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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.14 no.spe Rio de Janeiro Apr. 2022

 

OS DISCURSOS E AS CAUSAS

 

Multidão de minorias - sobre a diferença entre massa, povo, multidão e devir-minoritário

 

Multitude of minorities - on the difference between mass, people, multitude and minority-change

 

Multitud de minorías - sobre la diferencia entre masa, pueblo, multitud y devenir minoritario

 

 

Auterives Maciel Jr.

Docente do Programa de Pós-graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade (UVA). Docente do Departamento de Psicologia (PUC-Rio). E-mail: auterivesmaciel@gmail.com

 

 


RESUMO

A partir das análises de Freud, o artigo trabalha as diferenças entre massa, povo, multidão e devir-minoritário; desenvolvendo uma crítica aos aspectos totalitários e fascistas encontráveis nos movimentos de massas. Começa localizando as identificações imaginárias de tais movimentos, para criticá-las com o conceito de multidão desenvolvido por Negri e Hardt. Trabalha o devir minoritário com Deleuze e Guattari, explicando-o como um ato revolucionário de uma minoria em fuga das organizações estatais. Investiga, na psicanálise, o sujeito singular e o devir judeu de Freud com Betty Fuks. Constrói, finalmente, a noção de multidão de minorias, colocando em conexão os autores acima.

Palavras-chave: MASSA; MULTIDÃO; DEVIR-MINORITÁRIO; DEVIR JUDEU; MULTIDÃO DE MINORIAS.


ABSTRACT

From the analysis of Freud, this article works the differences between mass, people, crowd and minority-change, developing a critic to the totalitarians and fascists aspects found in such movements. It starts finding the imaginary identifications inherent to the movements of the masses to then criticize them with the democratic concept of crowd developed by Negri and Hardt. It works the concept of minority-change with Deleuze and Guattari, explaining it as a revolutionary act of a minority in state of escape from the public organizations. It investigates, in the psychoanalysis, the singular subject and the Jewish change of Freud with Betty Fuks. It develops, finally, the notion of crowd of minorities, putting in connection the authors above.

Keywords: MASSES; CROWD; MINORITY-CHANGE; MINORITY-JEWISH; CROWD OF MINORITY.


RESUMEN

A partir de los análisis de Freud, el artículo trata de las diferencias entre la masa, el pueblo, la multitud y el devenir-minoría; desarrollando una crítica de los aspectos totalitarios y fascistas que se encuentran en los movimientos de masas. Comienza por ubicar las identificaciones imaginarias de tales movimientos, para criticarlos con el concepto de multitud desarrollado por Negri y Hardt. Trabaja el devenir minoritario con Deleuze y Guattari, explicándolo como un acto revolucionario de una minoría que huye de las organizaciones estatales. Investiga, en psicoanálisis, el sujeto singular y el devenir judío de Freud con Betty Fuks. Finalmente, construye la noción de multitud de minorías, poniendo en relación a los autores anteriores.

Palabras clave: PERSONAS; MULTITUD; CONVIRTIÉNDOSE; JUDIO; MULTITUD MINORITARIA.


 

 

Introdução

Neste artigo, trabalharemos aspectos da psicologia das massas de Freud, procurando extrair do texto algumas consequências sociopolíticas desta noção, para diferi-la dos conceitos de povo, multidão e devir minoritário. Neste caso, investigaremos, primeiramente, a noção de massa pela via das identificações dos seus membros com um líder; para darmos a esta noção uma inflexão política com o propósito de trabalhá-la na contemporaneidade. Em seguida, trabalharemos uma distinção entre povo, massa e multidão; para pensarmos em alternativas sociais e políticas de combate aos movimentos autoritários que se encontram não só nas rebeliões das massas como também na identidade nacional de um estado totalitário ou fascista, através do conceito político e democrático de multidão. Investigaremos a noção de devir-minoritário - como ato revolucionário de uma minoria -, para problematizarmos uma política nômade orquestrada contra os movimentos majoritários das massas e do povo submetido à identidade de um estado nação. Pesquisaremos também o sujeito singular e o devir-minoritário na clínica psicanalítica; para construirmos, finalmente, o complexo conceito de Multidão de Minorias, através dos intercessores que logo iremos apresentar.

 


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Sendo assim, os problemas que gostaríamos de apresentar, para entendermos a configuração do artigo, podem ser enunciados através das seguintes perguntas: será a rebelião da massa um movimento autoritário implementado por um líder com ambições políticas de poder? É possível inibir tal movimento por intermédio de uma política coletiva que faça frente aos fascismos que possam se alocar neste procedimento? Será que a melhor estratégia de combate à rebelião das massas é aquela orquestrada pelo estado nação, que busca a reunião dos indivíduos em torno do conceito nacionalista de povo? Ou a noção de multidão não seria um procedimento mais eficaz? Além disso, haveria ou não uma alternativa conduzida por um devir-minoritário, cuja explicitação nos conduziria à construção do conceito de multidão de minorias?

Para respondermos às perguntas iniciais, torna-se necessária uma compreensão preliminar do conceito de massa. Neste caso, define-se massa como um agrupamento libidinal de seres humanos reunidos por um fenômeno de identificação imaginária coletiva entre os seus membros e que se identificam, pela via da adoração, a um líder eleito pela sua capacidade de criar uma objetividade de conduta para os seus integrantes. O líder orienta a massa dando a ela um sentido, uma convicção e uma meta; enquanto os seus membros se comportam como seres de rebanho reunidos por fenômenos de identificação coletiva. Além disso, a movimentação da massa supõe que o líder construa o anseio de uma quantidade uniforme de indivíduos que lutam pela assunção de uma posição majoritária no campo social.

Ora, definindo a massa desta maneira, torna-se possível responder às questões iniciais, dizendo que os fenômenos de massas são orquestrados por seres humanos movidos pelo anseio de um líder em pleno exercício de poder, que orquestra o rebanho ao dar a este os valores indispensáveis para deflagrar uma possível rebelião. Nesta configuração, fenômenos de massas, os mais variados, ganham nomeações diversas que exemplificaremos ao longo do artigo. Aqui, basta dizermos que em tais movimentos a união hipnótica existente entre os seus membros e a adoração ao líder, favorecida pela identificação imaginária com este, engendram no campo social efeitos perigosos e nefastos, através das palavras de ordem de um líder que mobiliza o desejo de uma massa que se quer majoritária e intransigente.

Como é possível intervir, porém, em tais movimentos pela criação de um combate efetivo à sua real motivação? Criando os meios sociais que identifiquem o fenômeno para dissolvê-lo através de estratégias políticas e clínicas. E aqui três possibilidades se abrem no horizonte das nossas problematizações: a primeira que consiste em buscar, pela intervenção estatal, meios que inibam a formação da massa, pela conversão desta ao conceito identitário de povo; a segunda que consiste em criar, por intervenções políticas, as condições de desfazer os fenômenos de massa pela ruptura das identificações com o líder, em proveito de uma intervenção que torne o indivíduo dotado da capacidade de constituir com os outros um sujeito social e a terceira que relaciona o sujeito à sua diferença radical, dotando-o da capacidade de entrar em um devir minoritário. Nesta intervenção, a massa é contestada pela constituição de multiplicidades de modos de existências, onde cada um deles pode encontrar-se referido à sua diferença radical que é a condição de um devir minoritário. Das três possibilidades entreabertas, a primeira traz o risco de um fortalecimento acentuado do estado que nós iremos contestar, a segunda constrói meios de desestabilização da massa pela constituição política de uma multidão mobilizada na construção de um sujeito social, mas é a terceira que aproxima a política da clínica, pois só nela é que o sujeito pode se haver com o seu modo de ser singular, estando, no seu horizonte, situado ao lado de uma minoria estrangeira. Como o conceito de multidão inclui aqui as diferenças existentes entre os sujeitos; estando tais diferenças assinaladas pelas posições que cada um, com certeza, vem a ocupar; talvez nessa perspectiva seja possível assinalar uma inflexão que inclua em cada sujeito singular uma posição minoritária. Desta maneira, outra vetorização pode ser construída a partir das diferenças existentes entre as noções de maioria, minoria e devir-minoritário, construídas com as intercessões de Deleuze e Guattari que propõem uma compreensão da subjetividade pelo conceito de devir minoritário, como alternativa à política majoritária dos poderes estatais. Com esta vetorização, incluiremos a clínica psicanalítica, para construirmos o complexo conceito de multidão de minorias, forjado aqui pela necessidade de criar uma contrapartida ao poder beligerante das massas.

