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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.13 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2021

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2021v1p.55 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

Retratos de família: as diversas faces da maternidade na literatura e no cinema

 

Family portraits: the various faces of motherhood in literature and cinema

 

Portraits de famille: les différents visages de la maternité dans la littérature et le cinéma

 

 

Cristina Moreira MarcosI; Beatriz Bissoli Laranja Gouvéa PintoII; Clara Matos RattonIII; Lucas Anselmo Polido LopesIV

IPsicanalista. Docente do Programa de Pós Graduação em Psicologia da PUC Minas, Pesquisadora Mineira FA-PEMIG. E-mail: cristinammarcos@gmail.com
IIPsicóloga formada pela PUC Minas. E-mail: beatrizblgp@gmail.com
IIIPsicóloga, Mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da PUC Minas. E-mail: claramratton@gmail.com
IVPsicólogo pela PUC Minas, Mestrando do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da PUC-SP. E-mail: lucas.apl19@gmail.com

 

 


RESUMO

Para a psicanálise, a maternidade ultrapassa a biologia e a procriação. O desejo de ter um filho adquire diferentes sentidos para diferentes mulheres. A criança não completa integralmente a mãe e há que se perguntar que lugar a criança ocupa no inconsciente materno. Interessa-nos investigar as diferentes posições da mãe em relação à criança e os impasses próprios a cada uma nesta relação. Escolhemos dois livros e um filme que nos dão a ver três faces da maternidade. Três operadores - amor, desejo e gozo - orientam-nos em nossas leituras.

Palavras-Chave: MATERNIDADE; CRIANÇA; AMOR; DESEJO; GOZO.


ABSTRACT

For psychoanalysis, motherhood goes beyond biology and procreation. The desire to have a child acquires different meanings for different women. The child does not fully com-plete the mother. We must ask what place the child occupies in the maternal unconscious. We are interested in investigating the different positions of the mother in relation to the child and the impasses peculiar to each woman in this relation. Three operators - love, desire and jouissance - guide us in our readings.

Key-Words: MOTHERHOOD; CHILD; LOVE; DESIRE; ENJOYMENT.


RESUMÉ

Pour la psychanalyse, la maternité dépasse la biologie et la procréation. Le désir d'avoir un enfant acquiert des significations différentes pour différentes femmes. L'enfant n'assoupi pas complètement la mère et il faut se demander quelle place l'enfant occupe dans l'inconscient maternel. Nous nous intéressons à étudier les différentes positions de la mère par rapport à l'enfant et les impasses propres à chacune dans cette relation. Nous avons choisi deux livres et un film qui nous donnent à voir trois visages de la maternité. Trois opérateurs - l'amour, le désir et la jouissance- nous guident dans nos lectures.

Mots-Clé: MATERNITÉ ; ENFANT ; AMOUR, DÉSIR ; LA JOIE.


 

 

Introdução

A maternidade, ligada ao corpo e à reprodução, sempre pareceu natural e evidente. Para além da reprodução, a função de cuidado da mãe pode, contudo, ser exercida por substitutos. Elisabeth Badinter (1980) demonstra como o amor materno não é tributário de nenhum instinto materno, mas, antes, uma construção histórica, social e cultural.

Para o discurso médico, a maternidade está vinculada ao corpo e à reprodução. Para a psicanálise, pode-se estar grávida e não ter o filho na cabeça, pode-se não ter filhos e ser mãe do mundo, pode-se desejar estar grávida e não querer ser mãe. A maternidade ultrapassa a biologia, a procriação e a gestação e não há equivalência entre ser mãe e estar grávida. O desejo de ter um filho adquire diferentes sentidos para diferentes mulheres. A criança não completa integralmente a mãe e há que se perguntar que lugar a criança ocupa no inconsciente materno. Ser mãe é encarnar o Outro da demanda e implicar a criança em um desejo e em um gozo.

Qual lugar, no inconsciente materno, é designado à criança? Interessa-nos investigar as diferentes posições em relação à criança, os impasses próprios a cada mulher nesta relação e desenhar assim a multiplicidade dos retratos de maternidade que podemos destacar. O debate sobre a mãe não é novo para a psicanálise. Depois de Freud, o desenvolvimento da psicanálise com crianças trouxe a mãe para o primeiro plano da cena. Encontramos, em Melaine Klein (1984, 1984a), a mãe plena de objetos; em Donald Winnicott (1966, 1967, 1975), a mãe suficientemente boa; em Michael Balint (1994), a unidade da mãe e da criança como um amor de objeto primário. Todo esse debate, tributário da expansão da psicanálise às crianças e à psicose, girou em torno da função estruturante da mãe. Freud havia acentuado o lugar essencial da castração materna para os dois sexos; contudo, vamos ver, nos anos que se seguem à Freud, uma ênfase dada à importância da sua presença e do seu amor. Nesse sentido, a mulher na mãe ficou esquecida. Lacan (1956-1957/1995), sobretudo em O Seminário O livro 4, As relações de objeto, retoma a discussão, para dizer que a relação mãe-criança concerne à dialética do desejo em sua relação com a falta. O lugar da criança para uma mulher deve ser considerado à luz da sua castração. Isso recoloca a questão da mãe a partir do desejo, a partir da metáfora paterna e, posteriormente, a partir da mulher não-toda ocupada com o homem ou a criança.

