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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.14 no.spe Rio de Janeiro Apr. 2022

 

AS MASSAS E DAS MINORIAS

 

Liderança feminina em missões de paz da ONU

 

Female leadership in UN peacekeeping missions

 

Liderazgo femenino en misiones de mantenimiento de la paz de la ONU

 

 

José Maurício LouresI; Claudia Ferreira MeloII

IPsicanalista. Docente do Programa de Pós-graduação stricto sensu em Psicanálise, Saúde e Sociedade (UVA). Coordenador e docente do Programa de Pós-graduação lato sensu em Teoria Psicanalítica e Prática-Clínica Institucional (UVA). Docente do Curso de Especialização em Psicologia Clínica (PUC-Rio). E-mail: jose.loures@uva.br
IIPsicanalista. Especialista em Teoria Psicanalítica e Prática Clínico-Institucional (UVA). E-mail: claudiaferreiramelo@rocketmail.com

 

 


RESUMO

A partir de dados históricos e atuais sobre a atuação brasileira de mulheres em cargos de liderança em missões de paz da ONU, é realizado um desenvolvimento, a partir da psicanálise, sobre as questões de gênero, o conceito de feminino e o advento da mulher, para, ao final, se empreender um discussão sobre o preconceito e rejeição com relação às mulheres que ocupam cargos de liderança.

Palavras-chave: LIDERANÇA FEMININA. PRECONCEITO. MULHER. NARCISISMO DA PEQUENA DIFERENÇA.


ABSTRACT

Based on historical and current data on the Brazilian performance of women in leadership positions in UN peacekeeping missions, a development is carried out, based on psychoanalysis, on gender issues, the concept of feminine and the advent of woman, in order to, in the end, undertake a discussion about prejudice and rejection around women who occupy leadership positions.

Keywords: FEMALE LEADERSHIP. PREJUDICE. WOMAN. NARCISSISM OF THE SMALL DIFFERENCE.


RESUMEN

Con base en datos históricos y actuales sobre el desempeño brasileño de mujeres en posiciones de liderazgo en misiones de paz de la ONU, se realiza un desarrollo, basado en el psicoanálisis, sobre cuestiones de género, el concepto de femenino y el advenimiento de la mujer, con el fin de, al final, emprender una discusión sobre el prejuicio y el rechazo en torno a las mujeres que ocupan puestos de liderazgo.

Palabras clave: LIDERAZGO FEMENINO. PERJUDICAR. MUJER. NARCISISMO DE LA PEQUEÑA DIFERENCIA.


 

 

Introdução

Em 1823, Maria Quitéria de Jesus fugiu de casa disfarçada para lutar pela independência do Brasil. É dela o primeiro registro de participação de uma mulher em uma guerra brasileira. Maria Quitéria foi reconhecida e condecorada por isso. Somente mais de um século depois, foram incorporadas às Forças Armadas 73 mulheres, mas nem por isso a barreira foi quebrada. Apesar de serem metade da população, as mulheres não chegam a ocupar 14% das vagas militares (Lima, 2021).

Em matéria publicada no Correio Brasiliense, Lima (2021) traz dados atualizados: a Força Aérea Brasileira é a que possui maior efetivo feminino: 19,23% do contingente. Mas, somente em novembro de 2020, a primeira mulher chegou ao topo da carreira na Força Aérea Brasileira, em 80 anos de instituição. Promovida a oficial-general, a brigadeiro-médica Carla Lyrio Martins é diretora do Hospital Central da Aeronáutica, onde comanda mais de 1.100 militares e civis (Lima, 2021).

Apesar dos pré-conceitos e dificuldades, a presença das mulheres nos cargos de liderança é cada vez maior. O Hospital de Guarnição de São Gabriel da Cachoeira é o único do município e atende todos os dias mais de 46 mil moradores. Neste hospital, duas mulheres dirigem os trabalhos: a tenente-coronel Anaditália Araújo e a major Simone Marte - enfermeiras de profissão e militares de carreira há mais de duas décadas. Pela primeira vez, o hospital é comandado por duas enfermeiras militares, justamente durante uma pandemia, quando o sistema de saúde colapsou (Lima, 2021).

