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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.13 no.spe Rio de Janeiro mar. 2021

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2021vNSPEAp.42 

A PSICANÁLISE NA HISTÓRIA

 

A Psicanálise e o Político

 

Psychoanalysis and Politics

 

Psychanalyse et le politique

 

 

Betty Bernardo Fuks

Doutora em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Docente do Programa de Pós-graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida. E-mail: betty.fuks@gmail.com

 

 


RESUMO

O artigo visa promover um diálogo da Psicanálise com o Político tendo como norte o princípio de que se o inconsciente ignora parâmetros geopolíticos e noções do tempo - passado, futuro e presente -, isso não significa que o psicanalista deva ou possa ignorara as configurações política e histórica que testemunha.

Palavras-chave: PSICANÁLISE; POLÍTICO; ESTRANGEIRO; NARCISISMO DAS PEQUENAS DIFERENÇAS.


ABSTRACT

This article aims to promote a dialogue between Psychoanalysis and the Politics based on the principle that if the unconscious ignores geopolitical parameters and notions of time - past, future and present - this does not mean that the psychoanalyst must or can ignore the political and that witnesses.

Keywords: PSYCHOANALYSIS; POLITICAL; FOREIGN; NARCISISM OF SMALL DIFFERENCES.


RESUMÉ

L'article vise à promouvoir un dialogue entre la psychanalyse et le politique fondé sur le principe que si l'inconscient ignore les paramètres géopolitiques et les notions de temps - passé, futur et présent - cela ne signifie pas que le psychanalyste doit ou peut ignorer le politique et que témoins.

Mots-clés: PSYCHOANALYSE ; POLITIQUE ; ÉTRANGER ; NARCISISME DES PETITES DIFFÉRENCES.


 

 

A cor da carne

Não é possível estabelecer um diálogo entre a Psicanálise e o Político sem que se observe rigorosamente o princípio, derivado do próprio sistema de pensamento freudiano, da não diferenciação entre psicologia individual e psicologia social, pois aceitar que a experiência subjetiva implica, necessariamente, a referência do sujeito ao Outro, objeto de amor (modelo) e de ódio (obstáculo), e a linguagem, abre espaço para uma reavaliação de como a psicanálise, ao reconhecer que desde a origem o social está presente no Eu, subverte a análise do político. Ao retomar esse Outro, que Freud identifica como dobradiça entre o sujeito individual e o coletivo, Lacan introduz os termos Sujeito e Outro, articulando com precisão o que designou como a transindividualidade primordial do inconsciente: para além das marcas libidinais que recebe de seus próximos, o sujeito é marcado, de forma indelével, por representações sociais e políticas de seu tempo. As consequências desse papel constituinte do social na construção da subjetividade levou-o a elaborar uma recomendação específica aos analistas: "Que antes renuncie a isso, [exercer a psicanálise], quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época" (Lacan, 1953/1998: 322). As ressonâncias dessa recomendação reforçam a verdade do destino que Freud reservou aos seus herdeiros de agregar à prática da clínica do um-a-um a função de crítico da cultura que testemunha.

Todo o esforço em construir uma crítica dos fenômenos sociais que testemunha, obriga o analista ter como norte a direção do inefável da experiência clínica e, ao mesmo tempo, cuidar, conforme as diretrizes que encontramos em O mal-estar na cultura, de impedir as tormentas que podem advir quando conceitos são arrancados da esfera em que nasceram e se desenvolveram, a clínica psicanalítica. (Freud, 1930/1979, p. 139). Essa é a razão pela qual as análises críticas freudianas sobre as instituições sociais e sobre o político, compõem textos profundamente clínicos marcados pela metapsicologia.

Conta Joan Rivière que, ao ouvir de um interlocutor protestos pelo fato de não optar por ser politicamente "nem branco, nem negro, nem fascista, nem socialista", Freud, sem se deixar intimidar pela insistência do outro de fazê-lo abrir mão da retórica do nada, numa tirada genial, contrapôs: "Não, há que se ser da cor da carne", ou - o que dá no mesmo - "deveríamos ser da cor da carne" (Jones, 1981, p. 424). Da cor da carne? Sim, da cor do visceral, vale dizer da pulsão - do que estando entre o corpo e a linguagem vive no entre-dois, na ex-timidade, isto é, fora e dentro da pólis. Pode-se dizer que, com tal escolha, Freud deixa transparecer a crítica implacável da psicanálise às identidades político-ideológicas, pelo fato de encerrarem o sujeito numa rede simbólico-imaginária uniformizante. Isto nos faculta ler da seguinte maneira a sentença "Politicamente eu não sou nada": "Politicamente eu sou da cor da pulsão" ou - o que dá no mesmo - "deveríamos ser da cor da pulsão". No lugar de uma determinada identidade política, faz-se a proposta de uma desidentificação a partir da qual é possível pensar as exigências próprias da dimensão psíquica no político.

