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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versión On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.13 no.1 Rio de Janeiro ene./jun. 2021

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2021v1p.69 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

Violência-corpo: incorporações em pintura

 

Violence-body: incorporations in painting

 

Violencia-cuerpo: incorporaciones en pintura

 

 

Lurdi BlauthI; Medellin Gomes da SilvaII

IArtista plástica. Professora da Graduação e da Pós- graduação da Universidade Feevale, Novo Hamburgo, RS. Membro do Conseil National Français des Arts Plastiques - CNFAP. E-mail: lurdiblauth@gmail.com
IIBacharelando em Artes Visuais pela Universidade Feevale E-mail: medellinsilva@hotmail.com

 

 


RESUMO

Este estudo trata de uma pesquisa em arte e sobre arte, cujo tema é a violência com o propósito de construção da figura humana em pintura na produção artística de Medellin Silva. São utilizadas imagens de pessoas assassinadas, através da apropriação de fotografias encontradas na internet, que exploram a construção do corpo e sua relação com a violência. É embasado em autores como Robert Muchembled (2012), Hannah Arendt (2009), e nos campos de conhecimento da História, Filosofia e Psicologia. O corpus de referencial artístico é composto por Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610), Francis Bacon (1909-1992) e Lucian Freud (1922-2011).

Palavras-chave: VIOLÊNCIA; CORPO; PINTURA; PROCESSO CRIATIVO.


ABSTRACT

This study deals with research in art and art, whose theme is violence with the purpose of building the human figure in painting in the artistic production of Medellin Silva. Images of murdered people are used, through the appropriation of photographs found on the internet, which explore the construction of the body and its relationship with violence. It is based on authors such as Robert Muchembled (2012), Hannah Arendt (2009), and in the fields of knowledge of History, Philosophy and Psychology. The corpus of artistic reference is composed by Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610), Francis Bacon (1909-1992) and Lucian Freud (1922-2011).

Keywords: VIOLENCE; BODY; PAINTING; CREATIVE PROCESS.


RESUMEN

Este estudio aborda la investigación en arte y arte, cuyo tema es la violencia con el propósito de construir la figura humana en la pintura en la producción artística de Medellín Silva. Se utilizan imágenes de personas asesinadas, mediante la apropiación de fotografías encontradas en internet, que exploran la construcción del cuerpo y su relación con la violencia. Se basa en autores como Robert Muchembled (2012), Hannah Arendt (2009), y en los campos del conocimiento de Historia, Filosofía y Psicología. El corpus de referencia artística está compuesto por Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610), Francis Bacon (1909-1992) y Lucian Freud (1922-2011).

Palabras clave: VIOLENCIA; CUERPO; PINTURA; PROCESO CREATIVO.


 

 

Introdução

Este estudo tem a finalidade de investigar a questão corpo-violência a partir da realização da prática pictórica para analisar como o conceito de violência se relaciona com o processo criativo de Medellin Silva. Refletindo sobre esse tema, é possível perceber seu ressoar durante as práticas artísticas em diferentes épocas e em diversos artistas. A violência, como parte de uma abordagem de produção ou da vida dos artistas, manifesta-se na história das artes por meio da representação de um fato histórico, mítico ou questão pessoal.

Mencionamos um fato regido por medo e repulsa a um episódio bélico, como a obra Guernica (1937), de Pablo Picasso, não percebemos a violência que alcançam as obras Tiradentes supliciado (1893), de Pedro Américo e em O Triunfo da morte (1562), de Bruegel, dito "O Velho". Apesar de a imagem de Tiradentes ser chocante e inquestionável quanto à presença de violência em sua representação, o mais próximo do que é determinado como impressão da violência é O Triunfo da morte, pois desperta uma modificação no estado de energia agressiva. Nessa obra, o vasto ambiente leva o observador a centrar os olhos em direção a um núcleo em chamas, ao mesmo tempo em que tende a observar a guerra entre os corpos ao lado. O alarme causado por sua representação de um tumulto generalizado entre morte, fogo e briga é atmosfericamente violento. Não se pretende negar a importância ou a presença de violência em Guernica, com esse exemplo, mas abrir espaço para a discussão dos diferentes meios de entender e perceber o que é violência.

Procuramos elucidar, neste estudo, o que é violência para entender o seu conceito e como acontece sua relação com a arte, o corpo e a suas possíveis formas de expressão. Robert Muchembled (2012) e Hannah Arendt (2009), trazem reflexões sobre a violência e fundamentam a relação com a pintura do artista Medellin Silva. Dar forma aos diversos modos de expressão da violência encontradas na arte, e para diferenciar da denominada impressão da violência, abordamos alguns exemplos da História da Arte de modo a conduzir a um melhor entendimento da relação entre o corpo e a violência. Buscamos aproximações em artistas como Michelangelo Merisi de Caravaggio e Lucian Freud para refletir sobre a construção do corpo e o processo de impressão da violência, que destacam a presença de um método de trabalho carregado por uma potência agressiva que se difunde durante o processo criativo. E Francis Bacon elucida o que significam as incorporações realizadas durante a prática pictórica.

De modo geral, todos nós reconhecemos uma situação de violência, pessoal ou próxima, em que experimentamos medo, adrenalina, raiva, paralisação e até mesmo ações por movimentos involuntários enquanto nosso corpo reage à situação ocasionada de forma proposital ou inesperada. Esse tema tão comum, que arriscamos dizer ser marcado ou composto parte da vida de todos os seres humanos em algum momento de sua existência, produzindo uma complexa noção no que diz respeito à sua definição.

