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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.13 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2021

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2021v1p.101 

ARTIGOS LIVRES

 

O "fantasme" em Jacques Lacan, o Intraduzível em questão

 

The "fantasme" in Jacques Lacan, the Untranslatable in question

 

Le fantasme en Jacques Lacan, l'intraduisible en question

 

 

Thales M. de AbreuI; Marta Regina de Leão D'AgordII

IMestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura. E-mail: abreu.thales@gmail.com
IIPsicanalista. Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura e do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da UFRGS. E-mail: marta.dagord@gmail.com

 

 


RESUMO

No Brasil, o conceito de fantasme em Lacan tem duas traduções: fantasma e fantasia. Depois de analisar os argumentos que sustentam cada uma das escolhas de tradução, formulamos a hipótese de que o conceito de fantasme na obra e ensino de Lacan, representa, para a língua portuguesa, um termo intraduzível, tal como definido por Barbara Cassin (2018). Esses problemas não se resumem à questão idiomática. Há uma significação impossível de alcançar no trabalho de tradução, pois é preciso delimitar quais são as raízes na obra freudiana que o conceito toma por referência, assim como aquelas das quais ele se distancia.

Palavras-chave: FANSTASME; TRADUÇÃO; PSICANÁLISE.


ABSTRACT

In Brazil, the concept of phantasm in Lacan has two translations: phantom and fantasy. After analyzing the arguments that support each of the translation choices, we formulate the hypothesis that the concept of phantasm in Lacan's work and teaching represents, for the Portuguese language, an "untranslatable" term, as defined by Barbara Cassin (2018). These problems are not limited to the idiomatic question. There are some meanings that are rather impossible to achieve by translation. It is necessary to establish what origins does the concept has in the Freudian work, as well as those from which it distances itself.

Key-words: FANTASME ; TRANSLATION ; PSYCHOANALYSIS.


RESUMÉ

Au Brésil, le concept de fantasme chez Lacan a deux traductions: fantôme et fantaisie. Après avoir analysé les arguments qui soutiennent chacun des choix de traduction, nous formulons l'hypothèse que le concept de fantasme dans l'œuvre et l'enseignement de Lacan représente, pour la langue portugaise, un terme "intraduisible", tel que défini par Barbara Cassin (2018). Ces problèmes ne se limitent pas à la question idiomatique. Il y a un sens impossible à atteindre dans l'œuvre de traduction, car il faut délimiter quelles sont les racines de l'œuvre freudienne que le concept prend comme référence, ainsi que celles dont il se distancie.

Mots-clés: FANTASME; TRADUCTION; PSYCHOANALYSE.


 

 

Introdução

O pesquisador que pretende trabalhar com o conceito lacaniano de fantasme se confronta com o dilema aparentemente insolúvel na tradução desse termo do francês para a língua portuguesa. No Brasil, encontramos duas opções de tradução para fantasme: fantasma ou fantasia. Nosso objetivo neste artigo é apresentar os principais argumentos que sustentam ambas as traduções, apontando que nenhuma delas abarca a complexidade que o conceito no idioma original carrega. Nossa hipótese é de que o fantasme tal como Lacan o desenvolve, representa, para a língua portuguesa, um termo "intraduzível" tal como definido por Barbara Cassin (2018). Como veremos, os problemas não se resumem à questão idiomática. Trata-se, primeiramente, de entender que se o fantasme guarda raízes na obra freudiana é preciso delimitar quais troncos do pensamento de Freud, Lacan privilegiou. Há, portanto, uma significação impossível de alcançar no trabalho de tradução do fantasme para a língua portuguesa seja qual for a escolha, fantasma ou fantasia.

Tal impasse levou os editores e tradutores do Dicionário de Psicanálise (Roudinesco, E. & Plon, M. 1998) a introduzir uma nota na edição brasileira no que diz respeito aos termos Phantasie em alemão e fantasme em francês. As tradutoras Vera Ribeiro e Lucy Magalhães e o supervisor da edição Marco Antonio Coutinho Jorge (1998) registraram que no histórico do termo "fantasia" (Phantasie em alemão, fantasme em francês), encontra-se o registro da versão "fantasma", também muito difundida no Brasil (Roudinesco e Plon, 1998, p. xiii).

