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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.13 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2021

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2021v1p.139 

ARTES

 

A vingança da arte (Comentário sobre o ato 2 de "O anjo negro")

 

The payback of art (Remark on act 2 from "The black angel")

 

La revanche de l'art (Remarque sur l'acte 2 de "L'ange noir")

 

Vera Pollo

Psicanalista. Professora do Programa de Pós-graduação stricto sensu em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida e da Especialização em Psicologia Clínica da PUC-RJ. E-mail: verapollo8@gmail.com

 

 


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A arte vence a necropolítica, o espetáculo tem lugar. Um compósito de cenas gravadas previamente e de outras, que acontecem no momento da apresentação da peça, resulta numa mistura de teatro e cinema no interior de uma tela de plataforma digital. Encontrei-me diante do que chamarei de jogos verdadeiramente surpreendentes, para os quais talvez exista um termo técnico específico, mas que descrevo como posso: colam-se as imagens de dois ou mais atores, situados em lugares geograficamente distantes; eles, contudo, dialogam, atuam e contracenam, como se estivessem em um único e mesmo palco. Coisas do diabo? Não, recursos midiáticos digitais, milagres da internet (1).

Escrita em 1947, o "Anjo negro" é a quarta peça de Nelson Rodrigues, cuja obra, traduzida em vários idiomas mundo afora, é denominada "tragédia carioca", mas também "tragédia suburbana" ou "tragédia do cotidiano". Ao ser indagado, entretanto, sobre o gênero em que a classificaria, ele decidiu chamá-la de "teatro do desagradável". Em uma das inúmeras entrevistas que concedeu nos últimos anos de vida, Nelson chegou a dizer que preferia as vaias aos aplausos, porque "o único êxito do teatro é a vaia". Vale lembrar aqui que ele também é o autor da frase que repetimos com certa frequência: "toda unanimidade é burra".

Nas palavras do biógrafo Ruy Castro, nenhum outro escritor brasileiro foi tão polêmico em seu tempo. E, quanto ao título dado ao livro biográfico, "O anjo pornográfico", Castro nos relata ser de autoria do próprio Nelson Rodrigues, o qual também observa que só começou a incluir palavrões em suas peças a pedido de algumas senhoras. O "Anjo negro" é anterior.

Sua segunda peça, "O vestido de noiva", é até hoje considerada um divisor de águas na história do teatro brasileiro, por apresentar simultaneamente uma mesma cena em três planos diferentes: realidade, alucinação e memória. A terceira peça, "Álbum de família", ficou censurada durante aproximadamente vinte anos, fato que nos remete à fatídica votação pelo Congresso brasileiro do golpe jurídico-midiático de 2016, que depôs uma presidente legitimamente eleita. Inúmeros congressistas proclamaram seu voto anticonstitucional "em nome da família".

Considero que haja pelo menos três entradas possíveis para uma leitura psicanalítica de alguns aspectos da peça. A primeira, assinalada por Antonio Quinet no texto do programa, é a possibilidade de a personagem Virgínia ser chamada de "Medeia brasileira", uma vez que seu ato corresponde ao que Lacan (1958/1998) classifica como "ato de verdadeira mulher" em seu lindo texto "Juventude de Gide ou a letra e o desejo". É o ato de desprender-se de todos os atributos fálicos imaginários - os filhos-falos - com uma visada muito específica: atingir o mais íntimo do ser do homem, o âmago daquele que a traiu. A peça nos informa que Ismael/Jasão havia estuprado Virgínia, com consentimento da tia desta.

O filicídio cometido por Virgínia é análogo ao filicídio de Medeia e, segundo Lacan, análogo também ao ato de Madeleine, ao destruir as cartas/filhos que Gide lhe havia escrito. As mais belas cartas de amor, jamais escritas! Quanto ao ato de Medeia, cito Lacan (1958/1998, p.773): "Pobre Jasão, que tendo partido para a conquista do tosão dourado da felicidade, não reconhece Medeia!". E parafraseio: "Pobre Ismael, que tendo partido para a conquista da branquitude da felicidade, não reconhece Virgínia!"

O "Anjo negro" é claramente uma denúncia do racismo estrutural, em seus mínimos detalhes, pois não demonstra apenas o racismo da mulher branca que só aceita filhos brancos. Ainda mais cruel é a demonstração de que Ismael, um homem preto, é cúmplice do assassinato de seus filhos pretos, pelo simples fato de que assim o são. Ismael, assim como Virgínia, só poderiam aceitar os filhos de "pele macia e lábios finos". O ideal do eu, tal como Lacan (1998, p. 763-4) relê em Freud, é "a adoção da imagem do Outro", que possui os meios para gozar do desejo a que se teve de renunciar.

O homem das 125 entrevistas deixou bem claro que não se identificava com algumas de suas criações literárias: "personagens minhas não pensam como eu e eu não penso como elas". A nosso ver, essa afirmação reforça bem a hipótese de um texto-denúncia. Ainda em suas palavras, "o ser humano é o único que se falsifica. Um sapo nasce, vive e morre como um sapo. Um tigre há de ser eternamente um tigre. Um leão há de preservar, até morrer, seu nobilíssimo rugido. Nunca vi um marreco que virasse outra coisa. Mas o ser humano pode, sim, desumanizar-se. Ele se falsifica e, ao mesmo tempo, falsifica o mundo. O ser humano, tal como o imaginamos, não existe".

Em uma segunda entrada, de leitura psicanalítica, poderíamos destacar a paranoia de ciúmes dos personagens masculinos, que edificam muros e escondem chaves, não tanto para prender a mulher que ali se encontra, mas para se protegerem dos outros homens imaginários que ali desejariam estar. O enunciado "prefiro vê-la morta a vê-la nos braços de outro homem" é, pois, máscara mal cozida de um desejo homossexual inaceitável. Por fim, uma terceira via de leitura nos transporta de Nelson Rodrigues a Jean-Martin Charcot, o fotógrafo das "grandes histerias", já que ambos sabem o que somente Freud escreveu com todas as letras: há bissexualidade nas fantasias histéricas, ou seja, em um só corpo há duas modalidades antagônicas de gozo, culturalmente chamadas de "gozo masculino" e "gozo feminino".

Podemos interrogar quem é afinal este autor que afirma que as mulheres ou são frias ou mordem, e que chegou mesmo a dizer que "toda mulher gosta de apanhar". Dir-lhe-emos, com Lacan, que "toda mulher" é conceito que não existe! Acolheremos, porém, o seu testemunho de alguém que "chorou até a última lágrima" e conheceu o "grito da morte", ainda mais agudo que o da dor, quando presenciou a morte do irmão mais novo, assassinado por uma mulher "de voz muito doce".

Em sua última transmissão ao vivo de 2020, intitulada "Adeus família", Gregório Duvivier lembrou que "família" deriva etimologicamente de famulus, que significa "servo", e remontaria ao conjunto de servos e/ou escravos. Em seguida, homenageou o jurista Sílvio Almeida e citou uma pesquisa recentemente divulgada pela Universidade de São Paulo, cujo tema foi o estudo genético longitudinal do DNA de mulheres e homens brasileiros. Não há mais dúvida: somos todos filhas e filhos de índias e negras estupradas, em alguma geração, por homens brancos. Esta é, então, a nossa mais verdadeira ascendência: mulheres estupradas. Somos Virgínia, Nelson o sabia.

 

 

NOTAS

(1) Tento, aqui, descrever o trabalho a que assisti no dia em que fui convidada a debater o segundo ato de "O anjo negro", intitulado "A vingança", dirigido e apresentado por Antonio Quinet.

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