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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.13 no.spe Rio de Janeiro mar. 2021

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2021vNSPEAp.83 

POLÍTICA E CLÍNICA

 

Anotações sobre a diferença absoluta e a diferença relativa

 

Notes on absolute difference and relative difference

 

Notas sobre la diferencia absoluta y la diferencia relativa

 

Remarques sur la différence absolue et la différence relative

 

 

Romildo do Rêgo Barros

Psicólogo Clínico do Instituto de Formation des Psychologues Cliniciens e D.E.A. en Psychanalyse, Université Paris VII, França. E-mail: romildorbarros@terra.com.br

 

 


RESUMO

Parto, neste texto, da dissimetria entre os sexos, fundamental para o surgimento do desejo que, na neurose obsessiva, é sempre deixado para depois, tendendo à infinitização. Na sequência, distingo o desejo puro da condição absoluta do desejo, para introduzir o desejo do psicanalista como aquele que visa obter a diferença absoluta. E, finalmente, articulo-a com o conceito kantiano da dignidade.

Palavras-chave: desejo, diferença, condição absoluta, psicanalista, dignidade.


ABSTRACT

I depart, in this text, from the dissymmetry between the sexes, which is fundamental for the emergence of desire which, in obsessive neurosis, is always left for later, tending towards infinite. Then I distinguish the pure desire from the absolute condition of desire, to introduce the desire of the psychoanalyst as the one that aims to obtain the absolute difference. And finally, I articulate it with the Kantian concept of dignity.

Keywords: DESIRE; DIFFERENCE; ABSOLUTE CONDITION; PSYCHOANALYST; DIGNITY.


RESUMEN

Empiezo en este texto por la disimetría entre los sexos, fundamental para la aparición del deseo que, en la neurosis obsesiva, siempre se deja para más tarde, tendiendo al infinito. Entonces distingo el deseo puro de la condición absoluta del deseo, para introducir el deseo del psicoanalista como el que pretende obtener la diferencia absoluta. Y finalmente, lo articulo con el concepto kantiano de dignidad.

Palabras-clave: DESEO; DIFERENCIA; CONDICIÓN ABSOLUTA; PSICOANALISTA; DIGNIDAD.


RESUMÉ

Je commence ce texte par la dissymétrie entre les sexes, fondamentale pour l'émergence du désir qui, dans la névrose obsessionnelle, est toujours laissé pour plus tard, tendant à l'infini. Ensuite, je distingue le désir pur de la condition absolue du désir, pour introduire le désir du psychanalyste comme celui qui vise à obtenir la différence absolue. Et enfin, je l'articule avec le concept kantien de dignité.

Mots-clés: DÉSIR ; DIFFÉRENCE ; CODITION ABSOLUE ; PSYCHANALYSTE; DIGNITÉ.


 

 

O sexo é dissimétrico

O aforismo lacaniano do começo dos anos setenta: "não há relação sexual" (O Aturdito, 1972-2003), tem como base remota, no texto freudiano, a ideia de que não há objeto adequado ao sexo (Freud, 1905/1996). O sexo é de saída articulado a um sintoma, e somente pode ser vivido sintomaticamente: cada encontro sexual exige dos parceiros a referência a um Outro e a um objeto, como escolhas que se ancoram na repetição, apesar de serem contingentes. Neste sentido, cada parceiro estará sempre só. Como Lacan (1964-65) disse no seminário sobre os Problemas Cruciais da Psicanálise, "...a relação a dois que há no sexo é uma relação dissimétrica" (Aula de 9 de junho de 1965, inédita).

No mesmo seminário, Lacan explica essa dissimetria de forma mais detalhada: é que na relação entre o sujeito e o saber nunca se chega a uma coincidência completa, porque há sempre um terceiro termo que descompleta a relação, o elemento que Lacan chamou de objetoa: "Em qualquer lugar onde o sujeito encontra a sua verdade - é daí que veio nossa experiência - o que ele encontra torna-se objeto a, como o Rei Midas, que transformava em ouro tudo o que tocava" (Aula de 9 de junho de 1965).

Em outras palavras, a cada vez que o sujeito se vê confrontado com o saber, ou com o encontro da sua verdade - que somente se exprimirá como ficção -, precipita-se algo que nem é acessível ao saber e nem faz propriamente parte do sujeito. É o terceiro elemento como dejeto de qualquer relação a dois.

 

 

Podemos distinguir, nesse percurso, dois momentos decisivos na obra freudiana: um primeiro, em que Freud nega que haja um objeto adequado ao sexo - podemos situar isto nos Três Ensaios (1905/1996), e um segundo, dez anos mais tarde, em As Pulsões e suas Vicissitudes, quando Freud (1915/1996) faz esta afirmação definitiva: o objeto é o que há de mais variável na pulsão e, originariamente, o objeto não está ligado a ela, ou seja, há uma certa contingência no encontro com o objeto, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, opera como repetição.

