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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.13 no.spe Rio de Janeiro mar. 2021

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2021vNSPEAp.88 

POLÍTICA E CLÍNICA

 

Psicanálise e democracia: da demanda política do outro ao desejo do sujeito

 

Psychoanalysis and democracy: from the political demand of the other to the desire of the subject

 

Psicoanálisis y democracia: de la demanda política del outro al deseo del sujeto

 

 

Rosana de Souza Coelho

Psicanalista. Pós-doutora em Psicanálise - Clínica e Cultura/UFRGS. Doutora em Psicanálise - Clínica e Pesquisa/UERJ. Professora em Cursos de Graduação e Pós-graduação em Psicologia. Membro do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise Núcleo Porto Alegre. E-mail: psi.rosana@gmail.com

 

 


RESUMO

O artigo parte do conceito de democracia na filosofia de Jacques Rancière e assinala pontos de aproximação desse conceito com a noção de política em psicanálise. Aborda as concepções psicanalíticas de poder, de ética e de sujeito, destacando a importância destas concepções na compreensão de um conceito de democracia que não anule a política como campo de encontro entre singularidades. Ilumina a face disruptiva da pulsão de morte, para pensá-la como motor de resistência ao poder ditatorial. Ao final, ilustra os desdobramentos teóricos com algumas cenas do filme uruguaio Uma noite de doze anos, dirigido por Álvaro Brechner.

Palavras-chave: POLÍTICA, DEMOCRACIA, SUJEITO, PULSÃO DE MORTE, RESISTÊNCIA.


ABSTRACT

The article starts from the concept of democracy in the philosophy of Jacques Rancière and points out points of approach of this concept with the notion of politics in psychoanalysis. It addresses the psychoanalytic conceptions of power, ethics and subject, emphasizing its importance in the understanding of a concept of democracy that does not negate politics as a field of encounter between singularities. It illuminates the disruptive face of the death drive, to think of it as form of resistance to dictatorial power. At the end illustrates the theoretical developments with some scenes from the Uruguayan film A night of twelve years, directed by Álvaro Brechner.

Keywords: POLITICS, DEMOCRACY, SUBJECT, DEATH DRIVE, RESISTANCE


RESUMEN

El artículo parte del concepto de democracia en la filosofía de Jacques Rancière y señala los puntos de enfoque de este concepto con la noción de política en el psicoanálisis. Aborda las concepciones psicoanalíticas del poder, la ética y el sujeto, enfatizando su importancia en la comprensión de un concepto de democracia que no niega la política como un campo de encuentro entre singularidades. Ilumina la cara perturbadora de la pulsión de muerte, pensándola como un motor de resistencia al poder dictatorial. Al final ilustra los desarrollos teóricos con algunas escenas de la película uruguaya La Noche de 12 Años, dirigida por Álvaro Brechner.

Palabras clave: POLÍTICA, DEMOCRACIA, SUJETO, IMPULSO DE MUERTE, RESISTENCIA.


 

 

Hello darkness, my old friend
I've come to talk with you again
Because a vision softly creeping
Left its seeds while I was sleeping
And the vision that was planted in my brain
Still remains
Within the sound of silence(1)

Simon & Garfunkel

 

A democracia em porvir

Uma sombra conservadora paira no céu do mundo contemporâneo, e sob ela se abrigam discursos de cunho totalitário. Há algum tempo, a democracia tem dormido e acordado com severas ameaças aos seus alicerces, zelosa e duramente conquistados em décadas passadas. Mas, aqui e acolá, homens e mulheres resistem.

A escrita desse texto inspira-se em dois eventos vividos em momentos concomitantes: um deles foi o resultado das eleições de 2018 no Brasil, e outro foi minha ida ao cinema para assistir Uma noite de doze anos, filme dirigido por Álvaro Brechner, e que narra a história verídica de três presos políticos em meio à ditadura uruguaia. Uma história contada pelo olhar de três amigos: Mauricio Rosencof, Eleuterio Fernandez Huidobro e José Mujica, o qual foi presidente do Uruguai entre 2010 e 2015. Durante doze anos, eles foram encarcerados em vários lugares diferentes, mantidos em porões fétidos, em condições inacreditavelmente insalubres, e proibidos, acima de tudo, de falar entre si e com quem quer que fosse.

Por que trazer um filme sobre ditadura em um trabalho que quer falar de democracia? Porque esse filme conta uma bela história de resistência, esse ingrediente fundamental para que a democracia possa florescer. Voltarei ao filme no final do texto. Agora, abordarei a primeira parte do título do meu texto, a articulação entre psicanálise e democracia.

