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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versión On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.14 no.spe Rio de Janeiro abr. 2022

 

OS DISCURSOS E AS CAUSAS

 

A política das armas e dos deuses

 

The politics of "gods" and arms

 

La política de los "dioses" y las armas

 

 

Betty Bernardo Fuks

Psicanalista. Docente do Programa de Pós-graduação stricto sensu em Psicanálise, Saúde e Sociedade (UVA). E-mail: betty.fuks@gmail.com

 

 


RESUMO

A partir de um documento do Tribunal de Nuremberg sobre a morte de Rosa Graf, irmã de Sigmund Freud, em um campo de extermínio nazista, Treblinka, a autora defende, em base aos conceitos de angústia e de desamparo (Hilflogiskeit) e da noção de nostalgia do Pai, a ideia de que "Psicologia das massas, análise do eu" (Freud, 1921) pode ser considerado um texto premonitório da catástrofe que significou a ascensão do totalitarismo no século XX.

Palavras-chave: ANGÚSTIA; DESAMPARO; NOSTALGIA DO PAI; POLÍTICA; TIRANIA.


ABSTRACT

Based on a document from the Nuremberg Court on the death of Rosa Graf, Sigmund Freud's sister, in a Nazi extermination camp, Treblinka, on the concepts of anxiety and helplessness (Hilflogiskeit), and on the notion of the longing for the father, the author defends the idea that "Group Psychology and the analysis of the ego" (Freud, 1921) is a premonitory text of the catastrophe that meant the rise of totalitarianism in the 20th century.

Keywords: ANXIETY; HELPLESSNESS; LONGING FOR THE FATHER; POLITICS; TYRANNY.


RESUMEN

Desde un documento de la Corte de Nuremberg sobre la muerte de Rosa Graf, hermana de Sigmund Freud, en un campo de exterminio nazi, Treblinka, la autora defiende, basándose en los conceptos de angustia y de desamparo (Hilflogiskeit) y la noción de nostalgia por el Padre, la idea de que "Psicología de masas, el análisis del yo" (Freud, 1921), puede considerarse un texto premonitorio de la catástrofe que significó el auge del totalitarismo en el siglo XX.

Palabras-claves: ANGUSTIA; DESAMPARO; NOSTALGIA DEL PADRE; POLÍTICA; TIRANÍA.


 

 

"Vivemos numa época particularmente curiosa. Descobrimos com espanto que o progresso selou uma aliança com a barbárie"
Sigmund Freud (1939/2014: 89)

 

1946, Nuremberg.

"Juiz Smimor. – Peço-lhe, Sr. testemunha, que nos conte como Franz Kurt matou a mulher que se apresentou como sendo a irmã de Sigmund Freud. O Sr. se recorda?

Rajman. – Foi assim. O trem chegou de Viena. Eu estava naquela hora no cais quando as pessoas saíram dos vagões. Uma mulher de uma certa idade aproximou-se de Franz Kurt [comandante de Treblinka], apresentou um Ausweis, [carteira de identidade] e disse ser irmã de Sigmund Freud. Ela pediu que, se possível, fosse empregada num trabalho simples de escritório. Franz examinou cuidadosamente o Ausweis e disse que provavelmente tratava-se de um engano. Levou-a até o indicador com os horários dos trens e disse que, dentro de duas horas, um trem voltaria de Viena. Ela podia deixar ali todos seus objetos de valor e documentos, ir tomar banho, e depois do banho, seus documentos e passagem para Viena estariam à sua disposição. Naturalmente, a mulher entrou no banho, de onde nunca mais saiu" (Leupold-Löwenthal, 1992, p. 406-407).