O recurso à literatura e ao cinema justifica-se na medida em que a arte nos dá a ver o que de outro modo não se veria, mantendo a opacidade do objeto. Não se trata, portanto, de aplicar a psicanálise à arte como uma chave de leitura que nos revelaria a significação final, mas utilizá-la como um instrumento que nos permite apreender aquilo que a arte pode ensinar. Escolhemos três faces da maternidade a partir de dois livros e um filme: o romance de Érico Veríssimo (1971/2005), Ana Terra; obra da autora americana Lionel Shriver (2007), Precisamos falar sobre o Kevin e o filme de Pedro Almodóvar (1999), Tudo sobre minha mãe. Três operadores importantes na clínica e na teoria - amor, desejo e gozo - orientam-nos em nossas leituras. Como esses três termos se articulam nas diferentes faces da maternidade encontradas por nós? O presente artigo é parte da pesquisa "O que quer a mãe hoje: Um estudo sobre a maternidade no século XXI a partir da psicanálise", financiada pela FAPEMIG.

 

Ana Terra, a mãe do Édipo

 

 

O romance Ana Terra, de Érico Veríssimo (1971/2005), transcorre entre os anos de 1777 e 1811, e narra a história de Ana Terra, moça simples que vive no interior do Rio Grande do Sul com sua família. A escolha do livro dá-se a partir da relação que a protagonista estabelece com seu filho, Pedrinho. Esta é marcada pelo recobrimento fálico da maternidade e permite-nos suscitar questões dignas de um estudo aprofundado. Para facilitar a exposição, é necessário, antes, realizar uma breve contextualização da história.

A primeira parte do livro é marcada pelo árduo cotidiano da família Terra que tem como patriarca o autoritário Maneco Terra, homem rude que comandava a estância com rédea curta. Ele é casado com d. Henriqueta e com ela tem três filhos: Ana, Horácio e Antônio. Todos os integrantes da família estão diretamente ligados ao trabalho braçal, sendo cada um deles responsável por uma determinada tarefa. Ana é responsável pela lavagem das roupas e assim o faz, todos os dias, em uma sanga perto de casa.

É justamente à beira da sanga que Ana encontra um homem ferido e desacordado, fato que vai modificar radicalmente a vida da família Terra, principalmente a da protagonista. Este homem é Pedro Missioneiro, um índio forasteiro que vagava por aquelas terras. Ela, então, o leva para casa a fim de prestar-lhe cuidados especiais. Ao melhorar, o índio resolveu permanecer na estância e trabalhar como peão para retribuir o cuidado que a família lhe dispensara.

Com o passar do tempo, Pedro começa a ganhar a confiança dos Terra, exceto a de Maneco, que deixava explícito o seu desgosto pelo índio. Ana, por outro lado, via-se dividida entre sentimentos de amor e ódio. Ao mesmo tempo que ele despertava sentimentos calorosos na moça, despertava também asco e nojo.

Os desejos de Ana pelo homem ficavam, entretanto, cada vez mais fortes e, num final de tarde, à beira da sanga, os dois tiveram sua primeira relação sexual. A partir daí, os encontros foram recorrentes até um dia em que o índio viajou para comercializar itens da estância. Durante a ausência dele, Ana descobre que está grávida e isto foi sentido de forma horripilante, pois ela temia a reação da família, principalmente do pai.

Ao saber da notícia, Maneco ordena que os filhos, Horácio e Antônio, assassinem Pedro. E diz a Ana que ela está morta para ele devido à tamanha desonra que trouxe para a família. Ao descobrir sobre o fim do amante, Ana pensa em suicidar-se, mas logo desiste, ao pensar no filho:

Ana pensou então em matar-se. Chegou a pegar o punhal que o índio lhe dera, mas compreendeu logo que não teria coragem de meter aquela lâmina no peito e muito menos na barriga, onde estava a criança. Imaginou a faca trespassando o corpo do filho e teve um estremecimento, levou ambas as mãos espalmadas ao ventre, como para o proteger. Sentiu de súbito uma inesperada, esquisita alegria ao pensar que dentro de suas entranhas havia um ser vivo, e que esse ser era seu filho e filho de Pedro, e que esse pequeno ente havia um dia de crescer... (Veríssimo, 1971/2005, p.48)

Esta passagem coincide com o primeiro momento na história em que Ana assume a maternidade, isto é, se coloca como mãe para o filho. Nesse sentido, podemos dizer que Ana se aproxima da posição de mãe. De acordo com Miller (2015), a mãe corresponde ao Outro da demanda, isto é, àquele que tem, àquele capaz de dar a demanda a outrem, o outro da riqueza, da abundância. Mas o que, de fato, a mãe tem? A criança, que, para algumas mulheres (e Ana é uma delas), possui um valor fálico.

Dizer que a criança pode assumir o lugar do falo para uma mulher é retomar a conexão feita por Freud (1933/2010) entre maternidade e sexualidade feminina. Ao teorizar sobre o Édipo nas mulheres, Freud apresenta três soluções possíveis: a frigidez sexual, o complexo de masculinidade e a maternidade, sendo que a última só é possível se houver o deslocamento do desejo de ter um pênis pelo desejo de ter um filho. Por conseguinte, a maternidade pode situar-se dentro da lógica fálica, na medida em que o filho seria uma resposta à falta de pênis nas mulheres.

Ao longo da história, são recorrentes as passagens em que Ana intercede por Pedrinho a fim de protegê-lo. Estas evidenciam o caráter fálico que a maternidade pode assumir. Em uma delas, a fazenda dos Terra era invadida pelos castelhanos, devido à disputa de territórios entre Portugal e Espanha. Assim, Ana orienta a cunhada que se esconda com as crianças nos arredores da mata para poupá-los do horror. Estratégia que cumpre sua finalidade, na medida em que os invasores não suspeitam da existência dos outros membros família e acabam por saquear a casa e estuprar Ana por tempo indeterminado. Percebe-se que ela estabelece, ao pé da letra, uma barreira com seu próprio corpo para proteger sua família e, especialmente, seu filho, sua posse.