Em matéria para o Jornal Estadão, Sadala (2021, n.p.) diz que "Apesar da falta de tempo, reconhecimento e empatia profissional, as mulheres foram protagonistas como líderes durante a pandemia". Ainda, segundo a autora, "As mulheres foram avaliadas como líderes mais eficazes durante a crise, segundo estudo da Harvard Business Review" (Sadala, 2021, n.p.).

Segundo Lima (2021), a Marinha foi a força que primeiro começou a admitir o público feminino nos seus quadros, em 1981. Em 2012, passou a promover mulheres às mais altas patentes. Comandante na Missão de Paz da Organização das Nações Unidas na República Centro-Africana, a capitão de fragata Carla Araújo recebeu, em 2019, o prêmio Defensoras Militares da Igualdade de Gênero das Nações Unidas (ONU) pelo trabalho realizado naquele continente. De volta ao Brasil, a comandante passou a cuidar da proteção de civis, crianças, mulheres, com foco na prevenção da violência sexual e de conflitos armados.

Já no Exército, a integração oficial das mulheres só foi institucionalizada em 1992. E, na Academia Militar das Agulhas Negras, escola de ensino superior da força, em 2017. Entre as três forças, o Exército é a que tem menor proporção feminina no efetivo: aproximadamente 6,4%. A promoção de uma mulher ao generalato só é esperada para este ano de 2021 (Lima, 2021).

O que justificaria essa dificuldade de inserção das mulheres nestes cargos de liderança? "Triste, louca ou má é qualificada aquela pessoa que se recusa a seguir uma receita", diz a música Triste, Louca Ou Má, interpretada por Francisco, El Hombre". Para os sujeitos que não seguem os padrões, é justificada a rejeição que suscitam e de que se defendem?

 

A diferença anatômica entre os sexos

Desde os "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", Freud (1905/2006), ao abordar questões relativas à sexualidade e gênero, já afirmara que qualquer substituição do problema psíquico pelo anatômico é inútil e injustificada. Freud era completamente avesso à ideia de que existiria um cérebro masculino e outro feminino. Mais tarde, em sua "Conferência 33" (1933/2006), sobre a feminilidade, voltou a insistir que aquilo que constitui a masculinidade ou a feminilidade foge ao alcance da anatomia.

Para Freud, essas noções assumem outra dimensão. A expressão da feminilidade é definida por Freud como tendência à passividade, principalmente na necessidade de ser amado, inclinação a submeter-se a outros – que alcança o seu extremo no masoquismo. Por outro lado, a masculinidade teria como característica a atividade, ou seja, a necessidade de amar, "de obter poder sobre outras pessoas, e subjugar o mundo externo e alterá-lo de acordo com seus próprios desejos" (Freud, 1931/2017, p. 41).

Embora se possa pensar que a proporção relativa à feminilidade e à masculinidade seja decidida pelo sexo manifesto da pessoa, Freud (1931/2017, p. 43) diz: "nas pessoas, tomadas individualmente, encontram-se realizadas, em uma proporção relativa, todas as possíveis gradações" – o que justifica a concepção da bissexualidade como constitutiva do sujeito, que expressa essas tendências em suas relações primordiais com o Outro.

Na perspectiva psicanalítica, o papel de gênero é construído através da história, é passado adiante pela cultura e não se manifesta de forma inata num sujeito, de modo que anatomia, gênero e escolha de objeto são esferas vinculadas artificialmente, tal como Freud afirma no "Caso da jovem homossexual" (Freud, 1920/2006).

 

 

A artista venezuelana Margot Römer, em sua instalação intitulada Aparato reproductor de la mujer (1972), nos convoca a uma reflexão acerca domesticidade e sexualidade do corpo da mulher. Neste trabalho conceitual, Römer incorpora objetos industriais que combina com texto para criar uma relação direta entre corpo e objeto. No topo da porta alta e vermelha com uma janela está o título do trabalho e, abaixo da janela, uma lista dos componentes do sistema reprodutor feminino. Na borda inferior da janela há uma saliência que sustenta um cacto fálico em vaso. Ao objetificar o corpo da mulher em sua obra, a artista faz uso da ironia em uma potente crítica aos papéis tradicionais atribuídos à mulher pela cultura.