Democracia não é um significante nascido no campo psicanalítico, por isso começo convidando o filósofo Jacques Rancière e seu livro "O ódio à democracia" (2014) a me acompanhar. Considero particularmente interessante nesse livro a asserção de que o ódio é o substrato de uma concepção que identifica a democracia a um excesso que precisa ser controlado, de onde decorre a ideia talvez ingênua, mas certamente cínica, de que o bom governo, a boa democracia, são aqueles capazes de controlar a vida democrática.

A sábia conclusão, então, é de que só existe uma democracia boa: a que reprime a catástrofe democrática (Rancière, 2014). E isso justificaria a invasão, a colonização e a segregação do outro, ainda que seja em moldes arbitrários e violentos. O que se trata de conjurar, diz Rancière, é o próprio princípio da política, pois, para esse autor, a política é necessariamente o campo do diverso e do conflitivo, campo onde os sujeitos políticos valem pelas suas desigualdades, entendidas pelo autor como desigualdades de qualquer ordem: econômica, social, de gênero, de raça, etc. Para Rancière, a desigualdade precisa ser inerente à política e à democracia como modo de governo que escape das "paixões do Um", digo eu, inspirada pelo que encontro em outro escrito desse autor: "La democracia no es ni la autorregulación consensual de la pluralidad de pasiones de la multitud de indivíduos, ni el reino de la colectividade unificada por la ley y amparada por la declaración de Derechos" (Rancière, 2010, p. 51)(2).

Na pena do filósofo argelino, para que assim possam ser a política e a democracia, os sujeitos políticos precisam ser pensados como sujeitos que "não se identificam nem com 'homens' ou agrupamentos de populações, nem com identidades definidas por textos constitucionais. Eles se definem sempre por um intervalo entre identidades, sejam essas identidades determinadas pelas relações sociais ou pelas categorias jurídicas" (Rancière, 2014, p.76, aspas do autor). O processo democrático, ele argumenta, precisa trazer sempre à tona o universal em sua forma polêmica. Tal processo precisa ensejar formas de subjetivação que

digam não à constante privatização da vida pública. Nesse sentido, a democracia é uma espécie de impureza da política, pois ela rejeita a pretensão de governos que pretendem "encarnar um princípio uno da vida pública" (Rancière, 2014, p. 81). Logo, o processo democrático implica "a ação de sujeitos políticos que, trabalhando no intervalo das identidades, reconfiguram as distribuições do privado e do público, do universal e do particular. A democracia não pode jamais se identificar com a simples dominação do universal sobre o particular" (Rancière, 2014, p. 80).

Ao ouvirmos Rancière, compreendemos muito claramente que sua concepção de democracia se enlaça à de política e recusa, em ambas, a redução do particular ao universal. Pois, no reino do universal tudo está construído para sempre e desde sempre. Mas a democracia precisa recusar-se a esse deleite e não temer o por vir, modo de ser democrático que Betty Fuks (2015), convocando Jacques Derrida (1988), nos assinala: o de arriscar-se a ser um sistema político permanentemente construído em um resgate incessante e perene de seus traços originários.

O diálogo com os autores que até aqui me acompanharam torna possível uma aproximação das suas concepções de política com a que trabalhamos em psicanálise, uma concepção de política que não teme o conflito, que contempla o desgoverno das pulsões e sua recusa recalcitrante em se deixar encarcerar pelo universal que o poder esposa. Uma política que não quer banir a diferença do horizonte subjetivo. Neste sentido, a relação que o discurso da psicanálise mantém com os discursos de mestria escapa ao "politicamente correto", e seu costume de fazer do semblante um modo de gozo onde os ganhos privados são dissimulados em nome do bem público. A política da psicanálise visa e inclui o sintoma, forma singular que o sujeito tem de dar conta do real, e de "utilizá-lo" para fazer obstáculo a que as coisas andem como deseja o Mestre (Lacan, 1974). Uma política que não quer evacuar o impossível inerente à vida coletiva, ou melhor, o impossível como condição mesma para que a política não assuma as vestes do tirano ou do tecnocrata (Coelho, 2018).

