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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.13 no.spe Rio de Janeiro mar. 2021

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2021vNSPEAp.34 

OS DISCURSOS E AS CAUSAS

 

Quem quer saber da falta? A psicanálise em tempos sombrios

 

Who Wants to Know About the Lack? Psychoanalysis in Dark Times

 

¿Quién quiere saber de la falta? El psicoanálisis en tiempos sombríos

 

 

Roseane Freitas Nicolau

Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará. Pós-Doutorado em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Profª do Faculdade e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará. Email: nicolau@uol.com.br

 

 


RESUMO

O artigo confronta a política da falta-a-ser que orienta a análise, com as mudanças contemporâneas que trazem à cena alternativas de gozo, seja no consumo desenfreado de objetos, seja na inserção em sistemas simbólicos universais, como a religião, que explica tudo e promete curar o sofrimento do sujeito. A expansão das igrejas neopentecostais e a inserção da crença religiosa no âmbito sócio-político é analisada como forma de dominação cultural pela oferta de alívio da angústia e de completude com o Outro poderoso. Frente a esse Outro sem falta, qual a possibilidade de uma experiência de encontro com a castração?

Palavras-chave: PSICANÁLISE; FALTA-A-SER; POLÍTICA; RELIGIÃO.


ABSTRACT

This paper confronts the policy of lack-of-being that guides the analysis, with the contemporary changes that bring to the scene alternatives of jouissance, whether in the rampant consumption of objects, or in the insertion in universal symbolic systems, like religion, that explains everything and promises to heal the subject's suffering. The expansion of neo-Pentecostal churches and the insertion of religious belief in the socio-political sphere is analyzed as a form of cultural domination by the offer of relief from anguish and completeness with the mighty Other. In face of this Other without lack, what is the possibility of an encounter with castration?

Keywords: PSYCHOANALYSIS; LACK-OF-BEING; POLITICS; RELIGION.


RESUMEN

El artículo confronta la política de la falta a la que orienta el análisis, con los cambios contemporáneos que traen a la escena alternativas de goce, sea en el consumo desenfrenado de objetos, sea en la inserción en sistemas simbólicos universales, como la religión, que explica todo y promete curar el sufrimiento del sujeto. La expansión de las iglesias neopentecostales y la inserción de la creencia religiosa en el ámbito socio-político es analizada como forma de dominación cultural por la oferta de alivio de la angustia y de completitud con el Otro poderoso. Frente a ese Otro sin falta, ¿cuál es la posibilidad de una experiencia de encuentro con la castración?

Palabras-clave: PSICOANÁLISIS; FALTA-A-SER; LA POLÍTICA; LA RELIGIÓN.


 

 

Este trabalho é uma elaboração que foi desenvolvida visando a participação na mesa A política da falta-a-ser, hoje, no XIII Simpósio do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da UERJ, em torno de interrogações sobre se a dificuldade neurótica do encontro com a falta não estaria sendo intensificada por mudanças contemporâneas que se infiltraram no tecido social e que vêm, em certa medida, desresponsabilizar o sujeito por seus atos. No mundo contemporâneo busca-se cada vez mais objetos no mercado de ofertas do capital para tamponar a falta, como os gadgests, objetos de gozo inventados pela ciência, tais como o saber dos manuais que ocupam, segundo Lacan (1992, p. 140-141), o mesmo espaço que nós no mundo. São objetos que tem o efeito de distrair o sujeito, por meio de uma fictícia recuperação da satisfação pulsional, anulando a questão sobre o desejo. As propostas para driblar a falta vão desde as terapias mais diversas, o apelo ao consumo - de carros, medicamentos, informação, tecnologia e tudo quanto o dinheiro possa comprar -, até a afiliação religiosa. Esta profusão de estratégias disponíveis na cena contemporânea torna alguém que está sofrendo presa fácil de vendedores de ilusão, muitas vezes tornando-o vítima de manipulação sórdida, cruel ou mesmo sutil que se faz neste campo.