Todavia, multidão de minorias – expressão forjada pela conexão da noção de multidão com a ideia de devir-minoritário – só ganhará consistência conceitual se ela for cotejável com a possibilidade de implementação na clínica e na sociedade de um campo habitado por sujeitos singulares que podem se entender na distância entreaberta pela assunção das suas diferenças. Sendo assim, multidão de minorias é o título que vetoriza a nossa proposta clínico-política de pensarmos cada sujeito na sua diferença como alguém que traga consigo um pertencimento a uma minoria, podendo entrar em um devir-minoritário.

Aqui os intercessores que evocaremos na ocasião da construção dos conceitos são: Sigmund Freud – cuja construção da noção de massa forjará a ocasião da crítica que empreenderemos a tal noção –; Antônio Negri e Michael Hardt1 – construtores do conceito de multidão -, Gilles Deleuze e Félix Guattari2 – que constroem o devir minoritário que consta na nossa proposta – Betty Fuks3, que analisa o sujeito singular pela metodologia freudiana e o devir judeu de Freud, dando ênfase à judeidade no âmbito da clínica psicanalítica, que será introduzida no final desta construção. Finalmente, a multidão de minorias é o complexo conceito que construiremos para colocar em conexão os autores que criticam, com Freud, a psicologia das massas.

 

A psicologia das massas e suas derivações

Do texto "Psicologias das massas e análise do eu"(Freud, 1921), extrairemos, com Freud, duas teses que irão deflagrar o nosso empreendimento: na primeira, colocaremos em cena as condições libidinais dos vínculos que une as massas, articulando-as com uma linguagem que valorize fenômenos de identificações entre os membros de um grupo; na segunda, traremos as condições subjetivas que fazem com que os indivíduos abram mão das suas individualidades pela via de componentes emotivos e intelectuais promovidos pela identificação com o líder. Tais teses serão trazidas para a contemporaneidade e atualizadas segundo uma suposição construída por nós através das análises de Freud. Neste caso, registraremos os fenômenos de massas nos diversos movimentos que ocorrem em nossa sociedade, cujas descrições serão feitas nas suas devidas ocasiões.

Com relação à primeira tese, diremos que o parecer de Freud é taxativo ao criar sua diferença em relação às considerações de Le Bon e McDougall (Freud, 1921, p. 94)4. Em relação ao primeiro, ele elogia o fato deste autor ter notado aspectos inconscientes nas condutas das massas, mas procura avançar nas considerações pouco elucidativas dos vínculos emotivos que fazem com que os seus membros permaneçam unidos entre si e identificados com a figura do líder. Já em relação ao segundo, importa a Freud encontrar as condições de fato dos vínculos sugestivos que une as massas entre si pela via de um forte componente emocional que iniba o progresso do desenvolvimento intelectual. É claro que as considerações de McDougall darão à Freud melhores condições de complementar a abordagem de Le Bon. Afinal, a tese de McDougall parte do princípio de que seja possível distinguir dois tipos de massa: uma, pouco organizada e efêmera, que prescinde da figura de um líder; outra, mais organizada e devidamente estruturada por princípios que irão ser estabelecidos e garantidos pela figura do líder.

Na primeira, a ausência de organização leva o autor a cotejar erroneamente o fenômeno de massa com a ideia de multidão; considerando aí sua coesão pela sugestão promovida pelo grau acentuado de componentes emotivos que funcionam em detrimento dos avanços intelectuais. Já na segunda, certa reparação é exigida pela consideração de cinco componentes que o autor nos apresenta - associando a massa à noção de grupo - e que são cotejados por Freud na seguinte enumeração: na primeira, "que haja certo grau de continuidade de existência do grupo" (Freud, 1921, p. 96); na segunda "que em cada membro do grupo se forme alguma ideia definida da natureza, composição, funções e capacidades do grupo como um todo" (Freud,1921, p 96) de maneira que o membro se sinta integrado ao grupo na sua totalidade; na terceira "que o grupo seja colocado em interação com outros grupos semelhantes (Freud,1921. p, 97) para daí extrairmos as diferenças existentes entre eles na forma de rivalidade; na quarta, que o grupo possua tradições, costumes e hábitos semelhantes que o mantenha unido por uma longa duração e, na quinta, "que ele tenha uma estrutura definida, expressa na especialização e diferenciação das funções de seus constituintes" (Freud,1921, p. 97).

Ora, ao comentar os dois autores, Freud toma para si a tarefa de explicar as condições psíquicas da alteração mental que é experimentada pelo indivíduo influenciado pela massa. Trabalhando uma justificativa para a noção de sugestão ou hipnose – já utilizada por ele nos primeiros escritos técnicos – Freud retoma tal noção para explicá-la pela noção de libido, aqui considerada como a "expressão extraída da teoria das emoções" (Freud, 1921, p. 101) isto é, como a energia das pulsões de vida que serão abarcadas pela via do amor. Aqui, Eros é apresentado como a condição da união que conjuga os sujeitos, e abarcado nas diversas acepções que Freud irá lhe dar; mas que tem como núcleo o amor sexual e suas derivações, tais como o amor pelo eu, pelos pais, pelos filhos e pela massa.

No que tange a esta última instância, Freud parte da sustentação de que os vínculos libidinais constituem também a essência da mente influenciada pela massa; e aqui apresenta um aspecto da primeira tese que pretendemos analisar: são os vínculos libidinais entre os membros da massa e que irão expressar-se por uma linguagem amorosa, que conferem a eles uma situação de pertencimento. Desta maneira, é em tal pertencimento que é possível destacar que o eu identificado com o outro membro prevalecerá sobre o seu aspecto individual e narcísico; colocando-o na situação de um sujeito que se agrega à massa como um membro elementar de um conjunto análogo a um organismo.

Por outro lado, a coesão da massa terá sua garantia em um duplo procedimento de identificação: aquele que une os indivíduos entre si, uma vez que eles se encontram identificados uns com os outros por fortes componentes emotivos e intelectuais, e a identificação prioritária com a figura do líder. Neste nível, a condição da massa supõe uma distinção entre massas com líderes explicitamente identificados e simbolizados. Aqui, a noção de identificação se apresenta não só como a chave que irá constituir o ego e a sua possível alienação do ideal do ego; como, igualmente, o procedimento que irá permitir que um determinado sujeito se sinta identificado com uma massa e esteja devidamente comprometido com a figura do líder. Como bem assinala Freud "uma massa primária desse tipo é um certo número de indivíduos que colocaram um só e mesmo objeto no lugar do seu ideal do ego e, consequentemente, se identificaram uns com os outros em seu ego "(Freud, 1921, p. 126). Além disso, os vínculos emocionais que unem os sujeitos são sustentados por mecanismos de identificação, ao mesmo tempo que a identificação com o líder dará à massa sua coesão interna. Neste segundo nível, toda uma linguagem comum será dirigida pelo líder que encarna o ideal coletivo dos membros da massa. Tal ideal funciona na contrapartida de um ideal do eu, em proveito de um ideal social, onde nele o indivíduo perde a sua liberdade individual.