 

 

Assim, a afirmativa "Há que se ser da cor da carne" faz passar da incômoda sensação de mal-estar ao entusiasmo: "Há que se ser da cor da pulsão". Isto é, há que se deixar situar, simultaneamente, dentro e fora da pólis nas fronteiras que permitem subscrever o para-além do político - a pulsão - no político. Sob o signo dessa extraterritorialidade, inscreve-se a responsabilidade ética do analista: fazer emergir o inconsciente, o saber que se mantém fora de sentido, do lado do nada, do que está por se definir, do que existe por ir, enfim, do que é da ordem da diferença absoluta (différence). De modo que a opção pela cor da carne vincula-se, diretamente, ao desejo do analista, desejo de escutar o sujeito do inconsciente, sujeito do desejo, dos investimentos libidinais e destrutivos sobre os quais repousam o social e o político.

Num mundo em que a política de construção de identidades ideais lançava as sementes do totalitarismo, nasceu o conceito de inconsciente. Não há como deixar de pensar na intolerância pretensamente científica do século XIX, como causa mesma da psicanálise. Em Freud, o desejo de vencê-la e quebrar as resistências ao reconhecimento da diferença aparece na invenção deste significante sem significado - o inconsciente - representado, em 'A interpretação dos sonhos' por uma série de imagens fora de qualquer parâmetro geopolítico. Nos conhecidos "sonhos romanos", as fronteiras do país do Outro (1) são inimagináveis. Roma, - Canaã, o significante que Freud constrói para dizer do desejo de penetrar na Cidade de Roma, sem medo de esquecer sua Jerusalém, revela uma lógica incompatível com o que se define como a identidade do étnico e do político. Não há oposição irredutível entre Roma, a cidade cristã, e Canaã, a Terra Prometida dos judeus. Uma justaposição de lugares, onde coabitam todas as contradições e modos antitéticos de conhecimento, associada a uma temporalidade refratária à noção de tempo linear.

Mas atenção: se o inconsciente ignora parâmetros geopolíticos e noções do tempo - passado, futuro e presente -, isso não significa que o psicanalista deva ou possa ignorar, como dito acima, a configuração política e a histórica na qual pratica o seu ofício. Até mesmo porque, um dos pontos mais ricos da psicanálise está em reconhecer que se o processo analítico é algo que diz respeito ao sujeito individual, por outro lado por estar ligado à linguagem faz parte da grande História, a história pública (Plon, 2002, 91). A história privada encontra-se inscrita numa narrativa coletiva o que equivale dizer que a psicanálise não é uma estrutura a-histórica, imune às vicissitudes da sociedade e da cultura, nem uma prática e teoria ultrapassadas. Agrega-se a esse estado de coisas o fato de que a natureza da psicanálise é viver no "entre dois": frequenta os campos de outras disciplinas - filosofia, artes, religião, ciência, sociologia, política etc. e, ao mesmo tempo, exige o repensar de todos esses topos. Assim conjugada a psicanálise se caracteriza como ciência extraterritorial.

Portanto, mesmo tendo inaugurado uma prática de escuta do particular, Freud procurou manter diálogos com outras disciplinas a partir dos quais pode perscrutar o mal-estar crônico na cultura e suas incidências na subjetividade e, assim, elaborar uma metapsicologia dos laços sociais. Das três fontes de sofrimento humano, a natureza, a morte e a facticidade da relação entre os homens, essa última, capaz de atingir um grau maior de perdas e danos do que as outras duas, desfaz os ganhos da cultura, da razão e do intelecto porque subsumida à ação de uma pequena parcela de natureza indomável da própria constituição do psiquismo - a pulsão de morte em sua face destrutiva (Freud, 1930). Moral da história: impossível erradicar o Mal.

