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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.14 no.spe Rio de Janeiro abr. 2022

 

OS DISCURSOS E AS CAUSAS

 

O avesso do grupo primário freudiano: intolerância e racism

 

The reverse of the Freudian primary group: intolerance and racism

 

L'inverse du groupe primaire freudien: l'intolérance et le racisme

 

 

Andrea Guerra

Professora adjunta do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG. E-mail: andreamcguerra@gmail.com

 

 


RESUMO

No avesso da centenária proposição freudiana de grupo primário, buscaremos identificar os grupos de composição negativa, em cujo centro articulador estaria o ódio e não o ideal. Trabalharemos em três tempos esta lógica contemporânea dos grupos. No primeiro, retomaremos os pressupostos da teoria de grupo no diálogo de Freud com Le Bon. No segundo, analisaremos a matriz psicanalítica do ódio como ódio ao próprio gozo projetado no Outro. Para, num giro decolonial, mostrar nossa hipótese de que nos processos coloniais o liame dos grupos é o racismo como ódio – estruturalmente ódio do próprio gozo projetado em um inimigo eleito.

Palavras-chave: GRUPO; FREUD; ÓDIO; INTOLERÂNCIA; RACISMO.


ABSTRACT

Seeking to identify, on the reverse side of the century-old Freudian proposition of a primary group, by groups of negative composition, in whose articulating center would be hatred and not the ideal, we will work in three stages this contemporary logic of groups. In the first part, we will resume the presuppositions of group theory in Freud's dialogue with Le Bon. In the second, we will analyze the psychoanalytic matrix of hate as hate for the own jouissance projected on the Other. To, in a decolonial turn, show our hypothesis that the bond of the groups is racism as hate in colonial processes – structurally hate of the own jouissance projected on an elected enemy.

Key words: GROUP; FREUD; HATE; INTOLERANCE; RACISM.


RÉSUMÉ

À l'envers de la proposition freudienne centenaire d'un groupe primaire, nous chercherons à identifier des groupes à composition négative, dont le centre d'articulation serait la haine et non l'idéal. Nous travaillerons en trois temps cette logique contemporaine des groupes. Dans la première, nous reprendrons les présupposés de la théorie des groupes dans le dialogue de Freud avec Le Bon. Dans le second, nous analyserons la matrice psychanalytique de la haine comme haine de la jouissance propre projetée sur l'Autre. Pour, dans un tournant décolonial, montrer notre hypothèse que dans les processus coloniaux le lien des groupes est le racisme comme haine – structurellement la haine de la jouissance propre projetée sur un ennemi élu.

Mots clés: GROUPER; FREUD; HAINE; INTOLERANCE; RACISME.


 

 

Introdução

A comemoração dos 100 anos de publicação do clássico artigo freudiano "Psicologia das massas e análise do eu" (Freud, 1921/2020) vem em oportuno momento histórico. Massas populares movimentadas por anseios fascistas, fake news produzindo hordas virtuais, intolerância religiosa e étnica alimentada pela tecnologia à disposição da necropolítica, cultura do ódio e acirramento do racismo contra a mínima diferença, volatização do humano pelo capital global neoliberal compõem uma cena que se tornou intensamente visibilizada.

Neste artigo, proponho uma análise do modelo de massa popular através da hipótese de que, mobilizada pelo ódio, a massa neocolonial se torna presa de lógicas totalitárias por apoiar-se, pelo avesso, na intolerância e no racismo. Herdeiros de ocupações predatórias ou assimilacionistas, países pós-colonizados arrastam séculos de dificuldade na composição de laços articulados pela dicotomia regulação/emancipação, sendo submetidos à dicotomia apropriação/violência (Santos, 2007). Superar essa condição exige análise de seu processo, tarefa que buscarei realizar aqui.

 


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As massas em Le Bon e a construção epistêmica do fundamento do racismo

Gustave Le Bon, médico de formação e polímata interessado em antropologia, psicologia, sociologia, medicina e física, foi autor de Psychologie des Foles, ponto de partida de Freud para a obra Psicologia das Massas e Análise do Eu. Ele foi também o autor de cabeceira de Mussolini e de Hitler, verdadeira inspiração dos fascistas e do ideal de pureza das raças.

Antes de publicar em 1895 seu estudo sobre as multidões, publicara "Les lois psychologiques de l'évolution des peuples" em 1877, seu primeiro livro antropológico. Neste, ele busca isolar os fatores psicológicos invariáveis da evolução social, numa postura intelectual claramente racista, disseminada na época, como atestam essas afirmações que traduzo livremente: "Pouco influenciados pela inteligência, os povos são sobretudo guiados pelos caracteres de sua raça". "Na verdade, é a raça que determina a maneira como os povos reagem sob a influência dos eventos e mudanças no ambiente". "A raça é a pedra angular sobre a qual repousa o equilíbrio das nações"1. Le Bon almoçava com eminências como os Poincaré, Paul Valéry e Henri Bergson (para se ter uma ideia de sua inserção no ambiente intelectual de sua época). Ainda assim suas proposições, supostamente científicas, denunciavam e propalavam, no crepúsculo do século XIX, seu darwinismo social, assentado no ideal da pureza da raça. "A alma das raças tem fronteiras que não podem ser cruzadas/cruzam" [...] "Ela [a raça] constitui o limite psicológico atribuído às ambições dos conquistadores, aos sonhos de hegemonia que eles podem formar"2.

Le Bon estuda várias guerras e conquistas do mundo antigo e, em particular, a dos gregos pelos romanos. E se pergunta se "algumas faculdades medíocres, postas a serviço de um ideal poderoso, não permitiriam que um povo destruísse civilizações refinadas, cujo desenvolvimento intelectual teria paralisado um pouco as qualidades de caráter" em decorrência do cruzamento racial. Para ele, uma educação rigorosa do caráter e da vontade corrigiria os erros, desvios e decadência assim engendrados pelos processos de conquista dos povos, àquela época, denominados cientificamente, de primitivos ou selvagens – como nós, ladinos amefricanos, povos colonizados, como nomeou Lélia Gonzales (2020).