Ora, apresentando assim as identificações que presidem os fenômenos de massa, afirmamos que tais manifestações podem apresentar-se de diversas maneiras: elas se encontram, por exemplo, nas massas primitivas reunidas em torno de um líder que encarna a função da lei; se encontram, igualmente, em fenômenos modernos e contemporâneos – onde líderes religiosos ou dos exércitos podem emergir, garantindo uma união entre os seus membros pelas identificações destes com aqueles - podem encontrar-se em anomalias fanáticas de líderes que comandam seus membros na missão de uma guerrilha religiosa; também são verificáveis nos movimentos de massas urbanos - constituintes de turbas sem líderes ou de um populacho microfascista – e podem também se encontrar em fenômenos complexos de fascismos que ainda iremos enumerar. Claro está que a lista pode ser ampliada em uma segunda enumeração. Agora, convém sublinhar tais características das massas, para retirarmos do autor acima citado, as derivações que queremos executar no texto

E aqui localizamos, com Freud, a religião cristã e o exército como fenômenos de massa, estabelecendo entre eles uma sutil comparação. O que nos autoriza a fazermos tais comparações? O fato de essas massas serem organizadas por líderes que garantam a sua duração. Aqui, a igreja é concebida como um fenômeno de massa, cuja hierarquia supõe um líder que faz um sacrifício para a manutenção dos seus fiéis: Cristo. Por outro lado, a ordem do exército supõe também um comandante chefe que funciona como um líder, conferindo aos soldados condições de pertencimento como membros da massa. Na base das duas agregações, temos os fiéis e os soldados como membros unidos por uma causa comum; no ápice da hierarquia, todo um comando de massa é orquestrado pelas palavras de ordem dos seus respectivos líderes.

Convém acrescentar que, em ambos os casos, as massas apresentam-se como artificiais, cujas identificações são garantidas por líderes religiosos ou militares. No primeiro caso, o líder representa o grande credor que se colocou em sacrifício para salvar a humanidade; já no segundo, o líder é o mantenedor da hierarquia indispensável para a coesão do grupo com ele identificado. Como o conceito de identificação com o grupo e a identificação com o líder são as condições de um ego que cumpre as exigências do grupo no qual o sujeito vive, é legitimo pensar que em tais identificações um superego do grupo acabe se formando na subjetividade de um membro da massa. Nesse caso, a liberdade individual é preterida em proveito de uma causa grupal; ao mesmo tempo em que o sujeito passa a compensá-la pela comoção e pelo convencimento oriundos das palavras de ordem que emanam dos imperativos de seus líderes, mas se efetivam na vontade coletiva do grupo.

É bem verdade que o conceito de identificação é bem mais amplo que a extensão que aqui ele recebe para explicar o surgimento de uma massa. No contexto da nossa abordagem, todavia, é tão somente necessário que ele seja devidamente demarcado como um dos elementos que condicione a sua formação. Ora, dito desta maneira, é possível asseverar que os movimentos de massa ganhem contornos definidos pelo duplo mecanismo de identificação; sendo, igualmente, sustentados pelo amor que integra o grupo e o ódio endereçado aos grupos diferentes. Em uma rebelião de massas, o ódio às diferenças e o amor entre os semelhantes darão ensejo à coesão do grupo e motivos de durabilidade para os seus membros componentes. O fundamental é que neste movimento a ambição de domínio e a busca de perseverança sejam devidamente complementados por um ódio à diferença e a tudo que imaginariamente ameace a coesão do grupo. Nas rebeliões das massas, notamos as consequências nefastas que uma seita de fanáticos – unidos por uma causa abençoada por um líder – pode ocasionar em uma determinada sociedade.

Que temos finalmente? Uma análise suscinta do agrupamento de massas como o pretexto inicial da nossa investigação. Como nossa abordagem busca em Freud uma inspiração, para colocá-lo em rede com a situação atual; talvez aqui seja necessário endossar à análise um teor crítico mais contundente com os temas já apresentados acima. Nesse caso, os fenômenos de massas serão retomados dentro de uma inflexão política que ultrapassa, em vários aspectos, o procedimento de Freud, mas permanece, cremos nós, dentro da perspectiva psicanalítica. Sendo assim, torna-se possível dizer que os movimentos messiânicos que ainda se propagam na ordem política do país são movimentos de massa; que os fanatismos e os guetos que agregam membros que se distinguem pela intolerância aos outros são, igualmente, movimentos urbanos de massas; que as práticas de feminicídio, os movimentos homofóbicos e racistas autorizados pelos líderes que produzem segregação social são variantes da mesma psicologia e que o fascismo seja, igualmente, uma variante específica que agrega massas no seu procedimento. É bem verdade que a situação do fascismo é um pouco mais complexa; pois embora ele não seja completamente um movimento de massa – uma vez que o poder que emana do fascismo inclui elementos estatais apropriados por bandos nômades – ele agrega, não obstante, uma massa ao redor.

Ora, o caso específico do fascismo é salutar para a nossa proposta, uma vez que ele pode aqui receber um tratamento que explicite uma vocação majoritária de uma raça que pretende excluir a outra das condições efetivas da sua existência pela lógica do banimento e da exclusão social. Neste caso, convém dizer que o nazifascismo emerge como um movimento oposto ao totalitarismo de estado. Se pensarmos que uma ditadura estatal é um movimento totalitarista que mantém a ordem pela paz armada; no fascismo, o que temos é antes um estado suicida que promove a guerra e a destruição como a meta do poder. Nesta guerra, o banimento do diferente é priorizado ao mesmo tempo em que a guerra é tomada como um fim. Sendo assim, toda uma vontade de destruição do outro é posta em ação, através de membros que se justificam pelo cumprimento de uma ordem promovida por um líder com o qual se identificam. Se levarmos esta lógica para o campo micropolítico dos fascismos de rua; veremos como ela se reproduz segundo os mesmos princípios destrutivos, associados ao amor pelo grupo e pelo líder que confere sentido ao seu empreendimento de destruição e, no limite, de autodestruição.

Assim, ao dizermos mais acima que o fascismo é um fenômeno mais complexo do que um simples fenômeno de massa; nós o fazemos pela suposição de que implica a conjunção do poder do líder com o ideal da massa, conjunção feita em proveito de uma destruição total do outro, acrescido da pretensão de domínio absoluto de uma situação política. Nesse caso, os líderes do fascismo são movidos por uma ambição de poder sem limites, mas se cercam de membros da massa que cumprem uma missão, sustentados pelas suas palavras de ordem.

Enfim, buscamos em Freud o essencial da nossa problematização, mas o nosso prosseguimento supõe o esclarecimento da seguinte questão: é possível pensarmos em estratégias clínicas e políticas que inibam a proliferação das massas? Cremos que sim, mas só tornaremos nossa apresentação convincente se o conceito de massa for realocado na sua diferença em relação ao conceito de povo e de multidão.

 

Povo, massa e multidão

Neste caso, o conceito de multidão será evocado contra o totalitarismo e o fascismo existentes tanto na esfera de certos governos populistas, quanto na esfera dos movimentos de massas liderados por um governante. Sendo assim, torna-se importante distinguir a multidão da noção estatal de povo e compreendê-la na contramão da política das massas. Com relação à primeira distinção, a multidão será definida como uma diversidade de diferenças que se impõe na contrapartida do conceito universal e identitário de povo definido pelo seu pertencimento a um estado nação. Já na segunda distinção, a multidão será evocada contra as políticas massificantes de certos governantes que assumem uma postura messiânica, para ser compreendida pela sua vocação plural e democrática. Nesta dupla distinção, Antônio Negri e Michael Hardt serão os nossos intercessores; pois neles veremos a multidão ser primeiramente diferida da noção de povo, para ser concebida na contrapartida da noção de massa. Vejamos o primeiro procedimento.

Segundo os autores "o povo é uno. A população, naturalmente, é composta de numerosos indivíduos e classes diferentes, mas o povo sintetiza e reduz estas diferenças sociais a uma identidade (Negri & Hardt, 2005, p. 139)". Convém, não obstante, assinalar que a identidade em questão é construída por uma Soberania estatal, que procura assimilar ou anular as diferenças existentes entre os sujeitos pela urgência soberana de pertencimento a um estado nação.

Além disso, "as partes componentes do povo são indiferentes em sua unidade; tornam-se uma unidade negando ou apartando suas diferenças (Negri, Hardt, 2005, p.139); porque o povo unido vai se articular com a soberania e - segundo a tradição da filosofia política apresentada pelos autores – só o que é uno possui direito de governo, estando o governante na condição daquele que governa em nome de todos.