Nestes termos, tomamos conhecimento, através de minuta do processo da Corte internacional militar contra os principais criminosos de guerra, do trágico e triste fim de uma das irmãs de Freud, Rosa Graf. Tomados pela perplexidade e pelo horror num primeiro momento, aos poucos nos vamos dando conta de que aquela velha senhora acreditava, sobretudo, nas insígnias apresentadas ao comandante do campo de concentração. Não parecia duvidar, nem por um momento, de que o nome de seu irmão, aquele que trouxera ao mundo a descoberta do século, deixaria de influenciar positivamente na decisão do oficial nazista. Diante de sua singela solicitação, apenas de um trabalho condizente com sua avançada idade, temos de admitir que Rosa, pelo visto, não imaginava o destino implacável que lhe reservava a fúria assassina do outro. É que às irmãs do fundador da psicanálise coube, na história familiar, zelar com serenidade e aceitação incondicional pelo futuro da carreira de Freud. Anna, a mais velha das irmãs, chegou a interromper seus estudos de piano, para que o prodigioso pequeno Sigmund pudesse estudar em silêncio. Nada então mais justo que Rosa viesse pensar em reivindicar um lugar de respeito, em nome da psicanálise, em plena guerra.

 


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Mas qual é o efeito, sobre nós analistas, desse depoimento que nos relata um fato não menos perverso do que outros tantos, ocorridos nos campos de concentração hitleristas e nem mais amoral do que qualquer episódio desumano de nosso cotidiano perverso? De fato, qual o analista que não é tomado pela angústia quando numa leitura mais dirigida percebe, nesse protocolo de Nuremberg, que no embate entre a ideologia nazista, transformada numa espécie de religião, e a psicanálise, vencia, pelo menos naquele momento, a primeira, levando à câmara de gás Logos, o "deus" da segunda.

Antes de mais nada, é preciso dizer que Logos, "princípio da ordem, mediador entre mundo sensível e inteligível" (Hollanda, 1992), não significa apenas a razão como costumamos pensar. Instrumento de debate público na antiga Grécia, em sua origem, tomou na verdade um duplo sentido: de um lado passou a significar a razão, definindo o homem enquanto um ser racional; de outro, passou a representar a fala discursiva dos oradores gregos na assembleia da pólis, lugar de regulamentação da vida social do país (Vernant, 1990, 198). Outrora dirigida por um rei-sacerdote, a Grécia só alcançou a dessacralizar e racionalizar a vida social de seu povo sob a égide de Logos, em sua dupla vertente: razão e palavra discursiva. Foi no discurso, entretanto, que os gregos marcaram a diferença entre a ordem do humano e do inumano denominado o homem de "ser vivo que tem a Linguagem". Uma definição que perdeu toda a radicalidade com a tradução latina de "animal rationale" (Leão, 1992, p.20).

Quando Freud batiza a psicanálise no culto de Logos, possivelmente sua intenção era a de fazer com que os analistas se convertessem, irrestritamente, à vertente "Logos-palavra". É que, após ter ferido a humanidade narcisicamente, deslocando do lugar sagrado que ocupavam até então a razão e a consciência, o inventor da psicanálise traça um caminho preciso àquele que deseja ocupar o lugar de analista: seguir na contramão das certezas inabaláveis impostas por qualquer razão. Para alcançar um ponto de chegada, há exigência de um limite ético: denunciar esta imposição de uma verdade unívoca e totalizante, dando voz à palavra que, em sua deriva, produz múltiplas verdades. Assim, podemos afirmar que, antecedendo Borges, Freud, em seu culto a "Logos" passa a reverenciar apenas o dicionário secreto de Deus: "cabe sospechar que no hay universo en el sentido orgánico, unificador que tiene [la] ambiciosa palabra. Si lo hay, falta conjecturar su propósito, falta conjecturar las palabras, las definiciones, las etmologías... del diccionario secreto de Dios" (Borges, 1985, 706).

O curioso é que, Freud, ao escolher elevar Logos à categoria de um "deus", à psicanálise, tenta preservá-la do perigo de se tornar uma religião. Indicando a função de desconhecimento da consciência e do eu, a descoberta freudiana, sob a proteção de "Logos-palavra" rompe, para sempre, com qualquer possibilidade de totalização do saber. Com essa escolha, o mestre de Viena pode traçar, também, sua estratégia de combate: a razão que se constituísse totalitariamente, sob pena de ela tornar-se, à moda da religião, igualmente ilusória. O projeto freudiano de ataque aos dogmas se constituiu, na sua radicalidade, em fazer desvendar, através da fala, aquilo que as crenças manipuladas pelas Igrejas estabelecidas, tratavam de ocultar.

Qual seria então o futuro da religião frente à força da palavra?