Por que retomo, cem anos depois, a matriz leboniana da teoria dos grupos e do purismo da raça? Porque, segundo me parece, há em Freud uma abertura, sob a forma de porvir, de uma hipótese psicanalítica que pode explicar o incremento da intolerância e o adoecimento psíquico decorrente de sua cruel execução no alvorecer de nosso século XXI. Toda forma de opressão adoece, quando não mata. Como, então, continuamos a sustentá-la com nossos corpos, como se eles estivessem desconectados de sua cor, de seu gênero, de sua classe e de sua geopolítica num tempo determinado historicamente?

Pensei em desenvolver uma questão que Freud deixa em aberto em sua obra, a qual me dedico aqui a comemorar: poderia haver grupos de composição negativa, em cujo centro articulador estaria o ódio e não o ideal? Desenvolverei em três tempos essa proposição freudiana prenunciadora da lógica contemporânea dos grupos.

No primeiro tempo, retomarei os pressupostos da teoria de grupo, especialmente no diálogo de Freud com Le Bon. No segundo, analisarei a matriz psicanalítica do ódio como ódio ao próprio gozo projetado no Outro. Para finalmente, num giro decolonial interno à psicanálise, mostrar nossa hipótese de que, em países colonizados, o liame dos grupos é o racismo como ódio – estruturalmente ódio do próprio gozo –, ponto vazio que aloja um sentimento destrutivo, que engendra os fios que ligam os corpos geopoliticamente orientados. Institui, assim, um modo de pertença desde a matriz colonial do poder, do saber, do ser e do gênero.

 

Freud, as multidões e os agrupamentos pelo ódio: uma hipótese pelo negativo

Partirei de Freud (1921/2020), nosso guia. Ele abre sua obra sobre as multidões, contrariando Le Bon (1895/2015) para quem a psicologia individual não era também social. Para Freud, na contramão, os fenômenos sociais, em contraste com os narcisistas, incidem também e inteiramente dentro do domínio da psicologia individual, não sendo adequados para diferenciá-la de uma psicologia social ou de grupo. "Da psicologia de grupo decorrem incontáveis problemas que sequer foram distinguidos até o momento uns dos outros" (Freud, 1921/2020, p. 93). Freud seleciona alguns destes impasses, eu selecionarei outro em particular.

Ele parte de um recenseamento teórico sobre a psicologia das multidões com o clássico de Le Bon. A teoria das multidões prenunciava a teoria da comunicação de massa que logo se instalaria e animaria toda a evolução tecnológica da qual somos herdeiros: alto-falantes nos postes nazistas, depois ondas de rádio e logo a TV, em preto e branco e em cores, depois a internet e as redes sociais.

Os teóricos da Escola de Frankfurt, como Adorno e Horkheimer, iriam dedicar-se longamente à dialética comunicacional da indústria da cultura de massa, recém-inaugurada, e os da Escola de Chicago, a compreender a distinção entre multidão (ou massa) e público, abrindo uma nova seara para análise econômica de venda e imiscuição neoliberal do consumo. Foram desdobramentos pós-freudianos que encontram eco hoje nas análises algorítmicas dos internautas das redes sociais, transformando-os de consumidor em mercadoria, em novas tendências humanas e orientações teórico-filosóficas.

Por outro lado, da multidão-massa passiva - unidade em agrupamento – à multidão-potência em ato - multiplicidade em dispersão (Caiaffo et al, 2007), os diferentes movimentos como Primavera Árabe, Occupy Wall Street e Passe-Livre na aurora dos anos 2000 indiciam outra novidade. O vazio na matriz, o múltiplo na unidade e a causa singular na transformação desses novos modos de agrupamento. Sempre subjetivamente sustentados, politicamente orquestrados e economicamente alimentados. Avancemos, porém, pouco a pouco nessa nebulosa. Da mente grupal ou coletiva de Gustave Le Bon, Freud recolhe dois aspectos centrais:

(1) a composição de uma unidade psicológica, determinada por fenômenos inconscientes preponderantes que reduzem a capacidade intelectual e ;

(2) a redução da consciência individual a um modelo grupal, cuja unidade se caracteriza por um caráter médio, homogêneo, manipulável.

Le Bon aproxima a mente do grupo àquela dos povos primitivos e das crianças, por ele equivalidos em sua perspectiva darwinista e em sua cosmologia eurocêntrica. Os selvagens deveriam ser educados para terem acesso à iluminação racional. O epistemicídio de sua racionalidade originária acarretava um obstáculo à sua emancipação. Para Le Bon, essa espécie de posição regredida, atrasada, tomava os afetos do grupo. "Um grupo é impulsivo, mutável, irritável" (Freud, 1921/2020, p. 101), nada nele é premeditado, não tolera aguardar, é onipotente, ilógico, crédulo e aberto à influência, repleto de sentimentos simples e exagerados, sua concordância com a realidade jamais é conferida por um órgão razoável.

Isso ocorreria em decorrência de três fatores, ainda segundo Le Bon:

I - a soma do número de pessoas anônimas reunidas,

II - o contágio emocional,

III - e a sugestão.

Cito Le Bon:

Vemos então que o desaparecimento da personalidade consciente, a predominância da personalidade inconsciente, a modificação por meio do contágio de sentimentos e ideias numa direção idêntica, a tendência a transformar imediatamente as ideias sugeridas em atos [...] são as características principais do indivíduo que faz parte de um grupo. Ele não é mais ele mesmo, mas transformou-se num autômato que deixou de ser dirigido por sua vontade (Le Bon, 1895/2015, p. 35).

Isolado seria um homem culto; na multidão, um bárbaro. Um passo a mais nesse estado hipnótico - deem prestígio ao seu líder - e teremos o fascismo instalado... A multidão não necessita de ordem lógica, mas exige força e violência do líder; é intolerante e simultaneamente obediente a sua autoridade; quer ser dirigida, oprimida e teme seus senhores. Está sujeita ao poder mágico das palavras e comandos, teme a mudança e ama a tradição. Reunidos como um rebanho, para Le Bon (1895/2015, p. 134), na multidão os sujeitos colocam-se instintivamente sob a influência de um chefe, cujas diferentes tipos são por ele destrinchados.

