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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.13 no.spe Rio de Janeiro mar. 2021

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2021vNSPEAp.96 

RESENHA

 

A prática da psicanálise em ambulatório de saúde mental

 

The practice of psychoanalysis in a mental health clinic

 

La práctica del psicoanálisis en una clínica de salud mental

 

 

Maria Alice Ramos Ferreira Leal

Psicóloga e Psicanalista, especialista em Psicologia Hospitalar, Mestre em Tecnologias em Saúde. E-mail alicefleal@hotmail.com

 

 

 

Resenha do livro Lêda Lessa Andrade Filha, Entre acordes dissonantes: a clínica psicanalítica no ambulatório de saúde mental. Salvador: EDUFBA, 2019. 154 p.

O livro Entre acordes dissonantes, a clínica psicanalítica no ambulatório de saúde mental, convoca o leitor ao diálogo. A escrita da psicanalista Lêda Lessa imprime um ritmo que possibilita nuançar a temática, distanciando-se de qualquer retórica que acirre formas polarizadas de pensar, tão presentes na atualidade. A autora propõe discutir, a partir da Psicanálise, a clínica do sujeito no espaço ambulatorial de um hospital psiquiátrico público, no qual a multiplicidade de discursos que aí coabitam faz emergir tensões, tratadas pela autora com delimitações claras e rigorosas, mas não sem leveza, à medida que as dissonâncias acabam por soar em acordes, conferindo - como em uma peça musical - movimento e riqueza ao texto.

Desde a Introdução, percebe-se o talento de Lêda Lessa em percorrer os diferentes campos epistemológicos, sem se deter diante do que poderia apresentar-se, aparentemente, como obstáculo. Assim, as exigências metodológicas de uma tese de doutorado, nos moldes acadêmicos, são respeitadas, sem nada ceder à precisão de uma pesquisa a ser empreendida no registro da Psicanálise. A partir do estudo de três casos clínicos, de saída ela os diferencia do "estudo de caso", ou seja, de uma metodologia já conhecida da investigação qualitativa, na qual se busca neutralizar os efeitos da subjetividade do pesquisador; Lêda irá destacar que, na formulação do "caso clínico" psicanalítico, o "pesquisador", por ser objeto do investimento transferencial do paciente, estará no cerne das questões a serem trabalhadas. Ainda no contexto da apresentação, outras diferenças são traçadas entre a Psiquiatria e a Psicanálise, quanto à construção do diagnóstico, aos momentos do tratamento, à práxis e à ética, que na Psicanálise se distanciam de uma perspectiva patologizante, visto que as categorias nosológicas - neurose, psicose e perversão - não visam etiquetar o sujeito, mas situá-lo quanto às suas relações de alteridade e ao seu ser no mundo.

A conceituação de sujeito tem sido alvo de interesse da autora desde longa data. Foi tema da sua dissertação de mestrado, intitulada: Singularidade e divisão do sujeito: um percurso na teoria de Freud e Lacan. Em Acordes dissonantes, Lêda introduz a temática com breves notas, situando a noção de sujeito na perspectiva da Reforma Psiquiátrica, que privilegia a ideia de cidadania e de cuidado e, na outra vertente, no campo da Psiquiatria biológica, o sujeito é como que abolido, comparecendo tão somente como executor de condutas, que irão se ajustar, mais ou menos, conforme a terapêutica adotada. É, então, a partir da concepção de sujeito formalizada por Freud e Lacan, circunscrita no registro do inconsciente e da linguagem, que a autora aposta em revigorar o debate no âmbito da saúde mental, em que pese o atual cenário devastado pelo desmonte sistemático das políticas públicas nesse domínio.

Em três capítulos, a autora fornece o lastro teórico para que, no quarto e último, o leitor tenha uma dimensão mais apropriada do que vem a ser a clínica do sujeito no contexto de um hospital psiquiátrico, deslindando com delicadeza cada termo dessa proposição. No primeiro capítulo, Lêda discorre sobre o tema da "loucura e o Hospital Juliano Moreira", tecendo os fios que permitem entender o porquê do nome do hospital não deslizar para outras significações, guardando o valor de signo da loucura no imaginário da cidade de Salvador. Ela narra a história dessa instituição no âmbito da Psiquiatria brasileira e, não menos sem interesse, nos apresenta ao homem extraordinário que lhe deu o nome.