A violência pode ser algo claro e reconhecível em muitas situações, como uma agressão física, mas também pode se mostrar encoberta por uma inaudível expressão se dissipando no cotidiano. Quando uma agressão verbal é manifestada sutilmente em forma de brincadeira, ou quando há fantasias que levam a desejos de cometer agressão, bem como no ato ou na indisposição a prestar assistência a alguém em alguma situação de risco. Mesmo não sendo explícita, essa expressão de violência camuflada surge em pensamentos e anseios que passam pela mente humana, como forma de sair de suas restrições sociais e agredir, sem ferir fisicamente, a outra pessoa, ou ainda como forma de extravasar a raiva reprimida.

Apesar da extensa experiência com esse objeto experimentado por todas as sociedades e indivíduos, ainda é muito complicado enquadrar o termo violência em uma definição específica. Tendo em vista que seus limites estão quase sempre relacionados a uma fronteira social, que regula o que cada povo tolera como atos normais e aceitáveis, embora invasivos, e o que em cada cultura, é considerado como intolerável e classificado como violento. Mesmo que em nosso tempo algum ato seja visto como uma violência, em sociedades ou época distintas o mesmo ato pode ser visto como natural. Apesar dos diferentes conceitos e explicações sobre este fenômeno, faz-se imperativo, no entanto, o esclarecimento dessa questão conceitual de modo a delimitar o que é tratado como violência nesta pesquisa.

 

Violência: esclarecendo o conceito e o contexto

Definir o significado de violência envolve um trabalho árduo e complexo. Suas definições, por diferentes autores, mais explicam atos considerados como violentos em vez de uma definição em essência. Oferecida sua abstração enquanto objeto de pensamento, as definições de violência se baseiam em diferentes ações e costumes, rejeitáveis em várias sociedades ou tolerados e tidos como necessários como meio de manter a autoridade por outras. Dentre tais ações e costumes, a mais comum é a agressividade.

Segundo Nicola Abbagnano (2007), a palavra "violência" em sua origem etimológica deriva do termo em latim violentia, que por sua vez é atrelado a vis e violare; significantes, pois, de ação, potência, força física, profanar, violar. Confirmando esta origem, em A História da Violência no Mundo Europeu, Muchembled (2012, p.10) apresenta a origem da palavra violência como "tendo surgido no início do século XIII em francês, a palavra "violência", que deriva do latim vis, designando "força" ou "vigor", caracteriza um ser humano com um caráter colérico e brutal".

Segundo Ana Bock (2001), em Psicologias - Uma Introdução Ao Estudo de Psicologia, a violência é abordada como um termo possível de ser compreendido como um fenômeno irrestrito da construção do indivíduo enquanto ser humano. Lança, assim, a confirmação: o ser humano é agressivo. Abalizando a agressividade como um impulso do ser humano, que pode ser voltado tanto para o mundo quanto para seu interior, com pensamentos ou ações irrefletidas, mas que sempre fará parte da vida psíquica como elemento do binômio amor e ódio, bem como da pulsão de vida e de morte. A agressividade, nesse sentido, é definida como a violência que sempre compõe os pensamentos do indivíduo sendo usada de modo direcionado e com o intuito de ocasionar estrago em algum possível alvo.

Seres humanos, quando colocados em condição de existência humilhante, provocam uma linha de eventos que levam aos crimes agregados às necessidades, como roubar para conseguir se alimentar. Existem assassinos que matam por ciúmes ou impulso durante um descontrole e pessoas que matam em legítima defesa. Por outro lado, há psicopatas que matam pessoas apenas pela vontade de matar e os que matam porque já alcançaram o maior prazer em seções de torturas sucessivas com suas vítimas;ou ladrões que roubam para manter um estilo de vida inalcançável por sua capacidade de trabalho e que, por algum motivo, acabam cometendo assassinato ou agressões graves. Há também os grupos socioculturais, que estimulam a violência constante em diversos graus, como alguns grupos de ideologias políticas e religiosas. Apesar de diferentes motivações, todos esses exemplos de agressão, de algum modo, causam algum prejuízo ao indivíduo.

A violência pode ser definida como o desejo de agressão junto a uma atitude, ou quando o querer fazer encontra o impulso do ato. Nesse contexto, propõe Bock (2001), pode ser racional (quando premeditada), voluntária (de modo intencional), involuntária (quando direcionada a um elemento que substitui o alvo, como estar irritado e bater em algum objeto ou ter raiva de uma autoridade). O desejo de agredir, guiado pela pulsão de morte, nasce como uma compensação por sentimentos como fraqueza, vingança ou sadismo. Segundo Muchembled (2012, p.10), os "psicanalistas, psicólogos, etnólogos identificam no homem uma agressividade específica. Freud desenvolve essa ideia opondo a pulsão de morte (Thanatos) à da vida (Eros)".

Erich Fromm classifica as formas de violência humana em dois grupos, umas ligadas ao normal, outras ao patológico. Entre as primeiras, figuram as que se exprimem no jogo ou visam a garantir a conservação da existência, por medo, frustração, inveja ou ciúme, mas também, com uma dose de patologia, por desejo de vingança ou perda de esperança (Muchembled, 2012, p.10).

