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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.13 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2021

http://dx.doi.org/10.18379/2176-4891.2021v2p.103 

ARTIGOS LIVRES

 

Travestismo e feminilidade*

 

Transvestism and feminility

 

Travestismo y feminidad

 

 

Christiana Paiva de OliveiraI; Manoel Tosta BerlinckII

IPsicóloga. Mestranda do Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica da Faculdade de Ciências Humanas e Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Pesquisadora colaboradora na Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental (AUPPF); E-mail: chhriiss@hotmail.com
II(† 2016). Psicanalista. Ph.D. Cornell University, Ithaca, N.Y. USA. Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental (AUPPF). E-mail: mtberlin@uol.com.br

 

 


RESUMO

O artigo nasce do encontro entre clínico e paciente, movido por pathos. Pathos diz a respeito do sujeito, mas de maneira enigmática, pois remete às paixões que o tomam e fazem sofrer. Aurélio, paciente em questão, lança um enigma ligado à sua mãe idealizada e a vontade de se travestir, impedida por si próprio. As constantes negações com relação a tudo e todos ao seu redor frisavam um conflito permanente. Ademais, Aurélio adorava cortar minhas falas, tornando-se impenetrável. Então, pergunta-se: como o feminino se articula ao travestismo do paciente apaixonado pelas mulheres?

Palavras-chave: NEGAÇÃO; CASTRAÇÃO; TRAVESTISMO; FEMINILIDADE.


ABSTRACT

This article is born of an encounter between clinician and patient, moved by the pathos. Pathos talks about the individual, but in such an enigmatic way, since it refers to the passions that take him and make suffer. Aurelio, the patient in question, cast a puzzle attached to his idealized mother and the desire to crossdress, negated by himself. The constant denials, regarding everything and everyone around him, reveals a permanent conflict. Furthermore, Aurelio seemed to really enjoy cutting off my lines, thus making himself impenetrable. Therefore, it is left to wonder how the female is structured around the transvestism of a patient who is infatuated by women?

Keywords: DENIAL; CASTRATION; TRAVESTISM; FEMINILITY.


RESUMEN

El artículo nace del encuentro entre clínico y paciente, movido por el pathos. Pathos dice sobre la persona, pero de manera enigmática, ya que se refiere a las pasiones que hacen sufrir. Aurélio, el paciente, arroja um enigma de se travestir vinculado a su madre idealizada, obstaculizado por él. Las constantes negaciones sobre todo y todos a su alrededor destacaban um conflito permanente. Además, Aurélio cortaba mis palabras, volviéndose impenetrable. Entonces, la pregunta es: ¿como se articula lo feminino com el travestismo del paciente enamorado de las mujeres?

Palavras clave: NEGACIÓN; CASTRACIÓN; TRAVESTISMO; FEMINIDAD.


 

 

Introdução

Nos dias 24 e 25 de outubro de 2015, no Brasil, foi aplicado o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) a fim de avaliar os alunos secundaristas de todo o país. Através do resultado de tal exame, é possível concorrer a vagas em universidades públicas ou mesmo a bolsas em universidades privadas. A referida prova foi realizada em dois dias e, logo no primeiro, uma das questões gerou intensa discussão. Alguns grupos, com base nela, chegaram a afirmar que a prova se tratava de uma doutrinação de ideologia de gênero, ligada ao feminismo1.

O enunciado da pergunta destacava a filósofa Simone de Beauvoir (1960) e sua afirmação de que "Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam o feminino". Com isso, há de se refletir sobre aquilo a que tal passagem remete, já que ocorreram diversas polêmicas a partir da proposição feita. Onze anos depois de a frase ser dita, em 1971, Lacan propõe seu famoso aforismo "A mulher não existe". Diante das assertividades destacadas, como podemos pensar a construção da mulher levando em conta a questão da feminilidade no travestismo?

É importante ressaltar que o tema parte da pesquisa de mestrado, em andamento desde o início de 2014. A proposta surgiu a partir do relato de um caso clínico escolhido pela autora, levando em conta o método clínico em seu contexto, ligado a psicopatologia fundamental. Tal método inclui transformar as vivências do clínico em experiência socialmente compartilhada, segundo Magtaz e Berlinck (2012). A partir da escrita e das reflexões possibilitadas através desse meio, o clínico pode pensar a singularidade envolvida no caso com apoio da teoria, a fim de elaborar o que experienciou, enriquecendo, assim, o mundo clínico. É importante ressaltar que não é a teoria que leva à escolha do caso, mas sim, o não saber sobre o caso, motivado por um enigma que tomou o clínico, movendo-o em direção à pesquisa. A Psicopatologia Fundamental, por sua vez, considera a subjetividade em seu cerne, voltando seu olhar para pathos, que remete ao afeto, paixão e passividade que invadem o ser humano. Em outras palavras, o presente trabalho inclina-se a adentrar as particularidades do paciente em questão, no intuito de falar sobre seu pathos desnorteante e, ao mesmo tempo, constituinte.