No clássico do século XVI, Discurso sobre a servidão voluntária (1563/1982), do exímio articulador político francês de Bourdeaux, Étienne de La Boétie, publicado postumamente por seu grande amigo Michel de Montagne, Boétie já se perguntava como pode uma população inteira se fazer serva de um único monarca. Pobreza, medo, covardia, apatia, o que justificaria tamanha servidão voluntária? Como poderia uma população inteira que, unida, derrubaria qualquer poder e se autogovernaria, abdicar dessa possibilidade? Fascínio e servidão são os sintagmas a que ele chega e que Freud recupera. Matéria política e matéria subjetiva que Freud explicaria séculos depois.

Além de Le Bon, Freud também trabalha os modelos de grupo de McDougall, Trotter e Tarde, mas hoje nos deteremos nos dois aspectos da explicação freudiana extraídos de Le Bon para nossa finalidade. Ele explica que o prestígio do líder, como objeto externo, fascina e desperta um vínculo libidinal entre os membros do grupo, pois estes o colocam no lugar de seu ideal de eu. Identificam-se, assim, por consequência, uns com os outros em seu eu.

A suposta unidade ou sugestão entre os membros do grupo no nível identificatório dos eus e o lugar universal e totalitário do prestígio do líder no nível do ideal de eu são os dois elementos psíquicos que definem classicamente um grupo primário em Freud, explicando aquilo que Le Bon constata. "Um grupo primário é um certo número de indivíduos que colocaram um só e mesmo objeto no lugar de seu ideal de eu e, consequentemente, se identificaram uns com os outros em seu eu" (Freud, 1921/2020, p. 147).

 

 

Nossa hipótese, cem anos depois, é a de que a fundação violenta do universal e a hegemonia a ele correlata agenciam um modo de funcionamento grupal pelo ódio, como o avesso deste grupo primário freudiano - seu suplemento, invisível aos olhos naturalizadamente simbólicos do conquistador. Igreja e Exército, como grupos artificiais analisados igualmente por Freud, não nos parecem escolhas casuais na construção do argumento, já que funcionam como exemplos de forças adestradoras e docilizadoras de gozo.

Dussel, teórico do grupo Modernidade/Colonialidade, nos mostra que foram exatamente a Igreja e a o Exército os grupos responsáveis pela dizimação, aculturação e colonização de povos inteiros, sob o regime da violência e da educação religiosa e em nome da razão, ideologicamente imposta como verdade emancipatória na conquista das Américas. "Uma vez reconhecidos os territórios, geograficamente, passava-se ao controle dos corpos, das pessoas: era necessário 'pacificá-las'" (Dussel, 2000, p. 43).

A 'conquista' é um processo militar, prático e violento, que inclui dialeticamente o Outro como o 'si-mesmo'. O Outro, em sua distinção, é negado como Outro e é sujeitado, subsumido, alienado a se incorporar à totalidade dominadora como coisa, como instrumento, como oprimido, como 'encomendado' (Dussel, 2000, p. 44). A raça é sua base discursiva e pragmática de legitimação (Quijano, 2009).

Ao lado da conquista militar, segue-se a conquista espiritual, pela via da dominação do "imaginário". Essa dominação se dava através de uma fundamentação teológica da colonização. A colonização é interpretada como desígnio divino, que se torna o critério universal absoluto para toda a empresa colonial (Pimenta, 2021). O mundo cultural indígena, autóctone ou local, é negado em sua originalidade como satânico, demoníaco, perverso, como algo que deve ser completamente destruído ou modificado. É necessário reduzir os colonizados a uma tabula rasa a partir da qual se pode desenvolvê-los em direção à religião verdadeira.

Entretanto, a racionalidade argumentativa é puramente aparente e o que guia o processo é a violência irracional e direta (Dussel, 2000, p. 62). A Europa é tomada como critério de humanidade. E se dispõe a salvar os homens primitivos de um destino deletério.

Esse movimento colonial forja uma cosmologia que emerge como obstáculo à sensibilidade da presença de outros modos de composição de grupos, etnias, laços e corpos. Distintos desta estrutura articulada pelo ideal, e violentamente mantida pela força militar, policialesca e religiosa, Freud cunhou de grupo organizado pelo negativo uma outra modalidade de grupo, que propomos investigar neste artigo.

Lembremos, nessa direção, que não houve grupo que se mantivesse coeso, quieto e servil ao longo dos séculos da modernidade. Ao contrário, foram necessárias distintas e tecnológicas estratégias de guerra e combate armado, químico ou ideológico, discursivo ou torturador, para docilizar os corpos subalternizados (Mbembe, 2018a). Um grupo nunca foi apenas uma soma homogênea de vontades pacificamente aliciadas pelo Ideal de Eu, havia seu avesso violento, sádico e depredador, invisibilizado, inclusive, pela própria maneira como as teorias de massa, multidão e grupo se legitimavam no campo das ideias, da intelectualidade europeia e de sua disseminação colonizadora de corpos, etnias, raças, geopolíticas, gêneros, ideias, saberes e poderes.

Da sedução da corte monárquica à necropolítica totalitária dos atuais regimes democráticos em permanente estado de exceção (Mbembe, 2018b; Agamben, 2010), as forças, simbólica e material, de detenção do poder sempre foram necessárias e cruéis na realização de seu intento de controle, normatização e circulação do capital.

Seria uma ilusão teórica crer que o sujeito abdica libidinalmente de si para amar um líder nazifascista, sem considerar os campos de concentração; ou ainda louvar a Revolução Francesa, sem considerar os anos de Terror; ou também acreditar no Iluminismo racional e emancipatório da Europa, sem considerar que ele se fez sobre a dizimação brutal de populações indígenas inteiras, quando não sobre a atroz escravização responsável pela diáspora devastadora do continente africano. Uma teoria dos grupos que não considere a dimensão do ódio - afeto motriz de cada corpo ao lado do amor - poderia parecer hoje estar a serviço de uma lógica epistemicida que ignora amplamente as tensões e ambivalências grupais, quando tomados em sua inscrição política. Freud, porém, estava de algum modo advertido.