Acerca das querelas políticas que influenciam a tradução do fantasme, apresentamos as posições de Sampson (1992) e Escalante (2013). Ambos situam o problema no nível internacional.

Sampson (1992) afirma que a escolha por fantasma feita por parte dos analistas lacanianos de origem latina converteu o "fantasma em uma espécie de cavalo de batalha para tentar estabelecer, através de um léxico, um distanciamento de grupos e doutrinas não lacanianas" (Sampson, 1992, p.192, tradução nossa)(1).

Escalante (2013), coloca em evidência a ausência de consenso no Brasil acerca do conceito fantasme e que tal ausência de consenso é multifatorial, sendo eles "[...] editoriais, linguísticos, filiatórios e conceituais. A falta de consenso vai incidir não só nas traduções do francês para o português, mas desta última para outras línguas, como o castelhano" (Escalante, 2013, p. 41). O conflito, portanto, não se restringe ao território brasileiro e muito menos entre as diferentes correntes do lacanismo.

 

O fantasme no ensino e obra de Lacan

Em linhas gerais, o fantasme é, para Lacan, uma estrutura que dá sustentação ao desejo através da construção de um roteiro que delimita a relação com o objeto. Nos seminários transcorridos entre 1953 e 1956, Lacan emprega a palavra fantasme sem se ocupar de fazer uma delimitação conceitual do termo. Nesse momento de seu ensino, o fantasme aparece vinculado às produções do imaginário consideradas pelo seu valor simbólico. A reflexão lacaniana acerca desse conceito inicia pelas questões de direção do tratamento na conferência "O Simbólico, O Imaginário e o Real" dirigida aos membros da recém fundada Sociedade Francesa de Psicanálise em julho de 1953. A primeira formalização conceitual irá ocorrer, contudo, no final da década de 1950, durante dois anos do ensino, O Seminário "As formações do inconsciente" (1957-1958/1999) e O Seminário "O desejo e sua interpretação" (1958-1959/2016). Assim como no artigo "Subversão do sujeito e dialética do desejo" (1960/1998). Este trabalho de formalização acontece através da construção do grafo do desejo, onde o fantasme será considerado forma de manifestação e de velamento para o desejo. Abordar o fantasme implica necessariamente, portanto, trabalhar o conceito de desejo. Temos assim a formação de um par: fantasme e desejo.

Um segundo tempo de formalização conceitual ocorreu durante o Seminário "A lógica do fantasma" (1966-1967/2017) e é efeito da elaboração do conceito de objeto a como um objeto lógico. Nesse seminário, Lacan debruçou-se sobre o trabalho de consolidar a relação entre a estrutura do fantasme e a estrutura do significante. Podemos situar, portanto, dois tempos de formalização conceitual do fantasme diferenciados pela elaboração topológica do objeto pequeno a.

No artigo "Subversão do sujeito e dialética do desejo" (1960/1998) Lacan define o fantasme da seguinte forma: "O grafo inscreve que o desejo é regulado a partir do fantasme (2) [...] o fantasme é propriamente o "étoffe" (3) daquele [Eu] que é primordialmente recalcado, por só ser indicável no fading da enunciação" (Lacan, 1960/1998, p.831). Com isso, Lacan situa a produção do fantasme como uma resposta à pergunta pelo enigma do desejo e consequência da divisão do sujeito produzida pelo corte significante. Em outras palavras, "a função da fantasia é dar ao desejo do sujeito seu nível de acomodação, de situação. Por isso é que o desejo humano tem a propriedade de estar fixado, adaptado, combinado não a um objeto, mas sempre, essencialmente, a uma fantasia" (Lacan, 1958-1959/2016, p.28). O matema ($♢a) é a forma lógica utilizada por Lacan para escrever o conceito de fantasme, em que podemos ler: sujeito barrado punção de a.

