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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.12 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2020v2p.137 

RESENHAS

 

Pulgas que habitam as minhas rugas

 

Fleas that inhabit my wrinkles

 

Puces qui habitent mes rides

 

 

Maurício Lucchesi

Psiquiatra formado pela USP-SP. Mestre em Medicina e Doutor em Ciências pelo Departamento de Medicina Preventiva da FMUSP. Psicanalista membro do Instituto Vox de Pesquisa em Psicanálise. E-mail: malucchesi@uol.com.br

 

 


Resenha de O discurso da estupidez de Mauro Mendes Dias. São Paulo: Iluminuras; 2020. 96p.

 

 

Em 1984, enquanto o mundo assistia ao final da guerra fria e, no Brasil, um "acordão" adiou por mais cinco anos a retomada de fato do regime democrático, a banda de rock Titãs frisou, em uma de suas músicas, a conexão existente entre os indivíduos de "nobre paladar" e os seres que habitam o esgoto, numa exortação a que os últimos não fossem esquecidos. Pois foram. E eis que - como num texto de Ian McEwan1, em que uma barata foi alçada ao cargo de primeiro-ministro, sem qualquer estranhamento por parte da população -, temos que nos haver agora com esse "retorno barulhento dos infernos".

No presente livro, Mauro Mendes Dias, doravante chamado de autor, busca entender as condições dadas para esse acontecimento, apurando uma forma de estruturação da linguagem que vem adquirindo eminência na regulação dos laços sociais. Trata-se do discurso da estupidez que, agenciando as alianças e os embates na política, bem como a circulação dos afetos entre as pessoas, retroalimenta incessantemente um sistema fechado de produção e satisfação de vontades. De tal maneira que os indivíduos que encarnam e veiculam esses preceitos são designados, no final, pela alcunha tautológica de "consumidores-consumidos".

Inflexíveis, eles procedem de maneira rude e indelicada - como os rinocerontes da peça de Eugene Ionesco -, e valem-se do discurso da estupidez para dirigir seu ódio àqueles que ameaçam seu ideal de realização plena: os que remetem a outras referências, os que introduzem fracassos ou impossibilidades e, principalmente, os que lançam mão das próprias escolhas. Seu objetivo é sustentar um conjunto de crenças a qualquer preço, fazendo com que presunções ganhem o estatuto de certeza, ao justificarem o encaminhamento de ações impensadas que não contabilizam perdas. Ao longo do livro, a fundamentação dessa forma de existir vai ficando cada vez mais consistente, até chegar à estrutura discursiva da estupidez que, transcendendo a conjuntura contemporânea, faz referência a relações mais estáveis, baseadas nos quatro discursos da psicanálise estabelecidos por Lacan em 1972.

Para chegar até aí, porém, o leitor terá que consentir desde o início com uma constatação que muitos de nós ainda procuram evitar na prática: a cativação que esse modo animalesco produz, remetendo aos primórdios de nossa estruturação como humanos. O autor lembra que a inclusão distinguida no campo da linguagem parte de um pressuposto de correspondência integral, quando da instauração do circuito com o Outro - o que, por sua vez, enseja a miragem de consumação com uma ordem natural ou instintiva. É só na medida da assimilação dessa impossibilidade pela ordem simbólica que o sujeito pode caminhar no sentido de uma particularidade e na montagem de uma "Outra cena", retificando o destino que lhe foi traçado.

Nesse trajeto, entretanto, há o risco de reincidirem os votos iniciais de indiscriminação e plenitude, considerando que o convite do Outro se faz sempre presente - invocando a ligação com aquilo que veio antes e dirigindo o vetor da história para o inconsciente do sujeito. Para ilustrar esse impasse, bem como as alternativas perante o fascínio de uma entrega incondicional, o autor nos convida a reler, na Odisseia, a passagem em que Ulisses e sua tripulação se dispunham a atravessar o mar das sereias - seres cujo encanto irresistível levaria ao aniquilamento dos que o seguiam. Ulisses, consciente disso, instruiu seus marinheiros a colocarem cera nos ouvidos, permitindo, com isso, que fizessem a travessia incólumes; enquanto ele próprio, que desejava escutar o som divino emanado do canto das sereias, pediu para ser amarrado num mastro, tendo evitado, assim, que fosse seduzido por inteiro, preservando sua índole à medida que tirava proveito daquela experiência inédita.