Ao tempo de Freud, os significantes-mestres da cultura eram ditados pela Modernidade através do semblante de unidade racional emancipatória. Somente com o véu rasgado dos múltiplos modos de pertencimento e gozo colonizados, dos corpos em revolta nos processos de descolonização política, a unidade do grupo primário pôde aparecer como fórmula minimal, não toda e para não todos. Sob a teoria de que uma bandeira, pessoa ou líder no lugar de ideal de eu forjaria o sentimento aquiescente de pertença, vela-se a docilização religiosa pela igreja, a força bruta e violenta do exército pelo Estado-Nação e a sedução alienante do mercado midiatizado pelo Capital Neoliberal. Estes sim seriam os verdadeiros responsáveis pela manutenção dos distintos grupos na contemporaneidade.

A Revolução do Haiti, contada em "Os jacobinos negros" de CLR James (2010), mostra a cólera como fundamento de agrupamentos em revolta, contra seus próprios líderes. Paradigmático. Talvez não sejamos tão suscetíveis ou sensíveis ao Um hegemônico - como quiseram nos fazer crer e reproduzir - as teorias das multidões dos séculos passados. Assim como questionamos a função da raça como fundamento legitimador da colonialidade, podemos nos perguntar a que serviu a teoria de grupos, tal qual estabelecida por Le Bon, analisada por Freud e utilizada pelo nazifascismo ítalo-alemão.

Isto pois, de um lado, não nos parece haver doçura e facilidade na tensão cotidianamente articulada entre os jogos de força para manutenção dos sistemas hegemônicos. A nanotecnologia de guerra, os drones e grupos armamentistas, a tecnologia virtual, o agenciamento racista da gestão necropolítica são compostos políticos adestradores de modos de gozo no laço social. Foram quase 500.000 mortos na Síria, cerca de cinco milhões no Congo, mais de 260.000 mortos, além dos desterritorializados pelas guerrilhas na Colômbia e sistematicamente mais de meio milhão de homens jovens e negros mortos pacificamente nas últimas décadas nas periferias brasileiras. Tudo isso sem contar as grandes guerras e os conflitos no Oriente. A lista seria assaz longa. Dela talvez tenha nascido a hipótese freudiana a desenharmos em sua complexidade.

O líder ou a ideia dominante poderiam ser negativos: o ódio contra uma determinada pessoa ou instituição poderia funcionar exatamente da mesma maneira unificadora e evocar o mesmo tipo de laços emocionais que a ligação positiva. Surgiria, então, a questão de saber se o líder é realmente indispensável à essência de um grupo, e outras ainda, além dessa (Freud, 1921/2020, p. 127).

Sabemos que o ódio como matriz no laço social se desfaz nos laços grupais, cedendo ao amor seu afeto social e libidinal básico. "Os laços libidinais são o que caracteriza um grupo" (Freud, 1921/2020, p. 128). Há sedimentos de aversão e de hostilidades nos laços libidinais que mantêm os grupos e que se acentuam quanto mais haja proximidade na diferença entre os dois lados do laço. E "a mesma coisa acontece quando os homens se reúnem em unidades cada vez maiores" (Freud, 1921/2020, p. 128). Ambivalência e narcisismo são, portanto, os elementos que enfraquecem o laço libidinal.

Mas é inequívoco que, com relação a tudo isso, os homens dão provas de uma presteza a odiar, de uma agressividade cuja fonte é desconhecida [trataremos dela], e à qual se fica tentado a atribuir um caráter elementar. Mas quando um grupo se forma, a totalidade dessa intolerância se desvanece, temporária ou permanentemente dentro do grupo. [...] O amor por si mesmo só conhece uma barreira: o amor pelos outros, o amor por objetos (Freud, 1921/2020, p. 129).

Como compreender essa aparente contradição? Poderia responder com o narcisismo das pequenas diferenças: projeta-se o ódio contra o mais próximo e semelhante para se amar entre os supostos iguais. Parece-me mais sofisticada que isso, porém, a solução do impasse. Buscarei organizar abaixo seus pontos basilares como ponto de partida para o avanço de sua compreensão:

1. O ódio está na matriz de todo laço, pois, para Freud (1914/2010), o ódio não é o contrário do amor, dado que ambos se dirigem libidinalmente a um objeto - seu contrário seria a indiferença;

2. Ao operar como negativo na função classicamente atribuída ao líder, o ódio se interpõe no campo vazio da articulação do grupo (onde está o Ideal de Eu), como um afeto;

3. Para esse agenciamento, ele deve dirigir-se para fora do corpo de quem odeia e mobilizar o supereu contra um elemento externo;

4. Esse elemento externo, distinto dos corpos pareados pelo grupo, precisa ser legitimamente passível de receber esse ódio;

5. O discurso, como racismo em ação, mobiliza essa legitimidade e o poder instituído cria as hierarquias e procedimentos para sua efetivação;

6. Tem-se, assim, um movimento em curso: a cada plano vazio de ideais, o gozo mortífero se instala como ódio, afeto destrutivo contra um elemento externo, que mobiliza um afeto interno;

7. Regidos pelo gozo que a operação engendra, adestramos os corpos contra esse objeto externo: o objeto externo que articula o grupo é o objeto a ser destruído, por isso, ele pode variar incessantemente e mesmo ser substituído;

8. O que importa para a pulsão não é o objeto (Freud, 1915/2013), mas sua satisfação que, sempre parcial, retorna imperiosa num circuito contínuo;

9. Assim, o objeto a ser destruído pode ser material ou imaterial;

10. O circuito pulsional se retroalimenta a partir da mobilização do gozo do corpo, disjunto da linguagem (Lacan, 1971-1972/2008), contra esse objeto externo, moldando o laço de modo auto erótico;

11. O gozo do Um mantém um modo de laço em que, mesmo aparentemente juntos, os corpos se encontram isolados em seu meio de satisfação;

12. Daí decorrem a sensação de instabilidade, a adesão e a mobilidade permanente nos neogrupos que operam pelo negativo do ódio.

 

3. O ódio ao próximo como iminência intolerável do gozo

Como o ódio pode compor, no vazio estrutural onde o líder aloca, como objeto externo, o que regerá como ideal de eu aquilo que irá sustentar a ligação de cada membro com um ponto comum que os unifica? Tem-se a mesma estrutura de grupo como seu efeito? Se, no lugar do líder, houver o ódio, qual será a estrutura dali decorrente?