"O Futuro de uma Ilusão" (Freud, 1927), conhecido como um dos escritos mais otimistas de Freud, aponta para o inevitável declínio da religião ao mesmo tempo em que assevera o futuro à ciência psicanalítica. Mas vale lembrar aqui que sabemos pela correspondência com o pastor Pfister, com quem Freud mantinha uma polêmica amigável acerca da religião e da psicanálise, que ele pretendia, sobretudo, proteger a psicanálise contra padres; o que fez com que ele se empenhasse em marcar com precisão no texto em questão, o universo e o modo de ação psicanalítico. Aos religiosos, vetou o exercício da psicanálise, porque, comprometidos ideologicamente com a religião, fatalmente acabariam por colocar em risco o estatuto e a radicalidade clínica da psicanálise: fazer com que o sujeito, em análise, alcance poder falar sobre uma verdade, ainda que não toda e, assim, desconstruir e desvelar as ilusões nas quais ele se aliena. Por isso, se aos religiosos não seria permitido utilizar o método freudiano para "salvar as almas, como queria Pfister, aos analistas era recomendado que não tornassem o saber psicanalítico um dogma ou mesmo uma crença, sob pena de transformá-la numa Weltanschauung religiosa. Freud estava deveras esperançoso quando redigia o texto em questão: junto às histéricas, havia inventado a "talking cure" e, assim, o efeito revelador das palavras descoberto pelos gregos voltava à cena na modernidade como possibilidade de se constituir numa ciência: "Não, nossa ciência não é ilusão. Mas seria uma ilusão acreditar que possamos encontrar em outro lugar o que ela não nos pode oferecer" (1927/1976, p. 133). Com estas derradeiras palavras, o autor encerra o ensaio, reafirmando o triunfo do verbo sobre a religião.

Este conhecido otimismo freudiano, entretanto, não foi, pelo visto, a última palavra de Freud. Embora partidário e crente na beleza da transitoriedade da vida e na força da palavra como possibilidade de clarear o obscuro imposto pela repressão, no mesmo ano da redação de texto de 1927, ele vai mostrar-se também pessimista quanto à possibilidade de uma radical desconstrução da ilusão religiosa. Elizabeth Roudinesco conta-nos que, em conversa particular com Maria Bonaparte, Freud insistira no inevitável e iminente retorno do poder religioso estabelecido na Idade Média: o império da razão divina. Foi diante da tentativa da princesa em convencê-lo de ser o antissemitismo apenas um mal obscurantista da Idade das Trevas, sem possibilidades de vir a acontecer na modernidade, que o velho sábio lhe respondeu implacavelmente: "Espere só! Veremos, sem dúvida um terrível retorno ofensivo [do obscurantismo religioso]" (Roudinesco, 1989, 419). Marie, que acreditava no Iluminismo como uma arma imbatível capaz de assegurar o desmantelamento das perseguições raciais crescentes na Europa, não poderia imaginar, naquela ocasião, que caberia a ela, dentro de poucos anos, a responsabilidade de salvar seu interlocutor e alguns de seus familiares das garras da Gestapo.

Como não ligar as palavras de Freud à princesa com o documento de Nuremberg, transcrito no início deste texto, onde explicitamente se ratifica a tese do triunfo de um projeto totalitário, a ilusão nazista, sobre a palavras? O que teria levado este "profeta" do século XX a formular uma profecia tão contundente, se ele mesmo era também um fervoroso adepto do pensamento das Luzes?

 

Desamparo e Nostalgia

Alguns anos antes da redação de Totem e Tabu, texto no qual irá trabalhar a origem da religião (Totem) e da moralidade (Tabu) como intrinsecamente ligadas ao nascimento da cultura e do sujeito, Freud escreve a Jung: "Ocorreu-me que a base última da necessidade do homem por religião é o desamparo infantil, tão mais acentuado no homem que nos animais" (Freud/Jung, 1976, p. 337). Essa ideia, Freud retomará em "Mal-Estar na Civilização", para responder algumas questões que seu amigo, Romain Rollan, havia colocado a respeito do sentimento de religiosidade no homem. O escritor confessara a Freud acreditar ser a fonte última da religiosidade uma "sensação de eternidade", um sentimento de ausência de limites ou barreiras, oceânico. De seu lado, o psicanalista é peremptório em sua resposta ao amigo: o sentimento oceânico não é uma questão fundamental da necessidade do homem por religião; ele é apenas uma tentativa de restauração narcísica do eu. E, retomando suas intuições do início do século, em torno da religião, afirma que a verdadeira origem das necessidades religiosas advém do desamparo infantil e da nostalgia pelo pai, reanimados sempre diante da onipotência do destino fonte de angústia (Freud, 1930/1976,90).