 

Breve relato - O que Aurélio nos conta?

Aurélio, cerca de 50 anos de idade, foi atendido em uma ONG destinada a receber a população LGBT, pedindo ajuda para conseguir cuidar da sua mãe doente, fato que lhe deixava muito angustiado já há alguns anos. A mãe, após três AVCs, encontrava-se acamada; não andava, mal falava e necessitava de ajuda para realizar todos os seus cuidados básicos. Diante de tal quadro, Aurélio afastou-se de amigos, familiares e trabalho para dedicar-se à UTI domiciliar que construiu em seu apartamento, onde morava sozinho com a mãe. Ali, o paciente banhava, trocava, alimentava a mãe, além de ocupar o lugar dos demais profissionais da saúde que frequentavam o local, mas se viam impedidos de cuidar da idosa, já que Aurélio dizia que apenas ele sabia como fazer isso. Em sua visão, a mãe era perfeita, tudo para ele, assim como ele era tudo para ela.

Durante os atendimentos, destacava-se a dificuldade de me colocar diante de Aurélio, que, além de ser verborrágico, negava minhas falas. Tal ação se dava desde o excesso de negação no início de suas frases, sem que eu nem ao menos tivesse terminado as minhas, chegando ao questionamento excessivo das palavras que eu usava nas tentativas de dialogar. Aurélio cortava-me, permanecendo apenas em seu monólogo e, com esse mecanismo, havia o contorno (ou negação) de sua angústia.

Aurélio falava compulsivamente da mãe e do modo como cuidava dela. Tal excesso revelava, no entanto, a dificuldade que o paciente tinha em vê-la de fato. Em um dos atendimentos, reclamou que havia engordado, mas que logo resolveria seu problema: era só dar alguns banhos a mais na mãe, que ele emagreceria com o exercício. Ademais, acrescentou ter sempre preferido ser atendido por mulheres, que estas são incríveis e superiores, pois se o mundo fosse governado por elas, não haveria guerras. Mesmo exaltando tanto esse grupo, é importante observar que se vestia com trajes bem masculinos e não possuía traços afeminados. O que essa figura fazia na ONG?

Após alguns encontros, em um breve momento, o paciente afirmou sentir atração por travestis, inclusive gostaria de ser travestir, mas que isso seria inviável no momento, pois a mãe viria a falecer com o impacto de tamanha notícia. Chegou a dizer que não enxerga sua preferência como uma doença, mas a possibilidade de perder a mãe o jogava num vazio sem fim.

 

Problematização

Com base no recorte realizado, muito foi questionado e mobilizado na analista, como por exemplo: porque Aurélio continuava indo àquele espaço se mal ouvia as minhas palavras e, quando o fazia, as negava constantemente? A negação diz respeito ao paciente e como ele se relaciona com o mundo, mas o que isso queria dizer naquele contexto? O que estava presente e precisava ser encoberto? Além disso, como todos esses aspectos se relacionavam com a mãe? O paciente exaltava a figura feminina, com destaque à mãe, que ficava idealizada em sua perfeição. Finalmente, é possível levantar o enigma motivador da pesquisa: como a relação com a mãe se liga ao seu travestismo?

Ao longo do desenvolvimento da pesquisa, algumas hipóteses foram levantadas: seria uma necessidade de possuir o que ele não tem através do amor à mãe e, portanto, uma identificação com ela? Se a mãe é perfeita, é tudo o que ele tem, provavelmente ela é vista como fálica. Sendo assim, ao ter a mãe em si através do travestismo seria assumir essa figura fálica, que castra o outro através da negação? Enquanto o outro é negado, a postura do sujeito fica inquestionável; ele vira a Lei.

Vale lembrar que muito foi percorrido até esse caminho ser traçado. Desde o início, a relação que o paciente travou com a mãe era vista como enigmática. Muito foi pensado sobre uma relação simbiótica, na qual um não sobreviveria sem o outro. Após o levantamento bibliográfico sobre o tema, a questão do amor à mãe sobressaiu-se, trazendo consigo questões narcísicas e eróticas. Ainda sem um foco principal, a pesquisa afunilou-se para a questão do travestismo, que se liga à ONG onde os atendimentos eram realizados e o excesso de "mãe" na fala do paciente. Por fim, foi possível indagar de que modo o travestismo de Aurélio se liga à sua mãe. Com isso, o destaque que o paciente dava às mulheres também é levado em conta, sugerindo que o travestismo referir-se-ia a uma identificação com o feminino, sendo a mãe a figura primordial desse significante.