Mesmo ao analisar alguns aspectos de comportamento em pessoas que nunca presenciaram alguma ação ou gesto de agressividade contra outro ser humano, serão encontradas manifestações de pensamentos violentos, ainda que sejam mínimos. Para o neurologista, psiquiatra e etólogo Boris Cyrulnik, "a teoria de uma violência específica no homem, porque este, diferente do animal, pode criar mundos imaginários, o que o leva, às vezes, a cometer genocídios quando ele identifica 'raças inferiores' para destruir" (APUD MUCHEMBLED, 2012, p.10).

Em Violência e Psicanálise, buscando em diversas fontes a definição do termo, Jurandir Costa (1986) assinala que a violência, assim como a loucura e a paixão, não é um conceito. Ele sugere que muitos autores "têm como base de suas afirmações a noção de violência, em sua clássica versão aristotélica, ou seja, violência como a qualidade do movimento que impede as coisas de seguirem seu movimento natural" (COSTA, 1986, p. 16). Apoiando-se em Freud, considera que a vida humana em comunidade só é possível por meio da violência, como na obediência às leis do contrato social e o uso da repressão física por autoridades, ou ainda nos vínculos emocionais, como a união livre por afeto entre pessoas.

Explorando também as noções de violência e sociedade, encontram-se em Hannah Arendt relações entre a sociedade e a violência. A autora, define como algo totalmente contraposto ao poder e caracterizada como um instrumento, pois ela tem início e fim em um curto prazo. O consenso de uma maioria para o curso das decisões é o que define o poder. Em outras palavras, quando todos atuam em conjunto contra uma minoria. Já a violência, é o que nasce da falta de poder, ou quando a minoria vai contra o consenso da maioria. Ainda que possa ser usada pelo poder, como para reprimir e impor dominância, a violência é aquilo que destrói o poder, já que este "corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas também para agir em concerto" (ARENDT, 2017, p. 60).

O que vulgarmente adotamos por violência, Arendt separa por diferentes conceitos próximos de atitudes ofensivas são: vigor e violência. Vigor seria um estado de grandeza possuído por algumas pessoas, seja intelectual ou física, e por esse meio há uma habilidade para dominar sem se impor ou usar força; por natureza é um ser individual e independente.

Analisando a violência, e como as sociedades lidam com sua presença durante os séculos, criando meios de extravasar atitudes agressivas, temos o exemplo dos jogos olímpicos na Grécia. Wilmar Barbosa (1999), em Violência e Filosofia, faz um registro de suas origens etimológicas, já mencionadas, ainda complementando com "[...] "caráter violento" ou "bravio", [...] "vigor", "potência" "violência", bem como "quantidade", "abundância", "essência" ou "caráter essencial" de uma coisa" (BARBOSA, 1999, p. 2). Nenhum dos significados das palavras que originam o termo "violência" remete a um corpo, mas a uma força, um impulso ou alguma faculdade que não pode existir sem partir de um corpo, pois se algo não parte de um corpo, se propaga por ele ou sobre ele. Os corpos são os suportes que iniciam ou recebem expressões de violência.

Como identificar o que é uma violência, ou ainda, como saber o que é violência sem antes presenciar sua imagem através de um corpo? A violência física acontece quando o corpo agride de alguma forma outro corpo ou a si mesmo; a verbal, quando pensamentos se articulam em um corpo de ideias e se manifestam em uma agressão por meio da fala. Até a natureza manifesta violência, de algum modo, quando parte de seu corpo atuando em uma intensidade mais forte do que de costume e causando algum tipo de dano ou força não presenciada normalmente, como uma tempestade.

O que definimos como violência, nesse estudo, parte de uma percepção do conceito de Hannah Arendt sobre a violência ser um instrumento. Percebemos a violência como algo mais do que apenas um recurso linguístico ou sinônimo para agressão. Se a vontade de agredir deriva de não conseguir lidar com algum sentimento ou pensamento, a violência é uma mescla de sentimentos se desdobrando em sensações, causados por um conflito entre o mundo e o ser, que tornam quase impossível racionalizar o que acontece antes de ser um ato de agressão. Como uma força, capaz de agitar tanto o emocional quanto o físico, em que a válvula natural de escape é o descontrole.

Este estudo tem a violência e o corpo como elementos básicos para refletir sobre a produção prática em pintura do artista Medellin Silva. A partir da foto de um corpo assassinado, como ponto de partida para uma pintura, o artista começa a trabalhar apenas com a referência da imagem de alguém morto. Sem saber ao certo o que estava desenvolvendo, o trabalho se transforma à medida em que ele se torna mais consciente de suas necessidades e situações que ocorrem durante o tempo de pintura. Citando Cecilia Salles (1998, p.32):

O crescimento e as transformações que vão dando materialidade ao artefato, que passa a existir, não ocorrem em segundos mágicos, mas ao longo de um percurso de maturação. O tempo do trabalho é o grande sintetizador do processo criador. A concretização da tendência se dá exatamente ao longo desse processo permanente de maturação (Salles, 1998, p.23).

O artista, em seu processo de produção de trabalhos que desenvolvia anteriormente, voltada ao Surrealismo, usava imagens de sonhos e associações livres sem referências reais. A sensação de estar ilustrando uma imagem o levou, porém, a uma série de experimentos pictóricos, até chegar a uma fase de relativo entendimento sobre o que estava desenvolvendo. Como menciona Salles (1998, p.27): "o trabalho criador mostra-se como um complexo percurso de transformações múltiplas por meio do qual algo passa a existir".