Subjacente a todos os sintomas, à angústia Freud conferiu, diante de evidências retiradas da clínica, o estatuto do afeto mais real, mais próximo da descarga energética. Assim, ainda no "Manuscrito E", ele irá defini-la como "a sensação de acúmulo de outro estímulo endógeno, o estímulo da respiração, estímulo este que não é passível de ser psiquicamente elaborado além da própria respiração" (Masson, 1986,78). Essa impossibilidade de elaboração é consequência de uma experiência absolutamente traumática, provocadora de um transbordamento pulsional, que não encontra determinantes psíquicos, representações a se vincular. A origem da angústia como efeito de um traumatismo, denominada posteriormente por Freud, de angústia automática, atravessará toda a obra de Freud, e quando ele introduz a noção de sinal de angústia, vinculada à sexualidade, apenas assinala uma forma para a evitação de uma situação de perigo que possa levar o sujeito ao total desamparo psíquico.

Coube, contudo, a J. Lacan retomar a dimensão da angústia como expressão do desamparo original à luz da pulsão de morte, se definirmos esta como aquilo que transborda para além da sexualidade inscrita no psiquismo e o desamparo como expressão pulsional do encontro sempre traumático do sujeito com o real. Por conta disso, no Seminário XI , reconhece que "o que é despertado pelo traumatismo, é a outra realidade escondida por traz da falta, do que tem lugar na representação – é o Trieb, nos diz Freud –" (Lacan, 1979, p. 61). Trata-se de um despertar que, colocando o sujeito face a face com aquilo que deveria permanecer oculto, mas veio à luz, provoca uma sensação de profundo desamparo e de estranheza. O alcance desta experiência que Freud denominou de Umheimlich ([1919]1976), revela a insistência da angústia no modelo desencadeado pelo nascimento - "o ato de nascer é a primeira experiência de angústia sendo assim a fonte e o protótipo da sensação de angústia" (Freud, ([1925-1926]1976, p. 118). Em outras palavras: o affekt de angústia surgirá sempre frente ao inexorável desamparo infantil, ao qual estamos sempre expostos desde nossa entrada no mundo, diante daquilo que não podemos dominar. Companheira constante da condição humana a angústia é o insuportável barulho do silêncio, a "resposta ao perigo mais original, do insuportável Hilflosigkeit, ao desamparo absoluto de entrada no mundo" [Freud, [1925-1926]1976, 103), quando o proto-sujeito se encontrava passivamente diante do desejo do Outro, isto é, da onipotência do destino.

Entre a carta a Jung, em que Freud nos fala de uma necessidade do homem por religião, e "Mal-Estar na civilização", onde reafirma a nostalgia do Pai como resposta ao desamparo, o pai da psicanálise escreve "Totem e Tabu" ([1912-1913]1976). É aí que, ao procurar a origem do desejo do homem, a partir dos desejos do homem primitivo e do neurótico, elabora toda uma teoria da religião, com a construção do seu conhecido mito do "Pai Primevo" (Urvarter). A hipótese apresentada em Totem e Tabu é a de que "a religião, a moralidade e um senso social – os principais elementos do lado superior do homem – foram originalmente uma só e mesma coisa" (Freud, [1923/1925]1976, p. 19). O recurso ao mito significou a tentativa de Freud estabelecer, pela lógica, a partir dos próprios achados clínicos, uma construção metafórica acerca do momento de fundação da sociedade moderna e da origem do sujeito. Origem marcada por uma fundação também mítica, o recalcamento originário, responsável pela Spaltung entre o consciente e o inconsciente. É no plano desta cisão que Freud empreende reflexões contundentes das mais importantes fundações da civilização, extraindo do seu mito uma consequência: a ontogênese repete a filogênese a partir do complexo paterno (Vaterkomplex).