No seminário "A lógica do fantasma", Lacan retoma a leitura do matema da seguinte forma:

Partiremos da escrita que eu já formei, a saber, da fórmula: $♢a, S barrado punção de a, isso entre parênteses. Eu lembro o que significa o S barrado: o S barrado representa, sustenta nessa fórmula o lugar do que ele reenvia, concernente à divisão do sujeito, que se encontra no princípio de toda a descoberta freudiana e que consiste nisso: que o sujeito é, por um lado, barrado daquilo que o constitui propriamente, enquanto função do inconsciente. Essa fórmula estabelece alguma coisa que é uma ligação, uma conexão entre esse sujeito enquanto assim constituído e alguma coisa outra que se chama de pequeno a [...] (Lacan, 1966-1967, p.12).

Toda essa elaboração conceitual acerca do fantasme é feita por Lacan articulada a construção do grafo do desejo e da topologia do cross-cap. Construção metodológica que demarca uma especificidade do fantasme em Lacan, tal como demonstra a seguinte afirmação do autor sobre o grafo: "Ele nos servirá aqui para apresentar onde se situa o desejo em relação a um sujeito definido por sua articulação pelo significante" (Lacan, 1960/1998, p.819). O fantasme é, portanto, desde sua primeira formalização articulado à dimensão da estrutura significante não se resumindo a uma cena imaginária.

Em "Subversão do sujeito e dialética do desejo" (1960/1998), Lacan sintetiza as discussões realizadas entre os anos 1957 até 1959 mantendo o grafo do desejo como marco metodológico. Com o grafo do desejo, Lacan formaliza a relação entre o par fantasme e desejo através da matemática da teoria das redes e da linguistica de Saussure e Jackobson.

No grafo do desejo, Lacan retoma a posição de que o "desejo do homem é o desejo do Outro" (Lacan, 1960/1998, p.829) acrescentando que se o sujeito espera do Outro uma resposta ele acaba por receber uma pergunta: "Che vuoi?" - O que tu desejas? O fantasme é formulado como uma resposta a essa pergunta e é através dele que o desejo será sustentado. O fantasme articula em uma cena, dois termos heterogêneos: sujeito e objeto. Através da construção de um roteiro, o fantasme produz um enredo onde desfilam objetos mascarados que se apresentam "adequados" ao desejo. Trata-se de um lugar de referencia que possibilita que o sujeito se posicione frente ao desejo. Do ponto de vista do objeto, o fantasme produz máscaras que recobrem (sempre de maneira insuficiente) a negatividade do objeto a.

 

O intraduzível

Fantasme foi o vocábulo escolhido em francês para traduzir o termo Phantasie em alemão. É preciso esclarecer que o termo fantasme estava em desuso e somente foi reintroduzido na França no contexto da tradução da obra freudiana.

Apresentaremos o fantasme lacaniano como um "sintoma de diferença" no sentido que provém da concepção de "intraduzível" por Barbara Cassin (2018). Na apresentação da primeira edição francesa do Vocabulaire Européen des Philosophies, Barbara Cassin presta um esclarecimento importante em relação à construção do dicionário além de delimitar o conceito de intraduzível.

Nós não trabalhamos sobre todas as palavras, nem sobre todas as línguas, no que diz respeito a uma palavra, menos ainda sobre todas as filosofias. Nós tomamos por objeto sintomas de diferença, os "intraduzíveis", entre um certo número de línguas europeias atuais, regressando às línguas antigas (grego, latim) e passando pelo hebreu e pelo árabe cada vez que se fazia necessário à inteligibilidade dessas diferenças. Falar de intraduzíveis não implica absolutamente que os termos em questão, ou as expressões, os expedientes sintáticos e gramaticais, não sejam traduzidos e não possam sê-lo - o intraduzível é antes o que não cessa de (não) traduzir. Mas isso assinala que a sua tradução, em uma língua ou outra, causa problema, a ponto de suscitar às vezes um neologismo ou a imposição de um novo sentido para uma velha palavra: é um indício da maneira como, de uma língua à outra, tanto as palavras quanto as redes conceituais não podem ser sobrepostas [...] (Cassin, 2018, p.17).

