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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.12 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2020v2p.133 

RESENHAS

 

A tessitura do fio da vida: reflexões sobre mulheres contemporâneas

 

The weave of the thread of life: reflections on contemporary women

 

El tejido del hilo de la vida: reflexiones sobre la mujer contemporánea

 

 

Carla Penna

Doutora em psicológica clínica pela PUC-RJ, psicanalista do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, Membro da Group Analytic Society International. Publicou em 2014 o livro Inconsciente Social pela Casa do Psicólogo. Em 2021 publica The Crowd: reflections from psychoanalysis and group analysis pela Routledge. E-mail: drcarlapenna@gmail.com

 

 


Resenha do livro Festina lente. Apressa-te lentamente, de Ana Cristina Leonardos e Martha Estima Scodro. Rio de Janeiro: Autografia Ed. 2019. 136 p.

 

 

Inquietações sobre diferentes formas de "ser e estar no mundo" motivaram Ana Cristina Leonardos, pesquisadora com doutorado em Ciências Sociais aplicadas à educação, em Stanford University, e Marta Estima Scodro, psicóloga, escritora e terapeuta de família a mergulhar em um desafio reflexivo "sobre a meia-idade feminina no século XXI" (p.13). Festina Lente, isto é, Apressa-te Lentamente, "é um oximoro atribuído ao imperador romano Augusto, representado por um golfinho entrelaçado a uma âncora. Agilidade e destreza aliadas à segurança e estabilidade." (p.13). A imagem permitiu às autoras caracterizarem e introduzirem reflexões sobre mulheres na década dos cinquenta anos.

A pesquisa ganhou corpo a partir de 2013 estendendo-se até o momento de sua publicação em Festina Lente 2019. Distanciando-se da agitação e pressa característica da sociedade contemporânea, Festina Lente apresenta um longo período de gestação, envolvendo não apenas leituras interdisciplinares, mas também conversações em grupo com 66 mulheres sobre a mulher aos cinquenta anos. A pesquisa contou ainda com a interlocução criativa com Saul Ignacio Fuks, Diretor do Mestrado em Pensamento Sistêmico da Universidade Nacional de Rosario, na Argentina. O diálogo com Saul, além de ter proporcionado um contraponto masculino às reflexões das autoras, apontou em suas entrelinhas interrogações que Freud já colocava em questão. Afinal de contas: O que quer uma mulher? Contudo, e sem menosprezar pesquisas psicanalíticas sobre os enigmas do "continente negro" (Freud, 1926/1976, p. 242), Saul não se ensimesmou ao navegar pelas complexidades trazidas pelas interlocutoras apontando para problemáticas da natureza humana que transcendem o ser mulher e "os 50 anos" (p.7).

Através de associações livres, tempos suspensos e anseios de autoconhecimento o livro transita entre imagens de Kronos, como "deus do tempo devorador e titã mitológico que rege o cosmos" relacionadas a dimensões temporais que contam a "vida em minutos e segundos" (p.14), e metáforas relacionadas à palavra grega Kairós, que "designa o momento certo, crítico e oportuno,[que] marca pelas qualidades internas ao tempo: a diferença e a substância das coisas in tempore. Quando nada é cedo ou tarde demais, deixou de ser ou ainda não ocorreu" (p.14). Kairós remete não mais à inexorabilidade do tempo, mas conduz a um tempo de oportunidades. Além disso, transitaram entre os paradoxos do filósofo pré-socrático Zenão, especialmente o paradoxo da flecha, segundo o qual "um arqueiro mira um alvo e lança a flecha de seu arco ocupando em cada instante de tempo um espaço definido. Isso significa que, em cada tempo finito, a flecha está em repouso" (p. 22). O paradoxal encontro entre o repouso e o movimento, a paralisia e o movimento, traduziram para Ana Cristina e Martha, a dualidade e os paradoxos das mulherers na meia-idade. Assim, entre Zenão, Kronos e Kairós, linhas de fuga (Deluze & Guattari, 2011) se entrecruzam e se perdem rumo a infinitos significados sobre a temporalidade da vida.

A leitura agradável e profunda, a edição primorosa com capa e ilustrações de Lucia Moretzsohn, especialmente preparadas para o livro, permitiram ao leitor aproximar-se do universo psicológico das autoras acompanhando pari passu a tessitura de suas reflexões e processos de amadurecimento. Além disso, o desejo de mapear suas próprias facetas menos conhecidas ou obscuras transformou-se em curiosa procura pelo testemunho de outras mulheres sobre "faces do feminino que se revelam da epiderme para dentro" (p.24). Nesse sentido -através de grupos operativos centrados na tarefa (Pichon-Rivière,1970/1980) ou no que hoje se denomina, no Brasil, rodas de conversa, chamadas, no livro, de charlas - procuram descobrir em outras mulheres facetas desconhecidas do feminino. Nessa trajetória, que envolveu encontros em charlas, depararam-se com familiares e, por vezes, sinistras versões de si mesmas. Em outras palavras, através de "charlas com mulheres" (p.47) experimentaram o fenômeno do "estranho" - unheimlich (Freud, 1919) - definido como "aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar" (Freud, 1919/1976, p.277). Assim, através de imagens e sombras especulares, de encontros e desencontros com afetos, sentimentos e questionamentos, muitas vezes vivenciados em forma de duplo (Rank, 1914/2013), confrontaram-se com a natureza secreta do estranho, que "não é nada novo ou alheio, porém algo que é familiar e há muito estabelecido na mente, mas que se alienou através do processo de recalque" (Freud, 1919/1976, p. 301).