Há, por fim, um terceiro momento, sintetizado no famoso "não há relação sexual" do começo dos anos setenta, no qual Lacan afirma a dissimetria necessária entre os parceiros, e também o fato de que qualquer encontro entre dois seres de linguagem engendra um terceiro elemento de uma categoria estranha, tanto aos sujeitos envolvidos quanto ao saber buscado. Estranha aos sujeitos por ser um objeto, e estranha ao saber, por ser justamente um dejeto do que pode ser sabido.

 

A condição absoluta

A repetição obsessiva é um exemplo neurótico daquilo que faz com que nunca aconteça um encontro. Para que nunca aconteça, o melhor recurso para o obsessivo é a procrastinação. Não para deixar para amanhã, mas para que, de hoje para amanhã e de amanhã em diante, o sujeito possa dizer: amanhã, amanhã, amanhã..., para sempre. Podemos encontrar em Freud textos que dão ideia dessa infinitização, que não é sem limite. Por exemplo, em O fetichismo, na descrição clínica que Freud (1927/1996) faz da gênese da perversão, e onde ele demonstra como a escolha do objeto se prende, sobretudo em certos sujeitos, não a alguma adequação natural, mas ao lugar que a falta de objeto ocupa na castração do Outro. O fetiche, então, é o objeto que falta à mãe e, por isso mesmo, torna-se para o sujeito, segundo Lacan (1960/1998, p. 689), uma condição absoluta. Notemos que a cada vez que a palavra "absoluta" aparece fora da religião é bom prestar atenção, porque costuma ter um peso importante.

O adjetivo "absoluto" foi usado por Lacan em várias oportunidades. Nesta, ele especifica tratar-se da "condição absoluta do desejo", enquanto que no Seminário 11: os quatros conceitos fundamentais, Lacan (1979), encerra com a conhecida frase: "o desejo do analista não é um desejo puro, é o desejo de obter a diferença absoluta" (p. 260).

A expressão "desejo puro" já mereceu vários comentários: eu citaria um livro de Bernard Baas (1992), que faz uma correspondência entre desejo puro e desejo de morte. Na frase de Lacan, a diferença absoluta está em oposição ao desejo puro. O analista, na sua prática, pode chegar à diferença absoluta com seu paciente, sob a condição de que renuncie ao desejo puro. Então, é mais do que uma oposição. Um dos enganos possíveis do analista é certo ativismo que pretenda levar ao desejo puro, o que equivale a uma espécie de fanatismo.

Jacques-Alain Miller (2000) usa uma frase que diz respeito ao desejo puro, e na verdade é uma paráfrase da afirmação do Seminário 11:"Este desejo, o desejo do analista, não é, no entanto, um desejo puro, é o desejo de separar o sujeito dos significantes mestres que o coletivizam"

Na própria ideia do desejo, na estratégia do desejo, existe sempre, confessadamente ou não, alguma separação, que funciona como condição para a diferença absoluta. O trabalho clínico ou político com o desejo, portanto, tem como terreno uma estratégia de separação.

A conquista da diferença absoluta não é um processo de purificação, apesar de ter um caráter de redução. Pelo contrário, é aquilo que pode surgir como consequência, se posso falar assim, de um desejo impuro. É com sua impureza que o sujeito se torna psicanalista, e não com a sua pureza. O desejo impuro de cada sujeito é aquilo que liga o sujeito ao seu objeto singular de gozo, assim como o liga aos outros.

Na Nota Italiana, Lacan (1973/2003) associa o analista ao dejeto, ao que ele chama de "rebotalho", ou seja, o resto de alguma operação. É necessário um trabalho para produzir um rebotalho. O analista é o contrário da Gata Borralheira, que vai do começo até o final deixando de ser o rebotalho. O analista, pelo contrário, começa muitas vezes como um grande homem, um intelectual, um artista, um neurótico da melhor estirpe, e vai, aos pouquinhos, se tornando um rebotalho. É, portanto, com o seu desejo impuro que se tornará analista, e não com sua verve maravilhosa, suas sublimações etc.

No seu artigo que chamou "A salvação pelos dejetos", Jacques-Alain Miller (2010). faz o seguinte comentário, que vai, mais ou menos, no mesmo sentido: "É preciso dizer que a debilidade assim definida é muito geralmente a dos psicanalistas, eles próprios. O que os salva - o que os salva mesmo assim - é ter tido êxito em fazer de sua posição de dejeto o princípio de um novo discurso."