Os atuais tensionamentos da sociedade, muitas vezes expostos em discursos de ódio, como crise imigratória, racismo, LGBTfobia, "guerra" às drogas por meio de "pacificação" de favelas e comunidades, entre inúmeros outros, colocam em questão o que leva a civilização a gastar tantos recursos para dominar, docilizar e até mesmo eliminar o que é visto, por alguns, como um incômodo ou um desvio de conduta civilizada. Representantes desses discursos, inclusive, têm sido eleitos numa onda política conservadora, sustentando ideais de uma parcela da população acerca do que seria a moral e os bons costumes. De forma simples e sucinta, [perguntamos]: por quê? (Guerra e Alves, 2021, p. 148).

Para dar esse novo passo, já que pudemos na segunda seção dessa apresentação entender a lógica que unifica um grupo, precisaremos definir agora, psicanaliticamente, o ódio. Para Freud (1915/2013), o ódio é um sentimento mais antigo que o amor, cuja fonte reside na obtenção do desprazer, perturbando o equilíbrio energético do sistema – ao contrário do amor, fonte geradora de prazer. "Não se pode negar que o odiar, originalmente, caracterizou a relação entre o eu e o mundo externo alheio com os estímulos que introduz. (...) Logo no começo, ao que parece, o mundo externo, os objetos e o que é odiado são idênticos" (Freud, 1915/2013, p.158).

O amor, originalmente narcísico, passa somente depois a tomar a forma do investimento objetal, ou seja, ele vincula-se a atividades pulsionais ulteriores. Já o ódio tem como sua fonte as pulsões de autopreservação e provém de um repúdio primordial do eu narcísico para com o mundo externo, sendo uma expressão da reação de desprazer promovida pelos objetos. Além disso, ele irá se manifestar de modo a constituir uma oposição mesclada ao amor. "Se uma relação com um dado objeto for rompida, frequentemente o ódio surgirá em seu lugar, de modo que temos a impressão de uma transformação do amor em ódio" (Freud, 1915/2013, p.161).

Então, constitutivamente, o ódio é originário. Por outro lado, ele desponta como o resultado da constatação de uma deficiência do Outro em suprir aquilo que o sujeito lhe demanda. Há um dano narcísico imputado ao sujeito, no cerne do desfecho desse estabelecimento do amor-ódio, amódio, cujo dano, irrecuperável segundo Freud, passa a ser acompanhado por manifestações de hostilidade dirigidas aos objetos subsequentes, substitutos dos originais.

O ódio "constitui, no homem, uma disposição pulsional original e auto subsistente" (Freud, 1930/2020, p. 30), vindo a caracterizar-se como o maior empecilho para o desenvolvimento da cultura. Além dessa visada originária do ódio, em Freud testemunhamos também a ambivalência como evidência de uma relação de transição entre amor e ódio como migração de sentimentos face a um objeto.

Uma das vicissitudes da pulsão, inclusive, é a transformação no oposto, fazendo do amor, ódio, primariamente em relação ao recalque. Também a desfusão pulsional constitui outra fonte do ódio. O ódio, pois, é primário e incômodo, já que no início estava o objetivo de evitar o desprazer. E ele não configura um afeto imobilizador, podendo ser também produto de movimentos pulsionais. Lacan (1953-1954/2009, p.308) compõe um esquema para aquilo que denomina as "três paixões fundamentais" do ser:

1) Na junção do simbólico e do imaginário, esta fenda, esta aresta, que se chama amor;

2) Na junção do imaginário e do real, o ódio; e

3) Na junção do real e do simbólico, a ignorância.

Assim, as relações amorosas caracterizam-se por conterem uma mesclagem com o ódio, determinando para o sujeito a experiência de que, a cada encontro não realizado, a cada investimento não correspondido, a cada desejo não satisfeito, o que se lhe desponta é o mais primitivo e chamuscante ódio.

Aí mesmo, a dimensão imaginária é enquadrada pela relação simbólica, e é por isso que o ódio não se satisfaz com o desaparecimento do adversário. Se o amor aspira ao ser do outro, o ódio quer o contrário, seja o seu rebaixamento, seja a sua desorientação, o seu desvio, o seu delírio, a sua negação detalhada, a sua subversão. É nisso que o ódio, como o amor, é uma carreira sem limite (Lacan, 1953-1954/2009, p. 316).

No seminário 5 (Lacan, 1957-1958/2008), a relação entre sujeito, desejo e Outro aparece na matriz do ódio, dado que, por estrutura, o desejo sempre se embaraça com o Outro como obstáculo. Se, por estrutura o desejo é impossível ou insatisfeito, ele aparece na forma de ódio quando a falta do Outro emerge encarnada no outrinho. Aqui, o ódio se assemelha à destruição.

Ao indicar a proeminência do lugar estrutural da falta, lugar onde uma falha necessariamente se apresenta desde a origem – lugar castrado, enfim –, no Seminário 17, Lacan (1969-1970/1992) tece a ideia de que a importância daquilo que cerceia o conceito de castração não se localiza no mito de Édipo propriamente dito, mas no fato de que, para além do mito, há a estrutura a indicar a proeminência do lugar da falta, onde uma falha necessariamente se apresenta desde a origem, indicando um intransponível, um limite. Assim, a própria estrutura da linguagem é castradora.

Lacan descola o complexo de castração do Complexo de Édipo. A operação da castração como função encarnada por uma pessoa, que se torna operadora da função do Nome-do-Pai no Édipo, desloca-se para além do mito, indicando a estrutura. Como fato de estrutura, e não como efeito da incidência da metáfora paterna, a castração é real e ganha no discurso um contorno simbólico. Assim como o ódio, a castração também é fato de estrutura. A segregação nesta virada teórica, como fato estrutural, corresponde, de saída, ao que não se integra na linguagem. E não evoca outra coisa senão a consumação da alteridade para o sujeito. O ódio vem a ser o representante cabal desta desunião constitutiva, deste "não" que propriamente fundamenta o sujeito, e é por isso que observamos, na cultura, exacerbarem-se os desfiladeiros deste aspecto tão primitivo.