Tomo aqui o boom das seitas neopentecostais, cuja expansão, dentre outros fatores, está relacionada, penso, às promessas de cura e alívio para a angústia, tornando-se um fenômeno de massa que vem arregimentando cada vez mais fiéis. Afinal, "A religião é feita para isso, para curar os homens, isto é, para que não percebam o que não funciona", como disse Lacan (2005, p. 72). A função da religião de cuidar da alma dos fiéis é apresentada como uma dentre as alternativas ao mal-estar, competindo no mercado de angústia que assola o mundo em tempos em que o real nos atropela e presentifica O Futuro de uma Ilusão (Freud, S. 1987). Os templos transbordam de fiéis ansiosos por dar fim ao sofrimento e garantir a felicidade, através do encontro com a completude divina, pela qual pagam com o preço do desejo. Analisei em estudos anteriores essa inserção religiosa como uma forma de escapar ao encontro com a falta (Nicolau, 2010) e interroguei se a religião não estaria operando com a mesma lógica capitalista, ao se oferecer como objeto a ser consumido, uma vez que pretende tamponar a falta (Nicolau, 2006).

Minha contribuição para este artigo gira em torno da questão: como pensar hoje a clínica psicanalítica com um sujeito que, além de nada querer saber sobre a falta que o constitui, comum a todo neurótico, abriga-se na onda consumista e/ou engaja-se em movimentos religiosos que o distancia da falta com promessas de plenitude e comunhão divina? É possível esse sujeito se engajar na política da psicanálise, a da falta-a-ser? Cabe ainda perguntar: como sobreviver a esses tempos em que se perdeu as referências simbólicas que sustentavam a vida em sociedade e onde multiplicaram-se os recursos sectários? São tempos marcados pela ausência de significantes que norteiem o sujeito nos laços sociais e o enlace em uma identificação que engendraria o destino da pulsão.

Assistimos o domínio de vários sistemas simbólicos cheios de certezas a oferecerem receitas de sucesso. Referindo-se a estudos sociológicos que destacam o narcisismo social na época da globalização, Miller (2011) afirma que se trocou as referências simbólicas pela "constituição de zonas limitadas de certezas" (p. 10), propondo a expressão "bolhas de certeza" (p.15), para dizer da formação de pequenos nichos ou pequenos lugares narcísicos onde o sujeito constrói um frágil lugar para se ancorar. As bolhas de certeza se sustentam num significante mestre qualquer a que o sujeito se engancha em crenças fanáticas ou ainda aberrantes, como se vê nos partidos de ultradireita, que rejeitam os discursos dos especialistas e desprezam pesquisas, priorizando significantes mestres provenientes da magia ou da religião. O autor fala que vivemos na época do "não todo", invadidos por informações que nos dominam. Esse não-todo não seria um todo que comporta uma falta, mas uma série em desenvolvimento, sem limite e sem totalização, como as redes sociais.

As Igrejas neopentecostais, que se multiplicam numa progressão geométrica, cada uma fundada por um líder religioso independente e desligado de uma tradição, que arrebata sofredores em todas as camadas sociais também não obedeceriam a esta lógica? Questão em aberto a ser respondida em outro momento. Meu interesse por hora é assinalar a oferta, por parte dessas igrejas, de uma terapêutica com garantia de cura para todas as mazelas humanas, incluindo aí a solução dos problemas socioeconômicos, e agora também políticos, quando se infiltram no Estado propondo regras para as políticas públicas, com todos os estragos que isso representa. É o que assistimos hoje no Brasil.