Para Santoro e Buarque (2018), o intraduzível é precisamente aquilo que se traduz de muitas maneiras, revelando em cada tradução a diferença entre as línguas (Santoro e Buarque, 2018, p. 5).

A afirmação de que existe um impasse de tradução não é apenas nossa, constatação que nos faz avançar na direção de consolidar o fantasme como um "intraduzível".

 

Raízes freudianas de um conceito lacaniano: Bate-se em uma criança (1919)

O vocábulo francês Fantasme é a tradução da palavra alemã Phantasie, tal como aparece na obra de Freud (Metais, 1997, p. 193). Trata-se, para o fundador da Psicanálise, de uma atividade psíquica, mais frequentemente inconsciente, que consiste numa construção imaginária de um cenário dramático. A pessoa que fantasmatiza fica integrada nesse cenário, seja enquanto ator, seja enquanto observador, e nisso mistura pessoas e cenas familiares embora não reconhecidas como tais.

Freud (1919/1987) assim descreveu sua construção clínica que ele denominou "Phantasie de bate-se em uma criança":

Essa fantasia que se vai transformando desde a primeira meninice, passando pelos primeiros anos escolares e adolescência, alcançará o estatuto de uma construção em análise. Freud acentuava o ficcional: "nas séries adiantadas da escola, alguns livros davam um novo estímulo às fantasias de espancamento, a criança começava a competir com essas obras de ficção produzindo as suas próprias fantasias e construindo uma riqueza de situações e instituições" (Freud, 1919e/1987, p. 226).

A respeito das fantasias de espancamento, Freud afirma que "essas fantasias permanecem geralmente fora do conteúdo restante da neurose e não ocupam lugar certo em sua trama" (Freud, 1919/1987, p.299).

Freud destaca três fases da Plantasie de espancamento e atribui a segunda maior valor de destaque. Essa segunda fase "não tem uma existência real. [...] É uma construção da análise" (Freud, 1919/1987, p. 302-303). "Meu pai bate na criança" (primeira fase, "Sou castigado por meu pai" (segunda fase) e "Batem numa criança" (terceira fase) são os enunciados através dos quais elabora a teorização dessas fantasia.

Lacan, ao evidenciar a leitura da estrutura gramatical das fases da Phantasie freudiana, atribui a elas maior valor de temporalidade do que de fase. "Bate-se numa criança" (1919/1987) será referido por Lacan recorrentemente quando coloca o fantasme em processo de formalização tornando-se assim texto estrutural para a construção da formalização do fantasme em seu ensino.

 

O matema como instrumento de transmissão

Em Subversão do sujeito e dialética do desejo (1966/1998), Lacan escreve o seguinte comentário após apresentar pela primeira vez nesse texto do matema ($♢a): "É que ele é feito para permitir um sem-número de leituras diferentes, multiplicidade admissível desde que o falado continue preso à sua álgebra" (Lacan, 1964, p.830). Fica claro, portanto, que desde o momento mais inicial da formulação do fantasme, Lacan o determina a partir da estrutura algébrica.

As matemáticas, estão presentes no pensamento lacaniano como um fundamento de transmissão. Não é casual que, ao longo de todo seu ensino, Lacan irá fazer sucessivas tentativas de formalizar conceitos através da topologia e da lógica. Destacamos aqui no que diz respeito ao conceito de fantasme, que Lacan utilizou três estruturas matemáticas para formalizá-lo: o grafo do desejo, o cross-cap e o matema como uma escrita. A escrita do fantasme como ($♢a) merece destaque em nossa reflexão na medida em que opera como uma ferramenta diferencial na querela da tradução para outros idiomas.

Para Leticia Fonseca:

[...] através dos aportes da lógica contemporânea, Lacan registra no fantasma esse ponto do impossível, inscrevendo sua marca original- o materna $♢a-, apontando o tempo em que o sujeito cai sob o golpe do significante, ingressando na lei do desejo. Isso nos permitiria então dizer que nesta importação do termo francês fantasme seria sua vertente de Real, do impossível de ser dito, que marca o diferencial da elaboração lacaniana, que culmina com a escrita do matema (Fonseca, 2014, p.5).