 

O que a negação revela sobre o si mesmo

Como a negação foi um dos pontos que mobilizou a analista, há de se refletir sobre tal aspecto. É importante destacar que se algo é negado, então outra imagem ou realidade é criada e posta em seu lugar. A negação demarca o conhecimento escanteado, no intuito de proteger o sujeito do encontro consigo mesmo e, consequentemente, com sua angústia.

O mito de Narciso revela a história de um jovem apaixonado por si, que ao se deparar com a própria imagem no reflexo do lago, definha, já que todo o entorno é excluído de sua visão. Cabe ressaltar que o reflexo é um espelho da realidade, no entanto não condiz com ela. Só é visto o que quer ser visto pelo observador e, nesse caso, destaca-se o valorizado pelo paciente, isto é, a mãe idealizada, que vinha com um contraponto fundamental nesse enredo: a doença. Doença essa que a castra, como insistência desse terceiro constantemente negado nas falas do paciente e, por isso, sempre presente. É como se Aurélio cortasse tudo o que retira ele-mãe da posição de completude, insistentemente defendida pelo paciente.

Por essa perspectiva, o paciente insistia em negar minhas aparições: qualquer menção à fala, ou até mesmo expressões faciais o faziam negar um possível conteúdo, que ficava imerso frente sua negação constante. Era comum o paciente iniciar uma frase dizendo, logo após uma tentativa minha de fala "Não, não, não..." (sic). Então, pergunta-se: o que temos com essa insistência?

Se recordarmos os escritos de Freud (1925) em "A negativa", observamos que, diversas vezes, no ato de negação do paciente, encontramos conteúdos que o analisando não está inclinado a considerar em sua associação. A negativa é um modo de acessar o reprimido, através de uma breve suspensão da repressão, mas sem a sua aceitação. Temos que "Assim, o conteúdo de uma imagem ou ideia reprimida pode abrir caminho até a consciência, com a condição de que seja negado" (FREUD, 1925. p.265). Em seguida, o autor sugere que desprezemos a negação e que possamos voltar ao tema geral da associação feita. Os conteúdos trazidos devem ser considerados, no entanto, durante o processo da análise. O negado está sempre presente, mas é sempre contornado diante da fragilidade do ego.

Após negar, o paciente iniciava uma explicação repleta de racionalizações, tendendo para um lado mais intelectual e preciso, ou então entrava numa repetição ilimitada, preenchida pelos cuidados direcionados à mãe. Havia, então, uma intelectualização do que estava reprimido em detrimento ao aspecto afetivo da questão trazida, livrando a consciência do peso do material em pauta. Freud (1925) afirma "Negar algo em um julgamento é, no fundo, dizer: 'Isto é algo que eu preferia reprimir'. Um juízo negativo é o substituto intelectual da repressão" (p. 266). Observa-se, contudo, que aceitar o intelectual do reprimido não resulta na remoção do conflituoso que envolve a questão.

Sendo assim, o que tanto insistia em ficar negado? A qual outra imagem nos referimos, quando levantamos essa possibilidade? Freud (1925) traz-nos um importante apontamento sobre as representações do ego, que ajuda a adentrar a reflexão feita anteriormente:

A experiência demonstrou ao indivíduo que não só é importante uma coisa (um objeto de satisfação para ele) possuir atributo 'bom', assim merecendo ser integrada ao seu ego, mas também que ela esteja no mundo externo, de modo a que ele possa se apossar dela sempre que dela necessitar. A fim de entender esse passo à frente, temos de relembrar que todas as representações se originam de percepções e são repetições dessas" (FREUD, 1925. p. 267).

Ademais, temos de considerar a importância do lugar narcísico nesse enredo. Se a negação ocorre, estamos diante da proteção do ego, que identificou uma possível ameaça.

 

Passagens edípicas

Aqui, é impossível não recordar as impressões freudianas sobre o Complexo de Édipo e o Complexo de Castração, já que ambos apontam para a problemática da diferença e demarcam as identificações. Em um breve recorte, podemos lembrar que, em 1923, Freud explora o desenvolvimento sexual infantil, no qual a criança interessa-se maciçamente pelos órgãos genitais e pelo desempenho de suas atividades. Diferentemente dos adultos, no entanto, a problemática infantil circunda o órgão genital masculino, com cuja ausência se deparam as meninas e com cuja presença, os meninos. Desse modo, a primazia do falo marca essa fase.