Ora, desde já é necessário identificar a definição de povo ofertada pelos dois autores, apresentando uma linha separatória entre esta noção e a multidão. Sendo notória a ideia de que Negri e Hardt são pensadores políticos da multidão; é, igualmente, necessário dizer que, quando criticam a noção de povo, eles o fazem por entenderem democraticamente que esta noção busca anular as diferenças existentes no campo social habitado por uma multiplicidade de singularidades; em proveito de uma unidade representativa abstrata, sustentada, tão somente, para manter os direitos de uma soberania. Neste caso, é no contraste com a noção de povo, que a multidão vai ganhar algumas definições consistentes nos dois autores que agora iremos citar. Segundo Negri e Hardt:

a multidão não é unificada, mantendo-se plural e múltipla..., é composta de um conjunto de singularidades – e com singularidades queremos nos referir aqui a um sujeito social cuja diferença não pode ser reduzida à uniformidade, uma diferença que se mantém diferente... As singularidades plurais da multidão contrastam, assim, com a unidade indiferenciada do povo (Negri & Hardt, 2005, p. 139).

Como afirmam os autores, todavia, "a multidão, embora múltipla, não é fragmentada, anárquica ou incoerente" (Negri & Hardt, 2005 p. 139). Vê-se aqui que a política empreendida pelos dois autores visa uma intervenção de um poder constituinte da multidão – poder constituinte este já trabalhado por Negri em um texto intitulado O Poder Constituinte5 (Negri, 2002) -; cuja coerência é atestada em proveito de um exercício democrático que se exerce contraditando os direitos de uma soberania una e universal. Nesta plena democracia, os autores insistirão na valorização de uma tensão social, que não só minimize a importância do estado; como também mobilize, pela política, as singularidades constituintes de uma sociedade, que irão garantir a constituição de um sujeito social. Sendo assim, multidão é o conceito convocado para implementar uma política de diferenças, cujo dissenso será a ocasião da manutenção de uma sociedade plural e decididamente democrática. Por outro lado, ele é o conceito com o qual os pensadores implementam uma crítica contra a soberania estatal e as práticas fascistas que permeiam os movimentos de massa. Neste caso, torna-se agora conveniente trabalhar a concepção que Negri e Hardt possuem da noção de massa, para implementarmos a segunda distinção proposta neste item.

Aqui os autores são mais taxativos e contundentes ao dizerem que a noção de multidão também deve ser contrastada com uma série de "outros conceitos que designam entidades coletivas plurais, como a turba, as massas e o populacho" (Negri & Hardt, 2005, p. 139). Nesse contexto, as massas serão alinhadas às turbas e ao populacho em uma definição sintética, cuja apreciação será feita pela apresentação de ideias que, curiosamente, irão entrar em ressonância com a concepção política que os dois autores querem implementar. Sendo assim, talvez seja esta a ocasião para uma citação mais demorada dos alinhamentos da turba; da massa e do populacho. Vejamos como se comportam os indivíduos no interior destas instancias. Segundo Negri & Hardt

os diferentes indivíduos que constituem a turba são incoerentes e não identificam elementos compartilhados em comum. Sua coleção de diferenças mantém-se inerte e pode facilmente parecer um agregado indiferente. Os componentes das massas, do populacho e das turbas não são singularidades – o que fica evidente pelo fato de que suas diferenças tão facilmente se esvaem na indiferença do todo. Além disso, os sujeitos sociais são fundamentalmente passivos, no sentido de que não são capazes de agir por si mesmos, precisando ser conduzidos... Eles podem ter efeitos sociais – não raros efeitos horrivelmente destrutivos – mas não são capazes de agir por conta própria. Por isto é que são tão suscetíveis à manipulação externa. (Negri & Hardt, 2005, p, 140)

Ora, tal alinhamento demonstra como as massas são manipuláveis; podendo, em certas circunstâncias, serem manipuláveis por líderes que irão ditar uma certa direção para sua conduta. Algo da definição dos dois autores merece aqui, todavia, certa retificação; uma vez que o conceito de massa supõe, para nós, uma noção psicanalítica não levada em consideração pelos dois autores: a identificação. Que as diferenças entre os indivíduos sejam de fato inertes e, por isso, não partilháveis, define corretamente a turba, a massa e o populacho; mas há algo que eles partilham pela via da identificação imaginária mútua que será presidida pela diretriz do líder. O que de fato é partilhável? A união pela semelhança, que dará, a cada membro, uma posição na massa pela via da identificação com o outro e uma subordinação do grupo à liderança de um sujeito não comprometido com causas mais elevadas; mais que lidera pela via da identificação do grupo com ele.

Claro está que tal retificação consiste em um ajustamento da proposta dos dois autores à nossa problematização; mas no que tange a definição geral do fenômeno de massa, cremos nós que seja possível seguir a diretriz ditada por Negri & Hardt. Nesse caso, mantemo-nos com os autores quando eles dirigem contra a massa as diferenças contidas na multidão e nos posicionamos também favoráveis quando discernimos na multidão uma multiplicidade de singularidades inexistentes nos fenômenos de massa.

Ora, tais diferenças acima estabelecidas, irão exigir de nós mais uma contextualização dos dois autores na proposta aqui problematizada. Nesse caso, a diferença entre turba, massa e populacho, exigirá uma nova apresentação da multidão com outras definições propostas pelos autores. Sendo assim, convém agora enumerar certas características da multidão, para concluirmos as distinções que inauguraram o item.

[...] a multidão designa um sujeito social ativo, que age com base naquilo que as singularidades têm em comum. Ela é um sujeito social internamente diferente e múltiplo cuja constituição e ação não se baseiam na identidade ou na unidade (nem muito menos na indiferença), mas naquilo que tem em comum... Ela representa um claro desafio para toda a tradição da soberania... Em outras palavras, todo poder soberano forma necessariamente um corpo político dotado de uma cabeça que comanda, de membros que obedecem e de órgãos que funcionam conjuntamente para dar sustentação ao governante. O Conceito de multidão desafia esta verdade consagrada da soberania. A multidão, embora se mantenha múltipla e internamente diferente, é capaz de agir em comum, e, portanto, de se governar. Em vez de ser um corpo político com uma parte que comanda e outras que obedecem, a multidão é carne viva que governa a si mesma (Negri & Hardt, 2005, p. 140).

Aqui, na enumeração citada, a multidão consiste em uma política implementada contra os direitos da lógica da Soberania, mas que se aplica, invariavelmente, contra o projeto massificante da lógica das massas. Tanto em um caso quanto em outro, a multidão se apresenta como a condição política de diferenças que se mobilizam na direção oposta da soberania que dita a unidade da nação como inviolável; mobilizando-se, igualmente, contra a lógica fascista que habita os movimentos de massa, que podem, em circunstâncias específicas já analisadas acima, apropriar-se da soberania através de um fascismo de estado muito presente nos tempos atuais.

Assim, Negri e Hardt ofertam o essencial da argumentação do nosso texto, ao implementarem, com o conceito de multidão, uma política não estatal endereçada contra a massa e todos os seus avatares contemporâneos. Nesse caso, eles propuseram a multidão como um meio de desestabilização da massa, através de uma conceituação política que será estendida à filosofia e à clínica. E embora o projeto político dos autores não esteja no texto completamente contemplado – uma vez que a multidão exige complementações políticas que aqui foram dispensadas, existe aqui a possibilidade de realocar o conceito em um cenário mais complexo, em que seja garantida a utilização da noção no âmbito das problematizações ofertadas na nossa introdução. Para que a problematização seja feita, entretanto, com uma maior contundência, talvez seja necessário agora analisar as noções de maioria, minoria, devir minoritário e a curiosa noção de povo nômade propostas pela dupla Deleuze e Guattari.