Meu foco nesse cenário é discutir os impasses clínicos surgidos nesse momento histórico de expansão desses movimentos religiosos que se misturam ao sucesso midiático das terapêuticas de constelações e dos Coaching . O que temos assistido com frequência é que ante o imediatismo das soluções ofertadas nessas psicoterapias e na religião, quando advém uma crise subjetiva o sujeito procura os remédios para os males da alma que estão facilmente disponíveis. Busca-se alívio rápido, barato e sem dor, ou atalhos para abreviar o tratamento, como indica Freud (2017) em relação ao neurótico. Os procedimentos que tamponam a falta deixam restos que se expressam no adoecimento. E somente quando a promessa falha em responder à pergunta subjetiva e quando a receita não alcança o resultado esperado, é que a psicanálise pode ajudar a construir algum saber a partir dos restos advindos da pretensão de recobrir a falta a ser e o tudo saber. A psicanálise não oferece respostas nem promete cura, impondo ao sujeito a produção de significantes em torno de suas questões e confrontando-o com a falta que o constitui.

 


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A seguir, faço um contraponto entre psicanálise e religião apostando que isso pode esclarecer algo do contexto de nossa praxis, na medida em que, ao nos interrogarmos sobre como operar com o sujeito que recusa o encontro com a falta para aderir ao Outro sem barra, que dá sentido e responde a todas as suas questões, possamos sustentar uma direção do tratamento que opere visando responsabilizar o sujeito pelo seu desejo.

 

Psicanálise e religião. Contraponto

Assinalo, a princípio, a crítica que a psicanálise faz a todo discurso que afasta o sujeito de seu desejo e que mascara a impossibilidade de tudo saber e tudo poder. O desejo é um efeito produzido no falante pela linguagem, cuja incompletude o marca em sua constituição, que vai na direção oposta ao gozo em seu caráter de excesso que gera sofrimento. Sempre inconsciente, o desejo move o sujeito, sendo a condição para se inventar algo exclusivo, inédito, não determinado unicamente pela razão, mas também pela força pulsional. Estar em conformidade com o próprio desejo implica que, uma vez basteado pela castração, um falante venha a agir movido pela causa desejante, admitir a inconsistência do Outro, ou seja, a falta, para assim implicar-se e responsabilizar-se pelos efeitos imprevisíveis de seu ato - o que varia a cada falante, inclusive devido à posição que ocupa na estrutura de linguagem.

É preciso sublinhar, que assumir-se desejante não significa fazer o que se quer. Implica em tornar-se agente de sua vida, em separar-se da condição de objeto de gozo do Outro, alienado a seus ditos e ditames, em responsabilizar-se pelos desdobramentos de seu ato e em arcar com a perda que lhe é implícita. Sim, pois existem perdas mostrando que a assunção do desejo não assegura a felicidade e o bem-estar. Mas, livra o sujeito das armadilhas da culpa neurótica que alimenta a impotência e o fazem recuar da castração.

Partindo dessas premissas, a psicanálise busca o que é da ordem do desejo, mas este só aparece com a falta. Então, sustentar o desejo só é possível pela via aberta à falta, o que coloca a psicanálise na contramão da oferta religiosa de tamponá-la com a promessa de felicidade e perfeição. Ela também se opõe ao imperativo do ter que domina a sociedade do consumo, seja através da aquisição de objetos, seja na imposição de um estado permanente de alegria e bem-estar. Isso marca um distanciamento intransponível no modo de operar de cada um desses discursos. De um lado, a religião se sustenta na plenitude do saber divino capaz de responder e dar sentido a tudo; e de outro lado, a psicanálise leva em conta a impossibilidade de tudo ter e tudo saber, já que o ponto extremo da estrutura de linguagem é marcado pelo silêncio e pelo vazio. O saber de que se trata na psicanálise é um saber ele mesmo, que não se sabe, porque está recalcado, um saber que faz parte do recalque original, da ordem do impensável, que se sabe sem sabe-lo.

O que marca, contudo, a diferença, é a ética específica que norteia a psicanálise, que é a ética do desejo. Longe de prescrever ações que visem adaptar, ensinar ou treinar hábitos e valores morais como faz a religião e outras terapias, mantém no horizonte a questão que orienta a ação: agiste em conformidade com teu desejo?

