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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.13 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2021

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2021v1p.29 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

As horas: o beijo e a morte

 

The hours: the kiss and the death

 

Les heures: le baiser et la mort

 

 

Emylle SaviI; Amadeu de Oliveira WeinmannII

IMestre em Psicanálise: Clínica e Cultura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. E-mail: emysavi@gmail.com
IIDocente do PPG em Psicanálise: Clínica e Cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. E-mail: weinmann.amadeu@gmail.com

 

 


RESUMO

Cinema e psicanálise nascem na mesma época e têm uma longa história de interlocuções. Neste artigo, pensamos nos efeitos subjetivantes da sétima arte e procuramos compreendê-los por meio da análise de cenas do filme As horas. As cenas possuem um fio condutor, o romance Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, que une a vida de três mulheres: Virginia, no tempo em que o escreve e no da sua morte; Laura, leitora do romance nos EUA dos anos 1950 e Clarissa, mulher do século XXI, cujo nome compartilha com Mrs. Dalloway. Nas três narrativas, erotismo e morte encontram-se enlaçados.

Palavras-chave: MRS. DALLOWAY; FEMININO; EROTISMO; MORTE.


ABSTRACT

Cinema and psychoanalysis born at the same time and has a long interlocutions history. In this article, we thought seventh art subjectivation effects and seek understand them through the movie The hours scenes analysis. The scenes chosen has a point in common, Mrs. Dalloway romance, by Virginia Woolf, that connect three women life's: Virginia, in the time that wrote the romance and the time of her death; Laura, who reads the romance in the USA 1950's; and Clarissa, XXI century woman, witch name shares whit Mrs. Dalloway. Eroticism and death are connected in the three narratives.

Keywords: MRS. DALLOWAY; FEMININE; EROTICISM; DEATH.


RESUMÉ

Le cinéma et la psychanalyse sont nés en même temps et ont une longue histoire d'interlocutions. Dans cet article, nous pensons aux effets subjectifs du septième art et essayons de les comprendre à travers de l'analyse des scènes du film Les heures. Les scènes ont un fil conducteur, le roman Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, qui unit la vie de trois femmes: Virginia, au moment de la rédaction du roman et au moment de sa mort; Laura, lectrice du roman aux USA dans les années 1950; et Clarissa, une femme du 21e siècle, qui partage le nom avec Mrs. Dalloway. Dans les trois récits, l'érotisme et la mort sont liés.

Mots-clés: MRS. DALLOWAY; FÉMININ; ÉROTISM; MORT.


 

 

Introdução

Em 1895, enquanto Josef Breuer e Sigmund Freud publicavam Estudos sobre a histeria, em Viena, os irmãos Lumière (Auguste e Louis) faziam a primeira exposição pública de seu cinematógrafo, no Grand café, em Paris. Em 1905, quando Freud lançava Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, o cinema popularizava-se nos EUA, em nickelodeons (galpões que exibiam filmes por 1 nickel). Algumas das primeiras aproximações da psicanálise ao cinema foram da ordem de uma "colonização", tentativas de psicanalistas de "colocar os personagens e diretores no divã", ou seja, interpretá-los a partir do enredo do filme.

O olhar da psicanálise para o cinema vem mudando, assim como vem se transformando a relação da psicanálise com a arte em geral. Talvez não seja a psicanálise que fale sobre a arte, mas a arte que propicie um pensar psicanalítico. Freud, em seu texto Escritores criativos e devaneio (1908 [1996]), afirma que o poeta tem o talento de antecipar, através de sua escrita, nossos pensamentos, anseios e desejos; toca naquilo que é objeto de interesse da psicanálise. Podemos pensar que assim é, também, com o cinema. Nesse sentido, pensamos nos efeitos subjetivantes da sétima arte e procuramos compreendê-los por meio da análise fílmica.

Sobre a análise fílmica, Amadeu Weinmann (2017) afirma ser ela quase tão antiga quanto o cinema. É com Christian Metz, no entanto, em meados dos anos 1960, que surge uma semiótica do cinema e a sétima arte passa a ser estudada como uma linguagem específica. Com o comentário de Raymond Bellour a Os pássaros, de Hitchcock - publicado nos Cahiers du cinéma, em 1969 -, a análise fílmica consolida-se. A partir do trabalho desses autores, instaura-se um intenso diálogo entre psicanálise e cinema, o qual aborda o cinema como linguagem, ou seja, procura escutar os ecos do significante no texto fílmico. Nesse movimento, a sétima arte deixa de ser considerada, estritamente, uma criação do imaginário e adquire o estatuto de produção simbólica.

Nessa perspectiva, este trabalho consiste em um ensaio de análise fílmica de As horas, filme dirigido por Stephen Daldry, lançado em 2002 e inspirado no livro homônimo de Michael Cunningham, vencedor do prêmio Pulitzer de 1999. Para realizar a análise fílmica, algumas cenas foram selecionadas: três beijos, dois suicídios e uma tentativa de suicídio. Temas como o feminino, a morte, o tempo e a vida percorrem a narrativa fílmica.