O apotegma de Goethe no poema Fausto, "No princípio era o ato", dá o tom ao mito de Totem e Tabu. Freud descobrira lenta e laboriosamente aquilo que o poeta conhecia espontaneamente. A fundação da humanidade é efeito de um ato: o parricídio. Ato que impôs uma perda de tal ordem que instituiu a falta que deu partida ao advento da linguagem e da ordem simbólica. O paradoxo do mito apresenta é que os filhos assassinos terminam instalando uma cultura de impedimento àquilo que o Pai, tirânico e privador de gozo, em vida os impedia de fazer. Morto, porém mais eficaz, o Pai da horda obtém seu triunfo indelével. Assolados pela culpa instalada depois do ato assassino, os filhos passam a uma segunda cena: num banquete totêmico onde reforçam o laço social estabelecido para matar o Pai, os irmãos se identificam não mais apenas uns com os outros, mas agora sobretudo com o morto, objeto de idealização suprema. Identificação e idealização, pela lógica freudiana, são dois eixos de força do complexo parental-paterno. A identificação funciona antiteticamente, como um imperativo e um interdito – "você deveria ser assim (como seu pai), você não poderia ser assim (como seu pai)... certas coisas são prerrogativas dele" (Freud, [1923/1925]1976, p. 34); enquanto a idealização é o investimento que dá o colorido religioso ao mito, outrora odiado, mas agora, após a morte, amado, os filhos passam a engrandecer o Pai, elevando-o a categoria de um objeto nostálgico. É o início das organizações sociais, da cultura e da religião.

Com a proibição do gozo, a lei que instaura o desejo, os irmãos passaram a velar pela vacância do lugar deixado pelo Pai. Esta foi e é a condição de o laço social vir a se perpetuar, sob pena daquele que ousar ocupar este vazio estruturante da fratria ter como destino a morte. É que o poder, antes exercido apenas por Um que detinha o gozo e mantinha o outro sob privação, deve ser, a partir de seu assassinato, redistribuído e compartilhado entre todos, mediante a ausência-presente do Pai: trata-se da instalação de um espaço alteritário, instaurador da comunidade humana.

Um acontecimento da ordem da eliminação do Pai deixou, entretanto, marcas profundas, traços impossíveis de se erradicar ao longo da história da humanidade (Freud, [1912/1913]1976), mas sujeitos à transcrição de tempos em tempos, reiniciando, assim, o momento vivo da instalação da cultura. Foi diante dessa evidência, a impossibilidade da humanidade de se desvencilhar definitivamente do referente paterno, que Freud passou a articular à religião, o desamparo e a nostalgia de um pai: órfãos e desesperados frente ao encontro inevitável com o real sempre traumático, os filhos evocarão, compulsivamente, um Pai que os proteja do desamparo provocador da angústia. Isso nos autoriza a dizer que: toda a configuração na qual o complexo paterno ("Vatercomplex") é reativado, deve ser considerada religiosa (Assoun, 1991, 43)

Se, em Totem e Tabu, o totemismo inspirou a construção do mito do assassinato, das manifestações das massas modernas que se "sucediam cada vez com maior frequência e violência, causando estupor de políticos e policiais que se esforçavam sobretudo em lhes atribuir uma responsabilidade" (Goldemberg: 2014;27), Freud deduz a resposta: na pré-história, os indivíduos comandados pelo pai da horda se mantinham presos à psicologia das massas, ou seja, impedidos de expressar uma vontade singular (1921/2020: 200-202). O assassinato permitirá a passagem da "psicologia das massas" à "psicologia do individual". Trata-se de uma transição em que cada indivíduo se torna parte integrante da "alma de muitas massas, a de sua raça, a de sua classe, a da comunidade de fé (...), podendo, além disso, aceder a uma pequena parcela de autonomia e de originalidade" (1921/2020: p. 207). Tal possibilidade é o nome que se dá à singularidade que cada um deve permanentemente conquistar.