Essa é uma pergunta que o sujeito só se faz quando engajado em uma análise. E para que isso aconteça é preciso, de um lado, que o sujeito fale, implicando-se com seu sofrimento em uma experiência de encontro com a falta; e de outro lado, que o analista, orientado pela política da falta-a-ser, opere da posição de objeto a causa do desejo. A política que orienta a relação analista-analisante engendra uma demanda específica, que não é de suspensão do sintoma, mas de transformação de um sintoma em enigma endereçado ao analista. Nessa experiência o sujeito será implicado em seu sintoma e se engajará na construção de um saber sobre sua verdade, tarefa que se torna, em minha opinião, mais difícil, quando confrontada às respostas fáceis disponíveis na cena social. Ou seja, as transformações do mundo modificam a dinâmica clássica do tratamento analítico e também a disposição do sujeito para ceder ao seu desejo.

Portanto, é preciso insistir na política da falta-a-ser, que passamos a explicitar, visando confrontá-la mais adiante com a política da promessa.

 

A política da falta-a-ser

Ao propor a política da falta-a-ser, Lacan (1998, p. 596) apresenta diretrizes que servem de referência clínica, a partir de críticas que faz às variações técnicas desenvolvidas por alguns analistas. Sua posição em relação aos princípios para a direção do tratamento nos convoca a sustentar a falta, única forma de fazer existir a psicanálise e o sujeito do desejo. Apresenta então uma estratégia - a transferência e seu manejo -, e táticas para ordenar o campo clínico. Estas estratégias dão direção às sessões e ao tratamento.

Podemos dizer que o movimento da psicanálise consiste em girar em torno de um furo. E Lacan chama esse furo de "não-sentido da relação sexual" (Lacan, 2003, p.512). A análise não é em direção ao sentido ou ao ideal, mas em direção ao gozo e ao real, considerando o sintoma como satisfação de alguma coisa. Assim, ela toma partido do real contra o imaginário. Sobre essa orientação da análise, Val e Lima (2014, p. 109) afirmam:

(...) é o mesmo que dizer que ela é orientada pelo objeto pequeno a, causa do sintoma e do desejo". Ao analista caberia circunscrever e depurar, do sintoma, este objeto que tem o estatuto de Real. E é essa direção que orienta fundamentalmente as ações do analista no tratamento, sustentada na ideia de que a falta está relacionada ao desejo. Isso ganha sentido quando consideramos que o sujeito foi separado de seu ser pela castração, que o analista, ao ocupar o lugar de objeto, revela (Val & Lima, 2014, p. 109).

O sujeito como falta-a-ser é o sujeito como falta-a-ser-muitas coisas: bonito, rico, inteligente, feliz e tudo o mais que possa representar sua insuficiência neurótica. Na análise, o encontro com a falta implica em que o sujeito renuncie aos ideais e à completude com o Outro, aceitando que é castrado. É com sua falta-a-ser que deverá se encontrar, pois ele está em permanente contato com o vazio que o constitui e com sua divisão estrutural, o que constitui um fator gerador de angústia, colocando o sujeito em constante busca de um significante que possa criar a ilusão de preenchimento e completude.

O objeto, segundo Lacan (1988), vem no lugar do ser que foi perdido, suprindo aquilo de que o sujeito foi privado simbolicamente. Isso marca a impossibilidade em eliminar a falta, pois o objeto ausente que completaria o sujeito jamais é encontrado, estando para sempre perdido, o que confere ao desejo sua permanência de para sempre insatisfeito. E isso move o sujeito em direção a novos objetos, na tentativa de obter plena satisfação, que jamais será alcançada.

Uma análise só tem lugar quando o enlaçamento do real, do simbólico e do imaginário, registros da experiência humana, se altera de forma radical ou mesmo se desfaz momentaneamente por alguma circunstância da vida. Ou quando o falante é lançado a uma crise subjetiva em virtude da magnitude insuportável da pressão pulsional constante que descompensa de algum modo seu funcionamento físico e mental manifestando algum sofrimento psíquico. No percurso de uma análise o sujeito poderá elaborar conflitos e refazer pouco a pouco sua economia psíquica a partir do reenlace dos registros real, simbólico e imaginário. Como o tempo do psiquismo é o só depois, impossível arriscar uma hipótese sobre quando e como o efeito discursivo de sujeito se produzirá em um falante. Isto impede que, em termos psicanalíticos, possa haver garantias de solução de conflitos de qualquer ordem.