Ainda sobre as questões relativas à anatomia, gênero e escolha de objeto, Lacan (1960/1998) segue na esteira de Freud e concluiu que "norma" designa as normas do discurso, portanto, homem e mulher são produtos do Outro do discurso. E ainda acrescenta: "não é verdade que Deus os tenha feito macho e fêmea" (Lacan, 1960/1998, p. 864), pois o espaço da ordem e da norma é o espaço dos semblantes de homem e mulher. Por isso, Lacan insiste que a identificação a um dos sexos é algo que ocorre secundariamente e por causalidade – e isso é resultado do fato de sermos seres de linguagem.

Em O Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante (1971/2009), Lacan apresenta a identidade de gênero como oposição homem e mulher, mostrando que esses termos são significantes. E observa que todo significante carrega consigo uma opacidade e, por isso, não podemos propor que haja sujeito masculino ou feminino, o sujeito é o que um significante representa para outro significante.

Em seu Seminário 19: ou pior, Lacan (1971-1972/2012) considera que o "erro comum", é reconhecer homens e mulheres pelo que se distinguem anatomicamente, e não em função de critérios formados sob a dependência do simbólico. O autor afirma: "Não é que eu negue a diferença que existe, desde a mais tenra idade, entre o que chamamos de uma menina e um menino. É inclusive daí que parto" (Lacan, 1971-1972/2012, p. 13). E continua:

[...] essa diferença que se impõe como inata é, com efeito, muito natural. Corresponde ao que há de real no fato de que [...] os sexos parecem dividir-se em dois números mais ou menos iguais de indivíduos. Bem cedo, mais cedo do que se espera, esses indivíduos se distinguem, isso é certo. (Lacan, 1971-1972/2012, p. 15)

De fato, não se trata de negar as diferenças anatômicas, mas de considerar que elas produzem consequências psíquicas, como Freud (1925/2006) enfatizou em seu artigo "As consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos". A leitura de Freud promovida por Lacan nos permite entender que a linguagem promove a "desnaturalização" do corpo, na medida em que faz com que a diferença entre os sexos só tenha efeitos se for significantizada. É por só reconhecer o falo, que o inconsciente não aponta para a diferença sexual.

 

A mulher não existe, mas o feminino insiste

A Psicanálise nasce da relação entre um homem e uma mulher, ou melhor, entre o mestre e a histérica. De um lado, Freud, desejante de saber um pouco mais sobre aquela que lhe falava, do outro, a histérica, a qual tem como "fundadora" Anna O. (pseudônimo de Bertha Pappenheim) - mulher fantasiante e produtora de um saber, que viria, pela via do desejo de Freud, a impulsionar o surgimento da psicanálise.

Para Lacan (1968/2003, p. 368), há na psicanálise uma presença "que se funde com a teoria: é a presença do sexo como tal, a ser entendida no sentido em que o ser falante o apresenta como feminino". Ainda, de acordo com Lacan (1970/2003, p. 438): "A onipotência não existe. [...] O interesse não está aí, em fazer o luto da essência do macho, mas em produzir o saber pelo qual se determina a causa que é um desafio em seu ente". Para libertar a mulher da clausura, foi necessário reconhecê-la como sujeito, capaz de produzir um saber sobre si mesmo e sobre seus sintomas.

O feminino é um saber que nunca se esgota, sempre aberto a indagações e possibilidade de novas respostas, considerado por Freud o "continente negro" de sua descoberta, por ser ausente no imaginário e no simbólico, tendo que ser "construído ininterruptamente e desmoronado imediatamente" (Fuks, 1993, p. 10). Segundo Fuks (1993, p. 10), "Situado para além do recalque, o feminino diz respeito não ao que se inscreve na cadeia simbólica, mas àquilo que, incessantemente, não para de não se escrever, o que equivale dizer, pede para se inscrever". A insistência do feminino como real afeta muito mais as mulheres, mas não alivia os homens, pois, diante da foraclusão do significante d'A mulher no inconsciente, a insistência do feminino como ausência requer soluções tanto para o homem quanto para a mulher.

O feminino está relacionado àquilo que não tem representação no inconsciente, não estando ligado ao sexo nem ao gênero, mas sempre associado à mulher, causando à teoria psicanalítica o impasse que levou Freud a nos deixar sem resposta à pergunta "O que quer uma mulher?". Consideremos, portanto, o aforisma lacaniano "A mulher não existe" para investigar o caminho que leva à concepção do sujeito feminino na psicanálise. Não é porque A mulher com A maiúsculo não existe, que o feminino deixará de insistir.