Em "Totem e Tabu", Freud indicara que a invenção da democracia - o regime político fundado em torno do vazio outrora ocupado pelo Ürvarter - é outro dos efeitos do assassinato. A igualdade democrática, todavia, não se sustentou por muito tempo; sobreveio a saudade do pai diante do desamparo humano inexorável (Freud, 1913/2003: 216). E, assim, os homens criaram os deuses e, mais tarde, conceberam a ideia de um Deus todo-poderoso (:217). E, na modernidade, mesmo com a promulgação da famosa sentença de Nietzsche - "Deus está morto" -, souberam deslocar a demanda de proteção ao líder, cuja imagem familiar de um indivíduo potente e grandioso, favorece a identificação de sua pessoa ao Urvarter (1921/2020:201). A constante demanda fantasmática de proteção ao Pai tem como consequência a própria escolha do indivíduo em se entregar passivamente ao Outro; o que significa que há uma adesão religiosa a divisar nesse oferecimento: o selvagem das cavernas e o sujeito moderno insistem igualmente no apelo imaginário ao Outro, a quem atribuem a capacidade de livrá-los das preocupações, tormentos e inquietudes da vida. Assim, "o sujeito abandona seu Ideal do Eu e o troca pelo ideal da massa incorporado pelo líder" (Freud, 1921/2020, p. 207), ou seja, nas massas, do tipo que Freud nos traz como exemplo no texto de 1921, Igreja e Exército, o que acontece é a transposição idealista das relações na horda originária (Assoun, 1987).

Como exemplo-chave dessa transposição, Freud toma o funcionamento político da Igreja e o Exército: são turbas "artificiais" que sustentadas por indivíduos que colocam um só e mesmo objeto no lugar de seu ideal do eu" (Freud, ([1921] 1976, 116). Trata-se, portanto, da política de instalar um fetiche cuja crença é sustentada pela idealização de um único objeto que passa a ocupar, a preencher o lugar do Pai morto Todo esse esquema revela que embora, na modernidade, Deus esteja morto, os homens tornaram as ideologias e outras formas de poder, análogas à religião: em troca da alienação de todos, oferecem um fetiche para tamponar imaginariamente o mal-estar irredutível, a angústia. Em outras palavras, o ensaio em questão, como bem demonstrou Paul Laurant Assoun (1987, p.109), revela de que forma, na atualidade, se "pratica" o mito freudiano da horda primitiva: a massa, frente à insistência da angústia, convocará um Pai protetor que certamente prometerá o fim do desamparo, em troca da servidão compulsiva de todos. Aqueles que não lhe prestam obediência e tampouco se identificam com a maioria, o destino traçado será o da exclusão do grupo pelo banimento ou pela morte. O preço a se pagar pelo ganho imaginário de uma proteção quanto o desamparo, é o fim da alteridade: exercício do amor entre aqueles que se identificam entre si, ódio pelos que estão fora. O que se segue, a história não cansa de demonstrar, é a instauração de uma ordem totalitária em relação ao qual ninguém pode se distanciar ou se diferenciar, sob pena de destruição.

A articulação entre Totem e Tabu (1912) e "Psicologia das Massas na análise do eu" (1921), permite entender de que modo a fratria constitutiva da civilização, descrita em "Totem e Tabu", é dissolvida em nome de uma organização de irmãos que reanima, de tempos em tempos, o cadáver de um pai insepulto, cujo retorno das trevas horroriza a civilização.

 

A tirania em nome da proteção

Diante dessas considerações, podemos encaminhar o encerramento de nossa pequena reflexão, indicada no início deste texto, sobre a intuição freudiana que previra a reatualização da razão divina, paradigma da Inquisição, em pleno século XX.