 

Maioria, minoria, devir-minoritário e povo nômade

As ideias de Deleuze sobre política nômade fazem, desde cedo, com que ele assuma uma posição polêmica contra a concepção democrática de um governo da maioria; uma vez que esta noção lhe sugere um perigo estatal que necessita de certo combate só compreendido com explicação conceitual. Em certos momentos, Deleuze defende sozinho uma postura nômade justificada por uma explicação das noções de maioria, minoria e devir-minoritário; em outros, conta com a colaboração de Félix Guattari. Em Mil Platôs (Deleuze e Guattari, 1997), por exemplo, os autores explicitam – com grande contundência conceitual – as noções de minoria e maioria – para complementarem a noção de devir minoritário explicitada no platô dos devires. Já em O que é a Filosofia? (Deleuze e Guattari, 1991), trataram dos devires no âmbito da criação filosófica e artística. Sendo assim, traremos inicialmente, a explicitação feita pelos dois autores em Mil Platôs, para tecermos outras considerações através do depoimento de Gilles Deleuze em entrevista concedida a Antônio Negri em conversações (Deleuze, 1992) e findaremos nossa abordagem com o texto O Que é a Filosofia?

Quando os dois autores opõem a maioria à minoria, procuram as condições conceituais para uma determinação não numérica ou quantitativa das duas noções. Assim, declaram que não entendem a maioria como um conjunto numericamente maior, nem tampouco concebem as minorias pela sua quantidade menor. Maioria é aqui tratada por uma questão de direito, na qual dela destacamos um metro padrão, ou um modelo, adotado como medida de dominação dos diversos sujeitos que a ele irão se referir; já a minoria se define pela inexistência de um modelo, não havendo na sua definição nenhum padrão que deva prescrever as medidas transcendentais indispensáveis para a adoção de um critério universal do ser humano. Sendo assim, o metro padrão deve ser destacado como uma medida vazia que funda o critério da representação, ao passo que é da minoria que um devir minoritário pode ser desencadeado.

Tendo feito tais distinções, os autores propõem, não obstante, uma crítica à noção de maioria, procurando as condições de um devir minoritário no âmbito de uma minoria. Em outras palavras, Deleuze e Guattari concebem a maioria dentro de uma perspectiva crítica, propondo um vetor que segue a direção de uma minoria que inventa para si um devir minoritário. Com isso, eles passam a dizer que todo devir é devir minoritário de uma minoria, não existindo devir majoritário. Nesse caso, a contundência de um devir minoritário talvez exija de nós uma compreensão preliminar da crítica que os dois autores farão ao Homem, ao compreendê-lo como um conceito majoritário. Segundo os autores não deve haver, então, um devir-homem, muito embora deva existir um devir do homem, caso ele saia da posição na qual se encontra. Convém imediatamente perguntar, todavia:

[...] por que há tantos devires do homem, mas não um devir homem? É primeiro porque o homem é majoritário por excelência, enquanto os devires são minoritários, todo devir é um devir-minoritário. Por maioria nós não entendemos uma quantidade relativa maior, mas a determinação de um estado ou de um padrão em relação ao qual tanto as quantidades maiores quanto as menores serão ditas minoritárias: homem-branco, adulto-macho etc. Maioria supõe um estado de dominação (Deleuze & Guattari, 1997, vol.4, p. 87).

Neste sentido, o Homem destaca-se como o Macho, Civilizado, Heterossexual, Europeu, Bem-falante, Dominador, Branco e de raça superior. Ora, dentro desta perspectiva, o homem elevado à condição de modelo não deve representar ninguém, mas se apresenta como medida transcendental ou estado de dominação imposto como um padrão normativo. Ao dizermos na citação, entretanto, que todo devir é minoritário, torna-se ainda necessário diferir minoria enquanto estado de devir-minoritário. Nesse caso, todo sujeito concreto deve reconhecer-se como pertencendo a uma minoria, cuja condição não numerável permite que tal pertencimento se descreva com características intrínsecas. E aqui os dois autores irão descrever as minorias e suas distinções em relação à maioria da seguinte maneira:

Uma minoria pode comportar apenas um pequeno número, mas ela pode também comportar o maior número, constituir uma maioria absoluta, indefinida. O que define então uma minoria não é o número; são as relações interiores ao número. Uma minoria pode ser numerosa ou mesmo infinita, do mesmo modo uma maioria O que as distingue é que a relação interior ao número constitui no caso de uma maioria um conjunto... sempre numerável, enquanto a minoria se define sempre como conjunto não numerável... O que caracteriza o inumerável... é antes a conexão que se produz entre os elementos, entre os conjuntos, e que não pertence a qualquer dos dois, que lhes escapa e constitui uma linha de fuga (Deleuze e Guattari, p. 173, vol. 5, 1997).

O conjunto não numerável de uma minoria, em outras palavras, permite que pensemos nos chineses, nos negros, nos não brancos, nos asiáticos, como minorias, embora a quantidade numérica de tais populações possa ser maior do que aquela que define a maioria pelo padrão majoritário. Sendo assim, é o metro padrão da forma homem que constitui conjuntos numeráveis e, com estes, elimina a conexão lateral, para impor, pela via da verticalidade um modelo vazio. Tal modelo impõe o metro padrão como medida de exigência a todos os participantes que dele queiram pleitear alguma qualidade, mas que só a terão por graus diferenciados de participação. O modelo dá, portanto, uma qualidade que pode ser partilhada por participantes, mas que só será partilhada pelo grau de participação por semelhança apresentada de uma maneira hierárquica.

Nesse caso, é sempre possível que uma determinada minoria recrie condições majoritárias, através de recursos nacionalistas indispensáveis para a sua formação frente ao aparelho de estado. Quando isto acontece, outro conjunto numerável infinito resultará na impostura de um novo modelo de dominação, instaurando disputas de lutas segregativas, implementadas por práticas de violência, onde nelas uma posição de poder se instaura através de um líder que convoca uma minoria à rebelião. Havendo tal possibilidade, nada impedirá a emergência de um estado de massa através de um líder que pode recriar em uma minoria um ideal majoritário. Ora, pensando no perigo de tal possibilidade, Deleuze e Guattari vão tratar da vetorização oposta, onde nela

[...] é preciso não confundir "minoritário"enquanto devir ou processo, e minoria como conjunto ou estado. Os judeus, os ciganos, etc., podem formar minorias nessas ou naquelas condições, ainda não é suficiente para fazer delas devires. (Deleuze e Guattari, vol. 4, 1997, p.88).

Para que um devir se desencadeie é preciso que este estado seja abandonado em proveito de uma revolução molecular que coloque em jogo relações minoritárias entre partículas que crie uma zona de indiscernibilidade com o ser no qual devimos. Que tais relações, por exemplo, entrem em uma zona de indistinção com um modo de vida judeu, cujo conteúdo se dará através de gestos similares aos gestos de um judeu, estando a expressão ocorrendo em um uso menor de uma língua dominante – a língua judaica por exemplo - criando em tal uso uma língua estrangeira que testemunha a presença de um devir judeu pelos gestos e pela entonação da palavra. Uma espécie de judeidade que consiste num modo de vida cria um devir judeu através de gestos, atitudes, entonações e afetos, que se expressam pela relação dominante das características do ser no qual devimos. É na composição das relações com os afetos que nelas irão se expressar, que diversos devires irão se desencadear segundo a sequência apresentada pelos próprios autores. Neste sentido,

[...] até os negros, como diziam os Black Panthers, terão que devir-negro. Até as mulheres terão que devir- mulher. Até os judeus terão que devir-judeu. Sendo assim, o devir-judeu afeta necessariamente tanto o não judeu quanto o judeu... De certa maneira é o "homem "que é o sujeito de um devir, mas ele só é um tal sujeito, ao entrar em um "devir-minoritário que o arranca de sua identidade maior... O devir-judeu, o devir-mulher, o devir-criança, etc., implicam, portanto, a simultaneidade de um duplo movimento: um pelo qual o sujeito se subtrai à maioria; outro, pelo qual o agente sai da minoria (Deleuze e Guattari, 1997, vol. 4 p. 88).

Neste duplo movimento, uma minoria afeta o sujeito ao mesmo tempo que sai da condição em que se encontra, produzindo devires sempre minoritários. Sendo assim, devir minoritário é a condição de todo e qualquer devir que aconteça a uma minoria que siga afirmando a construção da sua diferença minoritária na via estrangeira aberta aos exilados e a todos aqueles que conquistaram o direito à diferença. Como dizem Deleuze e Guattari, todo devir é minoritário, pois supõe uma abolição do modelo que hierarquiza os sujeitos em um conjunto numerável e classificável a partir de um padrão. Para concluirmos as considerações feitas pelos dois autores, convém agora entendermos suas consequências na perspectiva de Deleuze, para, em seguida, trabalharmos o problema em O que é a Filosofia?