A produção pictórica Medellin Silva, em geral, surge através de um impulso que se pode desdobrar em duas possibilidades. A primeira, se manifesta como uma sensação de sentimentos de raiva, irritação e agitação, por uma necessidade de extravasar, a segunda, em que acaba perdendo a vontade de produzir, surge do mesmo modo que a primeira, mas aos poucos a agitação começa a dar lugar a um estado de chateação e à perda da vontade de produzir. Essa percepção de como ocorre o início da produção prática fez com que o artista deixasse de lado a suspeita de apenas ilustrar ou trabalhar com a imagem de violência. Começa a entender que estava trabalhando com a própria violência, pois, aos poucos, a sua produção prática se foi tornando mais clara na medida em que pensava sobre o próprio ato de pintar.

 

O corpo e a violência na história da arte

Aproximar corpo e violência, essencialmente, parece uma contradição. O ser humano ambiciona a preservação de seu corpo com vistas a estender, pelo maior tempo possível, a sobrevivência. A violência homicida antecipa, todavia, a morte, acabando com a vida antes do tempo de morte natural. A relação entre violência e arte, nos exemplos apresentados neste estudo, não pretendem indicar que determinado trabalho foi realizado com o tema em mente por seus autores. Devido a uma ampla subjetividade na percepção do conceito de violência, sua presença ou poder de produzir algum efeito sobre o observador pode ser de caráter singular ou através da formação social.

Como, por exemplo, trabalhar sobre o mito de Lucrécia pode não significar criticar um ato, mas apenas tratar sobre um mito; ou trabalhar com um tema de guerra, ou morte, pode não significar preocupação com a violência em si, mas apenas tentar expressar a crueldade do que ela produz ou ilustrar um fato histórico. É possível notar expressões de violência em diversos meios, como em filmes, músicas, literatura e na arte. Antes da popularidade dos filmes, obras literárias com cenas violentas eram mais corriqueiras e ao alcance da população. "Sadismo" e "masoquismo" foram termos cunhados tendo como referência os nomes de dois autores de uma literatura erótica, mas principalmente violenta ao extremo. Com Marquês de Sade, de quem deriva o termo "sadismo", vemos cenas de abusos e mortes em seus escritos, assim como em Leopold Masoch, de quem deriva o termo "masoquismo".

Segundo Muchembled (2012, p.5), vemos como "o gosto pelo sangue passa da realidade ao imaginário e torna-se um fantasma, para melhor pacificar os costumes dos leitores [...]". Complementando, ainda, que podemos fazer "dela uma experiência pessoal e onírica, mantê-la para torná-la operatória e útil à coletividade em caso de necessidade". Em outras palavras, um modo de oferecer uma violência placebo, ou seja, algo que forneça a sensação mais próxima da realidade diante de um ato de violência fictício. Um modo para conseguir saciar o imaginário, sem perigos e ao mesmo tempo uma via para atenuar a agressão no mundo, o entretenimento fictício é utilizado como recurso. Na arte, a violência aparece como representações da imagem de violência.

Com a violência explícita, na qual diante da imagem do resultado de uma agressão expondo o corpo em alguma situação cruel, na maioria das vezes, somos provocados emocionalmente com desmembramentos ou cadáveres embebidos em sangue. Já com a violência sutil, que aparece de maneira sugestiva, temos uma imagem em meio a uma ação ou em que por meio de seu título e movimento representado na cena é possível saber que se trata de algo controverso. Como violência sutil, é possível encontrar exemplos diversos em diferentes épocas obras retratando narrativas de guerras e assuntos como mortes e estupros. Nos tempos antigos, o estupro era um meio de firmar o direito de superioridade à conquista realizada sobre o corpo do outro ou sobre o outro corpo social, durante atos de guerra.

Segundo Cristina Canela (2012), no Império Romano, mesmo tendo dominado quase metade do mundo, em seus mitos sobre sua origem, vitórias e narrativas políticas, há muitas referências sobre o ato conhecido como estupro. A violência sexual, mais do que um ato de dominação, é colocar o corpo como objeto de submissão e sofrimento em favor dos desejos e perversões durante uma ação de satisfação sádica de alguém. O conto sobre o estupro de Lucrécia, segundo uma lenda oriunda da Roma Antiga, sobre uma mulher casada que é violentada em sua própria casa, por Sextus Tarquinius, e, após o abuso, se suicida com um punhal, por vergonha das consequências do abuso para sua família, foi retratada por diversos artistas (PETERLINI, 1991).

Tintoretto, Ticiano, Lucas Cranach e Rembrandt, dentre muitos outros artistas abordaram a lenda de Lucrécia em suas obras. Na pintura de Ticiano (1488-1576), Tarquin e Lucretia, há uma abordagem diferente da cena representada para essa lenda na maioria das vezes. A maior parte das cenas concebidas para esse tema em especial, em pintura, aborda a figura de Lucrécia com um punhal em sua mão, geralmente encostado ao peito, sustentando momentos antes de morrer uma expressão serena. Em Ticiano, observamos uma Lucrécia em luta com seu agressor, que avança em sua direção com um punhal. Trajando roupas vermelhas, na parte de baixo do corpo, com um punhal em umas das mãos, o homem tenta dominar Lucrécia. Com o seu corpo nu, a mulher se projeta para trás enquanto com um dos braços o empurra e com o outro tenta libertar-se, momentos antes do estupro. O encontro entre o vermelho e o branco, lembra o contraste entre céu e inferno, ou encontro entre a carne, riqueza e poder da agressividade do vermelho com a pureza e a virtude do branco.