Essa passagem esclarece, por um lado, a importância de fazer valer uma barreira (a cera ou as amarras, no caso) face à cativação que nos ameaça e, por outro, atesta o júbilo oriundo desse encantamento, frente ao qual Ulisses não quis recuar, ainda que de forma advertida. E como não é demais insistir nesse ponto, que é crucial, vale a lembrança daquilo que Vinícius de Moraes e Baden Powell ensinaram no afro-samba "Canto de Ossanha" (fazendo também alusão a esses "seres femininos que zelam pelo espírito da natureza"), sobre essa interposição que nos permite avançar: rumo à "estrela que surge na manhã de um novo amor", deve-se ater a um limite, que é a condição de "não trair a memória de um amor que já passou".

Jean-Michel Vivès denominou esse limiar distintivo de "ponto surdo", cujo funcionamento é capaz de introduzir modulações e desníveis nas emissões sonoras, obstaculizando aquelas repetitivas, cuja monotonia tanto mais magnetiza e enfeitiça. Quando esse mecanismo não se instala, ou opera de modo insatisfatório - malogros que são tipificados no livro -, a moção de renovação sucumbe a uma adesão mais ou menos maciça, vedando a queda da suposição de correspondência ideal - reconhecimento que caucionaria uma operação de cunho metafórico, mediando a causação do desejo e o advento da voz do sujeito.

Essas vicissitudes, por serem inerentes aos impasses e à angústia com a qual o sujeito se defronta nos momentos de derrocada, aludem, por conseguinte, à cativação animal, que passa pelos meandros das identificações inconscientes com o semelhante que se curvou a uma montagem autômata. O autor nos remete, aqui, às consequências do "discurso sem palavras" teorizado por Lacan, indicando o efeito do discurso da estupidez como colocação em ato da recusa do simbólico, que se recolhe no outro como vociferação - emissão que, diferentemente da voz, visa ao silenciamento do outro e à recusa da subjetividade desejante. Seu agenciamento é orquestrado pelo ódio, dirigido a tudo o que poderia remeter à ideia de uma falta fundamental. Assim, efetivam um laço social que se presta ao encobrimento das diferenças e retroalimentam o circuito da realidade própria (crença).

Na prática, essa forma de captura pode refletir na aposta de domesticação do discurso da estupidez que, ao insistir na tática pedagógica do convencimento, consente com a veiculação furtiva do ódio, minimizando seus vetores de transmissão - como atesta Carlo Cipolla nas "Leis fundamentais da estupidez humana". Noutras situações, os estúpidos são levianamente menosprezados pelo contrassenso de suas bravatas, enquanto sua audiência vê nisso um gesto de bravura, fazendo dos inconsequentes heróis destemidos. Quando o erro se comprova, os rinocerontes assumem a faceta ríspida e grosseira, apontando o chifre para os responsáveis de sempre pelas injustiças. No atacado, estes são qualificados de "inimigos da pátria", e se somam a um outro tipo emblemático: o "herege", que, mais que portar equívocos ou pressupostos diversos, é capaz de fazer escolhas - alteridade vista como sinal de impureza e descaminho. Todos são passíveis de apreciações punitivas que, ao ganharem os contornos de uma política, ocupam terrenos férteis para o escoamento dos zurros vociferantes, que anulam a distinção subjetiva das enunciações. Sob esse viés mortífero (de voto de morte ao sujeito), em prol de uma incumbência imaculada ou sob a falácia da liberdade de opinião, é dada a autorização para denegrir e propalar planos de supressão da diferença, valendo-se da adulteração das leis da fala para obscurecer as brutalidades proferidas e fomentar a "proliferação das baratas''.

No livro, ganham destaque dois espaços assim propícios, que incitam pronunciamentos unívocos, fazendo um apelo como que instintivo para a ignorância: 1) a internet, com seu predomínio de imagens e palavras de ordem robotizadas, com variações limitadas e não dialetizáveis; na qual, ter sempre que tomar partido está longe de representar uma participação engajada na democracia, por se valer do anonimato e das conexões sem vínculo; e, 2) as seitas, eminentemente evangélicas, que pregam a comunhão dos fiéis em uma nobre missão, na perspectiva de uma salvação redentora, com a qual, enfim, o indivíduo não teria mais que pensar ou fazer escolhas - coisa que, na prática, já é antecipada pelo exercício de paixões cegas, que incluem tanto o combate à ciência quanto o fomento ao mercado da fé, asseverado pelo enriquecimento de seus líderes, que detêm proeminência fisiológica nas agremiações e instituições da política nacional.