Apresentaremos agora as principais linhas de construções argumentativas que consolidaram as escolhas de pesquisadores que se debruçaram em cima da problemática da tradução do fantasme de Lacan para outros idiomas. Foram levados em consideração as posições de pesquisadores, analistas e tradutores dos seminários de Lacan.

Consultando o dicionário de língua portuguesa Aurélio (1999), encontramos os seguintes sentidos para os verbetes "fantasia" e "fantasma". Para "fantasia", encontramos: "[Do gr. phantasia] S.f.1. Aquilo que não corresponde à realidade, mas que é fruto da imaginação [...] devaneio, sonho [...]"(Aurélio, 1999, p.878). Figura também o emprego do termo para fantasias enquanto vestimentas de festas populares. A perspectiva do sobrenatural também esta presente: Assombração, visagem, fantasma (Aurélio, 1999, p.878). De uma forma genérica, o termo é empregado para abordar distorções da realidade e produções ficcionais.

Já para o termo "fantasma" temos: [Do gr. phántasma, pelo lat. phantasma.] S.m. 1. Imagem ilusória; fantasmagoria [...]. Alma do outro mundo visão, visonha [...] (Aurélio, 1999, p.878-879).

Para Maria Cristina Poli, a opção por "fantasma" é um erro de tradução justificável:

O termo lacaniano "fantasma" é, a bem dizer, um neologismo da psicanálise brasileira. [...] Portanto, quando, ao lermos Lacan, encontramos a palavra "fantasma" no lugar de fantasia, trata-se de um erro de tradução. Um "erro" que vingou porque, como veremos, ele permite incluir uma discriminação entre as formações do inconsciente que, não estando presente no texto freudiano, é correlativa da invenção por Lacan do objeto a (Poli, 2007, p.43).

Corroborando a posição de Poli de que o fantasma é um neologismo brasileiro, apresentamos a metáfora formulada por Fonseca (2014). Essa autora avalia que a tradução brasileira "fantasma" tem ressonâncias na ideia de espectro e prisma em Física. Dessa forma, como metáfora da imagem ilusória. Será ainda como articulação possível com o conceito de estrutura de borda que a autora justificará a sua escolha por traduzir o fantasme francês para fantasma.

[...]voltando mais uma vez aos significados da palavra fantasma, encontramos ainda o sentido de espectro: imagem ilusória resultante da decomposição da luz através de um prisma; disposição das frequências de uma radiação em ordem crescente. Poderíamos, então, pensar, metaforicamente, em um espectro formado a partir de um prisma subjetivo, composto por coordenadas significantes (frases ouvidas, situações de vida, lugar simbólico) que integram a história do sujeito, fornecendo-lhe a lente através da qual se apreenderia a realidade?

De qualquer modo, mais do que o elemento imaginário para o qual inevitável mente escorregamos ao bordejar o indizível, Lacan circunscreve aquilo que está além das fantasias e de todo seu emaranhado traumático de sofrimento, destacando no fantasma esse aspecto de borda que sustenta a estrutura. É a estrutura que é importante pôr em relevo. Assim, se por um lado o fantasma funciona como um véu que mascara o Real, ou como uma moldura que enquadra a realidade, por outro lado ele marca limites e sustenta o sujeito, prendendo-o em sua trama (Fonseca, 2014, p.5).

Já o psicanalista e escritor Luiz-Olynto Telles da Silva (2020) seguiu por um caminho diferente a construção de sua argumentação para a escolha do termo fantasma para traduzir fantasme francês:

De fantaise quero chamar a atenção para o fato de que seu sentido "moderno" aparece em 1636 com o seguinte significado: "Obra da imaginação, na qual a criação artística não está submetida às regras formais". - Tenhamos em conta que a preocupação de Lacan é, ao contrário, de formalizar!

De fantôme destaca-se o aspecto sobrenatural, estando presente também o sentido de "personagem ou coisa do passado, lembrança que frequenta (hante) a memória". - E o fantasme? Está sempre presente ou requer construção?