Miller (2015) afirma, entretanto, que a posição de mãe é oposta à de mulher. Dessa forma, a mulher é Outro do desejo, ou seja, o outro da falta, do não-ter, que encarna o real da castração. A mãe como Outro da demanda, tal como Miller propõe, é a mãe que encontramos no Seminário, livro 4 de Lacan. Ali, Lacan (1956-1957/1998) apresenta a mãe como o Outro da demanda, o Outro "todo poder" que pode conceder ou não, responder ou não. A mãe é aquela que tem a riqueza, detém a linguagem, tem a abundância. A criança pede, a mãe é a potência que oferece e dá. Miller declara que se quisermos fazer uma oposição entre mãe e mulher, podemos dizer, em primeiro lugar, que "a mãe é o Outro da demanda e a mulher é o Outro do desejo" (Miller, 2015, p. 14). Isso quer dizer que a mulher no inconsciente está diretamente relacionada à castração e à falta.

Podemos, então, questionar qual seria esse objeto que divide a mulher e a mãe. Kaufmanner (2015) ressalta: "a criança existe nessa báscula entre o Outro do desejo e o Outro da demanda" (Kaufmanner, 2015, p.199), deixando explícito que é o filho que tem esse papel dúbio de preencher e dividir a mãe a e a mulher. Logo no início de sua gravidez, Ana realiza uma troca que será determinante na sua relação com o filho,

Mas nesse mesmo instante o filho começou a mexer-se em suas entranhas e ela passou a brincar com uma idéia que dali por diante lhe daria a coragem necessária para enfrentar os momentos duros que estavam pra vir. Ela trazia Pedro dentro de si. Pedro ia nascer de novo e portanto tudo estava bem e o mundo no fim das contas não era tão mau (Veríssimo, 1971/2005, p.51).

Essa troca entre Pedro-amante e Pedro-filho sugere um afastamento da mulher e encarnação da posição de mãe. Assim, podemos pensar que nesta relação entre mãe e filho a criança não divide, mas preenche. O que se pode observar, em seguida, é o estabelecimento de parceria exclusiva com a mãe. Nas palavras de Miller (2014b): "se o objeto criança não divide, ou ele sucumbe como dejeto do par genitor, ou, então, entra com a mãe numa relação dual que o alicia" (Miller, 2014b, p.4).

Após o episódio do saque da estância, Ana encontra um grupo de viajantes que seguiam para Santa Fé, uma pequena vila que se situava a alguns quilômetros dali. Ao chegar lá, ela e o filho se estabelecem em uma pequena casa nos arredores do centro. Ana assume a profissão de parteira e por ali permanecem por muitos anos.

Ao longo do tempo, Ana e Pedrinho estabelecem uma relação muito próxima a ponto de Ana desistir de encontrar o significante do seu desejo em um outro homem. Ao final do livro, quando Pedrinho já se tornou adulto, ele é convocado para ir a guerra contra os castelhanos. Antes de ir, pede a mãe que tome conta de tudo, inclusive de sua esposa. Essa relação com a mãe impede Pedro de estabelecer relações sólidas como homem. Seu casamento é descrito como algo frívolo e ele não é capaz de se opor às ordens dos coronéis que comandam Santa Fé, apenas as aceita, calado.

Por outro lado, vemos em Ana uma tremenda insatisfação com sua condição de vida. Além do fato de não querer estabelecer uma nova relação amorosa, ela se incomoda com as constantes guerras que a separam de seu filho. Em meados de 1801, Pedro Terra é convocado para um combate contra os castelhanos. Na tentativa de manter o filho por perto, Ana vai à casa do Coronel Ricardo Amaral pedir que ele dispense Pedro. O coronel debocha dizendo que aquele ato era de extrema desonra visto que, como homem, era obrigação de Pedro juntar-se à expedição. Quando decide mudar para Santa Fé, Ana acredita que lá encontraria uma possibilidade de dar ao filho um destino mais digno para sua vida, entretanto, ao viver lá, encontrou-se sempre com a impossibilidade de dar tudo ao filho, de ser toda mãe.

A tentativa de ser toda mãe implica não ter que lidar com o que é da ordem do desejo, uma vez que o filho, identificado ao falo, preencheria a falta necessária para desejar. Miller (2014b) acrescenta: "Quanto mais a criança preenche a mãe, mais ela a angustia (...) A mãe angustiada é, inicialmente, aquela que não deseja, ou deseja pouco, ou mal, enquanto mulher" (Miller, 2014b, p.5). Assim, percebemos, por um lado, Ana saturada com seu "filhofalo" e, por outro, Pedro preso à mãe numa relação devoradora.

 

Kevin e o indizível da maternidade

 

 

"Precisamos falar sobre o Kevin", obra da autora americana Lionel Shriver (2007), narra as vivências de Eva Katchadourian e suas relações com os tantos outros a seu redor - em especial, com seu primogênito Kevin. Escrito na forma de um romance epistolar, o livro é composto de cartas que Eva escreve para seu já falecido marido, Franklin. Para dizer da obra de uma forma mais contextualizada, realizaremos agora um breve resumo da mesma.