Nenhuma política acontece sem se sustentar em preceitos éticos. No que toca à ética da psicanálise, podemos afirmar que ela não endossa a exclusão do sujeito, estando ele encarcerado em frias masmorras ou etiquetado em rótulos biologizantes de manuais mofados, recursos ordinários dos quais o poder lança mão para silenciar o enfrentamento à dominação. Trata-se de uma ética que reconhece e louva o fato de que, ou o sujeito encontra a vida que pulsa na palavra, com a qual constrói o seu mundo e (re)cria a cultura em relação com o outro, ou ele se cala nos braços da morte (Safouan, 1993).

Sobre a relação entre o campo da psicanálise e o da democracia, acompanho o que afirma René Major (2003) em uma conferência: se a psicanálise não existe sem a democracia, a democracia tampouco poderia existir sem a psicanálise, sem o trabalho de desconstrução dos mitos teológico-políticos que está no cerne do seu discurso, assim como está em sua ética e em sua política. Então, ousemos avançar teoricamente a partir do dito de Major, para propor que o conceito de democracia com o qual estamos trabalhando requer um sujeito tal como a psicanálise o postula, uma vez que o status pulsional e ético do sujeito do inconsciente, por encerrar o conflito, encerra uma potência de subversão discursiva que pode furar a tessitura espessa de regimes políticos que se encarregam de banir o desejo do horizonte subjetivo.

 

Dar voz ao silêncio

Mencionar o sujeito em psicanálise requer um retorno a Freud, que com sua genialidade intelectual, concebeu o inconsciente como fundado no conflito entre os polos da lei e do desejo, concepção que se tornou complexa com a descoberta da pulsão de morte, onde ele situa, no para além do princípio do prazer, algo constituinte da vida psíquica (Freud, 1920/1976). Relendo Freud, Lacan entendeu que o que ultrapassa o prazer permanece impossível de simbolizar, e lhe deu o nome de real (Lacan, 1959-60/2008). Com Freud e Lacan, podemos afirmar que há uma inadequação radical e original do sujeito ao que se costuma considerar como realidade. No exercício do seu desejo, o que guia o sujeito é a realidade psíquica, e esta é governada pelas pulsões. No plano político, essa inadequação nos mostra que onde há sujeito há desejo, mas há também há resistência ao poder do Outro quando arbitrariedade e submissão passam da conta(3).

A resistência, nessa chave de leitura, deve ser pensada não como o retorno do recalcado que se cristaliza no sintoma e paralisa o sujeito, mas como resistência que põe em questão os significantes petrificados no campo do Outro, sobretudo se esse Outro não se dobra aos esforços para individualizar o sujeito, como evidenciamos na política contemporânea. Sobre isso, Célio Garcia escreveu, com uma bela inspiração foucaultiana, que "o direito à resistência faz do indivíduo, governado por seu desejo, o sujeito de uma resistência sempre possível ao poder político (...). O indivíduo torna-se sujeito ao resistir ao poder" (Garcia, 2008, p. 61).

Desde a visada psicanalítica, podemos fundamentar essa compreensão de resistência ao poder acompanhando o que Lacan elabora em O Seminário, livro 11 - Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise sobre o conceito de pulsão. Ali, ele mostra que a repetição que anima a pulsão também busca operar a partir de um regime de diferença (Lacan, 1964/ 1990, p.56). Ao articular pulsão, repetição e real, Lacan dá um status bífido à pulsão, apresentando-a em sua face de autômaton, a repetição como mera insistência de retorno à cadeia significante, logo, de retorno ao sentido e à significação; mas também em sua face de tiquê, definida por ele como "uma repetição onde sempre algo se produz como por acaso" (Lacan, 1964/1990, p.56). E sublinha: trata-se de uma repetição que põe em causa o real e, por isso, engendra um "encontro essencialmente faltoso", encontro que abre as portas do campo do desejo (Lacan, 1964/1990, p. 59).

É preciso ainda costurar, porém, o que diz Lacan sobre esse encontro faltoso com o que ele já havia desdobrado anteriormente sobre a pulsão de morte em O Seminário, livro 7 - A ética da psicanálise (Lacan, 1959-60/2008). Ali, ele aborda a pulsão de morte em uma perspectivacriacionista, argumentando que todo ponto de transgressão tem uma relação sensível com o sentido do desejo (Lacan, 1959-60/2008). E ele nos diz que é no coração de das Ding, núcleo irrepresentável do real onde "tudo que é lugar do ser é posto em causa" (Lacan, 1959-60/2008, p. 257), que a pulsão de morte faz morada. Ao inscrever-se como potência destrutiva, ela desfaz, "desliga", produz furos na ordem simbólica, desde um ponto de criação a partir do Nada, lugar onde se origina e se articula a cadeia significante. Essa elaboração permite a Lacan manter, ao mesmo tempo, o caráter destrutivo da pulsão e situar essa vontade de destruição como "(...) vontade de recomeçar com novos custos, na medida em que tudo pode ser posto em causa a partir da função do significante" (Lacan,1959-60/ 2008, p. 254).