"Nenhuma outra fraternidade é concebível, não tem o menor fundamento, se não é por estarmos isolados juntos, isolados do resto" (Lacan, 1969-1970/1992, p.107). Eis as funções – ou os desserviços – sociais, que desempenham o amor e o ódio, no desenrolar de nossa cultura. Aqui ainda, é bom lembrar que a dimensão fálica do ter ou não ter o falo, toca o ódio em sua vertente imaginária presente em toda forma de segregação, ressoando nas relações como hierarquia e hegemonia de poder.

No seminário 20 (Lacan, 1972-1973/1985), o amódio aparece como neologismo que mostra a dimensão estrutural do gozo disjunto da linguagem, o ódio imiscuído ao amor, ao querer o bem, e não exatamente ao movimento imaginário de destruição. Entretanto o ódio, diz Lacan em Mais, ainda, não é apenas querer o mal do outro – isto seria destruí-lo. O ódio, a maldade, é aquilo que cai mal quando se quer o bem do outro e as coisas dão infalivelmente errado, pois o outro não quer saber do ser do sujeito sabendo seu bem. Neste sentido, articulado de modo irredutível com aquilo que não funciona bem no campo das relações humanas, o ódio surge quando um sujeito quer o bem do outro, estando, portanto, imiscuído, irreversivelmente, no amor. Isto conduz Lacan a postular que "o verdadeiro amor desemboca em ódio" (Lacan, 1972-1973/1985, p.121-135). O neologismo amódio (hainamoration) nomeia essa relação originária.

As formulações lacanianas articuladas no Seminário 20 referem-se ao ódio como aquilo que anuncia a presença de um real na experiência do sujeito. Nessa matriz, o ódio está referido ao Outro radical. O Outro aqui não se dilui nem se encarna no outrinho, numa pessoa, etnia ou raça. Nesse momento da formulação teórica de Lacan, o Outro revivifica a existência da pulsão de morte. Ele implica uma alteridade encarnada no próprio corpo, como gozo do Um ou gozo disjunto da linguagem. Lacan trabalha neste seminário com uma dualidade de gozos: o gozo fálico, da linguagem e o Outro gozo, gozo do corpo.

Neste sentido, devemos ressaltar a distinção entre este ódio real ao Outro, pulsional e mortífero, efeito da estrutura da linguagem que traumatiza o corpo como acontecimento, e o ódio da rivalidade, imaginário, que sustenta algumas das considerações lacanianas anteriores e está referido ao outrinho, ao semelhante (Flanzer, 2006, p. 220). Finalmente, na tríade dos registros da realidade, o ódio como fato simbólico refere-se, menos a essa reserva libidinal autoerótica e mortífera, e mais ao modo como o falo incidirá no nível da linguagem como signo da falta, articulando a dimensão do poder.

Em síntese: Eis o que podemos sublinhar, após essas referências: o ódio vem em primeiro lugar, ele é inerente ao sujeito, resultado de sua hostilidade basal para com o Outro – este Outro que tanto o constitui quanto o priva da completude totalizante, na qualidade de corpo como acontecimento traumatizado pela linguagem. No entanto, o ódio também é consequência da frustração do sujeito diante do Outro, simbolizado pela linguagem como tela simbólica para o Real que, sobremaneira, não lhe confere um lugar ao sol.

Assim, o ódio original é o ódio ao Outro, este que Freud propriamente aloca no interior do conceito de pulsão de morte; distinguindo-se do ódio subsequente, derivado das relações simbólicas e objetais estabelecidas posteriormente. Em termos simbólicos, o ódio aparece como enquadre do que excede toda capacidade de representação. O ódio também não se reduz ao afeto dirigido ao outro, ao rival, ao semelhante no espelho imaginário. Na verdade, podemos dizer que ele se realiza no entrelaçamento destas três dimensões.

O sujeito não pode escapar do circuito pulsional que o move, leva consigo as pulsões, a pulsão de morte, este é o seu destino. O campo da linguagem não faz senão tornar o sujeito servo de sua própria divisão. O ódio é oriundo da relação estrutural do sujeito com o Outro. O sujeito odeia o Outro, seja o corpo, seja a linguagem, seja o semelhante, por conta da paixão que nutre pelo Ser do Outro. Ao ser destituído, excluído da possibilidade oferecida pelo Ser, ao sujeito só resta a tentativa de demolir este Outro. Ódio real, radical e estrutural, imanente a todo ser que fala.

Se o amor vislumbra o ser do Outro; o ódio visa sua destituição, sua sentença de morte, sua derrisão. Esta referência lacaniana nos permite averiguar porque, afinal, amor e ódio são parceiros tão inseparáveis. Fonte de fascínio e servidão, como já dizia La Boétie (1563). Assim como o amor, o ódio destina para o sujeito algumas "vias da realização do ser – não a realização do ser, mas somente suas vias" (Lacan, 1953-1954/2009, p. 316). São elas que me interessam diretamente na construção de nossa hipótese neste texto.

Na linha freudiana, Lacan indica uma via aberta à investigação que desenvolvo aqui. Ele afirma que, ao contrário do que se pode apreender em outras épocas, em nossos dias, "os sujeitos não têm de assumir o vivido do ódio, no que pode ter de mais abrasador. E por quê? Porque já somos muito suficientemente uma civilização do ódio" (Lacan, 1953-1954,/2009, p. 316, grifo nosso). Sendo fato de estrutura, contido pelo recalque ou tratado pelo amor, como o ódio pode se tornar o afeto básico que caracteriza o civilizatório? Uma civilização de ódio implicaria este elemento como coesão libidinal dos grupos? Estaríamos diante do mesmo mecanismo do narcisismo das pequenas diferenças? Avancemos para a apresentação de um novo modo de laço. A fim de mostrá-lo, desde o real da experiência como efeito de seu fato de estrutura, valho-me do fascismo, como gramática do ódio, para decantar o mecanismo pulsional que lhe subjaz, na conjugação de um novo arranjo para o laço civilizatório.

