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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versión On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.13 no.1 Rio de Janeiro ene./jun. 2021

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2021v1p.135 

RESENHA

 

A virada da teoria freudiana: quando o princípio de prazer é colocado em xeque

 

The turning point of Freud's Theorie: when the pleasure principle is in check

 

Le tournant de la théorie freudienne: quand le principe du plaisir est mis en cause

 

 

Marcia Soares da Silveira Werneck

Psicanalista. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicanálise (IP/UERJ). E-mail: marciawerneck@ymail.com

 

 

Resenha de Freud, Sigmund, Além do princípio de prazer [Jenseits des Lustprinzips]. Coleção: Obras Incompletas de Sigmund Freud. Edição bilíngue, comemorativa do centenário (1920-2020). Belo Horizonte. Editora Autêntica. 2020, 506 pgs.

 

 

A nova edição do ensaio freudiano Além do princípio do prazer [Jenseits des Lustprinzips], pela editora Autêntica, é uma edição comemorativa do centenário dessa obra. Esta edição permite ao leitor a visualização das principais modificações entre as versões manuscrita, datilografada e impressas, empregando variantes textuais para preservar ao máximo a escrita original do texto. A edição ainda conta com a participação de psicanalistas e professores que adicionam valiosas contribuições, como textos que dizem respeito às fontes psicanalíticas, filosóficas, científicas e literárias a que Freud se refere no APP, proporcionando ao leitor uma maior compreensão. Dessas contribuições, podem-se destacar duas de grande relevância: o prefácio (de Gilson Iannini e Luis Eduardo Prado) e o posfácio (de Marco Antonio Coutinho Jorge). O prefácio, escrito por Gilson Iannini, professor de psicologia na UFMG, em filosofia, mestre em Psicanálise e Editor e idealizador da coleção Obras Incompletas de Sigmund Freud e Luis Eduardo Prado de Oliveira, psicanalista e professor emérito de Paris-7, pontua aspectos fundamentais do percurso de Freud ao introduzir o conceito de pulsão de morte, destacando a importância e a relevância do APP, para o conjunto da teoria psicanalítica. No posfácio: Incidências clínicas: "O terceiro passo de Freud" de Marco Antonio Coutinho Jorge, psicanalista, psiquiatra, professor e pesquisador do Programa de pós-graduação em Psicanálise da UERJ e fundador e diretor do Corpo Freudiano do RJ, o autor estabelece três passos fundamentais na teoria freudiana. O primeiro passo consiste na descoberta da importância da sexualidade na etiologia da neurose, o segundo, na descoberta do narcisismo e o terceiro, na hipótese da pulsão de morte. Coutinho Jorge faz uma abordagem clínica do APP, ao indicar o conceito de pulsão de morte como um elemento fundamental da passagem de uma concepção simbólica inconsciente para uma concepção real inconsciente. Através de uma breve travessia pela teoria psicanalítica, o autor do posfácio, mostra ao leitor o que conduziu Freud ao conceito de pulsão de morte, citando textos anteriores ao APP que já assinalavam a reviravolta que viria posteriormente, como: Introdução ao narcisismo de 1914, Luto e melancolia de 1917, Bate-se numa criança de 1919 e Unheimich, O infamiliar, também de 1919. O texto de 1914, sobre o narcisismo tem uma importância destacada no posfácio. Coutinho Jorge sublinha que nesse texto, o criador da psicanálise revoluciona suas teses anteriores ao rever a teoria do Eu a partir dos estudos sobre o narcisismo, abalando, dessa forma, o primeiro dualismo pulsional já estabelecido, com efeitos fundamentais para toda a teoria.