Na entrevista concedida a Toni Negri em Conversações (Deleuze, 1992) - que trata especificamente da distinção entre controle e devir -, Deleuze irá posicionar-se na contramão das sociedades de controle, propondo uma resistência a elas pela defesa do devir minoritário. Diz, por exemplo, "que aquilo que define uma maioria é um modelo ao qual é preciso estar conforme, ao passo que uma minoria não tem modelo, é um devir, um processo" (Deleuze, 1990, p.214). Todavia, "quando uma minoria cria modelos é porque quer tornar-se majoritária" (Deleuze, 1990, p. 214). Tais considerações iniciais reproduzem a ideia já perseguida pelos dois autores nas reflexões feitas acima. Dirá Deleuze, entretanto, que a potência da minoria provém sempre do que ela soube criar. Aqui, ele faz, curiosamente, um apelo a um povo minoritário que se irá distinguir da noção de povo descrita por Negri. É que a noção de povo entrevista acima se encontrava vinculada, com justa razão, a um conceito estatal. Ocorre que Deleuze propõe, na contrapartida deste povo majoritário, um povo bastardo, irremediavelmente menor, que se distingue, por um lado, dos indivíduos disciplinados ou controlados pelo poder; da massa sujeitada ao poder do líder e do povo sujeitado aos dispositivos estatais, ou seja, um povo nômade, minoritário e sempre por vir.

Quando no livro O Que é a Filosofia?, o problema é retomado, Deleuze e Guattari irão mostrar como a criação artística e filosófica fazem apelo a um povo nômade e como em tais atividades é possível encontrarmos procedimentos de minoração. Se a filosofia e arte fazem apelo a um povo, isso decorre do fato de terem a necessidade dele e constatarem que é exatamente este povo que falta. Por outro lado, é sempre a minoria de um povo que cria a possibilidade de algo novo pelo procedimento de minoração. Como o povo quase sempre não entra na filosofia e na arte, é necessário que as criações filosóficas sejam sempre feitas na contrapartida dos povos manipuláveis pelos poderes, em proveito de um povo que falta, mas que possa advir pelo apelo da arte e da filosofia conjugadas. Neste caso, criar na perspectiva minoritária é dispor ao porvir todo um universo de possíveis ou de acontecimentos virtuais. Nos dois casos, são tais pensamentos que plasmam na contemporaneidade uma política da diversidade de um povo em detrimento das massas e do povo assujeitado ao aparelho de estado. Como dizem os dois autores, o povo ou a raça invocada pela arte ou a filosofia "não é a que se pretende pura, mas uma raça oprimida, bastada, inferior, anárquica, nômade, irremediavelmente menor" (Deleuze e Guattari, 1991/ 2004. p. 141)

Ora, não haveria aqui outra possibilidade entreaberta? Não poderíamos pensar neste povo nômade na perspectiva de um devir? E como diferenciá-lo da multidão? Não cremos que aqui o esforço consista em estabelecermos mais uma diferença. Talvez seja mais interessante uma possível conexão. Neste caso, o povo porvir e a multidão talvez crie o ensejo da "multidão de minorias" que intitula o artigo. A condição é que este povo seja aqui compreendido como minoritário e definido na sua pluralidade de devires. Se nesta perspectiva o modelo deixe de existir, talvez o devir seja a condição das conexões laterais, onde as minorias diversas possam somar, sem se fundirem, em uma multidão de diferenças. Resta entender se tais inflexões podem estar presentes em uma abordagem clínica.

 

Massa, multidão, minorias e devir-minoritário na clínica

Ora, ao pensarmos tais diferenças, já podemos desenvolver tais distinções dentro de uma proposta crítica convergente com a psicanálise. Se nos autores considerados a multidão e o devir minoritário são os conceitos que valorizam as singularidades existentes em cada ser humano, talvez a análise de tais diferenças forjem a ocasião para a descoberta de uma singularidade existente em um sujeito dentro de uma perspectiva psicanalítica. Aqui, não obstante, é necessária a ressalva: que cada sujeito seja abordado na sua diferença e tratado na sua singularidade, ou seja, que ele seja visto como um membro na multidão no seu ser singular; sendo a sua diferença apreciada na clínica como aquilo que lhe dará um estatuto de um sujeito falante.

Nesta inflexão, a vetorização proposta segue o caminho clínico da descoberta de um sujeito singular, cujo método psicanalítico – devidamente implementado por Freud – é justamente avaliado por Betty Fuks. Segundo a autora,

viu-se que o método psicanalítico é uma prática que, às avessas de um processo de identificação, busca precisamente libertar o sujeito das amarras imaginárias para que ele possa vir a marcar sua diferença e exercê-la de maneira singular e criadora. O trabalho de análise envolve levar o sujeito a migrar da multidão familiar, a enfrentar o isolamento da maioria compacta e, nessa travessia, a encontrar no rigor da palavra, sua singularidade, seu estilo, sua diferença absoluta. (Fuks, 2000, p. 142).

A multidão familiar e a maioria compacta das quais a autora se distancia são aqui – na nossa construção – aspectos da massa com a qual a identificação imaginária deva ser rompida. Por outro lado, o sujeito singular alcançado na travessia clínica proposta pela autora pode conjugar-se com as singularidades da multidão tal como ela foi estabelecida por Negri e Hardt no item anterior. Uma diferença, todavia, deve ser notada aqui: enquanto, em Negri e Hardt, a ênfase será dada à constituição de um sujeito social; na psicanálise, é o sujeito singular que se deve afirmar em sua diferença radical. Claro está que tal diferença não conduz a um antagonismo entre as teses; pois a condição efetiva de um laço social supõe sujeitos dotados da capacidade de agir de acordo com a sua diferença. Pela especificidade da psicanálise, entretanto, existe uma proposta de romper com as identificações imaginárias que constituem as massas, como existe, igualmente, uma estratégia de romper com as identificações nacionalistas que transformam os indivíduos em membros homogêneos de uma maioria estatal. Neste sentido, ao posicionar o sujeito no âmbito da sua diferença singular, a psicanálise também se insurgirá contra os procedimentos majoritários que habitam o campo social.

Convém perguntar, todavia: é possível depreender de um sujeito singular uma posição minoritária frente ao outro e ao mundo? Neste caso, a consistência clínica e política da nossa proposta não terá validade se a noção de minoria não for também problematizada no contexto da nossa distinção. Aqui, uma minoria é definida pela posição real de um sujeito que se opõe à construção de um sujeito homogêneo posto como modelo majoritário. Em relação, por exemplo, ao modelo identitário de homem, branco, dominador, heterossexual, soberano e dotado de uma capacidade superior de domínio absoluto, todo indivíduo real que comparece ao divã de um analista – deve ser tratado como um sujeito de uma minoria.

Além disso, é necessário a este sujeito que nele um devir minoritário se estabeleça, para que a ambição majoritária deixe de estar referida a um ideal de identificação com um líder externo. Ao dizermos que é tal identificação que torna o sujeito um ser assujeitado e submisso ao ideal de um líder; dizendo, igualmente, que este líder faz valer a impostura de um pai da horda encarnado; podemos tratar tal posição como aquela que descrevemos no âmbito das psicologias das massas. Em clínica, ela deve se desfazer em proveito de uma operação que desfaça essa ambição, para que o sujeito encontre suas condições singulares de entrar em um devir.

O devir na clínica deve ser concebido, entretanto, como o efeito da direção de um tratamento. Na verdade, deve ser trabalhado como um acontecimento resultante de uma operação analítica que concerne ao sujeito analisando, mas conta com o devir de um analista que retira o sujeito das suas certezas conscientes, pela equivocação causada no ato analítico. A ideia perseguida visa o decaimento de uma identificação imaginária de adoração, e o fim almejado visa a afirmação de uma diferença radical pela sua capacidade criadora. Se, na intervenção pretendida, o vetor almejado é a via da singularização, por que não entendermos que nesta singularização alcançada alguma mutação seja possível? E não seria esta mutação a condição clínica de um devir-minoritário a ser inventado?