Destacando a forma atual de funcionamento da Instituição, a autora detalha os dispositivos criados no Hospital Juliano Moreira, a partir de aportes da Reforma Psiquiátrica, para se contrapor ao modelo manicomial - excludente e violento - que desumaniza o paciente sob a inscrição de "doente mental". É com lente sensível que a autora se volta para a singularidade do paciente assim rotulado, traçando simetrias com um personagem de Ítalo Calvino que, em sua singeleza, captura em primeiro plano a natureza, tão esmaecida na estética urbana. Do mesmo modo, os pacientes do Hospital Juliano Moreira, para Lêda, são capazes de capturar a realidade por um viés igualmente inusitado que, quando internados, driblam o peso da estigmatização pelo prazer recolhido de mínimos detalhes, sobretudo os herdeiros do modelo asilar, cujos vínculos familiares foram rompidos, e que, mesmo após inúmeras tentativas de reatamento, ali permaneceram como moradores.

Nesse primeiro desenvolvimento, a autora descreve o funcionamento da rede de saúde mental, mencionando, inclusive, as leis brasileiras que promoveram a ruptura do paradigma manicomial. Brinda-nos, igualmente, com um panorama histórico, muito bem articulado, do fenômeno da loucura desde a Idade Média, Renascença, desembocando na Modernidade, sempre respaldada na arqueologia empreendida por Foucault; e conta-nos alguns "segredos de bastidores" sobre a sua imprescindível História da loucura. A autora discute a dupla inscrição da Psicanálise na visão trágica e crítica da loucura e nos coloca como espectadores do rico diálogo intertextual de Freud e Foucault, salientando os pontos convergentes entre esses dois pensadores sobre o tema.

Os desdobramentos históricos sobre a loucura, descritos pela autora, parecem-nos ali colocados como camadas que se superpõem para conferir a devida densidade ao tema. Atualmente, a instituição destinada a abrigar o louco, por mais sólida que seja a sua tentativa de dar lugar a "múltiplas vozes", acaba, por assim dizer, por ter suas bases corroídas, em certa medida, pelo peso esmagador de insígnias seculares. A loucura, ao emergir no campo da Psiquiatria, emudece, ou melhor, o discurso psiquiátrico monologa, silenciando-a. Lêda chama a atenção, a partir das considerações de Joel Birman, de que a loucura foi notadamente uma experiência sem sujeito e é a partir da Psicanálise que a palavra é restituída ao louco. O psicanalista, ao escutar o delírio, permite que o sujeito do inconsciente emerja em uma relação muito específica com o sistema da linguagem, como afirma Lacan.

No segundo capítulo, de forma muito didática, a autora delimita o conceito de sujeito psicanalítico, distinguindo-o do sujeito cartesiano - sujeito da filosofia - ou do sujeito da ciência ou mesmo do sujeito das "práticas psi". Ela destaca que não se trata da pessoa ou do indivíduo que é, sobreposto, muitas vezes, à ideia de um eu; tampouco se refere ao sujeito autônomo, o cidadão, conforme as delimitações da Reforma Psiquiátrica. Lêda avança delicadamente, precisando distinções, de modo que se esclareça a compreensão psicanalítica da noção sujeito. O sujeito da Psicanálise emerge no dispositivo analítico, isto é, no endereçamento de sua fala ao analista, a partir da relação transferencial que aí se instala.

O sujeito apreendido em diferentes discursos cria diferentes práticas no seio da instituição psiquiátrica, tornando seu contexto complexo e multivocal, é o que conclui a autora, que se dedica a trabalhar, ainda nesse capítulo, a teorização de Lacan acerca do discurso como laço social. Lêda retoma as posições e as funções dos termos: agente, outro, verdade e produção, na formalização dos discursos identificados por Lacan como o do amo, da histérica, universitário e do analista, fazendo reflexões e paralelos interessantes com o discurso da Psiquiatria clássica, da Reforma Psiquiátrica e da Assistência Social, demarcando a ética e o modus operandi que os respaldam. A autora encerra o capítulo afirmando: "Trabalhar com a Psicanálise no âmbito da instituição pública de saúde mental é poder transitar no campo do diverso, e mesmo em discursos diversos, se necessário for, desde um lugar advertido [...] sob a égide de uma ética que preza o desejo e respeita a diferença", e continua, "tendo em conta o sujeito em sua alteridade radical".

No terceiro capítulo, Lêda adentra a especificidade da Metapsicologia da psicose em Freude Lacan, fazendo um percurso cuidadoso, demonstrando como esses autores, cada um à sua maneira, faz sua aproximação ao campo da psicose. A autora situa o leitor quanto ao caráter revolucionário das formulações freudianas, sobretudo quando Freud afirma que o delírio é a tentativa de restauração da realidade para o psicótico, concorrendo para a sua estabilização psíquica. Lacan, por sua vez, irá formular outros conceitos fundamentais para o entendimento das psicoses, sendo digno de nota que teorizações complexas, tais como: metáfora paterna; foraclusão do nome-do-pai; nó borromeano; quarto nó, dentre outras, imprescindíveis à clínica lacaniana das psicoses, são tratadas por Lêda Lessa com rigor, ao mesmo tempo com clareza, permitindo ao leitor, ainda pouco familiarizado com a terminologia, obter compreensão do texto.