Freud (1905/2016, p. 21) afirma que "A teoria popular da pulsão sexual tem uma bela correspondência na fábula poética da divisão do ser humano em duas metades – homem e mulher – que buscam unir-se novamente no amor". Como demonstra Lacan (1972-1973/1985, p. 14), porém, "O amor é impotente, ainda que seja recíproco, porque ele ignora que é apenas o desejo de ser Um, o que nos conduz ao impossível de estabelecer a relação dos [...] dois sexos". Em "O aturdito", Lacan (1972/2003, p. 457) afirma que "foi preciso vir à luz a distinção entre o simbólico, o imaginário e o real para que a identificação com a metade homem e a metade mulher [...] não fosse confundida com a relação deles".

Segundo a opinião popular, "um indivíduo é homem ou mulher, mas a ciência conhece casos em que as características sexuais aparecem borradas, dificultando assim a determinação do sexo; primeiramente no campo da anatomia". (Freud, 1905/2016, p. 28-29). Logo, reduzir os sujeitos a duas metades, como pensa a teoria popular, exclui todo o restante, assim como, reduzir o sexual à reprodução desconsidera tudo o que não se encaixa nessa definição, como a sexualidade infantil e a perversão que Freud define como inata a todos os homens (em contraposição à perversão estrutural).

No decorrer de sua obra, Freud continua a admitir o quanto o desenvolvimento da sexualidade feminina é complicado, o que reforça a afirmação feita nos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (1905/2016), de que a vida amorosa da mulher "ainda está envolvida numa obscuridade impenetrável" (Freud, 1905/2016, p. 43), devido à dificuldade que a menina tem de abandonar o clitóris, constituído inicialmente como sua principal zona genital, por uma nova, a vagina.

Segundo Freud: "Tivemos que considerar a diferenciação do indivíduo sexual em homem e mulher, e vimos que para se tornar uma mulher é necessário um novo recalque, que anula uma parcela de masculinidade infantil e prepara a mulher para a mudança da zona genital diretriz" (Freud, 1905/2016, p. 160). Isso porque:

A mulher possui em sua genitália um pequeno membro semelhante ao masculino, e esse membrozinho, o clitóris, chega a desempenhar papel idêntico ao do membro maior, masculino, tanto na infância como na idade que precede a primeira relação sexual. (Freud, 1916-1917/2014, p. 170)

Uma segunda alteração análoga à primeira e tão importante quanto ela, é a troca do objeto original – a mãe pelo pai. A mãe se constitui como o primeiro objeto de amor tanto da menina quanto do menino, porém, este último não precisará haver-se com a troca de objeto. Em outras palavras, a menina para se tornar mulher, no curso do seu desenvolvimento sexual, precisa trocar o clitóris pela vagina e a mãe pelo pai.

Freud observou que suas analisantes nutriam uma forte ligação com o pai e que, da mesma forma, essa ligação fora igualmente intensa e apaixonada para com a mãe, não havendo muita diferença quanto à vida erótica, salvo à mudança de objeto amoroso. Chama a atenção também para o fato da duração desta ligação com a mãe, que em alguns casos vai além dos quatro anos de idade, abrangendo "a parte mais longa do período da primeira eflorescência sexual" (Freud, 1931/1996, p. 239-240).

A ligação com o pai é construída a partir do relacionamento original com a mãe. São essas mudanças das ligações afetivas do objeto materno para o paterno que levam ao desenvolvimento da feminilidade. Na vida futura, a atitude hostil da mulher para com a mãe, que se acreditava derivar da fase edipiana, na verdade teve origem nesta fase compreendida anteriormente e apenas foi reforçada durante a fase seguinte.

Sobre a menina pequena, sabemos que ela se sente grandemente desfavorecida pela ausência de um pênis grande e visível, que inveja o menino por possuí-lo e que por esse motivo, em essência, desenvolve o desejo de ser homem, desejo este que, mais tarde, é retomado na neurose que pode surgir em decorrência de algum percalço em seu papel feminino. (Freud, 1916-1917/2014, p. 342)

A feminilidade decorre da compreensão da ausência de pênis em alguns indivíduos, quando a menina finalmente compreende que não é só ela que sofre dessa ausência, acompanhada disso, a mãe, naturalmente, sofre uma grande depreciação aos seus olhos. "Ao final dessa primeira fase de ligação à mãe, emerge, como motivo mais forte para a menina se afastar dela, a censura por a sua mãe não lhe ter dado um pênis apropriado, isto é, tê-la trazido ao mundo como mulher" (Freud, 1931/1996, p. 248). Esse desvio para a feminilidade não se dá sem revolta. O término dessa ligação com a mãe acaba em ódio e pode durar a vida toda. Mais tarde, uma parte desse ódio é superada e a outra parte persiste.