A história passa-se na cidade de Gladstone, Estados Unidos. A escrita de Eva é fortemente impregnada por uma marca no real, da qual só saberemos com detalhes nas últimas páginas do livro; uma passagem ao ato cometida por Kevin que, aos 15 anos de idade, assassina seu pai, sua irmã mais nova e outras nove pessoas, dentre elas sete alunos e dois funcionários de sua escola

Gladstone High. Através da escrita, Eva procura realizar um remendo no furo criado pelo seu filho, revivendo e resignificando sua própria história, buscando fazer o que o filho não fez: transformar em palavra o ato.

Para a protagonista, o exercício da escrita constitui-se, também, como uma maneira de posicionar-se diante de sua tragédia e viver seu luto, bem como uma atividade que garante sua sobrevivência na pequena cidade onde ela se transforma instantaneamente em uma pária, um símbolo da tragédia e da violência.

Vemos com clareza, no relato da protagonista, a divisão entre mãe e mulher, papéis essencialmente distintos. Miller (2015) conceitua a mãe como o Outro da demanda e a mulher como o Outro do desejo. Para Eva, a própria maternidade constitui-se em uma demanda de seu marido, e a imposição de ocupar o lugar da mãe aniquila suas possibilidades enquanto mulher. Casada com Franklin, Eva sentia-se realizada; em suas palavras, ele bastava para ela. O marido, por outro lado, queria filhos, e colocava a constituição de uma família nuclear como a resposta para o que ele chamava de "A Grande Questão" (Shriver, 2007, p. 30). Franklin e Eva não podiam ser mais diferentes: ela, uma mulher de descendência armênia que abominava a cultura norte-americana e considerava-se como estando de fora dela, realizada profissionalmente, dona de uma empresa que produzia guias de viagens para pessoas que buscavam aventurar-se; ele, um ferrenho crente do American Way Of Life, que sempre havia sonhado com uma esposa, filhos, uma casa grande com quintal no subúrbio, boas escolas, patriotismo e a vitória do partido Republicano. Apesar de suas diferenças, os dois funcionavam como casal e Eva sentia que nada lhes faltava, e o desejo incessante do marido por constituir uma prole gera na protagonista uma ferida narcísica. Miller, em "Mulheres e Semblantes II" (2010) utiliza-se do mito de Medeia para relembrar a afirmação de Lacan em "Televisão" (1974), se-gundo a qual "(...) não há limites para as concessões que uma mulher pode fazer por um homem, seja de seu corpo, de sua alma, ou de seus bens" (Lacan, 1974, p.70). Nesse sentido, a protagonista opta por engravidar respondendo do lugar da mulher que faz tudo para seu marido, cedendo a um desejo dele e não dela. Assim, Eva adentra na maternidade da mesma forma com que muitas vezes subiu em aviões para desbravar territórios longínquos e desconhecidos, e é exatamente desta maneira que a gravidez se apresenta para Eva: um ambiente hostil, nada acolhedor, no qual ela está de passagem, como se fosse uma turista.

A protagonista tem uma gravidez extremamente conturbada e se vê passando por diversas privações em sua vida pessoal e profissional, encarando-as como punições. Jogando todas as suas expectativas para o momento do parto, quando imaginava que tudo então faria sentido e que ela se apropriaria desse território-filho; ao viver na pele a experiência, sente-a como traumática e aterrorizante. Ao segurar seu filho, ela não sente nenhum tipo de iluminação e sente inveja ao ver as feições do marido mudarem por completo ante a criança.

Quando do seu nascimento, Kevin grita incessantemente na presença da mãe, que se vê incapaz de significar esse choro até que este a leva quase à loucura, enquanto, na presença do pai, se cala e se tranquiliza. Temos aqui uma criança que foi extremamente desejada por esse pai e que carrega, já em sua concepção enquanto ideia, um grande peso para essa mãe - a sensação de não satisfazer por completo o desejo de seu marido, de não ser capaz de lhe dar tudo que ele quer e precisa.

Se, desde antes do nascimento de Kevin, já existia um jogo simbólico entre os pais em relação a ele, seu nascimento o escancara. O filho que chora com a mãe - que encontra acalanto em um canteiro de obras, em meio a uma orquestra de britadeiras - e se acalma no colo do pai é um enigma para Eva, que se sente excluída dessa parceria pai-filho. Ela se esforça, de maneira mecânica, em ser uma mãe para esse filho, porém sempre sob a égide de um distanciamento e uma não implicação com essa função. Eva sente-se engolida pelo filho, tendo que abrir mão de tudo que a identificava como mulher; seu corpo, sua rotina de trabalho e, principalmente, sua relação com seu marido. No decorrer da obra, explicita-se cada vez mais como esse filho divide e destrói a relação do casal. Franklin reprova as condutas de Eva com relação a Kevin e para de funcionar para ela como marido no instante em que busca funcionar para o filho como pai. Apesar de todo o desejo, Franklin adentra na paternidade também de maneira mecânica, buscando na relação com o filho a resposta para sua "Grande Questão", o tamponamento hermético de sua falta.

Já nos primeiros meses de vida de Kevin, surge uma instabilidade entre o casal, que começa a se dividir por conta da criança. Eva não dá conta desse filho, não significa o seu choro, não encontra para ele lugar diferenciado em seu desejo e, por isso, vê-se impossibilitada de ser uma mãe para essa criança, que desde a gravidez é motivo de grande angústia para ela. O marido, por sua vez, não dá conta de compreender o deserto de significantes em que Eva se encontra, vendo-se presa a uma criança que ela não quis.