 

Decolonizar a teoria de grupo 100 anos depois

Para Umberto Eco (2018), há uma estrutura, articulada para além das dinâmicas dos grupos, ainda que nelas apoiada, que compõe a orquestra fascista. Talvez com ele tenhamos uma pista interessante para pensar a neoestrutura dos grupos articulados pelo ódio como negativo do líder ou, em termos lacanianos, do gozo no lugar do ideal. Ele elenca os 14 fatores do Ur-Fascismo ou do Fascismo Eterno, como: o tradicionalismo, a imobilidade do saber, a tolerância às contradições, o irracionalismo, o culto pela ação, a vida como guerra permanente, a suspeita contra o intelectual, o desacordo como traição, a frustração como motor, a obsessão pela conspiração, o pacifismo como conluio, o heroísmo como norma, o nacionalismo e o apelo à xenofobia, a flutuação ambivalente dos polos de força com o inimigo, o elitismo de massa interno na sucessão da posição de desprezo pelo mais subalterno na hierarquia.

E aqui retomo os quatro elementos que considero centrais ou estruturais quanto à dimensão do ódio como elemento da estrutura do falasser, destacando-os dos outros acima reunidos. Eles são a revelação da estrutura de ódio que arregimenta, como avesso do grupo primário freudiano regido pelo Um ideal, o que, de fato, nos movimenta. Configuram, portanto, as linhas bases do traçado desta civilização do ódio. Vejamos:

1. A busca pela solução final que culmina na paz como eterno contraditório da vida pela guerra evidencia o amódio na base do laço, não se pode eliminar o inimigo = contradição permanente no interior da estrutura.

2. A transferência do poder para a esfera sexual e o Ersatz [substituição] fálico, "seus jogos de guerra se devem a uma invidia penis permanente" = gozo como ponto originário vazio que vincula posteriormente os corpos.

3. O povo como ficção teatral é mobilizado, porém para não agir como elemento de transformação e o líder, neste populismo qualitativo, reduz-se a um intérprete de sua vontade = líder interpretante, secundário.

4. O que não aparece evidente é aquilo que agencia o grupo desde seu avesso negativo: o racismo e o ódio à diferença = o inimigo é o objeto externo que articula internamente o grupo.

Neste sistema, todo e qualquer sinal de diversidade torna-se atração do ódio, sendo polarizado. Diferentemente, porém, dos grupos regidos pelo ideal, fixos e pouco mutáveis, os neogrupos que operam pelo negativo, pelo ódio, mantêm uma permanente desconstrução de seu ponto de detenção como grupo mutante, fruto de um "desconjuntamento ordenado, uma confusão estruturada" (Eco, 2018, p. 39).

Sua estrutura não é mais do Um, fixo e identificado na função do líder. Temos, ao contrário, muitas maneiras de jogar sem que se mude o nome do jogo. Na verdade, joga-se pela familiaridade dos gozos, de modo que o ódio racista se torna a única ordem que articula as relações entre os corpos, sem lógica ou coerência interna, sem ideal regulatório, sem interdependência. Como vimos, é o gozo do corpo, um a um, que mantém o grupo unido. Sua estrutura, como na teoria do jogo de Wittgenstein, é a de uma serie de atividades diversas que apresentam apenas alguma "semelhança de família" (Eco, 2018, p. 40).

 


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O caso mais curioso é dado pelo 4, obviamente semelhante ao 3 e ao 2, mas sem nenhuma característica com o 1. "Contudo, em virtude da ininterrupta série de decrescentes similaridades entre os grupos 1 e 4, permanece, por uma espécie de transitoriedade ilusória, um ar de família entre o 4 e o 1" (Eco, 2018, p. 41, grifo nosso).

No Seminário 19, Ou pior, de 1971-72, Lacan introduz, pela filosofia, a noção do Um, como aquilo que "não é passível de inscrição" (p. 121)1. Ele distingue o traço unário (Enziger Zug, em Freud), constitutivo no processo de identificação, do traço uniano, termo cunhado por ele na lição de 15 de março de 1972, para se referir à assimilação do gozo no corpo.

Essa diferença radica essencialmente no fato de que o traço unário se inscreve sobre um campo vazio, que registra o apagamento de uma presença, sobre a qual ele (o traço unário) se deita para conformar, entre a incorporação real e a identificação simbólica, um nome ao sujeito (Bouquier, 1986). O traço uniano, por seu turno, indica a presença do vazio de significação no próprio traço que contém o nome próprio de um sujeito. "O que só existe ao não ser: é exatamente disso que se trata, e foi o que eu quis inaugurar hoje no capítulo geral do uniano" (Lacan, 1971-71/2012, p. 131).

Ao retornar ao mesmo ponto vazio para significá-lo, incorremos sempre no mesmo endereço, mas significando-o de uma nova maneira. Daí se compõe um processo identitário que não se contém a si mesmo, ou, em outras palavras, cuja mesmidade se diferencia. Isto porque somente as diferenças relativas podem produzir um valor diferencial em relação ao mesmo ponto ao qual se referem, ao qual retornam.

O que mantém esta tensão na empiria da cena do mundo e se desvelou apenas após os estudos contra, pós ou decoloniais foi o fio estrutural do liame social sustentado pelo ódio racial como seu legitimador (Quijano, 2007). De Bois (2018) fala em véu rasgado que não oculta mais a interseccionalidade que mantém tensionada a ficção jurídico-simbólica do racismo estrutural, que torna legitima a expropriação financeira e neoliberal sob regime tecno-jurídico-militar. Mbembe (2018b) trata ainda da necropolítica ou da gestão da morte como seu fim, enquanto Butler (2018) mostra como a gestão do ódio produz corpos eliminados e não passíveis de luto.

Na ausência de sentido, de designação ou significação, de um significante, ideal ou pessoa, que faça semblante ao vazio da estrutura, emerge o ódio, como efeito estrutural da segregação originária do corpo em relação à linguagem. O ódio real ganha forma imaginária no sentimento primário de insatisfação e opera o enquadre simbólico de seu destino na linguagem como fio condutor dos afetos radicados no racismo. O neogrupo, assim, evidencia uma lógica disjuntiva no nível das representações, mas suplementar no nível do pertencimento pela via do gozo, como avesso dos grupos regidos pelo ideal.