Por outro lado, a resposta do Édipo freudiano ao que faz o homem amar sexualmente uma mulher está relacionada à renúncia ao objeto primordial: a mãe - e ao gozo referido a ela. Quando, no entanto, Freud tenta transpor isso para o lado da menina, depara-se com grandes surpresas, levando-o a reconhecer o fracasso de sua tentativa com sua famosa indagação "que quer a mulher?", podendo ser traduzido da seguinte forma: o Édipo produz o homem, não produz a mulher (Soler, 2005). "O que quer a mulher? Essa é, como se sabe, a ignorância em que permaneceu Freud até o fim, na coisa que ele pôs no mundo" (Lacan, 1968/2003, p. 368).

Lacan (1955-1956/1988, p. 206), afirma que não faltou boa vontade por parte de Freud "para sublinhar analogias e simetrias no caminho que têm de seguir o menino e a menina [...]. Entretanto, jamais cessou de insistir na dissimetria essencial do Édipo num e noutro sexo". É essa dissimetria que se constitui como um impasse para a teoria freudiana do complexo de Édipo, uma vez que, num determinado momento da vida, o caminho e os próprios sujeitos se distinguem, ou, como formulou Lacan, são distinguidos. A função do Édipo, de acordo com Lacan (1957-1958/1999, p. 171), é a assunção do próprio sexo pelo sujeito, ou seja, "aquilo que faz com que o homem assuma o tipo viril e com que a mulher assuma um certo tipo feminino, se reconhecendo como mulher, identifique-se com suas funções de mulher".

Chega-se à posição feminina na medida em que a decepção consegue, mediante uma série de transformações e equivalências, fazer provar do sujeito uma demanda, dirigida ao personagem paterno, de que lhe seja dada alguma coisa que realize o seu desejo. (LACAN, 1957-1958/1999, p. 295)

É após todas estas desilusões, a menina pode elaborar simbolicamente o verdadeiro sentido de sua castração, podendo assumi-la e não somente submeter-se a ela. Ao se confrontar com o desafio de tornar-se mulher, encontra o recurso do semblante.

O semblante, para Miller (1992), tem a função de velar o nada. As mulheres precisam ser cobertas para que A mulher não apareça, não possa ser descoberta. Por isso, é preciso inventá-la. Nas palavras de Miller (1992, p. 3): "A mulher não existe não significa que o lugar da mulher não exista, mas que esse lugar permanece essencialmente vazio. E o fato dele ficar vazio não impede que algo possa ser encontrado ali". O que ex-sistiria neste lugar, o que é encontrado no lugar d'A Mulher que não existe, são máscaras.

No caso da mulher, o semblante vela o nada, e do homem, protege o seu pequeno ter – o homem não é sem semblantes, mas "não se trata do semblante propriamente dito, o feminino, que é propriamente máscara da falta" (MILLER, 1992/2010, p. 10).

Em seu Seminário, livro 20: mais, ainda, Lacan (1972-1973/1985) apresenta um grafo que estabelece uma equivalência entre Real, Simbólico e Imaginário, situando o semblante sobre a via que vai do simbólico ao real. Com esse grafo, entende-se que o semblante resulta do esforço do simbólico para apreender o real.

 

 

Rocha Miranda (2011, p. 139) comenta que "O sujeito percorrendo o caminho, através do desfile de significantes que vai do simbólico ao real, encontra o semblante, a aparência, lugar em que no triângulo Lacan situa o objeto a". Esse percurso nos mostra "a verdadeira natureza do objeto a. Se o objeto a [...] [é] aparência de ser, é porque ele parece nos dar o suporte do ser" (Lacan, 1972-1973/1985, p. 124).

Segundo Badiou (2017, n. p.): "[É] sempre no ponto do semblante que haveria uma chance de encontrar o real, uma vez que é preciso também que haja um real do próprio semblante: que haja uma máscara, que ela seja uma máscara real". Mas não podemos deixar de levar em consideração que, já que não há representação possível do real, a máscara, quando arrancada, revela-se como máscara de outra máscara.