Assim como a violência sutil, a violência explícita é percebida em inúmeros exemplos. Ela vai muito além da simples menção de agressão, é vista em uma crueldade impensável e com cenas que levam ao limite o chocante da capacidade humana. Ao expor a brutalidade sobre o corpo, a pintura The Severedheads, de Théodore Géricault (1791-1824), baseia-se em partes reais de corpos mortos. Nessa pintura,encontramo-nos diante de decapitações que parecem narrar horror, realidade e simbolismo (Fig.1). Uma das cabeças, à esquerda, repousa, serena, em um lugar com quase nenhum vermelho referente ao sangue. Parece querer sorrir, como se estivesse prestes a acordar de um sonho ou sussurrar uma palavra. Já a cabeça ao seu lado, repousa em um lugar ensopado de sangue, com expressões que remetem ao espanto, como um lembrete de que, momento antes dessa imagem, foi morto e decapitado mantendo apenas a boca e olhos abertos. Pintando as dores que sofreu, o vermelho desbotado marca o sangue tapando o branco do seu lugar de repouso. Essa pintura parece demarcar as sensações entre violência sutil e explícita.

 

 

As outras pinturas, que fazem parte dessa série de trabalhos sobre fragmentos humanos, usados como estudos para a pintura. Com Pedro Américo (1843-1905), em Tiradentes supliciado, a crueldade contra o corpo aparece de forma explícita. A pintura trata sobre a figura do mártir brasileiro, não nos apresentando uma pessoa, mas partes do que formam um ser humano. Disposto em uma forma que parece fazer menção ao contorno do território brasileiro no mapa, o corpo fragmentado troca sua condição de humano, ou meros pedaços de carne, por uma manifestação simbólica.

Apesar de chamar a atenção para a crueldade contra uma pessoa, por causa do ato de esquartejamento, ao fragmentar o corpo de Tiradentes, toda a importância do que um dia foi um ser humano é retirada. Não há mais um alguém, há um corpo que pela ausência de consciência pode ser manuseado como objeto, ainda que a pintura busque reparação por esse ato ao mostrar próximo de seu cadáver uma imagem de Jesus Cristo na cruz.

Remetendo ao período colonial de nossa história, e à identidade brasileira, os trabalhos de Adriana Varejão (1964) tratam de uma violência em que fato, corpo e carne decompõem o ambiente. Na obra Varejão acadêmico - Musas, 1997, por exemplo, há corpos em fragmentos e expostos como carne em um açougue. Aqui, notamos a fronteira entre a violência sutil e a explícita, pois embora a obra seja sobrecarregada visualmente, sobre determinado ponto de vista, ela ainda não trata sobre um corpo violentado, mas há um conceito de violência sobre o recorte de corpos de outras obras.

Fábio Magalhães (1982), em uma técnica hiper-realista, provoca o espanto com uma pintura que retrata dor, carne e sangue. Em Trouxas II, como os títulos insinuam, são alusivos ao trabalho de Artur Barrio, em que sacos eram abandonados na intenção de questionar sobre a tortura e os corpos assassinados por pessoas ligadas ao regime ditatorial brasileiro. O que Barrio sugeriu em seus invólucros opacos, em uma visão clara, Magalhães revela em sacos transparentes. Sangue, formas humanas, órgãos e carnes sobre branco acinzentado, lembrando um fundo infinito como os usados em fotografias, parecem registros de uma imaginação assassina quando visto pela primeira vez.

Artur Barrio (1945), em Trouxas ensanguentadas, apresenta um invólucro recheado de excrementos, papéis, carne, sangue e ossos dentre outros elementos orgânicos. Seus invólucros são um novo corpo, ou um simulacro de corpo mostrando o resultado de um processo que pode ser definido como agressão não concreta. Não há corpo, não há agressão, mas existe a sensação de agressão que desperta o questionamento de um fenômeno social durante um período ditatorial.

A violência sutil apela a um sentimento de reconhecer atos de agressão por meio de um contexto representado, a violência explícita traz o choque, a repulsa, a pena ou espanto diante do resultado de uma agressão, que sabemos ser só uma representação. A violência representada, sutil ou explícita, busca a sensibilização apelando ao sentimento para com sua imagem. Busca na agressão, dor, morte ou situações complicadas, a empatia e comoção, algo oposto do que Medellin Silva busca em seu trabalho.

 

Expressão e impressão da violência

O ponto em comum nestes exemplos de violências, determinados como sutil e explícita, não são a sua presença como ato criador ou capacidade de fazer surgir essa potência, mas a presença de sua representação enquanto parte de um tema. Existem obras de artistas que carregam essa potência de violência em sua criação e o que são capazes de provocar. Identificar o que carrega, na maioria das vezes, mostra-se uma tarefa complicada, pois demanda acesso ao histórico de vida dos artistas ou processo de trabalho.

A pintura Saturno, de Goya (1746-1826), foi uma das primeiras experiências que sustentaram as reflexões de Medellin Silva em abordar a questão da violência como expressão. A percepção desse assunto pelo artista, parte do entendimento de que, se um momento de agitação pode ser percebido por meio de um trabalho e gerar reações psicológicas e físicas, também o instigam como ponto de partida para desenvolver a sua produção pictórica.