Ora, dessas elaborações lacanianas podemos decantar algo muito valioso quando teorizamos sobre a face disruptiva da pulsão de morte no âmbito da vida política, vida que não cessa de colocar em confronto o sujeito e o Outro do poder, pois é esse confronto que convoca o sujeito a escolher, em ato, um modo de lidar com o gozo distinto daquele que é experimentado como satisfação na posição de objeto da demanda do Outro.

O que Lacan assevera sobre a vontade de recomeçar com novos custos, implica a escolha de um encontro com o real que toca a pulsão de morte, mas que suporta a perda de gozo. É onde o gozo fracassa que o encontro com aquilo que se perde atualiza para o sujeito sua relação ao desejo e enseja a possibilidade de uma invenção significante, de uma subversão criadora. Dito de outro modo, se a existência do sujeito do desejo situa-se na dualidade do polo pulsional e representacional da linguagem, na descontinuidade radical entre as exigências da pulsão e as possibilidades de simbolização sempre insuficientes, podemos depreender que é justamente aí, nesse intervalo, que Freud deu o nome de desamparo, nessa experiência abissal e trágica, que o sujeito cria.

E criar, no que tange à política, campo em que o poder é a matéria-prima, não se dá sem por em tensão resistência e transgressão. Observemos que a transgressão necessita da norma para existir, logo, conclui-se que ela tem referência na norma, embora vise ultrapassá-la. Refiro-me aqui, obviamente, a uma transgressão que prescinde do caráter perverso, onde transgredir ficaria a serviço da miragem de completude, negando a castração como constituinte do circuito do poder. Assim, o que destaco como potente no ato transgressivo é o por em questão o sistema normativo, sem deixar de implicar-se no risco. Tal ideia de transgressão se coaduna com a que propõe Eugène Enriquez (2009) quando ele aproxima respeito e transgressão para situar o poder simultaneamente "como recusa e referência" (Enriquez, 2009, p. 14). O que Enriquez (2009) assinala, a meu ver, com propriedade, é que a transgressão inscreve-se no registro da vida. "A transgressão é necessária para a vida, se não for a própria vida", ele afirma, para destacar que a transgressão não é a negação pura e simples do interdito, pois esta não passa de um outro modo de aceitação do interdito.

Como escrevi em outro lugar, trata-se de uma transgressão que tem como ponto de mira a invenção, o novo e a criação, num movimento onde a resistência não prescinde do desejo, mas o põe, inexoravelmente, em causa (Coelho, 2011). Assim concebida, a transgressão inscreve-se num registro ético que visa e respeita o outro em sua condição de alteridade, e recusa o "deve ser" preconizado pela moral das ditaduras, seu apego egoísta ao trono, e sua incapacidade de implicar-se no gozo do poder.

Dito isso, reencontro o filme para adornar e concluir esse artigo, pois a narrativa fílmica que ele nos oferta é a mais bela constatação de que durante uma noite fria, cruel e longuíssima, três sujeitos resistiram ao convite impertinente da morte. Embora tivessem uma causa que os unia, cada um viveu essa dolorosa experiência com toques singulares. Não deixaram, no entanto, de mostrar-nos o ardente desejo de resistência, desejo de dar voz ao silêncio que lhes foi imposto.

Eleutério Huidobro usou o corpo como um aliado poderoso para "alargar" as paredes das masmorras em que estava confinado fazendo exercícios físicos ou caminhando, mesmo estando aprisionado em cubículos que mal cambiam uma pessoa. Em outros momentos, fez da imaginação de momentos felizes um deleite no árido cenário do seu confinamento, fantasiando encontros com sua mulher e sua filha em piqueniques bucólicos e ensolarados ou, em um dos raros momentos em que saiu da cela, "jogando futebol" com adversários e uma bola, imaginados com tanto desejo, que podia mesmo ouvir os gritos de gol da torcida.