 

 

Assim que ocorre o primeiro encontro com a diferença anatômica, a reação dos meninos, por exemplo, é rejeitar o fato e acreditar que, em breve, o pênis da menina irá crescer. Com o passar do tempo, creem que o pênis, antes presente na menina, fora retirado. Em outras palavras, existe o perigo da castração para os meninos, e a efetividade dessa prática nas meninas. Tal evento advém como um símbolo do horror, que recupera e ressignifica as outras perdas tidas ao longo da vida. O encontro com a ausência do pênis na figura feminina é visto como a perda de órgãos genitais de uma pessoa desprezível. Essa crença é sustentada pelo fato de que o perigo da castração é eminente a todos e não exclusivo das mulheres. Como destaque, o autor aponta que mulheres respeitadas, como a mãe, retém o pênis por mais tempo no imaginário da criança, mantendo sua potência e plenitude intactas.

Com isso, podemos pensar na produção de Aurélio, que diante do diferente, sua alternativa era negá-lo como forma de proteger-se. Freud (1927) encampa sua teoria relativa ao fetichismo, ao afirmar que vem como substituto de um pênis que fora muito importante na infância e posteriormente se perdeu. O autor destaca, então, o processo de clivagem do ego, como mecanismo de defesa que reconhece a realidade, mas a recusa.

A hipótese de que Aurélio recusa a(s) castração(ões) da mãe acaba sendo realçada pelo autor, ao defender a ideia de que "o fetiche é um substituto do pênis da mulher (da mãe) em que o menininho outrora acreditou e que - por razões que nos são familiares - não deseja abandonar" (Freud, 1927. p.180). Logo, se a mãe é perfeita, ela não pode ser vista como faltante. Tal visão aparece desde a negação de sua doença até a crença de sua completa cura. Se a mãe perfeita, fálica, corre risco de ser castrada, o que acontecerá com ele, já que ela é seu ponto de referência? Com isso, deparamo-nos com a angústia de castração, explorada por Couto e Chaves (2009), em que esta "é o "limite intransponível" de suas análises. Ali onde o objeto falta, o sujeito quer saber, quer ser e quer ter". A necessidade de contornar a angústia faz recusar a realidade e consequentemente o outro, no intuito de preservar-se.

A partir daí, Aurélio passou por entraves em seu processo de castração, não o aceitando por completo na mãe, voltando-se a ela como possibilidade de identificação. Se a mãe é tudo e é perfeita, como ele sinalizava, há uma negação de sua condição, expressa também na repetição da negação em sua fala, como explorado anteriormente. Há, em outras palavras, uma incessante negação do outro em prol de sua proteção, sua integridade narcísica, marcada pela mãe. O travestismo consolidaria a problemática entre o ter e o ser, representando em si a figura fálica da mãe.

No mesmo embalo de recusar a realidade a partir de sua experiência com a castração, Aurélio expressava esse comportamento nas demais esferas de sua vida. Como detentor do saber, ele cortava o outro, não deixando o diferente advir, ou seja, eu era sempre cortada naquele espaço, no intuito de preservar sua existência. Ele sabia do meu papel ali, mas mesmo assim o recusava e preenchia os atendimentos com seu saber inesgotável, fálico - expressões que o protegiam da angústia de se deparar como ser faltante. O mesmo ocorria com os profissionais da saúde que visitavam a UTI domiciliar: todos ficavam impotentes diante da expressão dominante de Aurélio.

Na problemática da castração que envolve o paciente, seria possível pensar que ele corta o outro para não se deparar com essa angústia, que fica insistentemente negada? Após algum tempo de experiência clínica é possível afirmar que o outro tende a nos fazer sentir como ele se sente. Como a angústia diante do diferente era o furo negado pelo paciente, como um corte do qual ele se esquivava, ele infligia tal perspectiva a quem se diferenciasse dele. Aurélio cortava o outro como forma de aniquilar a diferença que o angustiava. Ao ser cortada, era quase impossível penetrá-lo; sentia-me impotente.

 

Feminilidade

A saída do complexo de Édipo, marcada pelo abandono dos pais como objetos de amor, propicia que "As catexias de objeto são abandonadas e substituídas por identificações" (Freud, 1924. p.196). Para melhor adentrar no processo identificatório, há de se colocar em pauta a questão da feminilidade como substituto do falo frente à mulher castrada, como possibilidade de identificação no travestismo. Do mesmo modo que a negação remete a novas construções, a recusa da realidade abre espaço a que algo entre no lugar do recusado. Desse modo, Aurélio apropria-se da imagem da mulher, identificado com a mesma.