Quando da eclosão da Primeira Guerra, Freud reconheceu que a modernidade estava começando a se tornar menos civilizada do que povos primitivos, na medida em que sociedades modernas davam provas de descartar facilmente a vida, dessacralizar a morte e fugir do trabalho de luto (Freud, 1915/1979). Depois da Segunda Guerra Mundial, teríamos que nos perguntar sobre o que nos diria Freud da decisão de assassinar milhões de seres humanos estrangeiros no Estado totalitário alemão? Uma passagem pela teoria lacaniana ilumina uma possível resposta: a invenção de máquinas fabricantes de cadáveres - que os faziam entrar no ciclo da produção/consumo (reciclagem sob a forma de sabão) - não foi apenas um acidente único da História, mas é inerente ao próprio progresso técnico-científico quando a serviço do ideal moderno de construção de uma sociedade sem Outro (Koltai, 2000, p. 77). O extermínio como efeito da ciência e da tecnologia, prova viva de que a destruição do Outro é uma invenção moderna, testemunha o trabalho das pulsões não erotizadas à deriva, sem qualquer dique capaz de contê-las.

Na contemporaneidade somos, tanto quanto as gerações de analistas que nos precederam, convocados a escutar os acontecimentos sócio-políticos que ameaçam a ruptura dos laços sociais. Entre eles destaca-se a nova onda de xenofobia alastrando-se, a passos largos, pelos quatros cantos do planeta. Ela dá mostras de carrear o mesmo grau de violência e de crueldade que inundaram de sangue e dor o século XX, quando da ânsia de destruir a diferença para sustentar politicamente a primazia dos idênticos. Vejamos. Quando o presidente do país mais poderoso do mundo separa famílias, prende crianças, e declara tolerância zero dos Estados Unidos ao estrangeiro; quando a crise dos refugiados bate à porta de entrada da Europa, assim como em outras áreas do planeta, tomando proporções semelhantes, em magnitude, ao que o mundo viveu durante a Segunda Guerra Mundial, embora poucos reconheçam e admitam esse fato; quando a Hungria criminaliza qualquer ajuda prestada aos migrantes ilegais, por meio de um pacote de medidas contra a União Europeia e grupos de direitos humanos; quando a cada 23 minutos, a morte de um jovem negro brasileiro ocorre, por omissão do Estado e participação ativa da polícia; e finalmente quando um candidato à presidência do Brasil usa a retórica e a estética da violência contra os que decidiu, à revelia, chamar de "marginais vermelhos", insiste em discriminar publicamente índios e quilombolas ameaçando de expulsá-los de seus habitats e, depois disso, é eleito pelo voto democrático; então, somos convocados a buscar ferramentas metapsicológicas para refletir sobre o mal-estar dos processos sociopolíticos contemporâneos.

A questão do estrangeiro atravessa o curso das civilizações problematizando a discriminação social. O estrangeiro, o "ksénos" a respeito de quem Sócrates diz que, pelo menos, "vós os respeitareis, vós os tolerareis seu acento e seu idioma", mereceu leis de proteção, conforme Jacques Derrida faz notar (2003). Na Grécia antiga, do ponto de vista do direito, o hóspede, mesmo quando bem recebido, é antes de tudo um estrangeiro, e deveria continuar estrangeiro para que a hospitalidade seja condicionada em sua dependência à incondicionalidade que funda o direito (p. 63). O direito do estrangeiro à hospitalidade ou ao asilo era também regulada por códigos sociais na Mesopotâmia, na China antiga e em culturas orais melanésias. Na Torá, o código escrito e falado entre os judeus e conhecido no Ocidente como o Antigo Testamento, a questão do estrangeiro mereceu um mandamento: "Não falsificarás o julgamento do estrangeiro... E te lembrarás de que fostes escravo no Egito. Eis por que ordeno respeitar o estrangeiro" (Deuteronômio 24,17).

Gostaria que conservassem na memória essa série de legislações e direitos de hospitalidade e de proteção, reveladoras da posição ética dos povos antigos em relação ao estranho, agora que entrarei rapidamente no processo de constituição da subjetividade, deflagrado pelo encontro da criança com a alteridade. Processo sem o qual o acesso ao Eu é impossível. Antes, porém, quero voltar ao versículo do Deuteronômio para destacar também que a fina percepção do poeta, sobre a condição de estrangeiro do homem bíblico, aponta, avantla lettre, para o que a psicanálise aportou ao conhecimento moderno: ter nascido no estrangeiro é uma prova da qual nenhum sujeito escapa.