Colette Soler (2005) postula que a "humanização da criança humana passa por um desejo não anônimo" (p. 103), ou seja, que a criança precisa ser nomeada, identificada frente ao desejo da mãe e, consequentemente, frente à fala da mãe. Tão fortes quanto a fala da mãe são, porém, os seus silêncios, os seus não-ditos, os seus equívocos; é nesses momentos que o que se coloca para a criança é o enigma da posição que ela ocupa no desejo de sua mãe, seu Outro primordial, e que permitem que a criança busque esclarecer o que ela é para esse Outro.

O choro de Kevin apresenta-se para Eva como um enigma da ordem do indecifrável pois essa é sua posição frente a ele - a de um desejo outro, incapaz de nomear. Isso porque Eva corresponde ao que Soler (2005) nomeia como "a mãe nada ocupada com o filho" (p. 96), ou seja, uma mulher que se encontra à margem da inscrição fálica. Nesses casos, o que se faz presente é o abandono subjetivo, que não corresponde ao abandono real, mas sim a uma não implicação frente a essa criança que se traduz em forma de um silêncio absoluto, incapaz de nomear, localizar e ordenar a criança, já que a mesma não se apresenta para a mãe como sendo revestida por um brilho fálico. Sabemos que é fundamental que a mãe seja não-toda, ou seja, que tenha algo da mulher que a faça faltar em sua posição de mãe, mas a inexistência da significação fálica faz com que essa ausência instaure-se como uma devastação para o filho. Marcos (2015) também diz dessa mãe, da devastação, ao dizer que a criança pode representar, para a mãe, algo da ordem de uma parte rejeitada dela mesma, percebendo-a como um objeto estranho. Nessa lógica, a maternidade representaria "um encontro com o além do simbólico e com os limites de todo saber" (Marcos, 2015, p. 237) e a criança se configuraria como um corpo estranho, parasita, que vem privar a mulher. Quando não é banhada pela significação fálica, a criança se apresenta à mãe como um mero pedaço de carne, e é deixada incapaz de significar-se frente a um silêncio enlouquecedor.

Kevin como bebê grita e como criança se cala. Se, quando bebê, chora incessantemente; já um pouco mais velho, passa a encenar para a mãe o desconhecido. Eva, em dado momento, desconfia que ele seja surdo ou que tenha alguma complicação neurológica. Mais uma vez, fica claro que Kevin se apresenta para Eva como um enigma, um invasor, um corpo que presentifica suas limitações e restrições. Com Kevin já mais velho, Eva decide realizar uma viagem para a Ásia, buscando retomar seu então perdido ritmo de trabalho. Ao retornar, é recebida com a notícia de que o marido comprou uma casa que cabia perfeitamente na utopia americana dele - mas não na dela. Eva não compartilha desse imaginário suburbano e se encontra sem lugar nessa nova casa, assim como em sua nova vida e em seu papel de mãe. A protagonista vê-se presa a um território-estrangeiro-filho que ela não conquista e também não se deixa conquistar, numa relação permeada pela violência simbólica que em alguns momentos ganha estatuto de ato. Tal expressão território-estrangeiro-filho, cunhada por nós, busca evidenciar como o filho se torna uma terra estrangeira, bárbara, desconhecida, impossível de ser conquistada.

Colette Soler (2005) lembra que há uma língua privada entre mãe-filho, chamada por ela de lalíngua. A autora avança e postula que a aquisição da linguagem possui funções de transmissão que extrapolam a cognição, uma vez que o que está em questão não são apenas as construções fonéticas de determinado idioma, mas sim "a língua privada do par originário formado pela mãe e seu pequeno "prematuro", a língua do Eros do primeiro corpo-a-corpo, cujas palavras deixam marcas pelo gozo que encerram" (p. 97). Assim, utilizaremos desta definição de lalíngua para que possamos pensar no idioma particular compartilhado por Kevin e sua mãe. É possível dizer que o que existe de verdadeiro na língua que ali circula é a violência que a marca e define - violência que é transmitida como modalidade de gozo entre o par parental. A partir disso, podemos pensar em duas situações-chave do livro que ilustram com maestria como essa comunicação pela violência se constitui como a língua pátria pela qual dialogam mãe e filho.

Como primeiro exemplo, podemos pensar no momento do livro em que Eva, em um movimento de buscar apropriar-se daquela casa que também a engolia, escolhe um cômodo para criar um escritório, e decide decorá-lo com mapas que fariam as vezes de papel de parede. Kevin observa tudo segurando o que era então seu único objeto de desejo, uma arma d'água. Todo o restante do mundo era percebido por Kevin como "bobo" - ele era uma criança extremamente apática que tinha dificuldade em compreender o que levava as pessoas a fazerem as coisas. Eva o explica então que estava decorando o escritório para que esse fosse especial para ela, e é sem espanto que ela percebe que o filho desconhecia a palavra e não consegue assimilá-la mesmo depois da explicação da mesma. Ora, a incapacidade de Kevin de compreender o significado da palavra "especial" não se dá por um mero acaso. A ausência do interesse particularizado, definido por Lacan em "Nota sobre a criança" (1969/2003) como o que caracteriza a função materna, deixa Kevin com poucos recursos simbólicos para posicionar-se no mundo e em relação ao Outro.

Depois de terminada a árdua tarefa de cobrir, do teto ao piso, as paredes sem vida com mapas de destinos por ela descobertos, Eva sai de cena e, ao retornar, se depara com respingos de tinta preta e vermelha por toda sua obra. A reação de Eva frente à atuação de Kevin é de quebrar a arma utilizada para espirrar a tinta e deixar os mapas manchados permanentemente lá.

