se tornaram conhecidos. É um curioso paradoxo! É possível pensar então em Stela do Patrocínio como artista, quer dizer, como escritora? Jean Dubuffet (1968), artista-filósofo de posições radicalmente anticulturais, talvez dissesse que não, e, quanto a isso, tanto melhor. Por outro lado, ademais, quando é o caso de aparecerem no museu, ou seja, de serem publicados, como ocorreu a Stela, esses trabalhos surgem no geral como uma fonte de intensa curiosidade, já que fora colhida de personalidades desintegradas ou excêntricas e que por sua condição de solidão e sofrimento acabam por comover o nosso olhar - o que se traduz numa espécie de assistencialismo velado e que reina ainda hoje em dia.

Estranho paradoxo, insisto eu, porque por outro lado devo dizer também que acredito na necessidade de localizar esse "fenômeno" que foi a fricção arte e loucura dentro da história (oficial) da arte em geral e da brasileira em particular, isto é, é preciso entendê-la, em grande medida, como um capítulo a ser reconhecido nessa história, ainda que ela seja uma história dos vencidos. Artistas contemporâneos ao Museu de Imagens do Inconsciente, tais como Ivan Serpa, Hélio Oiticica, Lygia Clark e Almir Mavignier, por exemplo, não seriam quem são sem a experiência que tiveram com a loucura, quem sabe um pouco ao estilo antropofágico. É difícil escapar de uma tendência romântica ao falar desse assunto, e me incluo aí, mas não ficaria satisfeito de sair daqui hoje sem deixar público um exemplo cortante: Abraham Palatnik, mestre da arte cinética, declarou, logo após sua visita ao Museu de Imagens do Inconsciente, quando tinha então 20 anos de idade, o seguinte: "aquilo era de uma riqueza tão grande, que senti que meu castelo estava desmoronando; cheguei então à conclusão de que eu tinha que abandonar a pintura, da qual aliás eu estava bastante seguro até ali, e de fato a abandonei". Depois de colocar os pés no ateliê de Engenho de Dentro, ele concluiu, "era preciso fazer outra coisa".

 

Uma escrita da urgência

A questão da recepção sempre foi muito enigmática (para não dizer traumática) para mim. Diante dessa receptividade tão hostil, não é absurdo que a poeta Stela do Patrocínio, mulher que dizia tantas "coisas", declarasse, não sem um risinho de canto de boca: "Perdi o gosto o prazer o desejo a vontade o querer"... Quanto a isso, acredito ser válido compartilhar uma experiência da qual participei: durante algum tempo dediquei-me voluntariamente ao projeto-oficina A Voz dos pacientes, um jornal criado com a finalidade de dar expressão pública à criação circunscrita pela loucura. Ao longo do período, nunca deixou de haver um verdadeiro embate acerca do modo como tratar este material. Na ocasião, e isso aconteceu nos anos de 2000 e 2001, enfrentamos grande resistência em relação aos seus possíveis modos de apresentação, em especial porque muitos dos trabalhos ali produzidos eram considerados excessivamente infantis (lembremos da relação arte infantil e arte dos doentes mentais mencionada logo no início do artigo) pelo corpo técnico institucional que abrigava esta iniciativa. Além disso, havia a sugestão de que os textos fossem transcritos ipsis litteris, de modo que não havia nenhuma interferência de minha parte - uma vez que eu funcionava como uma espécie de editor que motorizava a atividade. A "curadoria", isto é, a escolha do que seria publicado, vale mesmo destacar, era feita num regime rigorosamente coletivo: juntávamos as produções realizadas ao longo de um certo período e numa reunião específica discutíamos as mais interessantes da preferência dos pacientes, fechando um número de três trabalhos aproximadamente para cada participante. Todos podiam opinar, é claro, a respeito dessa seleção.