 

O primeiro suicídio: O beijo e o suicídio

O filme começa. Um som de água correndo antecipa a imagem da correnteza de um rio e vai gradativamente aumentando. No momento em que a imagem da correnteza aparece, o leitor é situado, geograficamente - estamos em Sussex, Inglaterra -, e, em seguida, temporalmente: é o ano de 1941. A câmera, que filma a correnteza desde cima, verticalmente, é gradativamente colocada na posição horizontal e o espectador vislumbra a beira do rio, árvores e vegetação. Um corte indica uma quebra na sequência. Em seguida, o silêncio contrasta com o volume intenso de água correndo e a câmera filma, em close, as mãos, trêmulas, de uma mulher fechando os botões do casaco. A mão esquerda possui uma aliança no dedo anelar, estamos diante de uma esposa, a mão direita entra no bolso, insinuando a intenção de conferir se está vazio. Acompanhamos essa mulher saindo de casa, fechando a porta e percorrendo, apressada, um jardim. Durante o trajeto, a câmera fica um tanto afastada e escondida, à meia luz, dando a impressão de que o espectador acompanha a mulher esgueirando-se nas sombras, espiando. O dia é ensolarado e o canto dos pássaros é alto, o que contrasta com a expressão e movimentos da mulher, que são pesados. Não há trilha sonora, nessa altura da cena. A mulher chega a uma cerca com um portão de madeira - e o abre, violentamente. Um segundo corte, indicando nova quebra na sequência de eventos, mostra uma mão segurando uma caneta tinteiro e, em seguida, repousando no papel para, aparentemente, escrever uma carta, enquanto uma voz de mulher narra a escrita: "Querido...". A carta é endereçada ao esposo. A partir desse ponto, os planos intercalam-se entre a mão escrevendo a carta, trêmula e rapidamente, e a mulher caminhando apressada por gramados e árvores, caminhos que indicam uma zona rural. Enquanto isso, uma voz over narra a carta, que tem um tom de desistência e despedida. A carta é narrada na primeira pessoa do singular e diz que sua autora começou a ouvir vozes e não consegue se concentrar. Os planos intercalados indicam dois tempos sendo mostrados, alternadamente. A mulher chega ao rio e o som alto, das águas correntes, retorna. Nesse instante, a trilha musical inicia uma música instrumental de cordas, extradiegética, intensa. Um terceiro corte na sequência indica um homem entrando na casa, da qual assistimos a mulher sair há pouco. A câmera encontra-se na mesma posição, o que indica uma simetria entre os planos: no primeiro plano, a mulher abre a porta, sai e a fecha; no segundo, um homem abre a porta, entra e começa a fechá-la, mas a câmera não mostra se ele a fecha até o fim. A mulher começa a colocar pedras nos bolsos. Novamente, um plano que remete a um anterior, no qual ela conferia se os bolsos estavam vazios, sendo que agora ela os preenche com pedras. No instante seguinte, ela começa a entrar no rio, vagarosamente.

 


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No próximo plano, um close em duas cartas depositadas acima da lareira da casa: a primeira, endereçada a Leonard e a segunda, a Vanessa. O homem entra na sala e as vê. O espectador supõe que a primeira das cartas é a que está sendo narrada pela voz da mulher e sendo escrita por sua mão. A mulher segue entrando no rio. Nesse instante, a voz over narra a seguinte frase: "o que eu quero dizer é que devo toda minha felicidade a você". O homem vai abrindo a carta com as mãos trêmulas, as mesmas mãos trêmulas que fecham o casaco e escrevem a carta. Um casaco se fecha e uma carta se abre, uma carta é escrita e uma carta é lida. Enquanto ele lê a carta, ouvimos a seguinte frase: "não creio que duas pessoas possam ter sido mais felizes do que fomos". Nesse instante, enquanto a voz over lê o nome da autora da carta - "Virginia" -, três planos rápidos acontecem em sequência: no plano 1, a mão repousa aberta sobre a carta, após terminar de escrevê-la; no segundo, a mulher submerge completamente na água e no terceiro, a carta lida pelo homem cai no chão. Ele sai correndo pela mesma porta por onde entrou e na qual ela, anteriormente, havia saído. A posição da câmera e, consequentemente, o olhar do espectador, ocupa o mesmo lugar, mas a porta encontra-se aberta e assim segue, não há o movimento de abri-la e fechá-la, o que nos indica que o homem não terminou de fechá-la quando entrou. No final dessa cena, acompanhamos o corpo da mulher vagando pelas profundezas do rio, o sapato solta-se de seu pé e o último plano mostra-nos sua aliança de casamento. A aliança que se encontrava na mão trêmula no início da cena, repousa agora na mão sem vida. Essa cena de suicídio ilustra a morte da escritora inglesa Virginia Woolf, em Sussex, Inglaterra, no ano de 1941.