A série intitulada Pinturas Negras (1819-1823), de Goya, é construída por um caráter violento, não devido à imagem canibalesca em si, mas às pinceladas e cores que exploram um momento feroz de um deus, passando a ser apenas mais um ser vivo em um ato de brutalidade. Saturno, com os olhos arregalados, abocanha pedaços do corpo de seu filho, e talvez por sentir espanto pelo ato que comete ou pelo gosto de sangue enquanto devora a carne, seu semblante é de quem é pego em flagrante. A carne que consome, não é apenas seu filho, é a sua própria carne. Ao consumir os pedaços do corpo, parece surgir um sentimento de dominação, pois o corpo além de ingerido é espremido por suas mãos, parecendo um ato de querer fundir seu filho em seu próprio corpo de todos os jeitos.

Em War Artwith Eddie Redmayne (2015), um documentário da BBC, encontramos as pinturas de Henry Tonks (1832-1937) e seus Portraits of facial reconstruction. Nessa série de trabalhos, o pintor faz um apanhado de ilustrações dos jovens deformados pela guerra e acompanha seu desenvolvimento depois das cirurgias de reconstrução de face. Seus trabalhos lembram Francis Bacon pelas distorções ao trabalhar com o corpo, visto como mostra deformações faciais.

As obras de alguns artistas que apontamos neste estudo, induziram Medellin Silva a formar as bases e os caminhos de sua produção pictórica. Pinturas remetendo ao movimento, expressão, marcas, gestos, manchas e tensões dos limites do corpo se propagando pela agressividade da imagem. Cores escuras, vermelhos, camadas grossas de tintas arquitetando um corpo cru apenas composto por gestos e pela forma das cores. A impressão da violência, nos trabalhos deste artista, surge a partir do momento em que percebe que deveria fazer uma interferência manual sobre a cor vermelha em uma pintura, desencadeando a produção de pintar pessoas assassinadas. Se o assassinato é um descontrole de agressividade direcionado a um corpo, a pintura feita deve nascer da vontade de agredir, ou seja, de um impulso de extravasar agressividade em direção à tela.

A violência usada como recurso prático de produção, no sentido de criar sobre o efeito de uma potência agressiva, faz com que o trabalho não seja ilustrativo, ou seja, não é um processo destinado a representar o resultado de agressão e morte, vistos numa imagem, ou discutir a violência como problema e fato social. O seu interesse pela violência parte da percepção sobre a sua personalidade, assim como suas causas e origens de caráter conceitual e abstrato, não como sinônimo de agressão, mas como um estado de sentimentos conflitantes que geram a vontade de agressão. Para o artista, esfregar, bater ou riscar em uma tela pode ser agressivo sem remeter ao violento enquanto necessidade.

Por outro lado, o uso do termo impressão, em sua prática artística, surge como uma palavra capaz de dar o entendimento dos limites de produção. Impressão significa imprimir, marcar, marcar algo com pressão ou o efeito da influência de algo sobre os nossos sentidos. Ao observar uma fotografia, na intenção de transferir os limites da forma corporal para o suporte, o artista começa a trabalhar sobre o efeito de forte irritação que o leva a marcar e fazer intervenções na tela, aos poucos, com manchas e traços que vão se sobrepondo durante o trabalho. O artista comenta o seguinte:

Ao agir por meio de uma potência de violência, partindo de uma foto, não sou apenas um objeto material em frente ao suporte. Meu corpo é uma matéria se difundindo por uma realidade expressa com a energia provocada pela necessidade de agressão real, que parte em direção à tela tendo como base o contorno corporal da imagem sendo interpretado (SILVA, 2018, depoimento do artista).

Esse limite de atuação, apesar de eficiente, gera dificuldades durante o percurso de produção, pois a capacidade de agir acontece em momentos específicos. Algumas pinturas acabam abandonadas por não atingir mais a interação entre vontade de produzir e o trabalho em andamento, uma vez que há possibilidade de perder a ligação com o trabalho por causa de algum imprevisto. Em seus trabalhos anteriores, Medellin Silva, trata o corpo como um objeto manipulável que se deforma e se fragmenta em partes animadas. É possível perceber alguns aspectos de violência impregnados em seu conteúdo, no entanto o caráter onírico ameniza a sua percepção. Os corpos incompletos ou aos pedaços, feitos em um efeito de massa manuseada contra a própria lógica de sua existência e anatomia, como é visto em Eu não posso sentir. Eu não posso ver, tornam-se o início do que ele explora nessa pesquisa como tipos de violências que se podem perceber como representação.

 

Violência: incorporações do corpo em pintura

Medellin Silva, após um período colhendo material fotográfico através da internet, foi selecionando seguindo critérios como, principalmente, ser a imagem de alguém assassinado e demonstrar ser interessante em pontos como cores ou posição do corpo. Levado pela intenção de destruir a pintura, também, destrói o mimetismo que ainda o prendia. Repintando e reconstruindo o corpo, aos poucos foi fazendo parte de sua prática pictórica, as marcas, formadas por traços riscados nas camadas de tintas e os gestos expressivos, como ele mesmo afirma, sob o sentimento de forte irritação. Por que a atitude de destruir o que estava pronto?