Para alicerçar esses termos e consumar a depuração conceitual que condensa o desenvolvimento das articulações até aqui, o livro apresenta, enfim, uma formulação para o discurso em tela, cuja grafia remete à estrutura do discurso do mestre e a uma mutação deste, o discurso do capitalista. Sua escrita ratifica os pontos que foram salientados, como a inexistência de uma barreira entre o sujeito e o saber que o causa, numa colagem que comanda os significantes enredados pela crença. Essa leitura estrutural vale-se da concepção de "brilho da mercadoria", estabelecida por Karl Marx, para encerrar o ciclo que redunda na cristalização da alienação e na perversão da posição do sujeito enquanto consumidor: ao responder ao apelo enganoso pela posse de um objeto supostamente faltante, a mercadoria funciona como uma espécie de prótese, que interrompe ilusoriamente a perda e ostenta a presunção de uma escolha pelo sujeito, quando este é, na verdade, definido por ela. Posto de outra forma, a anulação de uma interposição distintiva funde lei e vontade, subtraindo a verdade do sujeito em prol do consumo desenfreado e do gozo sem interdito, que sobressai ao objeto do desejo sexual.

Nesse ponto vale a lembrança de outra obra da música brasileira que ilumina com esmero o encadeamento desse curto-circuito. Em "Comportamento Geral", o músico e compositor Luiz Gonzaga Júnior, o Gonzaguinha, maneja o significante do "merecimento" de tal forma que o objeto de consumo anunciado - um carro do tipo fusca - vai despejando o peso da vida sonegada sobre o sujeito deslumbrado. Com sua vontade capturada pelo prêmio, ele obedece cegamente ao imperativo da honra pelo mérito, que o coloca em causa, até ser subsumido pelo brilho de outro produto: o "diploma de bem comportado" - que se revela, no fundo, representante dele mesmo como o "bem" que será então consumido. Assim, a devoção que mesclava o conformismo não desejante (e bem comportado) com o gozo sacrificial, esclarece porque o "fuscão", enquanto metáfora fracassada do desejo, ficou para segundo plano, adiado à exaustão para o dia do juízo final.

É notável que essa música, escrita na década de 1970, guarde ainda esse poder de interpretação, fato que é confirmado por suas várias regravações, inclusive por músicos da cena atual, como Criolo e Liniker. Este último, intercala numa passagem incidental a farra hedonista desse consumidor assujeitado, com seus inúmeros apelos à liberdade -como transgressão das limitações simbólicas -, sob a justificativa banal que a música escancara: "mas é porque você merece!". Estampa-se assim o "poder sem rosto", com o qual Paolo Pasolini qualificou os indivíduos sedentos por prazer, validando, mais uma vez, as extrapolações do livro para além de um diagnóstico de época - e a ressalva de que não nos veremos definitivamente curados da estupidez.

Finalmente, o leitor é esclarecido que o subtítulo do segundo capítulo, inspirado no texto "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose" de Lacan, indica para uma complexidade distinta no manejo dessa condição, pelos sintomas pouco susceptíveis a deslocamentos e pelos impasses na transferência, como a não valorização da fala e o desafio de manejar o ódio característico dessa forma de adoecimento, "mais cativante e mais proliferante que o amor". Ao mesmo tempo, o autor nos inspira atitude ao proclamar o erro como parte integrante da prática do psicanalista, na qual fracasso é a lei que pode transformar o insucesso como causa para a reinvenção - aposta que relança o horizonte traçado num outro afro-samba de Baden e Vinícius: "ah, que não seja meu o mundo em que o amor morreu", e é o avesso de almejar um tempo de paz, na política inclusive, onde denegar os conflitos em jogo e prescindir de um manejo diferenciado dos afetos denota conivência com as tenebrosas transações dos grandes acordos nacionais.

Importa, ao contrário, manter vivas a indignação e a voz contestatória em espaços acessíveis e inventivos. Dentre os quais, o autor indica (não como um antídoto) o campo das artes e da cultura, por instigarem a divisão subjetiva e o gosto pelas palavras. Chancela que subscreve aqui as licenças musicais e o retorno, enfim, à banda de rock citada no início. Naquele mesmo disco, os Titãs chamaram a atenção para um tipo particular, em referência às pessoas estúpidas, com os seguintes traços distintivos: 1) uma cabeça de dinossauro, 2) uma pança de mamute, e, 3) um espírito de porco. Na época, sem a pretensão de estabelecer critérios diagnósticos, essa imagem caricata foi tomada como irreverente, mas também como escracho e zombaria. Constata-se hoje que a estupidez seguiu sua marcha, valendo-se das metamorfoses gaiatas e apropriando-se da esculhambação como marca registrada. Assim, se me permitem os artistas, cabe agora escutar essa música de modo reflexivo - mesclando os atributos enumerados com a "nossa imagem de cão raivoso latindo no espelho" (como na "Terrível voz de Satã", de Gregory Motton) - e, no pós-alvoroço, ser tomado pela surpresa e pelo riso.

 

Notas

1 Todos os autores mencionados integram citações de citações do livro, exceto os músicos.

 

 

Recebido em: 03/10/2020
Aprovado em: 10/11/2020

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