 

O primeiro beijo

A cena passa-se na Califórnia, em 1951. Ela é composta por planos mais curtos e contém diálogos, o que não ocorre na cena anterior. Laura Brown está em casa, terminando um fracassado bolo de aniversário para seu marido. Um corte nos conduz à parte externa da casa: há sons e imagens de crianças brincando, enquanto uma mulher se aproxima, tranquilamente, de uma cerca de metal com um portão, o atravessa e se dirige à porta da casa. A cerca e o portão estão presentes novamente, dessa vez em uma versão mais moderna (metal) que a da cena anterior (madeira). A campainha toca, Laura parece surpresa e Kitty (a vizinha que toca a campainha), impaciente. O filho pequeno de Laura corre, segurando um ursinho de pelúcia, e diz que há alguém na porta. A campainha toca novamente. Laura vai até o espelho e confere sua imagem, ajeita-se. Antes de atender à porta, Kitty entra e, ao ver Laura, a vizinha pergunta se ela está bem. Laura responde que sim. Kitty cumprimenta o menino Richie. Laura prepara um café, enquanto Kitty confere o bolo que Laura fez para o aniversário de seu marido. O bolo ficou feio e Kitty comenta: "fazer um bolo não é tão difícil, qualquer um pode fazer um bolo, é ridiculamente fácil". Kitty segue dizendo que Laura tem outras qualidades e que seu marido a ama tanto que nem irá perceber o bolo feio. Kitty parece muito confiante, fala rápido, sorri. Laura parece insegura e hesitante. O menino, Richie, olha desconfiado para Kitty, por trás de seu ursinho de pelúcia, enquanto elas conversam sobre os maridos. Laura comenta que Ray (marido de Kitty) tem muitos amigos e que Kitty também tem, são ambos bons nisso - fazer amigos. Nesse instante, o semblante de Kitty muda e ela passa a ficar menos sorridente e mais séria. Laura fala que seus maridos retornaram da guerra, eles merecem, depois de tudo o que passaram. Kitty pergunta o que eles merecem. Laura diz que não sabe, elas mesmas, ela supõe, tudo aquilo - e percorre o olhar pela casa. Kitty vê um livro em um canto, novamente seu semblante muda e ela fica sorridente e pergunta à Laura do que se trata. Laura responde: "é sobre... essa mulher... ela é incrivelmente... bom, ela é uma anfitriã e é incrivelmente confiante, e ela está dando uma festa. Talvez por ser confiante, todos pensam que ela está bem. Mas ela não está". Kitty guarda o livro e sua expressão muda de uma forma mais acentuada do que na vez anterior. Laura pergunta se algo está errado e Kitty, com uma expressão séria, permeada de sorrisos opacos, conta que terá que ficar no hospital, pois tem um tumor no útero. Laura demonstra preocupação.

Kitty pede à vizinha que alimente seu cão e retira a chave de sua casa da bolsa, deixando-a em cima da mesa. Kitty senta-se à mesa. Laura senta-se à mesa, também, dessa vez com o semblante sereno e Kitty diz que, provavelmente, não consegue engravidar por causa do tumor. Neste momento da cena, os planos são subjetivos (vemos do ponto de vista das personagens), a câmera filma uma e outra falando (campo e contracampo), não há trilha sonora e o único som, além da conversa das duas, é o de crianças brincado na rua. Kitty diz: "você tem sorte, Laura, eu não acho que alguém pode se chamar de mulher até ser mãe" (Laura está grávida). Neste instante, Laura, que olhava para ela, atentamente, baixa os olhos. Kitty segue falando e Laura vai se desesperando, ao escutá-la. Laura levanta-se e abraça Kitty, que chora e diz estar preocupada com Ray, seu marido. Neste plano, vemos as duas em um close: Laura beija a cabeça de Kitty, desce pela sua testa, nariz, vai dizendo para ela esquecer Ray, até que a beija na boca e ela se entrega. Laura segura a cabeça de Kitty entre as mãos, não há sons, e depois se afasta devagar. Kitty abre os olhos e diz que Laura é doce. Laura tem uma expressão conturbada, de difícil definição, parece um misto entre confusão e orgulho. Kitty recompõe-se, dá instruções a Laura sobre como alimentar o cachorro, levanta-se e começa a ir embora. Laura pergunta se ela se importou e Kitty diz: "me importar com o quê?", negando o beijo. Nesse momento, a câmera mostra Kitty saindo e, quando ela se move, aparece Richie, que estava sentado no chão, ao fundo, atrás de Kitty - os olhares de Richie e Laura se cruzam. Laura vai atrás de Kitty e diz que tudo dará certo. Kitty responde: "é claro que dará", com um sorriso mecânico. Kitty sai, Laura começa a chorar e surge uma música triste: uma trilha sonora instrumental de cordas, com alguns acordes de piano. Laura olha para Richie, que está olhando atento para ela, e pergunta de um modo ríspido: "o quê? O que você quer?" Ele levanta-se, sai correndo e escutamos um barulho de porta batendo. Ela pega o bolo feio e joga no lixo. A tampa da lixeira fecha-se e há um corte na cena.