Em um segundo tempo da trama, Eva se irrita ao trocar as fraldas de Kevin, que aos quatro anos de idade ainda não possui controle dos esfíncteres. A mãe encara esse movimento do filho como um jogo para atingi-la e, em um momento em que Kevin defeca nas fraldas seguidamente do instante em que ela as trocou, ela o puxa pela fralda e o joga longe, o que nele ocasiona uma fratura exposta. Angustiada com seu ato e receosa da desaprovação que viria do marido quando soubesse do ocorrido, Eva se surpreende quando retorna com Kevin para casa, já com o braço engessado, e vê o filho contar para o pai uma história de como ele quebrou o braço caindo do trocador - um álibi criado sob medida para que Eva saísse impune da situação. Logo após contar a mentira para o pai, Kevin se dirige ao banheiro e o usa com naturalidade, demonstrando controle perfeito dos esfíncteres e abandonando, de uma vez por todas, as fraldas. Anos depois, quando Eva visita Kevin no reformatório juvenil, ele conversa com a mãe passando a mão sob a cicatriz deixada por esse evento, dizendo que foi a coisa mais honesta que sua mãe já fez por ele.

Em ambas as situações, a violência une e estabelece diálogo entre mãe e filho, que saem desses eventos com marcas permanentes que significam, para eles, provas de que a violência vivida por ambos de maneira simbólica reflete e respinga no Real, deixando marcas no mesmo. É na violência que Kevin existe, e é a partir dela que ele dialoga com o Outro; é através de seus actings que Kevin envia mensagens endereçadas a Eva, convocando-a a cumprir seu papel. Na segunda cena citada, Eva consegue, através do ato, dar vazão para sua angústia em relação a seu filho, e é só a partir deste que ele consegue se localizar e conquistar, então, o domínio dos esfíncteres. Ao dizer para a mãe, já mais velho, que essa foi a coisa mais honesta que ela fez por ele, Kevin aponta para a verdade da relação dos dois, que só se estabelece a partir do ato. Para Lacan (1954-1955/1985) o ato não corresponde a uma ação, mas antes se define por suas coordenadas simbólicas (p. 365). Longe de se definir apenas por sua expressão motora, o ato comporta sempre um dizer que é inscrito como significante. Apesar disso, o ato sempre deixa um resto que não é apreendido pelo significante e, portanto, deixa marcas que, assim como as paredes manchadas e a cicatriz de Kevin, ficam permanentemente onde estão, independentemente de qualquer tentativa de disfarçá-las.

É importante abordar também o posicionamento de Eva quando da ocasião da sua segunda gravidez. Eva sente imensamente o desejo de engravidar novamente, desejo que nunca sentiu na gravidez de seu primogênito. Se Eva desejava profundamente essa segunda gravidez, Franklin, por sua vez, fica incrédulo ao saber que Eva queria mais um filho, posicionando-se contra. Já muito decidida, Eva inicia as tentativas mesmo sem o apoio do marido. É nessa gravidez desejada que a protagonista dá conta de ver a maternidade como algo que ultrapasse as perdas e limitações ligadas à esse período. É exatamente por querer e desejar tanto essa filha que o "não" do marido não tem importância alguma; dessa maneira, inverte-se o ocorrido com Kevin, onde Franklin o desejava e Eva não, e fica claro na obra que os filhos vem impreterivelmente para dividir o casal.

Estando estabelecida então a importância do ato na história particular do par mãe-filho, chegamos então ao ato derradeiro. Três dias antes de completar dezesseis anos, Kevin assassina seu pai, sua irmã, sete colegas de sala, uma professora e um funcionário de sua escola, em um ato calculado com precisão. Não é por acaso que Kevin utiliza arco e flecha, seu único interesse que perdura da infância até a adolescência, interesse que surge justamente em um momento de proximidade com sua mãe. Quando criança, Kevin adoece e é acolhido por Eva, que lê para ele a história de Robin Hood em um momento de ternura e cuidado. Desde então, Kevin pratica seus tiros de arco e flecha. É fazendo uso das flechas que Kevin consegue, já mais velho, realizar o que Miller (2014a) conceitua como a ultrapassagem da lei, de um conjunto simbólico, que permite a constituição de um antes e de um depois na vida do sujeito - portanto, de um renascimento. O autor coloca também que o ato está sempre intimamente ligado ao sujeito e seu gozo, que no momento do ato efetua uma separação radical do Outro. Ao utilizar as flechas, Kevin realiza um furo nesse Outro que lhe é impenetrável, e é a partir dele que o garoto consegue se localizar melhor diante deste Outro que o invadia, permitindo um remanejamento de sua angústia que é característico do ato.

Eva visita Kevin religiosamente todas as sextas-feiras no reformatório juvenil. Ao se passarem dois anos da tragédia, consequentemente apenas três dias para o aniversário de dezoito anos de Kevin, Eva encontra seu filho já não tão confiante de si e posicionando-se de uma forma diferente frente à sua própria história. É somente nesse momento que Eva pergunta ao filho o porquê de seu ato, e é apenas estando tão próximo da transferência para um presídio que Kevin lhe responde que achava que sabia, mas que agora não tinha mais tanta certeza. Com medo do que poderá lhe acontecer em uma cadeia, Kevin abraça sua mãe desesperado. Guimarães (2009) também fala da possibilidade de recomeço que o ato gera dizendo que é precisamente a necessidade do começo que marca a estrutura verdadeira do ato, realizando um corte que possibilita ao sujeito "a função de remanejar a causa do desejo" (Guimarães, 2009, p. 6). Se, no decorrer do ato, não há sujeito do desejo, é somente depois do ato que este pode se reinventar na medida em que o lado falho do ato se faz perceber pelo sujeito. Para Kevin, é somente dois anos depois do ocorrido que sua certeza no ato se abala, permitindo então uma modificação dele mesmo.