Em fantasme ou phantasme encontramos que, do mesmo modo que fantôme, deriva do grego phantasma, e mais, que no final do século XII aparece como "ilusão", no séc. XIV, na acepção de fantôme e, já em 1836, aparece no campo da medicina, com o sentido de "alucinação". [...] Em 1891 (no ano seguinte à edição do meu velho Larrouse) aparece um sentido "moderno"do termo, o qual será propagado (répandu) no séc. XX pela psicanálise como "Toda produção da imaginação pela qual o eu (moi) busca escapar à influência (emprise) da realidade". - Ao optar pela grafia de Fantasme, tanto em escritos (Kant com Sade"[1963], v.g) como em seminários anteriores, fica claro, no meu modo de entender, que sua opção é pelo sentido moderno, pelo qual - a César o que é de César - em muito responsável. (Para o Petit Robert 1, preceder um verbete com a abreviatura "Mod."[moderno] significa que as acepções anteriores foram abandonadas).

Não optar por phantasme - mais próximo - significa então, fundamentalmente, não se enquadrar ao sentido de "ilusão"(imaginário), ao fantasmagórico e alucinatório outro mundo (psicótico), [...] Assim que, não havendo em português um termo que corresponda diretamente ao francês fantasme, proponho que se diga "fantasma", por conservar a mesma origem grega (phantasma) e manter a alusiva obrigação imperativa. - A propósito, Freud também fala em fantasma em mais de um lugar em sua obra, tanto no sentido de fantôme como no de fantaisie. Mas é quando ele fala de fantasia das origens que o termo mais se aproxima do fantasme de Lacan (Telles da Silva, sem data informada).

No que diz respeito ao verbete fantasme na língua francesa, a psicanálise porta uma grande responsabilidade em sua forma de uso. O fantasme, termo em desuso, teve sua reintrodução no dicionário atrelada à tradução da obra de Freud para o francês.

Ari Roitman, ao traduzir para o português o livro Percurso de Lacan: uma introdução de Jacques-Alain Miller (1987), opta pela tradução de fantasme por fantasia. A respeito disso, Escalante (2013) afirma que: "Nesse comentário nota-se o critério de filiação imperante. Ele vai arguir que traduzir fantasme por fantasia pode confundir com a fantasia kleiniana"(Escalante, 2013, p.42). Mais do que o temor por inscrever o fantasme lacaniano a uma filiação kleiniana, assinalamos que a tradução pelo termo fantasia passa pela filiação do tradutor a leitura de Jacques-Alain Miller do ensino de Lacan. Questão que não é menor quando pensada à luz da história da psicanálise. Miller é herdeiro nomeado por Lacan de sua obra.

Jairo Gerbase (1987) em "Fantasia ou Fantasma", publicado no primeiro número da Revista Falo, apresenta, de forma pioneira, uma justificativa para traduzir fantasme por fantasia. A análise parte da etimologia do termo alemão Phantasie (fantasia), atribuindo a essa os sentidos de "atividade criadora" e "mundo imaginário".

O autor apresenta em três níveis o conceito freudiano de Phantasie: 1) as produções ficcionais feitas em estado de vigília. 2) Quando ao emprego feito por Freud do termo fantasias inconscientes, Gerbase sublinha a falta de precisão metapsicológica do conceito, podendo ser utilizado para designar desde o devaneio até a participação nas produções da sintomatologia histérica. 3) Por último, sinaliza a relação íntima entre a Phantasie e o inconsciente como uma dos elementos integrantes da trama onírica (Gerbase, 1987).

Acerca do termo francês fantaisie, Gerbase observa que:

tem uso consagrado e dicionarizado como termo corrente, seja de uso comum ou mesmo literário e significa a imaginação, a produção da imaginação, a faculdade imaginativa, o poder de invenção de um artista ou de um escritor, etc. [...] De sorte que há acordo tácito entre os psicanalistas de língua francesa quanto à consagração do termo fantasme para traduzir a Phantasie freudiana (Gerbase, 1987, p.46).