É preciso desejo decidido para iniciar um percurso de análise, que se faz sempre em longas narrativas de uma história e onde o sujeito, esvaziado de identificações imaginárias, resta desamparado e, portanto, sensível ao chamado que vem das promessas do outro, desde aquelas voltadas à cura de seu mal-estar, até aquelas que acenam com a possibilidade de habitar uma sociedade ideal, justa e provedora das necessidades. Então, é provável que o sujeito em crise recorra ao que está bem ao alcance da mão, oferecendo garantias. E na sociedade regida pela lógica capitalista, ofertas de alívio rápido para o sofrimento não faltam, incluindo aí as seitas neopentecostais.

 

A política da promessa. Confrontos

Chamo de política da promessa a que opera visando o bem do sujeito, como as psicoterapias e a religião. Aí se dá sentido e respostas ao sofrimento, prometendo a cura, na condição de que se cumpram prescrições de ações e valores morais. A psicanálise não promete, abrindo-se a uma experiência que passa pela falta, centrada na produção de um saber singular a cada sujeito, sendo radicalmente distinta das terapias de adaptação que medem a saúde dos pacientes pelo seu sucesso no mundo. As mudanças da análise resultam da reordenação no regime de gozo.

Portanto, a psicanálise toma distância das promessas de bem-estar que são ofertadas pelas terapias como resultado de inquestionada vocação pelo bem. No Seminário A Ética da Psicanálise, Lacan (1988) afirma que a psicanálise não se fundamenta na ordenação dos bens no caminho da felicidade, mas situa no cerne de sua ação o desejo inconsciente, que aponta para a divisão constitutiva do sujeito e deve privilegiar sua emergência, senão terá fracassado. Mas, o acesso ao desejo tem um preço a ser pago. O que está em jogo é a castração. Castração imaginária que mantém o neurótico em posição de impotência. A ética da psicanálise não procura um ponto ideal de realização do sujeito. É do real que se impõe na causa do desejo que a questão ética se formula.

Só que da castração ninguém quer saber. O que se tem observado é a busca de um saber que dê sentido ao sintoma ou que complete o vazio da existência. Isso leva o sujeito a aderir a discursos que explicam o seu mal-estar, calando-o, pois ele fala através de um porta-voz de sua angústia, tendo como efeito a alienação ao outro ou a um objeto qualquer. Em nosso contexto sócio-político, a busca por segurança e prosperidade tem levado as pessoas a aderirem a discursos totalitários, que prometem acabar com a corrupção, com o desemprego e trazer a felicidade e harmonia plena. Então, quem quer saber da falta?

A comodidade tem levado aos templos pentecostais muitos sujeitos ávidos por soluções imediatas para os seus problemas. A religião é a morada plena do sentido (Lacan, 2005) e ela só está cumprindo sua função. Mas há uma novidade nesse campo, que é o uso que se faz da aliança estabelecida entre religião e política no sentido de vender soluções para os problemas sociais, através de líderes religiosos infiltrados em todas as instâncias da sociedade, com desdobramentos na esfera pública e privada, que vão da alienação do sujeito à desmontagem das políticas públicas. Ao alinhar-se com a política, o discurso religioso instaura uma verdade divina inquestionável no campo sócio-político, ao mesmo tempo que se apresenta com o poder de curar o sofrimento do sujeito, oferecendo a cura da angústia em uma espécie de clínica alinhada a muitas formas de psicoterapias oriundas do discurso científico, que operam numa vertente utilitária do saber. Lembrando que para Lacan (2005), o discurso religioso se estende a toda prática discursiva que pretenda dar sentido ao sofrimento, e por isso, a psicanálise deve evitar o sentido para não correr o risco de se transformar em religião.