Além do princípio de prazer, foi escrito em 1919 e publicado pela primeira vez em 1920, sendo considerado o turning point da teoria psicanalítica, como é ressaltado no prefácio, ou seja, a partir da concepção do conceito de pulsão de morte Freud revoluciona sua teoria ao colocar em pauta a revisão de um dos mais fundamentais postulados de seu pensamento, o princípio de prazer. Para a psicanálise, o ensaio de 1920 é um marco no que diz respeito à concepção do que podemos chamar segunda metapsicologia freudiana, que conduziu o autor a produzir, três anos depois, em 1923, sua segunda tópica, onde apresenta o aparelho psíquico dividido em três instâncias distintas: Eu, Isso e Supereu.

A primeira tópica foi apresentada por Freud no sétimo capítulo de Die Traumdeutung, A interpretação dos Sonhos em 1900, onde o autor expõe uma representação do psiquismo dividido em sistemas com qualidades diferenciadas: o inconsciente, o consciente e o pré-consciente. Devemos lembrar que a segunda tópica não substitui a primeira, mas acrescenta, a esta, uma nova concepção do aparelho psíquico. Se, em 1900, Freud mostra particular interesse pela sua teoria do inconsciente, que se tornou um dos pilares da psicanálise, a teoria das pulsões viria, em seguida, como uma das mais vigorosas, sobre a sexualidade na concepção freudiana. Ao forjar o termo Trieb, pulsão, e introduzi-lo, pela primeira vez no seu livro Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), o autor descreve o que é da ordem da sexualidade humana, enfatizando que não se pode concebê-la dentro de uma esfera instintual, natural, porque, diferente do instinto, ela não está destinada à reprodução nem à manutenção da espécie. A pulsão é uma força constante, uma Konstant Kraft, sem um objeto determinado. Dessa forma, portanto, o objeto, que a pulsão apenas contorna, não é seu alvo, mas sim um elemento contingente que viabiliza o circuito pulsional. O alvo, Ziel, de uma pulsão é sua própria satisfação que será sempre parcial. Freud concebe a teoria pulsional dentro de uma perspectiva econômica e dinâmica. A perspectiva dinâmica é a que diz respeito ao conflito, e esse é o conflito mais basal para Freud, o que se encontra no interior da esfera pulsional. Dessa forma, o psicanalista estabelece um primeiro dualismo, que consiste no conflito entre duas classes de pulsão: as pulsões sexuais por um lado e as pulsões do eu ou de autoconservação de outro. Esse dualismo é apresentado, pelo autor. Somente em 1910, em seu artigo A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão. Freud se serve desse primeiro dualismo por mais de uma década, só o modificando em 1920, no seu texto APP, quando concebe uma nova dimensão da pulsão, a pulsão de morte.

O APP é um divisor de águas na teoria e na clínica analítica. A partir das observações de Freud sobre determinados fenômenos psíquicos que fogem ao princípio que antes acreditava ser hegemônico ao funcionamento psíquico - o princípio de prazer-desprazer -, o psicanalista vê-se obrigado a reformular seu pensamento. A compulsão à repetição, os sonhos traumáticos e as brincadeiras infantis, são fenômenos, observados por Freud, que evidenciam que experiências psíquicas não prazerosas insistem em repetir-se. O jogo do fort-da, apresentado pelo criador da psicanálise no APP, se tornou paradigmático no que diz respeito ao fenômeno da repetição do que é da ordem do desprazer. Ao observar seu netinho numa brincadeira, que consistia na repetição de duas atividades opostas, em que a criança de seu berço atirava sob o cortinado um carretel, exclamando o-o-o, e depois o puxava para si, emitindo o som daaaaa, Freud associou os sons o-o-o a fort (para longe) e daaaa a da (chegou), constatando que, nessa brincadeira, a criança passava do lugar passivo para ativo em relação à ausência e presença da mãe, não só nas ações de lançar o carretel e puxar para si, mas, sobretudo, na emissão dos sons, correspondentes a significantes, que indicam a emergência de um sujeito a operar no simbólico. O jogo do fort-da é sublinhado por Coutinho Jorge, em seu posfácio, como a entrada em ação do simbólico, no qual o objeto se torna secundário, e o real se torna a realidade psíquica a partir do momento em que a realidade humana passa a ser ordenada pelo simbólico.