O estranho (Unhemilich), aquele que não sou, não obstante habita em mim, ocupa um lugar fundamental na prática clínica e na metapsicologia freudiana. Trata-se também de um conceito que sustenta o diálogo da psicanálise com a estética e a literatura assim como é fundamental para se pensar e refletir sobre o político. O estranhamento (Unheimlichkeit) descortina a incompletude e a falácia das fixações identitárias: somos estrangeiros para nós mesmos e essa condição se estende aos sentimentos de estranheza e de hostilidade entre os homens. Passamos, então, à questão do estrangeiro na ordem do coletivo sobre a qual Freud se detém para pensar a "coisa" política", na escrita do texto que dá título a esta mesa - "Psicologia das massas, ainda" - prestando-lhe homenagem.

 

Narcisismo das pequenas diferenças

Situo rapidamente o contexto histórico-político em que foi escrito Psicologia das Massas, análise do eu (1921/1979). A Europa estava começando a submergir no nazifascismo quando Freud, antecipando esse horror que estava por vir, mas que não conheceu, identifica nesse fenômeno de massa uma política obscurantista e tendenciosa à união da maioria em base à exclusão da alteridade. Parte do princípio que uma massa se organiza instalando uma hierarquia entre os membros identificados e submetidos a um só e mesmo objeto - o líder. Esse é o princípio básico de todo e qualquer totalitarismo e que, como dito no início desse artigo, encontrou nas políticas de identidade do século XX, as grandes promotoras da xenofobia e do racismo. Em outras palavras, Psicologia das massas, como bem demonstrou Paul-Laurant Assoun (1991, p. 99), revela de que forma, no século 20, a massa fascista "praticava" o mito da horda "primitiva" Mas isso não significa que o texto de 1921 seja uma mera aplicação das teses de Totem e Tabu. Se, nessa obra, o que está em jogo é a fundação da linguagem, da civilização e da religião, no texto sobre a organização das massas e de outros grupos, Freud se dedica a pensar os mecanismos políticos de exclusão do estrangeiro.

Como muitas vezes acontecia quando diante de um enigma para o qual a teoria não alcançava dar uma resposta satisfatória, Freud estabelece um dialogo interdisciplinar com a filosofia. Da célebre parábola de Schopenhauer que conta a saga de porcos-espinhos que, num dia gelado de inverno, são obrigados a se juntar com a devida distância para obter calor sem machucar a pele com os espinhos, faz avançar o conceito de narcisismo das pequenas diferenças, cunhado no texto 'O Tabu da Virgindade' (1918/1979). As pequenas diferenças constituem aquilo que impede que o outro seja um perfeito semelhante. Diferenças que tornam impossível a fusão com o outro. Em se tratando dos povos, o "narcisismo das pequenas diferenças" toma a forma como cada país se relaciona com o vizinho alvo da desvalorização. Isso, Freud nos diz, faz parte do humor entre os países. Moral da história: os homens são como os porcos-espinhos: precisam encontrar uma boa distância entre si de modo a não sucumbirem à indiferenciação. Devem aprender a estar juntos separadamente.

Entretanto, tal estratégia é insuficiente para regular a tensão interna inerente à toda sociedade humana - os conflitos entre amor e ódio e as parcelas inconquistáveis de barbárie sempre dispostas a se realizarem. Momentos no quais tentativas de se encontrar uma solução para crises sociais, econômicas e políticas segue sempre a seguinte receita: é preciso forjar uma unidade entre os indivíduos com o objetivo de dominar a alteridade. É necessário, então, que uma marca diferencial (traço) ou um objeto distintivo (chefe, entidade) ocupe o lugar do que o Eu ama como seu ideal. Traduzindo: as massas se desenvolvem, ganham e mantêm o poder, a partir do momento em que seus membros colocam um só e mesmo objeto - o líder - no lugar da ausência constitutiva da cultura e se identificam com ele assim como entre si mesmos.

O que isto significa? Significa que a coesão entre os membros se dá, necessariamente, por força da coação externa - o ideal - e que o sacrifício da subjetividade exigido a cada um dos membros obtém, como contrapartida, a convicção de se fazer filho querido do líder , cuja vontade se confunde com a lei. Na modernidade, a transmutação da figura do pai da horda em pai ideal pela divinização do líder, traduz o retorno do religioso ao político. Portanto, a questão que atravessa a obra freudiana de 1921 diz respeito à identidade coletiva em torno de um ideal. Nesse sentido o texto torna-se extremamente atual à compreensão do líder fascista e do tirano como transmutação da figura do pai da horda em pai ideal. Quando Donald Trump em sua campanha presidencial se vale do slogan "America first" - "América primeiro", ele transmite a seguinte mensagem: primeiro a América e depois os outros, o resto do mundo. A identidade dos que estão em primeiro lugar, os americanos, surge como uma proteção do perigo encarnado justamente pelos que vêm depois.