Na abertura do terceiro capítulo, embora a autora pareça dirigir-se exclusivamente aos praticantes da Psicanálise, assinalando as perdas ou mesmo a ferida narcísica que poderia representar para o analista o trabalho clínico em uma instituição de saúde mental, ela, igualmente, sinaliza os consideráveis ganhos, oportunizados pelo encontro com a psicose e com a prática da Psicanálise em extensão, ou seja, a partir das trocas interdisciplinares. Lêda acaba por convocar todos os atores envolvidos no campo da saúde mental a se aproximar das bases conceituais em Freud e em Lacan sobre a psicose, não apenas pela apresentação didática dos conceitos, mas, creio, pela apresentação do rico tramado de fragmentos biográficos de personagens emblemáticos da Psicanálise - Schreber, Aimée e Joyce -, pois, dificilmente, se resiste a uma boa história.

No último capítulo, é a partir da apresentação dos casos de Márcia, de Iolanda e de Maria que a autora nos oferece o testemunho da sua própria experiência na sustentação da clínica do sujeito. Lêda, ao presentificar seu desejo de analista no contexto do ambulatório de saúde mental, instaura o dispositivo analítico. Percebe-se que a escolha criteriosa das histórias clínicas permitiu a autora explorar os momentos decisivos na direção de cada tratamento. Assim, no Caso Márcia, a analista exemplifica como a equação hospital Juliano Moreira = a loucura, imprime imaginariamente em Márcia a insígnia que a faz designar a si mesma como "paciente do Juliano"; e é a partir do trabalho clínico que ela poderá, como afirma Lêda, descolar-se do sentido que lhe vinha do Outro e encontrar outra nomeação de si, a partir da escuta das produções do seu inconsciente.

Os casos de Iolanda e de Maria vão, a sua vez, pôr em relevo a importância de construir o diagnóstico que, em Psicanálise, trata mais de situar o analista quanto ao manejo transferencial do que classificar o paciente. A autora enfatiza que a construção do diagnóstico no próprio desenrolar do tratamento é uma prerrogativa da clínica do sujeito. O Caso Iolanda é apresentado em dois momentos: no primeiro, a transferência se constitui e a paciente confidencia à analista sua novela familiar, não havia ainda indícios de que uma psicose viesse a se declarar; é com mestria que Leda, no segundo momento, analisa os elementos que precipitam a irrupção do surto. Precisamente quando Iolanda é convocada a responder a um apelo fálico sem qualquer sustentação da metáfora paterna. O Caso Maria é do mesmo modo desafiador, mas é seguindo o fio condutor das relações do sujeito com a linguagem e com suas modalidades de gozo que a analista formula o diagnóstico de psicose, no qual a dimensão do luto adquire um papel preponderante.

Ao apresentar os casos, a autora promove um mergulho na dinâmica e funcionamento da instituição. O diálogo com a Psiquiatria mostrou-se para Lêda essencial. Demarcando diferenças, ela pontua que o psiquiatra busca o consenso estatístico para nomear o transtorno, como também o medicamento que o faça desaparecer. Numa interessante observação, ela menciona que no Caso Maria as divergências entre os psiquiatras acerca do diagnóstico fizeram a paciente experimentar diferentes famílias de fármacos que ora eram antidepressivos, ora antipsicóticos ou ansiolíticos.

Em suas considerações finais, a autora reafirma a importância do ambulatório como um dispositivo que permite o ir-e-vir, garante a privacidade e facilita, com sua configuração espacial, o enquadre para o desenvolvimento da clínica psicanalítica na esfera do público. Por outro lado, constata a denegação quanto ao papel que cumpre o ambulatório nas políticas públicas de saúde mental, pelo silêncio em torno da sua especificidade e pelo pouco interesse em ampliar e construir novas unidades ambulatoriais.

Para concluir, diria que num momento no qual a Inteligência Artificial promove o apagamento das subjetividades, inserindo as pessoas em bolhas cada vez mais refratárias ao contraditório, é muito bem-vindo um livro no âmbito da saúde pública, cuja autora capta com escuta sensível a dissonância que pode soar em acordes, desde quando, ela insiste, se preze a dimensão do desejo e se reconheça o sujeito em sua radical alteridade.

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