Segundo Laplanche e Pontalis (1970), a identificação remete a um "Processo psicológico pelo qual um indivíduo assimila um aspecto, uma propriedade, um atributo do outro e se transforma, total ou parcialmente, segundo o modelo dessa pessoa" (p. 295).

A palavra "travesti", segundo o Dicionário Online de Português, refere-se a alguém que se veste com roupas características do sexo oposto. De acordo com o mesmo dicionário, quem se traveste realiza uma transformação, ou seja, na identificação com o outro, há uma transformação de si mesmo, exaltada na expressão estética do travestismo e que revela, também, as implicações psíquicas presentes nesse modo de ser.

A organização genital infantil não prevê a feminilidade, apenas a castração e a masculinidade, decorrentes do falo. As características da feminilidade advêm somente com a puberdade e o desenvolvimento do corpo feminino, que se torna fonte de mudanças ao longo do tempo. Ao destacar a disposição bissexual dos indivíduos humanos, Freud (1925) ressalta que ambas as características (masculina e feminina) são combinadas entre si e que a especificação de cada uma delas permanece enigmática. Em outras palavras, o sujeito traz em si ambas as características. A sexualidade humana é, portanto, marcada pelas possibilidades que essa combinação pode oferecer, cujo usual binarismo ressaltado perde sua força.

 

 

Vemos que o feminino perpassa por uma construção social e subjetiva, incorporada por cada ser de modo singular. É isso que Beauvoir quer dizer quando afirma que ninguém nasce mulher, torna-se. As identificações advindas a partir das figuras parentais e o modo como tais relações se configuram na vida do sujeito o inclinam para suas construções. É nessa mesma perspectiva que Lacan (1971) aponta que "A mulher não existe". Em sua colocação, o autor busca explicitar que cada mulher não é unicamente dada, ela se faz. Enquanto no menino há a ideia do que possui, na menina fica o registro do que falta. Não há, pois, um representante - colocado como falo - que demarque o conjunto composto pelas mulheres, lançando-as a possibilidades mil.

É importante ressaltar que, no desenvolvimento dessa visão, não há apenas o masculino e o feminino, mas sim uma combinação entre ambos, que faz parte das movimentações humanas. Desse modo, a anatomia é a origem e não o destino. Aurélio deixa isso claro, quando lida com as diferenças, exaltando a importância do psiquismo e seu funcionamento diante do que o afeta, de seu pathos.

 

Considerações Finais

O ENEM não se preocupou em doutrinar os alunos, uma vez que a doutrinação se refere a uma prática meticulosa de propagar e inserir ideias em seus ouvintes (ou leitores), sem que as mesmas sejam questionadas, criticadas ou devidamente analisadas antes de sua aceitação. Nenhum jovem foi obrigado a seguir os preceitos de Beauvoir, mas sim de avaliar seus conceitos teóricos dentro do contexto de sua obra. A filósofa debruçava-se na construção do movimento feminista, empoderando a mulher sem que um lugar específico e engessado lhe dissesse respeito, apostando no potencial de sua construção no social e valorizando-a para além da opressão. Aurélio vangloriava as mulheres e as enxergava como superiores. Sua mãe era o exemplo primordial dessa construção, vista como perfeita. Por essa via, ele apontava o marcante lado feminino existindo em si, se travestindo. Seria ele, portanto, um feminista, enxergando a mulher para além do esperado na sociedade, valorizando-a?

A visão dos que defenderam a doutrinação do exame aproxima-se da perversão. A realidade é aqui recusada e sobreposta por algo que contorna a angústia do ter que lidar com a diferença proposta pelo tema. Tal acontecimento aponta para o quanto a sociedade ainda resiste em debater o tema da construção (ou desconstrução) de gênero e suas ramificações. Esse é outro aspecto a aprender com Aurélio, no intuito de conseguir enxergar o outro para além de nosso narcisismo. É sempre importante lembrar: a diferença leva ao preconceito, pois o que foge do espelho de Narciso o fere. Logo, justamente por reconhecer, ele elimina a distinção para não enxergá-la, no intuito de não ter que lidar com a mesma.

 

Referências

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Recebido em: 01/06/2021
Aprovado em: 14/08/2021

 

 

* O presente artigo faz parte da dissertação de mestrado da autora, intitulado "Travestismo e feminilidade", orientado pelo coautor, para obtenção do título de mestre em Psicologia Clínica pelo Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
1. http://g1.globo.com/educacao/enem/2015/noticia/2015/10/deputados-bolsonaro-e-feliciano-acusam-enem-de-doutrinacao.html

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