O ato de Kevin retira tudo de Eva: seu marido, sua filha, seu patrimônio, sua empresa, sua casa. A protagonista faz questão de negar, um por um, todos os apelos jurídicos que minimizariam as consequências do feito de Kevin. No tribunal, porta-se de maneira quase irônica, gerando reportagens jornalísticas inflamadas e comportamentos agressivos dos moradores de Gladstone, que em vários momentos da trama agem para puni-la pelo ato de seu filho. Eva aceita calada essas punições, acreditando que é merecedora delas. Em sua nova casa, assiste à televisão e é surpreendida em uma noite por um documentário sobre Kevin onde ele mostra a única decoração de sua cela: uma foto de Eva em sua juventude. É também em sua precária residência, constatemente atacada e vandalizada por vizinhos furiosos, que jogam tinta vermelha no exterior da casa, que Eva mantém um quarto com uma cama sempre arrumada, as paredes pintadas assepticamente de branco, a cama bem feita, estantes que contém um exemplar de Robin Hood e todas as roupas preferidas do filho, devidamente lavadas, passadas e dobradas, que, assim como Eva, esperam pacientemente pelo retorno de Kevin.

 

Esteban e sua mãe, a sós

 

 

Ao lançar um olhar sobre o cinema de Almodóvar, cineasta espanhol, amplamente premiado, destacaremos que a grande maioria de seus filmes trazem como marca a centralidade do feminino. Tudo sobre minha mãe (1999) não é uma exceção. Em seu enredo, todos os personagens principais são figuras femininas. Além disso, sua diversidade de temáticas e complexidades o torna riquíssimo, incluindo dentre elas a própria questão do feminino, da prostituição, do uso de drogas, da AIDS, entre outros.

"Tudo sobre minha mãe" (1999) nos dá a ver um retrato do que poderíamos chamar de "mães sozinhas". Manuela, a protagonista do filme, interpretada por Cecília Roth, trabalha como coordenadora da enfermagem, estando diretamente ligada ao setor de doação de órgãos em um hospital em Madrid, além de ter sido uma atriz amadora em seu passado. Manuela é mãe de Esteban, de 17 anos. O rapaz é escritor e com ele carrega um caderno no qual escreve sobre sua mãe.

Temos, na primeira cena do filme, uma ironia com relação ao seu título: em uma intertextualidade com "All about Eve", filme que mãe e filho estão assistindo naquele momento. Esteban questiona a tradução - que seria "La malvada" em espanhol - e afirma que deveria ser "Tudo sobre Eva", enquanto isso, está escrevendo em seu caderno, que contém anotações sobre sua mãe: "Tudo sobre..." Logo em seguida, o rapaz afirma querer saber "Tudo sobre seu pai". Efetivamente, o filme de Almodóvar coloca uma pergunta não tanto sobre a mãe, mas sobre o pai.

De seu pai, descobrimos que Esteban só herdou o nome. É aniversário de dezessete anos de Esteban quando os dois vão ao teatro assistir uma peça intitulada "Um bonde chamado desejo", escrita por Tennessee Williams. Manuela emociona-se ao relembrar um papel que havia interpretado no teatro há algum tempo atrás, juntamente com o pai de Esteban. De certa forma, a história dos dois personagens interpretados por eles remete à própria história de Manuela que abandonou o pai de Esteban, um travesti. Por isso, ela vai embora sozinha com o filho quando ainda estava grávida. Esteban, até o momento, acreditava que seu pai havia morrido antes que ele nascesse, pois tudo que remetia ao pai fora apagado, todas as fotos foram rasgadas ao meio. Sobre o pai, ele encontra tão somente um vazio no discurso de sua mãe.

Em "Nota sobre a criança", Lacan (1969/2003) destaca a função de resíduo exercida pela família conjugal na evolução das sociedades, consistindo na irredutibilidade de uma transmissão de algo que é de outra ordem que não a da vida segundo as satisfações das necessidades, mas da constituição de uma subjetividade implicando a relação com um desejo que não seja anônimo. Aí se conjugam as funções da mãe e do pai. Ele articula o fracasso das utopias comunitárias com o efeito de anonimato que elas acabam por produzir, na medida em que o Ideal visado desconsidera o particular de cada sujeito.

A família conjugal permanece como um resíduo porque nela se presentifica a irredutibilidade de uma transmissão de uma constituição subjetiva. Como foi dito anteriormente, essa constituição subjetiva designa a implicação em relação a um desejo que não seja anônimo. O não-anônimo está articulado à particularização em jogo nas funções da mãe e do pai:

Da mãe, na medida em que seus cuidados trazem a marca de um interesse particularizado, nem que seja por intermédio de suas próprias faltas. Do pai, na medida em que seu nome é o vetor de uma encarnação da Lei no desejo (Lacan, 1969/2003, p. 369).

É essencial que esse interesse se manifeste de modo particularizado. O pai interdita alguma coisa nesse desejo da mãe. A encarnação da lei do desejo é nomear a lei no desejo. O nome é o que interdita, e isso mostra muito claramente a força da lei enquanto simbólica. O nome é o vetor de uma encarnação da lei do desejo por alguém - que é o pai. Para Esteban, talvez pudéssemos dizer que não há nenhuma encarnação do pai. Durante sua vida, o pai é uma ausência. Ele chega a dizer que, em sua vida, falta também a metade, referindo-se às fotos da juventude da mãe, amputadas das partes em que há o retrato do pai.