Ora, a meu ver, essa experiência com a "Voz dos pacientes" remete diretamente à Stela do Patrocínio. Muitos dos pacientes que participavam da oficina de criação do jornal também desejavam "falar coisas" - que evidentemente nós íamos anotando para depois publicar -, até porque acontecia de serem analfabetos, em grande parte dos casos. A fala de Stela também teve a chance de se tornar pública quando deu origem a um belíssimo livro, resultado da extração de fitas cassete gravadas pelas estagiárias da Colônia Juliano Moreira: "Reino dos bichos e dos animais é o meu nome", título que anuncia de cara a força desta obra, foi organizado por Viviane Mosé em 2001 e publicado pela Editora Azougue. Parece, contudo, que muitos seus escritos, escritos na maioria em papelão, perderam-se.

Além disso, conforme relata Andrea Masagão,

Pouco se sabe do passado de Stela. Nasceu em janeiro de 1941, filha de Manoel do Patrocínio e Zilda Xavier do Patrocínio. Sua mãe dizia-se solteira e trabalhava como doméstica. Foi internada no núcleo Teixeira Brandão e saiu depois de alguns anos. Stela trabalhou como doméstica, na mesma casa em que sua mãe enlouqueceu. Aos 21 anos, deu entrada no hospital Pedro II, levada pela polícia. Foi diagnosticada como "personalidade psicopática mais esquizofrênica hebefrênica". Quatro anos depois, foi levada para a Colônia. Depois de trinta anos de isolamento e sem mais nenhum dente na boca, Stela teve a perna amputada em função de uma hiperglicemia grave. Ficou muito triste, não saiu mais da cama, parou de falar, de escrever e de comer. Morreu pouco tempo depois, de infecção generalizada. Ficaram suas letras, a força e a precisão de seu texto (2004, p. 264).

Sabe-se, contudo, que Stela faz parte de um contingente absurdo de internações com poucos critérios claros que as justifiquem, e o fato de ter sido uma mulher pobre e negra nunca pode ser negligenciado quando se discute a questão da internação compulsória no Brasil (Adelina também era negra, mas foi internada pela própria família; Fernando Diniz e Bispo do Rosário também eram negros e pobres)5. Sobre este "seu passado", Stela diz:

Meu passado foi um passado de areia
Em mar de Copacabana
Cachoeira de Paulo Afonso
Bem dentro da Lagoa Rodrigo de Freitas
No Rio de Janeiro
Vim de importante família
Família de cientistas, de aviadores
De criança prodígio poderes
Milagres mistério
(...)
Nasci louca
Meus pais queriam que eu fosse louca
Os normais tinham inveja de mim
Que era louca

Fora de todas as classificações, de qualquer escola, programa ou de possíveis ismos, a obra de Stela me fez perceber que a relação arte-loucura demonstra, desde que a conhecemos, o testemunho visceral da existência em dupla via de um logos no interior do pathos, isto é, sejam elas visuais ou literárias, tais imagens dão a ver a presença do pensamento no interior do não pensamento, assim como de um não pensamento que sobrevive dentro do pensamento; em suma, eu diria que foi com Stela que percebi que esta fricção arte-loucura demonstra uma filosofia-limite na qual há lógica na patologia (paixão) e patologia na lógica, uma dialética de difícil mistura entre a representação e o afeto. Talvez este possa ser ainda um conceito adequado de loucura: dizer obstinadamente a verdade àqueles que não querem ouvir, levando o outro ao limite da linguagem e da inteligibilidade. Stela traz, assim, indícios de uma filosofia ela mesma bruta, leia-se, visceral e por isso tão verdadeira. Parece ter sido justamente nesse sentido que Foucault e Lacan propunham que a loucura não diz outra coisa senão a verdade. Tal escrita febril opera uma passagem do amorfo à forma, fazendo a travessia do nada à matéria, configurando-se como "literatura dos começos". Nesta sinfonia louca de vozes de Stela, lê-se:

Não sou eu que gosto de nascer
Eles é que me botam pra nascer todo dia
E sempre que eu morro me ressuscitam
Me encarnam me desencarnam me reencarnam
Me formam em menos de um segundo
Se eu sumir desaparecer eles me procuram onde eu estiver
Pra estar olhando pro gás pras paredes pro teto
Ou pra cabeça deles e pro corpo deles

E mais:

É dito: pelo chão você não pode ficar
Porque lugar de cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo
Pelas paredes você também não pode
Pelas camas você também não vai poder ficar
Pelo espaço vazio você também não vai poder ficar
Porque lugar de cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo

"Você só pode ficar no seu corpo, isso é sua morada e nada mais; contenha-se no seu corpo, você não pode outra coisa, você não pode nada, você é nada". Estes versos me levam a pensar em uma poética do extremo, uma escrita do limite. Como propôs Viviane Mosé, Stela do Patrocínio era capaz de se organizar na tensão que se estabelece entre a ordem e a ausência de ordem: "Sua palavra é capaz de se manter sem se sustentar, necessariamente, nos limites subjetivos, gramaticais e lógicos, ou seja, não é exatamente este tipo de ordenação" que sua linguagem buscava. "Ousaria dizer", acrescenta, "que Stela se sustentava em uma ordenação delirante fundada na afirmação de sua própria fragmentação" (2001, p. 24). Haveria nela uma alta capacidade para se desdobrar, de fazer uma dobra sobre si mesma, quer dizer, de falar sobre si e ao mesmo tempo falar sobre o falar e sobre o seu falar com uma metalinguagem própria.

 

 

Andrea Masagão sugere ainda que a "escrita de Stela aparece como um ato, pois é no tempo da escrita que [ela] produz forma e toma forma. Mas Stela não se fixa na forma que toma, ela é a encarnação de um fluxo infinito, incessante de formas" (2004, p. 269); sim, não há fixidez da forma em Stela, ela rejeita a estilização e cria por sua vez um estilo outro. Trata-se não de nomadismo, mas de errância, tão emblemática da loucura embora não se restrinja a ela. É possível pensar em sua criação como acontecimento, já que sua escrita não é bem uma escrita, mas uma escritura que se forma na justa medida em que acontece, de modo que essa escrita é uma espécie de pulsação de linguagem que se inaugura ao ser falada, ou seja, no exato momento do acontecimento, nem antes nem depois.

É precisamente esta ruína de toda relação fixa que faz de sua palavra uma experiência-limite, ou o limite da experiência da palavra. Stela carrega em si a potência de uma palavra muda6 da loucura, palavra que na verdade vem sendo emudecida por séculos a fio. "Na experiência limite", escreve a esse respeito Nathalie Zaltzman, "o sujeito encontra-se à beira de uma situação mental urgente que ele não pode atravessar ou afrontar sem prejuízo mortal" (1993, p. 62). São, portanto, situações nas quais a vida se restringe à sobrevivência, nada mais. Neste sentido, o campo de concentração é certamente um dos exemplos mais absurdos que ocorreu à humanidade; ali, com efeito, o sujeito está apenas à espera de morrer; mas a história do hospício mostra que, em muitos casos, a situação não fora muito diferente, pois em certos hospitais psiquiátricos a morte espreita o dia a dia de maneira brutal. Para se ter uma pequena amostra do que estou dizendo: a estatística de óbitos ocorridos no Manicômio de Barbacena informa que até o início da década de 1980 haviam sido registradas por volta de sessenta mil mortes. Franco Basaglia comparou a barbárie que foi Barbacena a um campo de concentração, e isso evidentemente não sem razão.

Diante destas circunstâncias, isto é, numa "relação de forças sem saída" e na qual se instaura um "embargo à vida mental e física de um ser humano", algo que "o expropria de um direito impessoal à vida, o priva de suas defesas e o expõe a uma possibilidade constante da morte", somente "uma resistência nascida das próprias fontes pulsionais da morte pode afrontar a ameaça de perigo mortal" (Zaltzman, 1993, p. 64). Penso que a escrita pode entrar justamente aí; Lima Barreto, como se sabe, testemunhou esse fato de maneira cortante em seu "Cemitério dos vivos".