Aqui, as considerações clínicas de Betty Fuks sobre o devir-judeu de Freud são esclarecedoras, não só pela possibilidade clínica de situarmos no horizonte do sujeito uma possibilidade de devir; mas também pela posição do analista que fez do ato inaugural da psicanálise um devir minoritário alcançado em ruptura com os saberes hegemônicos da ciência. Além disso, assegura a autora, o devir judeu de um psicanalista ateu faz-se na contramão de uma posição majoritária que Freud alcança quando inaugura a psicanálise por intermédio de um exilio assumido frente à cultura do seu tempo. A este respeito, o que Fuks diz sobre o ato inaugural de Freud é esclarecedor.

Elevar a condição do exilio à sua potência máxima e criadora foi, para Freud, parte integrante da construção de uma judeidade inteiramente original e, portanto, estranha ao que convencionalmente se designava como judeu no ocidente. As escolhas e estratégias a partir das quais Freud a praticou e demonstrou definiram-se e desenvolveram-se paralela e articuladamente à invenção da psicanálise, a expressão maior do seu devir-judeu. Isto implicou, para o seu criador, o próprio movimento de exilar-se da maioria judaica e das identificações dadas pelo outro sobre sua condição de judeu na diáspora vienense. Também a experiência de criação da teoria e da clínica psicanalíticas e a luta contra as resistências à psicanálise exigiram do seu fundador um movimento homólogo: a escolha de exilar-se da cultura científica do seu tempo, então marcada pela lógica do mesmo, impôs-lhe fazer-se nômade (Fuks, 2000, p. 141).

Ora, não estaria tal nomadismo como condição de criação de uma psicanálise inventada pelo devir do analista? E não seria o devir a condição subjetiva de um ato inaugural que se faz em ruptura com a cultura dominante? Que tais questões ressoem com a proposta de Deleuze e Guattari, não tem outro significado senão o de adiantar que a invenção de uma nova disciplina supõe sempre um devir do criador. Cabe aqui, todavia, uma aproximação maior, sem, contudo, negligenciar a especificidade da clínica psicanalítica.

O devir- psicanalítico de Freud foi efeito de sua não identificação com a ciência do século XIX que, sob o império da razão ilustrada, conferia à loucura o estatuto de mero erro de sentido e, desencantada, tampouco aceitava que os sonhos, as fábulas, o mito e a religião pudessem servir de terreno simbólico para as suas pesquisas. Num movimento oposto, Freud aproximou-se destes outros territórios, onde ouviu confirmações conclusivas para a sua disciplina irremediavelmente marcada pela escuta do outro. (Fuks, 2000, p. 141).

Que temos, portanto, nesta citação? O caráter nômade de um psicanalista que se aventura por territórios não considerados pela ciência. Se, na avaliação da autora, há um devir psicanalítico construído na contramão das ditas ciências majoritárias; isto deve significar que não só a singularidade do sujeito deva ser computada na direção do tratamento, como também que sua capacidade de criar um devir a partir de sua situação singular deva ser, igualmente, esperada na direção de uma análise.

Claro está que uma superposição desta proposta com as duas outras apresentadas neste trabalho se encontra fora do nosso propósito. Não pretendemos, de maneira alguma, dizer que o sujeito singular de uma análise seja idêntico à singularidade constituinte de um sujeito social na multidão; nem tampouco visamos aqui uma equivalência total entre os devires de Deleuze e Guattari e o devir judeu analisado por Betty Fuks. Nas propostas por nós apresentadas, procuramos estabelecer teses críticas endereçados a uma lógica majoritária orquestrada por soberanias fascistas e totalitárias. Além disso, procuramos, igualmente, estabelecer diferenças que viabilizem uma crítica contundente aos aspectos nocivos das psicologias das massas; e invocamos três propostas possíveis para a nossa construção.

Na primeira, a noção de multidão foi evocada contra a noção estatal de povo e o conceito de massa como noção homogênea; na segunda a distinção entre maioria, minoria e devir-minoritário foi situada ao longo de inflexões políticas que evocam um povo nômade e menor e, na terceira, a singularidade do sujeito, na sua diferença radical, foi postulada na clínica ao lado do devir judeu do analista inventor da psicanálise. Na primeira, defendida por Negri e Hardt, a decisão política de um poder constituinte da multidão prevaleceu na lógica da construção de um sujeito social e heterogêneo; já na proposta nômade de Deleuze e Guattari, o devir-minoritário ocupou a condição revolucionária de uma minoria que se insurge contra os direitos de uma maioria e, finalmente, na proposta clínica de Betty Fuks, a consideração do analisando enquanto sujeito singular foi postulada ao lado da invenção freudiana de um devir-judeu.

Se elas foram aqui alinhadas, isto ocorreu por dois motivos fundamentais: primeiramente, por entendermos que, nas três propostas, existem inflexões políticas direcionadas contra os movimentos majoritários do poder do estado e dos líderes das massas; em seguida, pela conclusão inevitável de que as alternativas políticas de inibição das rebeliões das massas tendem a ser mais eficazes se elas se apresentarem sempre em condições plurais. Assim, trouxemos três estratégias de resistências diferentes, mas conectáveis pela via de uma clínica interdisciplinar que conjuga o procedimento de Negri e Hardt com as inflexões de Deleuze e Guattari, sem perder a especificidade do setting analítico.

Nessa especificidade, houve, contudo, uma conexão clínica que se ensaiou na seguinte vetorização: trabalhar as diferenças existentes entre as noções citadas, para sabermos sobre a possibilidade de construção em análise de elementos oriundos das teorias políticas e filosóficas, com uma nova inflexão sobre o conceito de um sujeito singular na clínica, trabalhado pela via de um devir-minoritário. Com Negri e Hardt fizemos o apanhado da noção de multidão, propondo um deslocamento clínico desta noção para alcançarmos o sujeito singular no dispositivo analítico; com Deleuze e Guattari estabelecemos uma tripla distinção entre maioria, minoria e devir-minoritário, para sabermos como é possível localizar o devir no procedimento analítico.

Mas o que vem a ser um devir minoritário de um sujeito singular na perspectiva clínica? Uma travessia clínico política que faça o sujeito se encontrar com a sua diferença minoritária, fazendo-a variar em termos temporais. Neste caso, o ato de minoração pode encontrar-se também na clínica através das experimentações decorrentes dos encontros proporcionadores de acontecimentos inesperados. Tais devires são acontecimentos inseparáveis de descobertas que retiram o sujeito do âmbito das suas certezas conscientes; levando-o a entrar em contato com a sua condição de ser menor.

Neste sentido, um devir minoritário na clínica é um acontecimento que faz uma verdade advir pala travessia clínico-política que retire o analisando das opiniões grosseiras que frequentam a sua consciência, através do decaimento de suas certezas. Com o advento de tal verdade, o seu traço singular pode ser constatado, sendo a sua afirmação o traçado indispensável para a invenção de uma nova maneira de viver. Nesta invenção, é a diferença singular do sujeito que o fará variar em termos temporais. Assim como um devir judeu e o devir analista se conectaram em bloco no pai da psicanálise – como assinala corretamente Betty Fuks (Fuks, 2000) – é preciso que um sujeito em análise se posicione em uma posição minoritária para que na clínica um devir-minoritário possa se desencadear.

Finalmente, como a proposta aqui analisada se intitula multidão de minorias, o contexto em que as teses irão convergir devem indicar que a posição de um sujeito como membro de uma multidão só ganha consistência efetiva se ele for posicionado no movimento de um devir minoritário. Sendo assim, uma multidão de minorias é a nossa tentativa conceitual de pensar aqui as diferenças plurais que habitam os sujeitos nas consecuções dos seus devires e das suas tribos. E muito embora seja necessário assinalar as diferenças conceituais dos autores aqui evocados, multidão de minorias é inicialmente o procedimento socio-clínico que permite ao sujeito se reconhecer como um sujeito singular (Fuks, 2000) no seio de uma multidão de singularidades. Além disso, a multidão de minorias é o devir minoritário de um sujeito falante em uma clínica que combate a psicologias das massas e os fascismos que possam aí se encontrar presentes.