Freud, mesmo sendo filho ilustre do pensamento iluminista e partidário confesso do triunfo da ciência era, não obstante, sobretudo lúcido. E de que mais, como bem pergunta o filósofo Emanuel Levinas, se trata a lucidez, senão de "entrever a possibilidade permanente de guerra?" (1980, p. 9) A experiência da violência na civilização moderna, já era uma questão para o Mestre de Viena desde a primeira guerra mundial quando escreveu o artigo "Considerações de atualidade Sobre a Guerra e a Morte" ([1915]1976). Por ocasião da conversa com Marie Bonaparte, enquanto o mundo caminhava vertiginosamente para um segundo confronto, Freud finalizava suas modificações no aparelho conceitual na psicanálise que lhe serviram como bússola precisa acerca do futuro. Assim, sua profecia do retorno iminente do obscurantismo religioso, bandeira da guerra santa, dramaticamente confirmada a posteriori, foi apenas efeito de uma aguda percepção histórica, aliada à contundência de suas descobertas teórico-clínicas. É que, ao se dar conta de uma inevitável compulsão a repetição, na civilização, do "Vaterkomplex", sob a forma de um sistema perverso, Freud pôde dizer à princesa: toda guerra é e sempre será religiosa, como foi a da Inquisição, pois guerrear consiste em manter os sujeitos dominados por uma verdade absoluta, exigindo de todos fidelidade incondicional a um sistema de crenças fechado e sem horizontes outros que não seus próprios dogmas. Esta falta de um futuro aberto, que inviabiliza totalmente a produção de novas verdades, impede também a emergência de singularidades múltiplas, que só acontecem diante de um desejo alteritário, isto é, de um desejo que, por definição, seja infinito, indizível e invisível1. Não há verdades absolutas sobre o desejo, mas sim verdades a se construir: esta é a "ínfima diferença entre homem e não-homem" (Levinas, 1980, p. 23). Freud previu o triunfo da razão teológica em plena ascensão nazista, porque percebeu, lucidamente, na metade do nosso século, o retorno da barbárie: a instalação de um sistema perverso, capaz de manter os filhos na ordem de uma obediência exclusiva e religiosa a uma única verdade. Adeptos fervorosos na crença de uma inteligência superior, possível de impedir o acaso das forças poderosas e impiedosas da natureza, os homens se curvam e passam a servir à vontade despótica do Um. Ora, é possível então afirmar que, no registro da materialização que acarreta a consistência desta crença, não há ateus. "O ateu", Lacan nos dirá no seminário da Angústia, "enquanto combatente, enquanto revolucionário, não é aquele que nega Deus em sua função de onipotência, mas sim aquele que se afirma como alguém que não serve a nenhum deus" (Lacan, 2004, 336).

Os alemães estavam prestes a instituir um novo "deus", vislumbrou Freud antes mesmo de Hitler chegar ao poder. Institucionalizando o genocídio, como forma de apagamento das diferenças e do banimento da pluralidade de desejos, o "deus da raça" abriu, em pleno século XX, um paradoxo incontornável: a tirania em nome da proteção. Isto nos leva a pensar que, neste tipo de repetição já milenar, aquilo que está em questão não é um pai morto, que funda a origem da função do pai em seu assassinato (Lacan, 1979, 60), mas a apresentação de um pai tirânico e onipotente que exige em nome do amor que todos lhe sejam fiéis e obedientes a seus ideais. Fidelidade esta que só se impõe aos membros da massa através da identificação do líder e sua suprema idealização. Este mecanismo complexo é o que faz com que todos se tornem igualmente, "deuses", senhores da vida e da morte.

Certamente, foi este tipo de identificação ao Führer que, fomentada pela idealização, levou o Comandante Treblinka a assassinar a irmã de Freud, quando esta lhe apresentou suas insígnias, portadoras das diferenças. Quanto a este episódio, o que podemos concluir é que aquilo que Freud não pode intuir quando comunicou à princesa sua convicção sobre o retorno da razão obscurantista vigente na Idade das Trevas: a ilusão política de Hitler, desprovida de qualquer ética da alteridade, acabaria por levar suas próprias irmãs ao extermínio nos campos de concentração nazistas. Suas quatros irmãs que não conseguiram emigrar foram confinadas primeiramente em um apartamento de um cômodo, apenas. Mais tarde, Maria, Adolphine e Pauline, foram enviadas para Therienstad. Adolphine morreu, de acordo com o atestado de óbito, de "hemorragia interna" nesse campo de concentração. Um pouco mais tarde Marie e Pauline foram enviadas para o campo de extermínio Maly Trostiner's; Rosa, de acordo com o documento exposto no início desse artigo, morreu na câmara de gás em Treblinka.

 

Referências

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1 Manter vivo a impossibilidade de realizar o Eu ideal é o que torna possível o processo civilizatório.

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