Afirma a existência de uma "equivalência quase perfeita" entre os termos fantasia em português e Phantasie em alemão. Para ambos os termos, podem ser aplicados aos sentidos de criação artística e imaginativa. Acepções que contrastam com a significação do termo fantasma em português, que como vimos, possui ligação com o sobrenatural. sentidos exatamente equivalentes ao termo francês fantôme, e ao termo alemão Geist" (Gerbase, 1987, p.46).

A segunda via argumentativa apresentada pelo texto é conceitual. Tomando a descoberta freudiana da fantasia através da clínica da histeria, Gerbase apresenta quatro conclusões a partir de sua leitura de Freud:

Primeira conclusão: fantasia tem, para Freud, função de causa não apenas dos sintomas, como também da idealização e da depreciação do objeto sexual.

Segunda conclusão: a fantasia, embora implique um gozo, tem uma dimensão imaginária [...].

Terceira conclusão: Freud passa da contingência do trauma de sedução à fantasia imaginária de sedução [...]. A fantasia é, então, elevada à condição de defesa do eu, eficácia do sujeito.

Quarta conclusão: Além da fantasia particular, há a noção de fantasia universal - sedução, cena primária, castraçao [...]. A fantasia esta agora articulada ao complexo de Édipo, que emprestará seu cenário à relação da fantasia com o real (Gerbase, 1987, p.48).

Para Gerbase, a fantasia em Lacan lida através de sua escrita lógica ($♢a) é organizada da seguinte forma:

Lacan pretende estabelecer a relação porventura existente entre a estrutura da fantasia e a estrutura do significante. Nessa fórmula, $ representa, ocupa o lugar do recalcado, há um elo e um objeto. Eles estão numa relação lógica, e a definição do objeto como valor lógico é o que afasta a fantasia do domínio do imaginário (Gerbase, 1987, p.49).

O autor conclui que se existe uma definição propriamente lacaniana de fantasia, essa definição estaria relacionada à importância do registor do Real no seu ensino:

[...] De modo que, feito este percurso do ponto de vista conceitual, podemos dizer que há equivalência perfeita entre a Phantasie de Freud e o fantasme de Lacan, não havendo, portanto, qualquer razão conceitual para se propor uma nova nomenclatura para a fantasia (Gerbase, 1987, p.50).

Estamos de acordo com Gerbase em seus argumentos mas não em suas conclusões. Se o "fantasma" lança o fantasme no campo do sobrenatural, a tradução pela fantasia, embora preserve as raizes freudianas do conceito bem como a tradição psicanalítica francesa, contempla apenas o registro imaginário do termo.

Na versão castelhana do seminário Lógica do Fantasma (1966-1967/s-d), de Lacan, disponível em lacantera freudiana encontramos a posição de Ricardo Pontes (2008):

[...] 1) Em fantasma por fantasme, pretendemos fazer uma apresentação mais manifesta da indicação de Lacan de modo a distinguir aquela da fantasia que se refere mais ao registro da imaginação e do imaginário, daquilo que, sob o nome de fantasma, refere-se mais especificamente à lógica e estrutura; 2) do mesmo modo, com esta opção pretendemos sublinhar, de passagem, o que entendemos como a distância entre a fantasia freudiana e o fantasma lacaniano, na medida em que esta implica em sua própria estrutura o que, por ser uma "invenção" de Lacan não poderia estar em Freud: o objeto a minúsculo, definido neste mesmo seminário como "valor lógico", pelo qual "determinar seu status" consistirá em produzir "a lógica fantasma" (outro ponto em que "Freud não era lacaniano"... nem poderia ser) (Ponte, 2008, p.18-19 de PDF).(4)

Fonseca (2014), justifica a tradução de fantasme por fantasma através do argumento construído através das discussões feitas no Cartel Franco Brésilien de Psychanalyse no período de 2010 e 2011. A primeira observação feita por Fonseca é que:

[...] aqueles que optaram por fantasia, fizeram-lo alegando fidelidade ao termo freudiano. Em contrapartida, aqueles que optaram pela utilização do termo fantasma alegaram que, embora em seu texto Uma criança é espancada Freud situe o que é inconsciente na Phantasie - o que justificaria o uso do termo fantasia em português-, nas acepções pós-freudianas este termo mostrara-se sobrecarregado da ideia de imaginação e devaneio' e, em decorrência disso, preferem o uso do termo fantasma. Buscaram, por conseguinte, estabelecer uma diferenciação, procurando evitar ambas as acepções, de imaginação e devaneio, provenientes das elaborações pós-freudianas. Cabia-lhes, todavia, ainda, tentar subtrair deste termo as significações mais comuns, de visão apavorante e assombração" (Fonseca, 2014, p.4).