Lacan faz a diferença entre psicanálise e psicoterapia, assinalando a implicação do inconsciente em duas vertentes da linguagem: a do sentido e a do signo. A psicoterapia estaria situada nessa vertente do sentido e a psicanálise na vertente do signo. A vertente do sentido é aquela que está do lado da sugestão, que se faz passar pelo bom senso, tido aqui como senso comum. A psicoterapia estanca, não porque não exerce um certo bem, mas por ser um bem que leva ao pior (Lacan, 2003, p.513). Sendo que o pior é o resultado da operação pela qual o Outro, como destinatário da demanda sempre terapêutica, se põe em posição de responder a ela de modo provedor, impedindo que o sujeito faça a experiência de sua castração.

 

Concluindo em tempos de promessa

Os mitos de ocasião surgem em tempos de fragmentação de valores e tradições, como representantes do Todo Poderoso, detentores de um saber e autorizados pelo Outro para a curar todos os males. As benesses que anunciam têm, como vimos, uma certa injunção nas escolhas do sujeito, contribuindo para o recrudescimento da entrega aos preceitos divinos em todas as esferas da vida, com o consequente declínio da responsabilização do sujeito por seus atos. Os templos estão lotados de fiéis, apontando para a produção em massa do sujeito da crença.

Lembremos Lacan na Proposição sobre o psicanalista da Escola (Lacan, 2003b), onde escreve: "Nosso futuro de mercados comuns encontrará sua balança numa extensão cada vez mais dura dos processos de segregação" (p. 263). Esse futuro ao qual se refere Lacan chegou, presentificando-se pelo discurso capitalista e seus efeitos. Ele avança ferozmente rasgando inúmeros acordos e tratados simbólicos. Há também uma recusa à dialetização, que torna cada vez mais difícil a mediação pela via da palavra, resultado de alianças espúrias para sustentar discursos de dominação.

Perguntado em uma entrevista coletiva realizada em Roma (Lacan, 2005) sobre o triunfo da religião em relação à psicanálise, Lacan responde que a religião é inquebrantável e que "A psicanálise não triunfará: sobreviverá ou não" (Lacan, 2005, p. 65). E acrescenta que a religião não triunfará apenas sobre a psicanálise, mas sobre muitas outras coisas, afirmando que é impossível imaginar quão poderosa é a religião, sobretudo a verdadeira, referindo-se à religião cristã, que segundo ele tem recursos de que sequer se suspeita. A ciência, nos diz ele, introduzirá muitas coisas perturbadoras na vida de todos e a religião terá muitas razões para apaziguar os corações. No que se refere ao sentido, diz Lacan, eles conhecem um bocado. "São capazes de dar um sentido realmente a qualquer coisa. Um sentido à vida humana, (...) às experiências mais curiosas, aquelas pelas quais os próprios cientistas começam a sentir uma ponta de angústia" (Laca, 2005, p. 65, 66).

Quanto à psicanálise, a quem se pede que cure o sintoma, é preciso que ela fracasse, pois "Se tiver sucesso nesse pedido, pode-se esperar tudo, a saber, uma volta da verdadeira religião, (...) que como vocês sabem, não dá mostras de se enfraquecer" (Lacan, 1974, p. 7, A terceira, texto inédito).

Isso no convoca a sustentar a ética da psicanálise, evitando as armadilhas que podem transformá-la em religião. Em A Terceira Conferência de Roma, Lacan (1974, texto inédito) adverte os psicanalistas sobre transformar a psicanálise em religião se sucumbirem ao sentido pela via da interpretação. Aponta o risco de os analistas se esquecerem da psicanálise e se empenharem em recobrir o real por meio de uma prática destinada a dar sentido, enunciando que "(...) o sentido do sintoma é o real, o real, na medida em que ele se atravessa para impedir que as coisas caminhem" (Lacan, 1974, p. 7).

 

Referências

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