 

A tentativa de suicídio

A cena começa com Laura Brown chegando a um hotel. A trilha sonora instrumental é intensa, toca a mesma música da cena anterior, do beijo, sendo que, dessa vez, o piano ganha protagonismo. Uma voz off dá instruções sobre o funcionamento do hotel e o horário do café da manhã. Um corte leva o espectador para dentro do quarto, onde o dono da voz termina de dar as instruções. A câmera, de frente para Laura, filma por trás do funcionário do hotel, o momento em que ela retira umas moedas da niqueleira, dando-as de gorjeta ao homem e pedindo-lhe que não seja perturbada no quarto. O plano seguinte é um plongée (câmera em posição diagonal frontal superior), em que a trilha sonora foi diminuindo, progressivamente, no plano anterior, desde uma música muito intensa, até notas praticamente inaudíveis e escutamos, apenas, um barulho de frascos de remédio quando Laura põe sua bolsa sobre a cama. Um close em sua face e, depois, em seus pés - ela tira os sapatos. Há uma conexão entre esse plano e o penúltimo, da primeira cena de suicídio, na qual o sapato sai do pé de Virginia Woolf, quando seu corpo está submerso na água. Laura abre a bolsa e, lentamente, tira os frascos de remédio, um a um. O plano segue em plongée, mas dessa vez mais aproximado da personagem, pois ela parece ter se lembrado de algo. O próximo plano mostra um bolo perfeito em cima da mesa, essa segunda tentativa foi bem-sucedida. De volta ao close no rosto de Laura, ela baixa os olhos e retira o livro Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf - sobre o qual conversou com Kitty, na cena anterior -, e o lê. Enquanto Laura lê o livro, surge, ao fundo, a voz de Virginia narrando a história, a mesma voz que narrou a carta na primeira cena de suicídio, e a trilha sonora retorna, timidamente. Laura afasta as roupas e acaricia a barriga. Essa cena é intercalada com outra, de 1923, época em que Virginia está escrevendo Mrs. Dalloway. Enquanto a câmera passeia entre os rostos de Laura, submersa na leitura, e Virginia, com uma expressão concentrada, a voz de Virginia narra o trecho do livro no qual Clarissa Dalloway se pergunta se importaria se ela acabasse, se tudo aquilo (a rua, as pessoas, a vida, o mundo) seguiria seu curso sem ela, se é possível morrer. A voz de Vanessa, irmã de Virginia, irrompe - contando ao espectador que Virginia não está sozinha no ambiente, por mais que passeie pelo interior de sua mente - e convoca-nos ao quarto de escrita dela, onde ambas estão sentadas, juntamente com os dois sobrinhos e a sobrinha Angélica.Vanessa fala de amenidades, Virginia pensa no destino de sua personagem: "é possível morrer! É, sim, possível morrer!". Vanessa percebe que sua irmã está absorta e pergunta sobre o que ela está pensando. No próximo plano, voltamos ao quarto do hotel, a câmera mostra as páginas do romance Mrs. Dalloway sendo folheadas por Laura, ela guarda o livro e pega os frascos de remédio. De volta ao quarto de escrita de Virginia, Angélica levanta-se e oferece um biscoito à tia. Vanessa diz ser Virginia uma mulher de sorte, por ter duas vidas: a que ela vive e a que ela escreve em seus livros. Outro elemento que se repete nessa cena e na anterior é a "sorte": Kitty diz que Laura tem sorte e Vanessa diz o mesmo de Virginia. Angélica pergunta para sua tia: "no que você estava pensando?". De volta ao quarto de hotel, o plano em plongée mostra Laura deitada na cama, com a barriga grávida à mostra e os frascos de remédio ao seu lado. Debaixo da cama, de ambos os lados, começa a verter muita água: água com plantas, como as águas de um rio, que sobem e cobrem o corpo de Laura. O barulho da água corrente, novamente, se faz presente. A água vem, barulhenta, invade os corpos, deixando-os submersos. Virginia responde à Angélica: "eu ia matar minha heroína, mas mudei de ideia". Laura levanta-se assustada da cama, emitindo um som de angústia. Diz: "eu não posso!". Passa as mãos pela barriga e começa a chorar, intensamente. Virginia prossegue: "receio que terei que matar outra pessoa no lugar".

Essa cena é difícil de ser descrita, o recurso cinematográfico permite certa simultaneidade entre os acontecimentos, uma vez que praticamente toda a cena se passa entre dois tempos e espaços. A escrita exige, contudo, uma cronologia difícil de instituir lá onde o tempo parece estar em suspensão, e foi necessário um movimento de escolha sobre a sucessão narrativa dos fatos numa tentativa de conservar ao máximo a impressão causada pela cena para poder compartilhá-la com o leitor. Nesta cena, os recursos de câmera, a imagem e seus movimentos, segundo Gelinski (2010), convocam o espectador a uma posição subjetiva:

(...) cabe ressaltar a cena de Laura Brown no quarto do hotel, lendo Mrs. Dalloway, e praticamente decidida a encontrar a morte. Lentamente, seu quarto começa a ser invadido pela água, que ameaçadoramente começa a subir, numa situação quase surreal, que expressa o desespero que a domina e a iminência da morte. Considero essa cena a mais subjetiva de todo o filme (...). Embora não tenhamos o ponto de vista ótico de Laura, é através da subjetividade dessa personagem que a cena é filtrada - é a angústia dela que é expressa. A água que invade o quarto faz uma ponte com a cena da morte de Virginia Woolf. A primeira impressão do expectador pode ser de estranhamento (...). Mas, nesse momento, estamos na consciência de Laura (Gelinski, 2010 p. 129).