Em toda prática criadora, há fios condutores relacionados à produção de uma obra específica que, por sua vez, atam a obra daquele criador, como um todo. São princípios envoltos pela aura da singularidade do artista; estamos, portanto, no campo da unicidade de cada indivíduo. São gostos e crenças que regem o seu modo de ação: um projeto pessoal, singular e único (Salles, 1998, p.37).

A prática pictórica, a partir desses atos, saiu definitivamente de uma tentativa de copiar os elementos de uma foto para interpretá-los enquanto forma sob uma determinada condição de trabalho. Em Corpo morto a pauladas e Estudo de um corpo torturado,o processo de construção ocorreu de um extremo a outro. A ideia de corpos sobre uma só cor, nasceu sobre a observação das pinturas de Caravaggio, com fundo de cor única, característico de retratos, uma descaracterização do ato de ver a pintura enquanto cena (Fig.2).

A pintura de um corpo, torna-se a pintura sobre um corpo e não de um corpo em algum lugar. O corpo, em Caravaggio, é a abertura que revela o sentido de sua obra como uma narrativa de violência do artista, sendo um ponto de referência para o trabalho de Medellin Silva. Percebe em Caravaggio, um dueto entre humanidade e atrocidade, escuridão e revelação. Esse jogo de iluminação teatral é mais do que um recurso para composição, é uma revelação psicológica de sua agressividade. Em uma das versões da pintura de David com a cabeça de Golias, temos o fruto de um degolamento e sangue jorrando sobre um fundo negro. A luta entre se expressar durante a prática pictórica, e representar a imagem de maneira fiel ao realismo, determina o que será revelado e escondido no corpo que está ali afrontando a escuridão.

O Estudo de um corpo torturado foi iniciado em fundo negro, que logo deu lugar à cor marrom, também levado por uma ideia caravagista utilizada por Caravaggio. Este trabalho sofreu ajustes por quase seis meses, depois iniciou o processo de intervenções com tinta em diversos tons de vermelho com a utilização de uma espátula e pregos sobre osuporte, resultando em um díptico, intitulado Dois corpos encontrados na água.

Nessas pinturas, que estabeleceram os limites do corpo no processo criativo do artista, começa a pensar em seu trabalho como um procedimento baseado em uma experiência de realidade autônoma, desligada dos elementos particulares que a compõe. Existe a fotografia com um corpo, que é real e tirada de um fato, existe o seu momento de irritação, também real, e existe um processo da ação de pintar que consiste em reunir esses elementos diferentes em uma nova forma no suporte.

As pinturas de Lucian Freud (1939-2011) revelam para Medellin Silva pensar sobre como o artista expressa um corpo a partir do princípio de corpo como a densa carne de um ser feito por matéria crua. No entanto, ele respeita os limites do corpo enquanto forma. Sua atenção para com o espaço corpóreo transforma a pintura em massas empastadas de carnes, às vezes, com cores cinzentas e esverdeadas, mas sempre respeitando os limites do corpo enquanto elemento principal, ainda que algumas vezes os alongue um pouco.

Respeitar o corpo é respeitar sua humanidade. Sem corpo não há ser humano, não há nada, uma vez que, segundo Tereza Poester (2005, p. 50): "o desenho e a pintura são expressões do corpo, registros do gesto humano sobre superfície sensível". Percebe o conceito de corpo, como um aglomerado de formas em um determinado tempo e lugar, que permite uma interação que só se experimenta sendo ou estando em um espaço. O corpo assassinado não é desfeito enquanto imagem de figura humana, as únicas coisas que podem ser perceptíveis como estranhas em seu invólucro físico, que dificultam uma identificação, são as deformações causadas por ferimentos de morte ou devido ao processo de decomposição. Logo, o ato de assassinar não é um sinônimo de destruir o corpo, mas sim de abstrair a condição do corpo enquanto ser humano, já que matar é tirar a consciência.

Em diferentes linguagens artísticas, são utilizados instrumentos que propiciam a criação de alguma marca, um rasgo ou interferência. Nesses atos e pensamentos é que o trabalho se transfigura no próprio gesto criativo ao se alternar entre o ato de construção e o ato de destruição durante um processo artístico. A pintura aparece por meio do resultado de uma ação, ela é o efeito dos atos que ocorrem entre o diálogo entre os atos de pensar, agir e marcar. Como cita Salles (1998), o gesto que cria acontece de forma paralela ao que destrói, pois, a construção advém por meio de destruições.

Francis Bacon (1909-1992), em suas obras apresenta como ponto de referência em relação a construir uma abstração em volta do corpo, além do fundo de cor única, como um recurso prático que mantém o interesse no corpo. Bacon procura explorar a desfiguração, indo da deformação extrema ao rompimento de sua forma limite enquanto figura humana. Ele vê o corpo, em sua pintura, como o fruto de uma intuição que faz a carne da figura se espalhar para além dos limites do corpo. Segundo Franck Maubert (2010, p.31), Bacon afirma: "não deformo pelo prazer de deformar; eles não são submetidos à tortura. Experimento, tento transmitir uma realidade da imagem em seu estágio mais dilacerante. Mas talvez não consiga isso".