O que Eco, por não ser psicanalista, não poderia saber é que o fio de gozo do ódio racista é o dessemelhante, o que dispersa e ao mesmo tempo atualiza e repete, iterativamente, no nível da pulsão de morte. Aquilo que não cessa de não se escrever no destino do imperialismo neoliberal é a desnecessidade cada vez mais evidente do humano. Ponto de onde toda forma de ódio se realiza como fato real e ganha, na geopolítica e na economia do conhecimento, sua dimensão histórica. Agamben (2010) cunhou de homo sacer, Butler (2018) de abjeto, Mbembe (2019) de devir negro no mundo. Poderíamos seguir numa linha não toda infinita de alcunhas para aquilo diante do que adoecemos, deprimimos, intoxicamo-nos para dar conta de uma civilização do ódio.

Não existe Império sem raça ou colonialidade (Maldonado-Torres, 2008). Essa forja nasce com a conquista das Américas, o encobrimento do outro, o nascimento da modernidade e sua marcação histórica é o ano de 1492 (Dussel, 1993). Fincamos a raça, como dissipador, no lugar onde antes os critérios de sangue e de títulos justificavam as hierarquias num movimento concêntrico do assentamento do poder. Numa operação simbólica sem precedentes, numa espoliação sem possibilidade de restauração e numa devastação real com sólido anteparo imaginário, o mundo europeu inventou o Ocidente e se posicionou como seu centro, bem como definiu o Norte e o Sul Global, abaixo do Equador. Aniquilou os saberes periféricos em ao menos quatro atos epistemicidas (Grosfoguel, 2016), sobrepondo-se como olhar que tudo vê, menos a si mesmo: hibrys del punto cero (Castro-Goméz, 2007). Percurso epistêmico que permitiu a fundação forçada de sua legitimidade, racionalidade, cientificidade e universalidade:

1. Contra os muçulmanos e judeus em nome da pureza do sangue em Al-Andaluz;

2. Contra os povos indígenas nas Américas e depois na Ásia;

3. Contra os africanos, aprisionados em seu território e depois vendidos e escravizados no território americano;

4. Contra as mulheres queimadas vivas sob a alegação de serem bruxas.

Assim, colonizou o poder, o saber, o ser e o gênero num modo colonial de poder (MCP) assentado sobre o ódio. Formamos grupo hoje pelo avesso colonial do ódio racista que legitimou um sistema econômico de base imperial, hoje neoliberal; uma autoridade político-jurídica, o estado nação; um laço discursivo fraco, o do capitalista, cuja variante é seu avesso, o discurso colonial (Guerra, 2022); e, finalmente, um modo de ordenamento de grupo e de agenciamento de gozo, o neogrupo negativo. Podemos pensar sua estrutura como uma nebulosa com uma centralidade vazia. Daí:

1. um núcleo excêntrico (ódio, pulsão de morte, gozo do corpo) como -1 do gozo racista;

2. suas linhas de conexão como o sentimento de ódio que liga os corpos;

3. a presença de cada corpo representando os corpos acontecimento em sua diversidade de ocupação da língua-mãe (lalíngua);

4. a direção dispersiva indicando o modo racista de o ódio ganhar forma: contra o negro, contra a mulher, contra o trans, contra o pobre, contra, contra, contra;

5. os cruzamentos sendo de dois tipos: podem os laços tanto se ramificarem nas suas linhas-matriz, quanto se atravessarem uns aos outros em modos de ódio interseccionais;

6. as composições, assim, seriam múltiplas e se dariam em torno do vazio central, ocupado pelo ódio como fato originário de gozo.

Como fato de estrutura, desvelado em elipse decolonial pela mostração de seus efeitos explícitos nas pilhas de corpo dos noticiários cotidianos, a centralidade vazia do ódio como fonte inesgotável de dispersão, força os grupos a tentativas iteradas de sobrevivência e enlaçamento. Uma alavanca dispersiva que exige trabalho pulsional permanente na tentativa de manter alguma coesão. Grupo avesso ao primário freudiano que, ao deparar-se com sua centralidade originária de ódio, incorre na repetição pela tentativa de diferenciar-se. Daí a agressividade e a segregação, a eliminação do Outro e o ódio ao Ser como seus efeitos estruturais permanentes de coalizão.

Explicar sua lógica discursiva, sua gramática pulsional e sua operacionalidade civilizatória parece-me ser o primeiro passo com vistas à sua desconstrução. Fissurar suas bases e inventar outros modos de enlaçar essa condição primária que não seja pelo lado da ilusão do Um ou de seu avesso, pela destruição do semelhante, será nossa tarefa histórica. Os quatro elementos estruturantes do neogrupo primário negativo podem, enfim, ser assim resumidos: (1) ódio na origem, o que desestabiliza a estrutura; (2) gozo originário como ponto vazio (pulsão de morte) que exige enlace; (3) líder como interpretante secundário; (4) inimigo material como eleição externa de endereçamento do ódio real.

 

Conclusão

Se, na atualidade de nossa geopolítica sob império da globalização, no neogrupo o I can't breath poderia ser seu signo, o COVID-19, sua forma mutável e Bolsonaro ou Putin, sua materialização histórica, havemos de ter inventividade para construir outros modos de laço.

 

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1 "Peu influencés par l'intelligence, les peuples sont surtout guidés par les caractères de leur race"; "C'est la race en effet qui détermine la façon dont les peuples réagissent sous l'influence des événements et des changements de milieu", "La race est la pierre angulaire sur laquelle repose l'équilibre des nations".
2 "L'âme des races a des frontières qui ne se franchissent/cruzam pas" [...] "Elle [la race] constitue la limite psychologique assignée aux ambitions des conquérants, aux rêves d'hégémonie qu'ils peuvent former".
1 "...a propósito do Um, começa por um nível em que não se diz nada além de é Um, como ele [Platão em Parmênides] se expressa... não é a mesma coisa que dizer: o Um é. É Um constitui a primeira hipótese, e o Um é vem a ser a segunda. Elas são distintas" (Lacan, 1971-72/2012, p. 121).

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