 

O segundo beijo

Vanessa está carregando a carruagem para ir embora. Os meninos correm e gritam empolgados com a partida enquanto Angélica encontra-se sentada em uma poltrona. Virginia coloca a mão no bolso do vestido -a imagem remete-nos à primeira cena de suicídio em que Virginia confere os bolsos do casaco - e pergunta se Vanessa já tem de ir, diz que gostaria que ela não fosse e pergunta a que Nessa retorna. Ela responde que retorna para um jantar insuportável, que nem mesmo Virginia invejaria. Sua irmã diz que sente inveja, sim. Vanessa aproxima-se com os braços abertos, dá-lhe um abraço e dois beijos na face. No momento em que ia se afastar, Virginia a beija, apaixonadamente, na boca. Nesta cena, não há, até então, trilha sonora, como na primeira cena de beijo; durante o beijo, a trilha sonora começa. Virgínia segura a cabeça de Vanessa com as mãos, como Laura faz com Kitty. Em ambas as cenas, temos uma mulher mãe e uma não mãe. Virginia afasta-se, mas continua segurando a cabeça de Vanessa e diz: "diga alguma coisa, Nessa. Não achou que estou melhor?" Vanessa, exasperada, responde: "sim, Virginia, você parece melhor". Ela beija as mãos da irmã e afasta-se para pegar mais uma bagagem. Virginia segura a mão de Vanessa, por um instante, depois a solta. Nesse momento, à trilha sonora, até então composta por instrumentos de corda, é acrescido o piano - assim como na cena de beijo anterior, no momento em que a mulher beijada se afasta, o piano entra em cena, marcando o abandono. Quando Vanessa se afasta, a câmera mostra Angélica sentada em um canto, para ressaltar que a menina estava assistindo à cena. Ambos os beijos entre mulheres foram assistidos por crianças, filhos de uma delas: primeiro, Richie e depois Angélica. Virginia pergunta, com lágrimas nos olhos: "você acha que um dia conseguirei escapar?" Vanessa responde: '"um dia"'. Virginia: '"Nessa"'. O barulho de crianças ao fundo inicia, assim como havia barulho de crianças ao fundo na primeira cena de beijo. Os filhos de Vanessa a chamam para ir embora. Angélica diz adeus à tia, que recoloca a mão direita no bolso do vestido e responde: "adeus, pequena menina". Virginia fica sozinha, em pé, no cômodo, chorando - assim como Laura fica em pé, chorando quando Kitty sai. Dois planos intercalam-se: Virginia chorando sozinha no cômodo e Vanessa entrando na carruagem com Angélica. Os meninos apressam Vanessa, ela se senta, coloca Angélica no seu colo, aperta a filha contra si e diz: "fique pertinho". A carruagem parte. O último plano da cena mostra Leonard parado junto a uma porta, ao fundo do corredor, vendo Virginia chorar.

 