Estas constatações, forneceram um enorme material empírico que necessitou de digestão lenta, em "charlas internas" que transformaram desamparo e dor em descoberta de renovadas vozes internas/ grupos internos (Pichon-Rivière, 1970/1980) que facilitaram às autoras a aquisição de um novo colorido, essencial para a confecção do livro. Alimentadas pela pesquisa conjunta, pelo vínculo de amizade e pelos genuínos encontros com seus "duplos" em tantas charlas, ambas transcenderam fórmulas, estereótipos e identidades sociais pós-modernas criadas para "mulheres de cinquenta anos". Talvez tenham constatado que se por um lado, os ganhos da revolução sexual e do feminismo já tivessem sido garantidos pela geração anterior, a miríade de papéis sociais disponibilizados por tais conquistas também as aprisionava, mesmo em liberdade. Nessa direção, Ana Cristina e Martha não se intimidaram, analisando a relação da mulher de meia-idade com a temporalidade vital e psíquica, "na charla do tempo" (p. 31). Na "charla com a literatura" (p.37), exploraram pensamentos das célebres Simone de Beauvoir e Susan Sontag, de escritoras americanas e francesas, bem como passagens das brasileiras, Maria Rita Kehl, Miriam Goldenberg, Lya Luft e Mary del Priori".

A "charla com mulheres" permitiu-lhes ainda desvendar "diferentes formas de ser e estar no mundo aos 50 anos" (p.55). A observação de vivências comuns entre as entrevistadas conduziu à investigação de processos internos semelhantes, configurados na análise em forma de hashtags, subdivididos em cinco temas/hashtags diferentes sobre a meia-idade feminina: # Conexão Interna (p.57); # Balanço de Vida (p.61); # Em Movimento (p.67); # Busca espiritual (p.73); # Projeções (p.75). Utilizando-se ainda da linguagem digital indagaram às mulheres como imaginavam suas selfies aos #25, aos # 50 e aos #75 anos.

A análise do material obtido nas diferentes charlas, revelou processos de genuína intuição e autorreflexão, viagens ao passado ressignificado pelo presente, reflexões sobre inexoráveis escolhas e suas consequências, bem como temores, desejos e esperanças em relação ao futuro. O encontro com construções históricas e sociais sobre mulheres (Duby & Perrot, 1985), bem como as análises atuais sobre a sociedade do cansaço do filósofo coreano Byng-Chul Han (2015), relativizaram o peso conferido à idade e ao envelhecimento na sociedade contemporânea, ampliando o diálogo entre a plenitude e a finitude (p.80). Essas constatações permitiram o rompimento com padrões estabelecidos para mulheres de meia- idade, compelidas à eterna juventude e a reinvenção incansável. Liberadas de amarras e expectativas em relação às suas próprias trajetórias, renovados processos de amadurecimento feminino e um singelo "recolocar-se em marcha" tornaram-se possíveis, facilitando buscas espirituais (p.73) e um encontro mais pleno consigo mesmas e com "estranhos" outros.

Assim, após anos de pesquisa, uma verdadeira fruição da vida e do viver - Carpe Diem (p.75) - em simples dimensões parece ter-se apresentado de forma peremptória a Ana Cristina e Martha. A investigação de suas angústias e inquietações revelou, como em uma casca de noz, as indagações, os conflitos e o processo de amadurecimento de sua própria geração. O futuro permanece incerto, mas navegar entre o paradoxo de Zenão, o implacável tempo em Kronos, as oportunidades trazidas por Kairós e as experiências das mulheres na charlas, conduzem-nos à complexidade da tessitura dos fios da vida, lembrando-nos de Cloto, Láquesis e Átropos, as três Moiras da mitologia grega. Responsáveis pela tessitura do fio, pelo seu enrolar e sortear e, finalmente, por seu corte, essas três mulheres atemporais recordam-nos que o mais importante é viver e tecer nossos próprios fios na vida, pelo menos até que Átropos venha cortá-los.

 

Referências

Deleuze, G.; Guattari, F. (2011). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, v. 1. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Duby, G.; Perrot, M. (1995). História das mulheres no Ocidente. O século XX. volume 5. Porto: Afrontamento; São Paulo: Ebradil.         [ Links ]

Freud, S. (1976a). O Estranho. Em Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud (v. 17). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1919).         [ Links ]

Freud, S. (1976b). A questão da Análise Leiga. Conversações com uma pessoa imparcial. Em Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud (v. 20). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1926).         [ Links ]

Han, B. C. (2015). Sociedade do Cansaço. Rio de Janeiro: Vozes.         [ Links ]

Pichon-Rivière (1980). O Processo Grupal. São Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1970).         [ Links ]

Rank. O. (2013). O Duplo: um Estudo Psicanalítico. Porto Alegre: Dublinense (Original publicado em 1914).         [ Links ]

 

 

Recebido em: 09/10/2020
Aprovado em: 05/11/2020

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