Jacques Lacan resgatou a importância que Freud deu ao fenômeno de servidão ao líder e consequente segregação dos "indomáveis", a partir da releitura do narcisismo das pequenas diferenças em O mal-estar na cultura: o Estado moderno está vinculado à fabricação de uma unidade fictícia, com o objetivo de perpetuar a dominação real sobre todos. Como vimos acima, o Estado apaga a ambivalência amor-ódio que circula entre seus cidadãos, os obrigando a endereçar o ódio ao objeto desprovido de alteridade. Em outras palavras, a palavra de ordem é a de reprimir a hostilidade e o ódio entre os idênticos e dirigi-los ao inimigo em comum, o estrangeiro, aquele que porta a diferença. Diferença ex-tima (2), algo que é da ordem do mais íntimo ao grupo, mas que está fora, no exterior. O racismo traduz o ódio à diferença que o grupo porta e ao mesmo tempo está fora dele.

Esse é o ponto em que a massa fascista, sob a égide da pulsão de destruição opera uma macabra manobra no "homem porco-espinho". A função do espinho de impedir a simbioses desaparece no momento em que, para dize-lo nos termos de H. Arendt, cria-se um inimigo objetivo sob o respaldo das mentiras que irão sustentar a demonização do outro. Muito anos antes de o WhatsApp se tornar o veículo publicitário de fake news, o fascismo que embasou os totalitarismos do século 20 encarregou-se de promover a dissolução primária dos "espinhos": no lugar da função de proporcionar uma boa distância entre o "eu" e o "outro", impedindo a fusão simbiótica que leva à morte psíquica, a ideologia nazifascista transformou-a numa arma mortífera de exclusão, de rejeição do outro. Nessas condições, o outro passa a ser o receptáculo da destruição.

No Brasil atual, não sem razão gays, negros, indígenas e outros estranhos estrangeiros sistematicamente atacados verbalmente e alvos da agressão do homem branco xenofóbico se sentem intimidados e ameaçados. Temem que os espinhos da maioria atinjam mortalmente seus corpos. O que nos leva a concordar com Freud com o fato de que, em última instância, a vontade de uniformização dos indivíduos está para além da tendência de apagar a diferença no interior do grupo e passá-la para fora. Ela propõe o pior: a eliminação de qualquer diferença, mesmo quando fora do conjunto. Em O mal-estar há uma passagem exemplar desse estado de coisas.

 

 

Devemos nos perguntar, insiste Freud, "o que farão os sovietes, depois de exterminarem todos os seus burgueses?" (1930/1979, p. 111) Indagação que nos leva a compreender que para o homem o outro não é apenas um possível colaborador e um objeto sexual. É também um objeto no qual satisfaz uma quota poderosa de agressividade, sua tendência em explorar sua força de trabalho, sem uma compensação, de usá-lo sexualmente sem o seu consentimento, de se apropriar de seus bens, de humilhá-lo e... de matá-lo (Freud, 1930/1979, p. 108). "O homem é o lobo do homem": o aforisma hobbesiano dá o tom da análise freudiana de que o humano não possui uma natureza pacata e amorosa.

Ao desvario pulsional da destruição, Freud recomenda combatê-lo desde uma posição ética e estética (Freud, 1933). Uma aposta situada mais além do ideal de erradicar o mal, ou da ilusão da construção de um mundo sem violência e sem ódio, capaz de minorar a experiência da barbárie no plano político. Tal estratégia de combate à violência e à agressividade não erotizada que nos leva de volta à cena, que solicitei a vocês guardar na memória - a do reconhecimento dos povos antigos da existência do estrangeiro e sua função na constituição de si. São cenas que nos permitem desconstruir a ideia de uma "superioridade" da civilização pós-moderna sobre os povos antigos. Na contracorrente do que vivemos atualmente no mundo sustentado pela ciência e pela tecnologia da informação, os povos antigos identificavam na figura do estrangeiro algo de familiar. E é em relação a essa posição Unheimlich que toca na memória do estrangeiro de si mesmo no sujeito, e que está se esvaindo em nosso tempo de rejeição ao outro, de crueldade para com o migrante e de destrutividade de tudo o que não é espelho, que nós analistas não podemos nos omitir de denunciar.

 

Referências

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