O segundo suicídio

Nova Iorque, 2001. A cena começa com um close em uma foto preto e branco, de Laura Brown vestida de noiva, com o olhar baixo e uma expressão profundamente triste; a câmera afasta-se, lentamente, abrindo o campo e, ao lado da foto, encontram-se inúmeros comprimidos azuis e a mão de Richard. Ao fundo, a música instrumental de cordas e o barulho da cidade compõem a trilha sonora. A próxima tomada mostra Richard de perfil, a música diminui e o som da cidade se intensifica, um corte. A tomada seguinte mostra uma janela do lado de fora, com um papel pardo, no lugar da cortina. A mesma mão que repousava ao lado da foto afasta o papel pardo e deixa entrever o rosto de Richard. O som de um menino gritando "mamãe" remete à lembrança do pequeno Richie e antecipa a tomada seguinte: Richie, com ambas as mãos contra o vidro de uma janela fechada, chamando por sua mãe (lembrança do momento em que Laura Brown vai buscá-lo em uma vizinha, após a tentativa de suicídio no quarto de hotel). A cena é replicada: Richard, pensando em sua mãe, com a mão contra o vidro da janela, lembrando Richie com ambas as mãos contra o vidro de uma janela clamando por sua mãe. A tomada seguinte mostra o rosto de Richard em close, uma lágrima escorre por sua face, os barulhos da cidade são muito intensos e remetem ao caos urbano, o que contrasta com a expressão inteiramente parada de Richard, mas harmoniza com a intensidade de seu sofrimento. Na tomada seguinte, um carro para em frente ao prédio de Richard, o barulho da cidade diminui bruscamente, Clarissa desce do carro com uma expressão grave, pega a chave da porta e entra no prédio. A porta fecha-se atrás dela, o barulho da cidade cessa, restando apenas a música instrumental. A câmera, como se estivesse localizada na parte externa do teto do elevador, filma, de baixo para cima, o poço do elevador. Clarissa chega ao apartamento de Richard, anuncia sua chegada adiantada e com a chave entra pela porta. A trilha sonora cessa completamente. Richard está destapando as janelas que estavam tapadas com madeiras e papéis, faz isso com pressa e desajeitadamente, derruba coisas no chão e não percebe a chegada de Clarissa, até que ela grita seu nome. Ele pergunta o que ela faz ali, pois havia chegado cedo. Clarissa, perplexa, pergunta o que está acontecendo, o que ele está fazendo. Richard diz ter tido essa maravilhosa ideia, precisava de alguma luz. Afirma ter chegado a essa fantástica conclusão, tomou Xanax e Ritalina juntos, o que nunca havia ocorrido a ele. Clarissa aproxima-se, gritando seu nome, e ele grita em resposta: "não se aproxime de mim!". Clarissa para, chocada, e ele prossegue: "me ocorreu que eu precisava deixar alguma luz entrar". Clarissa olha para o balcão, todos os frascos de remédio estão abertos e caídos, alguns comprimidos se encontram no chão. Clarissa pede um simples favor, que ele se aproxime e sente. Ele responde que acha que não poderá ir à festa (festa que ela está organizando para homenageá-lo por ganhar um prêmio como poeta). Ela diz que ele não precisa ir à festa, nem à cerimônia de premiação, nem fazer nada que ele não queira, ele faz como quiser. Richard pergunta: "mas eu ainda tenho que encarar as horas, não tenho? As horas depois da festa e as horas depois disso". Clarissa diz que ele ainda tem bons dias. Richard responde que, na verdade, não. Richard se aproxima da janela, arranca um papel que a está tapando. Clarissa pergunta: "estão aqui? As vozes?". Richard: "oh, as vozes estão sempre aqui!". Clarissa: "e são as vozes que você está ouvindo agora?". Richard: "não, não, não. Mrs. Dalloway, é você (a trilha sonora recomeça, mesma música, dessa vez apenas as notas no piano). Eu permaneci vivo por você, mas agora você tem que me deixar ir. Me conte uma história". Clarissa: "sobre o quê?". Richard: "me conte uma história sobre o seu dia". Clarissa: "eu acordei, e saí, eu fui comprar flores como Mrs. Dalloway no livro e estava uma manhã maravilhosa". Enquanto ela conta a história, Richard demonstra interesse e vai-se aproximando da janela. Ela prossegue: "tão linda, tão fresca". Richard pergunta: "fresca?" Vai abrindo a janela, senta-se no parapeito e diz:

Como a manhã na praia? Como aquela manhã em que você saiu para a varanda daquela velha casa, você tinha 18 anos e eu, talvez, 19 anos. Eu tinha 19 anos de idade e eu nunca tinha visto nada tão bonito. Você saindo daquela porta de vidro de manhã cedo, ainda sonolenta. Não é estranho? A manhã mais ordinária na vida de qualquer um. Receio que não poderei ir à festa, Clarissa.

Clarissa: "a festa não importa". Richard: "você foi tão boa comigo, Mrs. Dalloway. Eu te amo. Eu não creio que duas pessoas possam ter sido mais felizes do que fomos". Richard se deixa cair pela janela. A trilha sonora se intensifica, drasticamente, e Clarissa leva as mãos à boca e grita: "meu Deus, não!". A tomada seguinte mostra o corpo de Richard caindo do prédio, primeiro de frente e depois de baixo, tudo fica escuro e se escuta o som do corpo de Richard atingindo o chão. A última tomada mostra o rosto de Clarissa em close, ela está com as mãos, cobertas por luvas pretas, tapando a boca e cerra os olhos.

 

 

O terceiro beijo

Clarissa está sentada na cama tirando os calçados, após uma conversa com Laura Brown. Cena espelhada à de Laura Brown sentada na cama do hotel, tirando os sapatos. A trilha sonora é marcada pelo solo de piano. Sally entra no quarto e a olha. A cena é em campo e contracampo, Clarissa começa um suspiro, Sally o termina. Ambas trocam olhares por um instante; Clarissa morde o lábio inferior, olha para cima com os olhos marejados de lágrimas; Sally se aproxima, senta-se na cama atrás de Clarissa e tira seu casaco. Na primeira cena do filme, um casaco está sendo vestido. Clarissa tira a echarpe, o colar, solta os cabelos, vira-se para Sally e pega seu rosto com as mãos - como Laura faz com Kitty e Virginia faz com Vanessa (Nessa). Elas se olham, intensamente, por um instante, e Clarissa beija Sally; elas se afastam e Clarissa esboça um sorriso.