Assim, a partir do APP, Freud apresenta o que chamou de seu segundo dualismo, onde, o conflito passa a ser entre pulsões de vida (que englobavam as pulsões sexuais e pulsões de autoconservação ou pulsões do Eu) e pulsões de morte, Eros e Tânatos. A pulsão de morte em Freud passa a ser a essência de toda a pulsão, a partir do momento em que toda a pulsão tem o caráter conservador, ou seja, de sempre tender a retornar a um estado anterior. E nessa suposição, do caráter conservador de toda pulsão, a pulsão de morte para Freud, na sua radicalidade, está vetorizada para o estado inorgânico.

Apesar de a pulsão de morte só ter sido introduzida como conceito na teoria psicanalítica no APP em 1920, retomando o que Coutinho Jorge ressalta, essa dimensão pulsional já se anunciava em textos anteriores. Assim, encontramos em Bate-se numa criança a questão do sadismo e do masoquismo presente na fantasia e a compulsão a repetição já descrita no Infamiliar, textos em que "Freud conduz o leitor a se deparar com aquilo que constitui o núcleo mesmo do recalcado" (p.483). Mas, um ponto que foi decisivo na modificação do primeiro dualismo para o segundo dualismo pulsional, como citado anteriormente, foi o estudo freudiano sobre o narcisismo, em seu texto de 1914, Introdução ao narcisismo, em que Freud conclui que o Eu, assim como qualquer objeto externo, também é investido libidinalmente, estabelecendo duas dimensões da libido: a libido objetal e a libido narcísica. Desse modo, a oposição pulsional que vigorava entre pulsões do Eu e pulsões sexuais se torna inapropriada, ideia que ele retoma no APP.

Essa libido narcísica era também naturalmente a manifestação da força das pulsões sexuais no sentido analítico, a qual precisava ser identificada com as "pulsões de autoconservação", admitidas desde o começo. Com isso, a oposição original entre pulsões do Eu e pulsões sexuais tornou-se insuficiente (p.173).

Fundamental também para a sustentação da ideia de pulsão de morte é a teoria freudiana sobre o masoquismo. Se, inicialmente, Freud supunha um sadismo originário do qual um masoquismo se constituiria como resultado de uma reversão pulsional, onde a pulsão destrutiva dirigida ao mundo externo retornaria ao Eu, no capítulo VII do APP, essa ideia se modifica com a suposição de um masoquismo primário, onde o retorno da pulsão contra o próprio Eu na realidade é a volta dessa pulsão a uma fase anterior, concluindo que se trata de uma regressão. Em um ponto, a exposição que fizemos na época sobre o masoquismo precisaria ser corrigida naquilo que ela tem de demasiado exclusiva; o masoquismo poderia também, o que lá eu queria contestar, ser um masoquismo primário (p.181).

O autor retoma a essa concepção sobre o masoquismo, em 1924, em seu artigo O problema econômico do masoquismo, com reflexões mais profundas, reafirmando a existência de um masoquismo primário como estrutural na organização libidinal subjetiva, que estaria em fusão com a pulsão de morte. A ideia, portanto, do fusionamento pulsional, em que as duas classes de pulsão, pulsões de vida e pulsão de morte, estariam sempre amalgamadas, já aparece no APP e é reafirmada em 1924.

Estes, portanto, são alguns dos pontos que tornam Além do princípio de prazer um texto fundamental. Dividido em sete capítulos, o APP é um marco de extrema importância na construção da teoria psicanalítica. A presente edição brinda-nos com uma primeira edição bilíngue, português/alemão, apresentando seis variantes do texto, incluindo os manuscritos, proporcionando ao leitor uma leitura rica e fascinante.

 

 

Recebido em: 22/04/2021
Aprovado em: 20/05/2021

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