 


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Maurício Rosencof, um romântico literato, cansado de ouvir as lamúrias de um soldado, as quais revelavam sua lamentável incompetência em conquistar uma dama, num ímpeto de coragem, reclamou da excessiva cantilena do militar, e ofereceu seus préstimos para escrever tocantes cartas de amor. Xingado e ameaçado de morte em um primeiro momento, insistiu na possibilidade, tentadora para o soldado, de ajudá-lo nessa empreitada amorosa, e o conseguiu. A partir daí, não só o soldado, mas um tenente, igualmente inepto nas coisas do amor, também lhe pediu os mesmos serviços. Ocupando-se de escrever essas cartas, Rosencof pode barganhar um lápis e um pequeno caderno, no qual passou a bordar letras poéticas e inscrever a luz necessária para se manter vivo. Aliás, um dos signos de que esses dois amigos não se dobrariam ao impedimento de bem dizer o seu desejo é dramatizado pelo esforço criativo de Huidobro, que forja um alfabeto com toques nas paredes, fazendo dele um meio de conversar com Rosencof nas poucas vezes em que se encontraram compartilhando as gélidas paredes de suas prisões.

Entretanto, para José Mujica, os dias no cárcere eram, cada vez mais, governados por uma angústia que ficava a serviço da mudez imposta por seus algozes. Dia após dia o silêncio o habitava na medida mesma em que o imobilizava. Como resultado, ele era constantemente importunado por vozes que não o deixavam parar de pensar, por alucinações auditivas, duramente experimentadas, e que no cárcere passaram a conviver com a violenta voz do aparelho de eletrochoque (4). Em uma das poucas visitas de sua mãe, ele pediu que ela não voltasse a visitá-lo. Temia enlouquecer, temia que ela o visse louco. Ela respondeu ao seu pedido com uma reprimenda enérgica: "Você tem que resistir! Ninguém, ninguém vai tirar o que tem dentro de você. Só perde aquele que desiste!". Se a mãe de Mujica fosse lacaniana, iria dizer com a mesma ênfase: "Não cedas do teu desejo!". Mujica ouve esse precioso conselho: durante uma solenidade militar, preso em uma minúscula cela ele aproxima seu rosto da grade que lhe servia de janela, grita a plenos pulmões revelando segredos íntimos de seus algozes. Ao sustentar seu dizer ele recupera um pacote de erva mate e um penico, dois dos parcos objetos que tinha recebido da mãe, e que lhe tinham sido sumariamente confiscados. No penico ele planta sementes de flores. Na última cena, vemos Mujica sair do cárcere com uma pequena trouxa de roupas em uma das mãos, e com o vaso de flores na outra.

"Isso não é um penico", disse Mujica com seu ato ao cavar um vazio na demanda política do Outro que o calava com seu poder ditatorial. Resistir é o ato de cavar esse vazio onde o sujeito planta a sua palavra-desejo. Ato que implica uma transgressão criadora pela subversão da função do objeto, fazendo-o passar de objeto de gozo a objeto-causa do desejo, subversão que pode fundar uma política que não exclua o impossível e mereça o adjetivo de democrática.

 

Referências

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(1) Olá escuridão, minha velha amiga/Eu vim para falar com você de novo/Porque uma visão suavemente rastejando/Deixou suas sementes enquanto eu dormia/E a visão que foi plantada no meu cérebro/Ainda resta/Dentro do som do silêncio.
(2)"A democracia não é nem a autorregulação consensual da pluralidade das paixões da multidão de indivíduos, nem o reino da coletividade unificada pela lei e amparada pela declaração de Direitos" (tradução minha).
(3) Quando coloco lado a lado desejo e resistência, o leitor poderá me inquirir argumentando que, desde a visada da psicanálise, a resistência é relativa ao modo de defesa próprio ao funcionamento da consciência, enquanto o desejo mora no campo do inconsciente, tal como Freud concebeu (Freud, 1915/1976). Diante de tal argumentação, terei que aquiescer de bom grado. Contudo, vou me permitir treplicar na companhia de Birman (2006) e no que este autor aponta sobre o caminhar teórico de Freud desde a primeira até a segunda tópica do aparelho psíquico, a qual Freud enriquece ao redesenhar o psiquismo estruturando-o em três instâncias - Ego, Id e Superego -, sublinhando suas inter-relações econômicas e dinâmicas, e se desfazendo de qualquer noção que leve à compreensão da soberania de uma instância sobre a outra (Freud, 1923/ 1976).
(4) Mujica fala sobre essa passagem em algumas entrevistas e também no livro de Heleutério Fernandez Huidobro e Maurício Rosencof, Memórias del Calabozo. Pazcuaro Editores: Uruguai, 2000. O roteiro do filme foi inspirado nesse livro.

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