 

Enlaces

"É no ponto de encontro entre o conteúdo manifesto do filme e
a forma de expressão utilizada que se acha a narrativa fílmica"
(Rosa & Weinmann)

As cenas escolhidas para serem analisadas possuem um fio condutor: o romance Mrs. Dalloway, escrito por Virginia Woolf e publicado em 1925. A vida de três mulheres, em três tempos diferentes, é unida por esse romance. Primeiro, conhecemos a escritora Virginia, na sua morte e no tempo em que começa a escrever Mrs. Dalloway; assistimos ao surgimento da personagem. E constatamos o talento de Virginia Woolf, quando concentra em Clarissa Dalloway a angústia de mulheres do seu tempo e de tantos outros: angústia do corpo feminino, da maternidade, da sexualidade permitida e reprimida, da posição social e cultural da mulher. Em um segundo momento, conhecemos Laura Brown: esposa, mãe e mulher, angustiada. Laura lê o romance e Mrs. Dalloway a acompanha durante todo o filme, quando decide morrer, quando decide viver, quando beija sua vizinha. Laura é, também, Clarissa Dalloway. Virginia pensa em matar sua heroína, mas muda de ideia; Laura pensa em morrer, mas escolhe viver. A terceira mulher é Clarissa, cujo nome compartilha com Mrs. Dalloway. Clarissa vive entre dois amores: Richard (o homem que uma vez despertou sua paixão e a quem se dedica com devoção) e Sally (sua companheira de dez anos). No romance de Woolf, Clarissa Dalloway é casada com Richard e lembra com ternura e paixão da amiga de juventude Sally e do amor proibido entre as duas. O filme nos mostra uma Clarissa do século XXI, para quem o amor homoafetivo é permitido.

Há também, no filme, um fio condutor que escapa ao conteúdo manifesto. O tema da feminilidade encontra-se presente: no corpo de mulher, na paixão entre mulheres e na maternidade como expressão de algo feminino. Esse corpo de mulher que dá à luz, essa luz que Richard precisa que entre em seu apartamento pelas janelas, mas esse corpo de mulher que também morre, mata, é mortífero. Laura não se mata, mas deixa em Richard a morte pressentida. A morte é apresentada não como algo sombrio, mas como parte da vida. No filme, Virginia afirma: "não se consegue achar paz evitando a vida, Leonard". E, depois: "alguém tem que morrer para que o resto de nós dê mais valor à vida".

As cenas de beijo que se repetem nos três tempos, assim como as cenas de suicídio, deixam transparecer a íntima relação que existe entre o erótico e a morte. Freud (1913/1996) no texto O tema da escolha dos três escrínios, aproxima o feminino do tema do amor e da morte. Há Eros na morte, uma atração que ela exerce sobre algumas pessoas - talvez em todas, em algum momento - e que fascina ao mesmo tempo em que aterroriza. Os beijos ocorrem todos em momentos de doença, medo, desespero, morte e consolo. São beijos trazidos pela morte. Dois deles assistidos por crianças, o que marca o tema da maternidade, o desejo e a angústia de ser mãe, o poder feminino de dar e tirar a vida. As deusas-Mãe podem ser tanto criadoras quanto destruidoras, deusas da vida, da fertilidade e da morte (Freud 1913/1996). A força da paixão entre as mulheres também remete à constituição da feminilidade, quando o vínculo da menina com sua mãe é fortemente investido de erotismo e quando a mãe é seu objeto de profundo desejo.

 

Entre o beijo e a morte: o tempo

Gelinski (2010) traça um paralelo entre o consagrado romance Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, e o filme As horas, principalmente no que concerne aos recursos utilizados para apontar a passagem do tempo. A autora entende o romance Mrs. Dalloway como um elo entre as três personagens de As horas: enquanto Virginia Woolf o escreve em 1923, em Richmond, Laura Brown o lê em 1951, em Los Angeles, e Clarissa Vaughan o vive em 2001, em Nova Iorque. De acordo com essa pesquisadora, a narrativa do romance é construída a partir de analepses e prolepses, que corresponderiam aos efeitos cinematográficos do flashback e flashforward. Em As horas, existe uma delimitação temporal marcada no início do filme, cada um dos três tempos é situado para o espectador, contudo, ao longo da trama ocorre um jogo com os tempos e espaços, os quais são embaralhados e não mais explicados: "justamente porque há um entrelaçamento dos tempos e dos espaços no filme" (p. 126).

Ambas as histórias, da obra literária e da cinematográfica, se passam no tempo cronológico de um dia, tempo suficiente para mostrar ao espectador/leitor o cotidiano das personagens. É na complexidade da vida cotidiana que conhecemos um pouco do mundo interno dessas personagens. O dia vivido marca o presente, mas é recheado de passado e de futuro. Gelinski (2010) aponta para o talento do longa metragem em apresentar a passagem do tempo sem recorrer a flashbacks, flashforward e vozes off. Os recursos apresentados no filme, para marcar o tempo e o efeito de sua passagem, seriam os retornos e avanços nas diferentes vidas, ou seja, o flashback não ocorre para mostrar o passado da personagem em questão, mas retorna à outra vida, a de Virginia, e o flashforward avança até a vida de Clarissa Vaughan. Virginia e Laura seriam o passado de Clarissa Vaughan;

Laura e Clarissa, o futuro de Virginia e Virginia o passado de Laura, enquanto Clarissa seria seu futuro. Segundo Gelinski: "Laura Brown pode ser comparada ao momento presente, no qual vivencia subjetivamente através da leitura do livro Mrs. Dalloway momentos de antecipação e momentos de prospecção através da sua escolha em abandonar a família" (p. 131).