Eu sobrevivi do nada, do nada
Eu não existia
Não tinha uma existência
Na tinha uma matéria
Comecei a existir com quinhentos milhões e quinhentos mil anos
Logo de uma vez, já velha
Eu não nasci criança, nasci já velha
Depois é que eu virei criança e agora continuei velha
Me transformei novamente numa velha
Voltei ao que eu era, uma velha

Stela nos coloca diante de um paradoxo no qual a loucura transita com familiaridade: entre o absoluto e o nada; entre a totalidade das significações e a significação vazia (Masagão, 2005, p. 270); entre o mutismo, a catatonia e a exigência constante de escrever. Em seu extremado não-conformismo, Artaud teve plena consciência deste fato, de onde vem o seu maior medo: ficar eternamente preso "no limiar de um pequeno nada" (Plaza, 1990, p. 34). A escrita de emergência (para fazer revisão na assepsia médico-diagnóstica), que é também uma escrita da dor, não pode ser ainda compreendida como um gênero propriamente dito, uma literatura de urgência? A narrativa se torna ela mesma limite porque deve achar resposta, ou melhor, resistência a uma situação-limite. "A literatura da urgência estrutura-se numa espécie de desdobramento da escrita de si", sugere Luciana Hidalgo, autora de uma belíssima biografia de Bispo do Rosário, porém "realizada sob estado de emergência" (2008, p. 229). É preciso, portanto, ser poeta; nestes contextos brutais, tão destruidores, torna-se obrigatória a capacidade de "dizer o indizível" (Menezes, 2001, p. 20) para sobreviver.

Eu sou seguida acompanhada imitada
assemelhada
Tomada conta fiscalizada examinada revistada
Tem esses que são igualzinhos a mim
Tem esses que se vestem e se calçam igual a mim
Mas que são diferentes da diferença entre nós
É tudo bom e nada presta

No caso de Stela, ainda que se trate de um indizível, é preciso dizê-lo apesar de tudo. Sua dimensão trágica é a condição de possibilidade para fazer sobreviver uma consciência crítica, ou seja, a indeterminação resistente e angustiada da loucura que se impõe frente ao aprisionamento das classificações nosográficas. No cotidiano prosaico de suas vidas, o que mais parece importar aos artistas loucos é ver as coisas como se em cada ocasião estivessem sendo vistas pela primeira vez, quer dizer, é preciso renascer todo dia. Tanto para Stela quanto para os internos de Engenho de Dentro, escrever e pintar equivaleria a não morrer, porque nesses confins da experiência humana, onde já não importa mais o desejo, resta ainda um fio de esperança que se inscreve como necessidade de arte ou, quem sabe, arte da necessidade.

 

Notas

1 Mário Pedrosa é considerado o primeiro crítico de arte profissional do Brasil; atuou como figura central do trotskismo em nosso país, e passou a escrever sobre arte e estética após retornar de ume exilio na Alemanha, onde residiu por um tempo para estudar Marx.

2 Quirino Campofiorito foi pintor, desenhista, ilustrador, e manteve uma coluna de artes plásticas em vários veículos de imprensa; quando das exposições do CPPII, tinha por volta de 50 anos de idade. É uma figura um tanto obscura no circuito.

3 Osório César era médico e crítico de arte, e personagem atuante junto ao modernismo brasileiro; quanto a isso, por exemplo, vale dizer que fora casado com Tarsila do Amaral.

4 Mavignier conheceu a Dra. Nise dentro do próprio Pedro II, onde trabalhava em serviços burocráticos, e foi o seu primeiro "auxiliar" junto às atividades do Setor de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação. Não demorou para migrar à Alemanha e se estabelecer como artista.

5 Ao cruzar dados de duas pesquisas (Barros et al, 2014; Masiero, 2005), parece haver uma correlação direta entre a eugenia e o racismo científico presente na psicologia e na psiquiatria brasileiras com a predominância de pessoas negras e "mestiças" internadas no estado de São Paulo. Em um censo de 2008, constata-se que enquanto "27,4% da população do estado de São Paulo se autodeclara preta e parda, entre os moradores dos hospitais psiquiátricos do estado de São Paulo, esse percentual é de 38,36%" (BARROS, 2014, p. 1237).

6 Esta preciosa noção de palavra muda foi retirada do ensaio O inconsciente estético, de Jacques Rancière (2009).

 

Referências

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Recebido em: 29/06/2019
Aprovado em: 16/10/2020

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