O cartel pode constatar, assim como nós, um movimento produzido pelos analistas implicados no problema de introduzir um caráter diferencial do fantasme em Lacan na medida em que ele distancia o fantasme de sua leitura excessivamente imaginária.

 

Considerações finais

Claudia Berliner (2013), desde o lugar de psicanalista e tradutora, pergunta se o tradutor deve ser fiel à língua de partida ou à língua de chegada. Considerando o crivo histórico e político, é preciso ser fiel à língua do leitor. Sem usar a expressão intraduzível, ela faz, no entanto, uma aproximação pertinente quando observa que "o tradutor faz uma leitura particular, ele lê em função do texto por vir e cria, assim, um indizível na língua de partida" (Berliner, 2013, p. 26).

Assim, a tradução de fantasme por fantasma criaria um indizível na língua de partida, a língua francesa. Gera, no entanto, um mal-entendido na língua de chegada. O fantasme, portanto, apresenta-se como um "intraduzível", um "sintoma de diferença" como fala Cassin. Nas palavras da autora:

O intraduzível é antes o que se não cessa de (não) traduzir. Mas isso assinala que a sua tradução, em uma língua ou outra, causa problema, a ponto de suscitar às vezes um neologismo ou a imposição de um novo sentido para uma velha palavra (Cassin, 2018, p. 17).

O fantasme, do ponto de vista da tradução, é, portanto, um intraduzível, mas, do ponto de vista da transmissão, o próprio Lacan nos ajuda com essa questão ao desenvolver para o fantasme um matema. O fantasme, definido a partir de Cassin como um "intraduzível" carrega consigo uma falha em sua universalidade (Santoro e Buarque, 2018, p.5), não podendo ser traduzido para um outro idioma por um único termo sem que uma perda significativa na precisão conceitual aconteça. Rejeitamos, portanto, no que diz respeito às traduções por "fantasma"ou "fantasia", a perspectiva que aponta para o erro. Não acreditamos serem elas equivocadas, apenas parciais. Nossa aposta é procurar sustentação na própria escolha metodológica feita por Lacan em relação à transmissão, e, no que toca ao conceito de fantasme, sua escritura pela via do matema ($♢a) mostra-se indispensável.

 

Referências

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Recebido em: 29/07/2020
Aprovado em: 19/03/2021

 

 

NOTAS

(1) "Fantasma en una especie de caballito de batalla para intentar establecer, a través de un léxico, distancias respecto a grupos y doctrinas no lacanianos" (SAMPSON, 1992, p.192).
(2) Utilizamos a referência ao texto em francês, fantasme.
(3) No original, Lacan usa étoffe em referência a uma metáfora utilizada pelos gramáticos franceses Damourette e Pichon para diferenciar entre o sujeito da oração e o sujeito concreto, o sujet étoffé, aquele de quem é possível falar.
(4) [...] 1) con fantasma por fantasme pretendemos hacer lugar, de un modo más manifiesto, a la indicación de Lacan en cuanto a distinguir aquello de la fantasía que remite más bien al registro de la imaginación y lo imaginario, de aquello que, bajo el nombre de fantasma, remite más específicamente a la lógica y a la estructura; 2) en el mismo sentido, con esta opción pretendemos subrayar, de paso, lo que entendemos como la distancia entre la Phantasie freudiana y el fantasme lacaniano, en cuanto que este último implica en su estructura misma lo que, por ser "invento" de Lacan, no podía estar en Freud: el objeto a minúscula, definido en este mismo Seminario como "valor lógico", por el cual "determinar su estatuto" consistirá en producir "la lógica del fantasma" (otro punto en el que "Freud no era lacaniano"... ni podía serlo).

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