Conforme a tradução utilizada do texto O tema da escolha dos três escrínios, as Horas, originalmente deusas da água, tornam-se representantes divinas das estações do ano e, por fim, mantem uma estreita relação com o tempo, presidem às horas do dia. "As Horas, assim, tornaram-se as guardiãs da lei natural e da Ordem divina que fazem a mesma coisa reaparecer na Natureza numa sequência inalterável" (Freud, 1913/1996, p. 321).

Gelinski (2010) aponta como o filme mostra momentos similares da vida das três personagens em tempos tão diferentes, "o tempo passa a ser o mesmo para as ações das diferentes mulheres. O tempo parece não ter mudado, embora os acontecimentos estejam ocorrendo em épocas diferentes" (p. 127). A segunda, a terceira e a quarta cena do filme são iguais, os cônjuges chegam a casa pela manhã, e as três protagonistas são filmadas em suas camas: Laura, Virginia e Clarissa, respectivamente. Três mulheres, em três épocas distintas, iniciando seus dias da mesma forma: o despertar constitui um elo entre as personagens. Elas lavam suas faces, arrumam seus cabelos e hesitam a começar seus dias. Uma preparação percorre o dia nas três narrativas: Clarissa prepara uma festa, Laura um bolo e Nelly (cozinheira de Virginia), um almoço. No decorrer da trama, personagens chegam adiantadas a compromissos: Vanessa chega adiantada para visitar Virginia; Louis chega adiantado à festa de Richard e Clarissa chega ao apartamento de Richard meia hora antes do horário combinado para buscá-lo para sua festa. No final do dia, e do filme, o convite à cama, ao deitar-se, ao encerramento: o marido de Laura Brown a convida à cama e Leonard chama Virginia para deitar-se. O tempo, as horas, costuram as três narrativas aproximando a vida da morte e o erótico do mortífero.

 

Considerações Finais

Morte, vida, tempo, amor, maternidade, feminilidade são alguns dos temas que o filme nos apresenta. Outros elementos aparecem e vale citá-los mesmo que ainda não tenhamos um lugar adequado para localizá-los: a trilha sonora, composta sempre pela mesma música, por vários arranjos instrumentais da mesma melodia: na primeira cena, apenas os instrumentos de corda; na segunda, terceira, quarta e quinta cena, os instrumentos de corda e o piano surgindo gradativamente, aumentando sua intensidade conforme a trama ganha magnitude e, na sexta cena, apenas o piano. Citem-se ainda o casaco que se coloca na primeira cena de suicídio e se tira na última cena de beijo; os sapatos que descalçam os pés em três das cenas descritas; a sorte que acompanha a mãe e a escritora, que não se sentem tão sortudas assim no momento em que escutam isso; em outra cena do filme, que não compõe a seleção de cenas deste escrito, Laura Brown encontra-se em Nova Iorque, no apartamento de Clarissa Vaughan, após o suicídio do filho Richard, ambas conversam e Laura diz ser Clarissa uma mulher de sorte; as mãos que seguram as faces enquanto beijam; os beijos que deixam a solidão e o choro; a água, a força da água, seu barulho, sua intensidade, a forma como invade, como se representasse a angústia pura, mas, na profundeza do rio, também uma paz, um silêncio, uma escuridão - como se o barulho da água representasse o turbilhão da vida e o silêncio das profundezas o sossego da morte; os frascos de remédio que têm por última utilidade remediar o que não tem remédio, a vida; e, por fim, o casamento, a união, a aliança, os amores que ficam.

 

Referências

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Daldry, S. (2002). Atores principais: Nicole Kidman, Meryl Streep e Julianne Moore. Roteirista: David Hare. Título no Brasil: As horas. Título original: The hours. País de origem: Estados Unidos. Produção: Scott Rudin e Robert Fox.         [ Links ]

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Freud, S. (1996). Escritores criativos e devaneio. In: S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 9, pp. 133-144). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1908)        [ Links ]

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Gelinski. R. F. (2010). Mrs. Dalloway no cinema: o fluxo de consciência. Publicatio UEPG, 18(2),121-133.         [ Links ]

Rosa, C. T.; Weinmann, A. O. (2017). De dia é João - análise fílmica de Madame Satã. Correio da APPOA, 265. Disponível em: <http://www.appoa.com.br/correio/edicao/265/de_dia_e_joao_analise_filmica_de_madame_sata/437>. Acesso em: 25 mar. 2021. (Exemplo)        [ Links ]

Weinmann, A. O. (2017). Sobre a análise fílmica psicanalítica. Subjetividades, 17(1),1-11.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 11/06/2020
Aprovado em: 19/03/2021

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