Medellin Silva parte, contudo, da realidade de um corpo assassinado, oriundo de fotografias, para uma interpretação de formas em que é explorada a própria vontade de agredir. Coloca o corpo em uma situação de alvo, para experimentações de um momento de agressão, às vezes, até mais brutalizado que a própria referência. Como é o caso de Estudo de um corpo morto e torturado, em que a referência é de um corpo encontrado em um terreno, mas durante a pintura foram adicionados vermelhos em traços que lembram furos na carne e sua posição foi invertida dando a entender ser um corpo pendurado.

Na pintura, Corpo em uma cama e Análise de um corpo morto em um quarto, o artista provoca marcas feitas por meio de pequenos gestos e riscos nas camadas de tinta, denominadas de incorporações (Fig. 3).

 

 

Ao fazer uma interferência quase impulsiva na camada de tinta, cria um traço em sua superfície de maneira espontânea, cortando a homogeneidade da tinta que compõe a pintura, seja uma camada lisa ou espessa. Esse gesto como quase impulsivo, ocorre uma certa premeditação de incorporar e de reconfigurar o corpo por meio de interferências destrutivas, ou que alteram o estado, o espaço dentro dos seus limites e forma sem forçar sua fronteira ao extremo, o que criaria o rompimento do corpo enquanto figura humana. Medellin Silva, ao desfigurar aforma, ela é transformada e alterada do seu estado original. Quando pratica a incorporação, reconfigura determinados espaços e atributos do corpo com algumas intervenções, sem que prejudique a configuração da fronteira do corpo enquanto figura humana. Como, por exemplo, acrescentar alguma intervenção tencionando suas formas, porém sem forçar ao limite que a define como corpo.

Podemos dizer que, reconfigurar não exige o imperativo de desfigurar o corpo, não há deformação quando aplicada uma intervenção sem alterar a sua existência em sua própria forma. Re, como prefixo, significa um reafirmar ou uma repetição, enquanto o prefixo des, significa oposição, negação ou separação. Desfigurar é negar a forma e seus limites, enquanto incorporar é impor à forma o seu limite enquanto corpo. Mesmo criando uma tensão com intervenções que testem seus limites, o corpo nunca é descaracterizado por inteiro enquanto figura humana.

 

Considerações finais

Em termos gerais, observamos, em nosso estudo, que os indivíduos considerados violentos não são distintos de outras pessoas; sua diferença está na capacidade de ponderar o uso de violência como direito de dominação, direito legítimo em defesa própria ou de terceiros. Citamos ainda, Maria Tommasi (1997, p.75): "o ser humano não é agressivo em sua origem, a qualidade destrutiva é simplesmente um sintoma de estar vivo, não é um princípio de uma não-unidade, é uma etapa do desenvolvimento".

A imagem de degradação do corpo revela, além da realidade carnal e temporal, a violência como um instrumento de matar e criar. Para saber o que falta acrescentar em alguma coisa, é preciso conhecer suas partes separadas, de modo que a destruição é um ato de editar a materialidade de algo para entendê-la de outra forma. As coisas que ocorrem ao nosso corpo, na maioria das vezes, não estão sob o nosso controle, mas nossas reações estão. Nesse aspecto, atemática que desencadeou o desenvolvimento da série de pinturas sobre a questão da violência de Medellin Silva se desdobraram entre dificuldades de escolhas e decisões sobre as vias a serem seguidas diante da sua necessidade em extravasar agressividade. Gradativamente, em seu processo de produção descobre, contudo, outras possibilidades de criação que ele denomina como Incorporações. O constante movimento corporal e esforço físico diante da tela durante o desenrolar das suas produções pictóricas podem ser sintetizadas pela mescla de pinceladas espontâneas e traços rápidos com pincéis e outros objetos, como pontas de facas e pregos, para gerar marcas na tinta. Esses gestos propiciaram um maior desgaste físico durante o tempo de trabalho, surgindo primeiro em pequenos detalhes, e depois desencadeia um método de trabalho em que a pintura passa a ser feita praticamente apenas com a utilização desse elemento durante o ato de pintar.

Além disso, os estudos sobre os conceitos de violência de acordo com diferentes autores e processos de criação em obras de diversos artistas, de algum modo, contribuem para elucidar de como a violência pode ser ponderada pelo ser humano. E como determinados artistas, parecem resolver sua vontade de violência por meio de suas obras durante o tempo de produção. Em Caravaggio, por exemplo, mesmo não sendo expressivo em sua técnica, é possível cogitar um grande desgaste físico devido ao tamanho de suas telas e sua técnica, pois a pintura clássica e a grande área de trabalho geram tanto desgaste mental quanto físico. Lucian Freud, do mesmo modo, também trabalhava por muitas horas com seus modelos vivos, priorizando o foco de pequenas áreas de trabalho durante a pintura. Francis Bacon, por sua vez, trabalhava através de fotos e aparenta ser mais emocional e constantemente tocado por um impulso de sensibilidade ou por uma vontade de agressão mais inconsciente. E no caso de Medellin Silva, a necessidade de agressão é resolvida pela rápida explosão de movimentos físicos durante a prática da pintura, assim como por uma constante concentração, que dura várias horas, causada por alguma irritação. Ao trabalhar com os elementos violência e corpo, pelo ângulo da violência projetada contra o ser humano, podemos vislumbrar um desdobramento em direção a uma nova possibilidade de trabalho por meio de método de expressão empregado durante a pintura, com base em agir sobre os efeitos da necessidade de agressão.

 

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Recebido em: 23/10/2019
Aprovado em: 09/04/2021

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