Neste nível da nossa argumentação, multidão de minorias é o nome comum que damos à diversidade de seres falantes que se posicionam como sujeitos que resistem às imposições majoritárias dos poderes vigentes. Aqui, a colaboração da clínica irá exigir a consideração do sujeito na sua diferença estilística radical; e seu pertencimento a uma minoria na qual ele se sinta investido pela via de um desejo. Se, na escuta clínica, tais características forem devidamente configuradas, talvez a ocasião para a conexão entre os conceitos possa ser apresentada pela via de uma inflexão psicanalítica.

A condição de tal conexão vai depender, contudo, da escuta aprimorada de um analista que leve em conta a singularidade do sujeito com a sua tribo minoritária. Com relação à singularidade de ser-falante, a afirmação da sua diferença absoluta (Fuks, 2000) parece ser a condição de possibilidade da clínica de um sujeito singular. Neste caso, uma direção de um tratamento pode fornecer ao sujeito sua ruptura com a identificação massificante e alienante com um líder, em proveito de uma assunção da sua diferença situada ao lado das diferenças constituintes de uma multidão. Neste nível, certa conexão com Negri e Hardt parece plausível dentro de uma proposta clínica que admita a singularidade do sujeito na instancia clínica do divã.

Por outro lado, é na consideração de que cada ser falante traz consigo ou uma minoria, ou uma diversidade de minorias, que a consolidação da ideia que intitula o artigo pode ganhar as condições de uma inflexão final. É necessário, todavia, que uma minoria seja vetorizada na direção de um devir minoritário; estando tal direção, no horizonte de uma análise, condicionada pela capacidade que o sujeito terá de se reinventar ao encontrar com o a sua diferença radical6.

Sendo assim, multidão de minorias é a proposta aqui trabalhada como a estratégia clínico-política de combate aos movimentos fascistas de massa que atravessam o campo social. Com tais considerações, cremos ter tratado das questões prioritárias que justifiquem o nosso título. Resta agora concluímos a nossa breve intervenção pelas considerações finais do nosso artigo.

 

Conclusão: multidão de minorias

Multidão de minorias é a conceituação que não só autoriza a tratar cada membro de uma multidão como um sujeito singular, mas também autoriza sua vinculação necessária a uma determinada minoria. Enquanto membro da multidão, o sujeito deve ser considerado pela sua diferença criadora; e definido como uma singularidade situada no meio de uma multidão de singularidades. Já como minoria ele deve ser referido à sua condição minoritária, para sair da identificação alienante na qual se encontra quando identificado com o super eu social. Ora, dentro desta perspectiva, é preciso que o sujeito se encontre com a sua diferença radical e seja devidamente considerado como um indivíduo minoritário. Sendo assim, certo atravessamento clínico deve ser aqui ensejado, dentro de uma perspectiva psicanalítica que leve em conta a condição singular do sujeito, pela direção de um tratamento cuja finalidade seja a afirmação da sua condição minoritária no meio de uma multidão.

É possível pensar, entretanto, em um sujeito sem referi-lo ao seu contexto histórico mundial? Sem entendê-lo como um membro de uma minoria e que traga consigo uma minoria subjetiva? Sendo assim, qual sujeito não traz consigo um fenômeno de pertencimento? E qual não expressa, em certas circunstâncias, uma minoria da qual ele procede? Que sujeito de fato existente não traz consigo um território habitado por sujeitos singulares que compõem um mundo original? Com tais perguntas, afirmamos com Deleuze e Guattari que todos somos minorias. E que, além disso, evocamos minorias que trazemos conosco ao longo das descobertas da nossa variação subjetiva.

Ora, é aqui que a condição minoritária irá exigir um procedimento mais arrojado na nossa descrição. Segundo os autores, não basta ser membro de uma minoria, já que o risco de reproduzir modelos majoritários é sempre possível, como assinalamos no caso dos fascismos acima registrados. Torna-se necessário verter a condição de minoria na orientação de um devir minoritário. Assim, da minoria ao devir-minoritário todo um procedimento de minoração pode ser assinalado e devidamente compreendido segundo critérios clínicos que gostaríamos de introduzir com três exemplificações: se um negro se compreende como sujeito de uma minoria que ele traga consigo a possibilidade de devir negro como a condição da minoração; e que neste procedimento possa haver, igualmente, um devir mulher do homem e um devir criança da mulher. Em tais devires é o real do devir que aqui se visa, sem que ele traga as características nefastas da imitação ou da analogia.

Neste caso, um devir negro de um homem branco não deve ser confundido com uma imitação de um homem negro; mas como uma negritude afetiva e expressiva que coloca o sujeito em uma zona de vizinhança com uma negritude que expresse seu modo de vida singular. Ao tomarmos cada sujeito implicado no seu ser singular, entendendo-o como uma minoria que pode se verter na direção de um devir-minoritário, tornamos plausível um vetor que coloque os dois conceitos aqui estudados em uma zona de vizinhança ou de indistinção, em que cada sujeito – enquanto ser de multidão – seja constituído por uma diversidade de minorias que fará entrar em devir na ocasião de um processo clínico.

Enfim, multidão de minorias é a expressão complexa de movimentos heterogêneos, cuja diversidade étnica, sexual, política e social não procura mais reproduzir os modelos majoritários, que se encontram presentes nas manifestações de massas ou nos agregamentos majoritários totalitaristas e fascistas; para fazer valer uma multiplicidade de diferenças dentro de uma perspectiva democrática e plural.

Nesta abertura à diversidade, todo um devir de uma vida não fascista e mais plural pode ocorrer tanto na esfera sociopolítica quanto na esfera clínica; uma vez que - em ambas as esferas - um processo micropolítico é indispensável para desfazer as identificações alienantes, conduzindo o sujeito à sua diferença singular e à sua possibilidade de mudança.

 

Referências

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Negri, A. O Poder Constituinte – Ensaio sobre as alternativas da modernidade. São Paulo: DP& A Editora, 2002.

Negri, A. Kayrós, Alma Venus e Multitudo. São Paulo: DP& A Editora, 2003.         [ Links ]

Negri, A & Hardt, M. Multidão – Guerra e Democracia na Era do Império. Rio de Janeiro-São Paulo: Ed. Record, 2005.

 

 

1 O texto de Negri e Hardt que usaremos ao longo do artigo se intitula Multidão – lançado pela editora Record.
2 Os textos de Deleuze e Guattari se encontram nos volumes 3 e 4 da edição brasileira do Mil Platôs, mas Deleuze será evocado também em uma entrevista concedida a Negri, publicada na edição Brasileira do livro Conversações.
3 O texto de Betty Fuks se intitula Freud e a Judeidade e será citado na ocasião em que estivermos situando a psicanálise no contexto do nosso artigo. Este texto antecipará os comentários que faremos na abordagem final do sujeito pela via da sua singularidade.
4 Os dois autores são citados no texto através dos comentários de Freud. Neste sentido, não criamos condições para uma análise detalhada dos autores, mas utilizamos o essencial para sintetizar o que buscamos extrair do texto freudiano.
5 O poder Constituinte (2002) e o Livro Kayrós, Alma Venus e multitudo (2003) são textos onde Negri já trata da constituição do poder constituinte da multidão através de uma iniciativa individual. É bem verdade que a iniciativa se ampliou com a colaboração de Hardt que aqui apresentamos. Todavia, consideramos importante a leitura dos dois textos que constam na nossa referência bibliográfica.
6 Retomamos reiteradamente a ideia de Betty Fuks porque acreditamos que seja possível pensar tal diferença absoluta com as inflexões da autora. No texto dela, a diferença do sujeito parece coincidir com aquilo que em clínica compreendemos como direção do tratamento, mas no nosso texto ela remete, sem dúvida alguma, a alguns aspectos dos autores que analisamos acima.

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