Pergunta-se, então, o que acontece quando o lugar do pai é um vazio e o filho se vê sozinho com a mãe. Lacan (/1957-1958/1999) que mesmo nos casos em que o pai não está presente e a criança é deixada sozinha com a mãe, temos como resultado a produção de uma neurose (p. 173). É a incidência da castração da mãe, através daquilo que ela diz, que opera aqui. A criança vem no lugar daquilo que falta à mãe, aquilo de que ela é privada simbolicamente, ou seja, do falo. A perda do gozo afeta todo ser falante e o fato de a palavra interditar o gozo dá conta da interdição da mãe pelo pai. A psicanálise jamais reivindicou a presença do pai junto à criança como necessária.

O que vemos, então, em Esteban? Ele se torna aquele que escreve a vida da mãe e interroga seu desejo para saber como ela se virava com os homens e, em especial, com aquele que era o seu pai. Ora, é também em "Nota sobre a criança" que Lacan (1969/2003) destaca como a criança pode vir a ocupar o lugar de objeto da mãe. Enquanto objeto a, a criança pode ser capturada na fantasia materna e tornar-se o objeto da fantasia materna.

"Ela se torna o 'objeto' da mãe e não mais tem outra função senão a de revelar a verdade desse objeto" (p. 369). Isso não necessariamente significa uma condenação à psicose. Esteban é tomado como objeto e a mãe é tudo para ele. Ser escritor é escrever a vida da mãe.

 

Considerações Finais

Em "O seminário livro 10, a angústia", Lacan (1962-1963/2005) articula os três termos - amor, desejo e gozo - na afirmação de que só o amor permite ao gozo condescender ao desejo. Efetivamente, o amor vela o que causa o desejo e assim evita a angústia. Como passamos do gozo ao desejo do Outro? Quando se trata do gozo, o ponto de partida é o corpo, ao passo que em relação ao desejo o ponto de partida é o desejo do Outro. O desejo está ligado à cadeia significante e suas substituições, na medida em que o gozo tem uma relação de exclusão com significante. O significante tem, para o ser falante, uma função de separação do gozo do corpo e o desejo é essa barreira, defesa contra o gozo fundada na palavra. O gozo somente se articula ao desejo, como desejo do Outro, através do amor. É através da Metáfora Paterna, representada pelo Nome-do-Pai, que o objeto entra na série intercambiável dos objetos metonímicos, constituindo um sujeito do desejo. Miller (2007) afirma que a família é constituída pela Nome-do-Pai, pelo Desejo da mãe e pelo objeto a.

O que nós poderíamos dizer, hoje, dessa definição da família? Que ela tem origem no casamento? Não, a família tem origem no mal-entendido, no desencontro, na decepção, no abuso sexual ou no crime. Que ela seja formada pelo marido, pela esposa e suas crianças, etc.? Não, a família é formada pelo Nome-do-Pai, pelo desejo da mãe e pelo objeto a. Que eles são unidos por laços legais, por direitos, por deveres e etc.? Não, a família é essencialmente unida por um segredo, ela é unida pelo não dito. Qual é o segredo? Qual é esse não dito? É um desejo não dito, é sempre um segredo sobre o gozo; de que gozam o pai e a mãe? (Miller, 2007, p. 2)

Toda família, segundo Bassols (2016), é um aparato de gozo, um modo de resguardar o segredo do gozo como inominável. Cada ser falante é escravo do segredo do gozo familiar; contudo, é a partir daí que se constitui um lugar de articulação das relações entre amor, desejo e gozo. Como se articulam estes três elementos em cada uma das faces da maternidade desenhadas nos romances de Érico Veríssimo e de Lionel Shriver, e no filme de Pedro Almodóvar?

Ana Terra, retrato da matriarca que sabe fazer uso do falo, é a guardiã do segredo familiar: o pai de seu filho é assassinado pelo seu pai e seu irmão. O segredo interdita o campo do gozo e constitui a família edipiana. Ana Terra funda uma família e inscreve seu filho em uma linhagem ancorada no campo do falo. O amor humaniza o desejo e inscreve o filho na dialética da demanda e o desejo fundada no recalque. A mãe de Kevin situa-se em outro território. Vimos que a função da mãe é humanizar o desejo através de um cuidado particularizado. Entretanto, Kevin não se pode situar no desejo da mãe e vê-se condenado a uma zona de sombra habitada por um gozo mortífero. Kevin não pode encontrar uma inscrição no desejo da mãe e ela o deixa sem recurso diante da potência do silêncio. A face da maternidade que aí se dá a ver, ao invés de encobrir a castração, exibe seu furo, o impossível recobrimento do real pelo simbólico, desenhando uma face obscura e indizível da maternidade. Aqui, não há amor que permita ao gozo condescender ao desejo e o gozo mortífero da pulsão de morte que se manifesta. Esteban, por sua vez, revela que o importante é que uma mãe sozinha possa desejar para além do filho. A criança pode preencher, mas também pode dividir a mãe (Miller, 2014b). É este o sentido da Metáfora Paterna, ela remete a uma divisão do desejo que impõe que o objeto criança não seja tudo para a mãe. Que ela não esteja dissuadida de encontrar no corpo daquele a quem dirige sua demanda de amor, o significante do seu desejo. Lacan (1956-1957/1994) destaca a importância para a criança de encontrar para além da mãe que satisfaz e completa, a mãe desejante, a mãe para a qual a falta fálica está no lugar da causa de desejo. Sua mãe, esquecida da causa do seu desejo para além do filho, faz de Esteban seu refém fálico.

 

Referências

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Recebido em: 20/07/2020
Aprovado em: 19/03/2021

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