É meio acaciano, mas podemos definir a diferença absoluta como aquela diferença que não é relativa. A diferença sexual entre homem e mulher, por exemplo, é uma diferença relativa, porque depende de uma comparação. Vocês pensam, por exemplo, que eu sou um homem, mas se vocês pensam que eu sou um homem é porque pensam saber o que é uma mulher, e ser uma mulher não coincide talvez com minha aparência. E então, vocês deduzem, binariamente: "já que ele não é mulher, é homem". É uma diferença relativa por meio da qual Freud, sobretudo em 1923, na Organização Genital Infantil (1923-1996), introduziu na psicanálise algo comparável à moeda, que para Marx funcionava como um equivalente universal. Então, a psicanálise inventou alguma coisa que pode parecer um contrassenso: postulou que homens e mulheres são diferentes exatamente porque nenhum dos dois tem o falo. Há um vazio fálico tanto nos homens quanto nas mulheres: logo, eles são diferentes. Qualquer lógico chamaria este silogismo de absurdo, mas para Freud ele se sustenta. Freud deixou uma brecha, que Lacan (1985) vai radicalizar em relação à mulher: nenhum dos dois tem o falo e nenhum dos sexos é A mulher. Continua parecendo um contrassenso, mas na clínica psicanalítica é uma experiência concreta. Tanto o homem quanto a mulher estão em exterioridade em relação ao que seria A mulher, que não existe.

Então, a diferença absoluta que se trata de alcançar em uma análise é o terreno daquilo que é incomparável, e que excede as diferenças relativas. Em outros termos, não basta, para estabelecer a diferença absoluta, saber ser - ou mesmo assumir-se - homem ou mulher, ou qualquer outra polaridade. Não basta definir o lugar ou uma escolha no terreno das diferenças relativas. Lacan situa o objetivo estratégico da psicanálise na produção da diferença absoluta, e não no aprimoramento das diferenças relativas. A diferença absoluta não é a evolução da aceitação das diferenças relativas. Existe um corte, um abismo entre as duas. Ora, isto tem como consequência que fica excluída qualquer ideia de uma completude entre os sexos.

Freud (1930/1976), em Omal estar na civilização, diz que no encontro entre os sexos existe alguma coisa que resiste à complementariedade. E é este desarranjo fundamental que nos constitui. Ele afirma que há algo da própria função do sexo que nos nega satisfação. O que Freud está dizendo é que, supondo-se o melhor encontro sexual, ou seja, aquele em que a fantasia se veria quase satisfeita, existe alguma coisa da própria função sexual que nos recusa a satisfação completa. Lacan sintetizou isto, dizendo não há relação sexual, ou não há proporção sexual.

Temos, portanto, primeiramente, a diferença absoluta como objetivo estratégico da análise; segundo, temos a diferença absoluta como aquilo que não é a reunião de todas as diferenças relativas. A diferença absoluta supõe um corte com a diferença relativa, ou seja, se forem somadas todas as diferenças relativas do mundo, ainda assim não se estará definindo o que é a diferença absoluta, porque a diferença absoluta se dá como uma ruptura com qualquer somatório.

 

Uma questão de dignidade

Creio que temos aqui certa correspondência com o conceito kantiano de dignidade, que podemos encontrar na Fundamentação da metafísica dos costumes. Kant usa uma oposição para definir o que é a dignidade. Mais do que uma oposição, Kant propõe uma exclusão mútua: no reino dos fins, escreveu ele, tudo tem ou bem um preço ou bem uma dignidade. O que tem preço pode ter outra coisa em seu lugar, como equivalente; mas o que se eleva acima de todo preço, não permitindo, por conseguinte, qualquer equivalente, tem uma dignidade.

A dignidade não tem preço, porque não faz parte da cadeia metonímica através da qual os objetos se sucedem como equivalentes eróticos. Não está submetida à comparação, sob a égide de um equivalente universal das trocas, como Marx diz da moeda. Ou como Freud, e sobretudo Lacan, dizem do falo.

Se dizemos hoje em dia que tudo virou mercadoria, isto equivale a dizer que qualquer coisa vale moeda. Não tudo, mas qualquer coisa, qualquer coisa pode ser representada por uma quantidade monetária, inclusive aquilo que antes representava o que não tinha preço. Existe, portanto, nos nossos dias uma crise na extensão do conceito de dignidade. É uma crise de civilização. Não é diretamente política, e nem psicanalítica, é uma crise de civilização.

A dignidade em Kant pode ser entendida como algo que interrompe o movimento em que os objetos fariam uma serie contínua e sem limite. Sem limite não quer dizer ainda a diferença absoluta. Sem limite quer dizer uma série dentro da lógica da diferença relativa, cujo fim não se vê. É a ideia do relativismo, bem dos nossos tempos, onde tudo vale qualquer coisa, alheia à lógica da psicanálise, uma vez que a psicanálise encontra o limite na sucessão dos significantes: seja no plano do imaginário - há alguma coisa que de repente se configura, e com isto se separa da série -; seja do real, como Lacan explica, por exemplo, a irrupção da angústia.

Isto sim é um ponto de interrupção na produção das diferenças relativas e uma abertura para a diferença absoluta.

 

Referências

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