[...] jamais se [chega] ao real nu, já que é a própria máscara que está nua, é o próprio semblante que é real. Mas abre a partir daí outras perspectivas, mais otimistas, nas quais, através do semblante, do semblante do real e do real do semblante, algo de verdadeiramente real vem se afirmar. (BADIOU, 2017, n. p.)

Posto isso, para Soler (2005, p. 18): "não podemos contentar-nos em calar o impossível de dizer [...]. Primeiro porque, se A Mulher, escrita com maiúscula, é impossível de identificar como tal, uma vez que "não existe", isso não impede que a condição feminina exista". Ainda de acordo com a autora, diferentemente do homem, que exibe seus atributos fálicos para se afirmar como homem, a mulher não dispõe de tais atributos para fazer-se reconhecer como mulher, por isso impõe-se a ela a necessidade de outro recurso e os esforços para se identificar pelo amor, ou seja, na impossibilidade de ser A mulher, resta ser uma mulher, a escolhida, a eleita de um homem. Assim, é compreensível que elas, mais que os homens, amem o amor (Soler, 2005). A inexistência da mulher constitui o desejo do homem, ou melhor, é por não existir A mulher que ela se faz objeto causa de desejo para este. Afinal de contas o desejo é a resposta para a falta constituinte do sujeito.

Joan Riviere em seu artigo A feminilidade como máscara, diz que a feminilidade é um disfarce e tem como dupla função encobrir a fantasia de posse do pênis tomado do pai e proteger a mulher contra o perigo de retaliação que possa vir a sofrer das figuras parentais em decorrência disso. A autora busca demonstrar neste artigo como "as mulheres que desejam a masculinidade podem colocar uma máscara de feminilidade para evitar a ansiedade e a vingança temida dos homens" (Riviere, 2005, p. 14). Para a autora, não há diferença entre a feminilidade genuína e a "máscara" e "o fato de a feminilidade poder ser assumida como máscara pode contribuir mais na direção da análise do desenvolvimento feminino" (Riviere, 2005, p. 19).

Por suscitar o vazio, a ausência, o sexo feminino faz com que apareça uma dissimetria essencial, sendo, portanto, tomado como referência para a castração. O que o véu recobre afinal é essencialmente o nada, o vazio, a ausência; não há nada ali, mas, ao mesmo tempo em que essa ausência é velada, ela se constitui como algo. Se "A mulher não existe", como formula Lacan, as mulheres, essas sim existem, elas existem uma a uma.

 

Preconceito, intolerância e sectarismo

Considerando o percurso até aqui realizado, que evidencia claramente o caráter disruptivo da teoria psicanalítica em relação às concepções clássicas de sexualidade e gênero, cabe a indagação: se a psicanálise presenteou a humanidade com uma inovadora concepção de sujeito, que abrange uma nova perspectiva para se pensar as questões relativas à sexualidade e papéis de gênero, por outro lado, há, ainda hoje, uma dificuldade, rejeição até pavor de temas como homossexualidade, transexualidade, sexualidade infantil, mulheres ocupando papeis culturalmente associados ao homem – como também o contrário. O que justificaria isto?

Segundo Fuks (2014), quando em psicanálise nos referimos a esse tipo de aversão, entramos no campo da angústia, o signo do colapso de todos os pontos referenciais identificatórios que o contato com a diferença causa". Freud utilizou-se da noção de "narcisismo da pequena diferença para analisar as brigas entre povos irmãos com características muito semelhantes. No "narcisismo da pequena diferença", trata-se de pinçar uma característica do sujeito e reduzir o sujeito a esse traço, tratando-o como diferente e desprezível por causa daquela característica. A repulsa, projetada sobre um objeto externo a quem é endereçado ódio está, na verdade, relacionada ao que lhe é mais íntimo, familiar.

No texto freudiano de 1925, "Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos", Freud analisa o esforço da criança para não perceber a diferença trazida pela mulher. Tal diferença é a ausência do falo, o que contrasta com a fantasia infantil de que todos os humanos possuem o falo, ou naqueles que não possuem irá crescer. Há um momento em que não é mais possível sustentar a fantasia de que todos os corpos são dotados de falo. O reconhecimento da diferença sexual abala fortemente os contornos da imagem corporal - um dos nomes do narcisismo –, impondo uma saída para o complexo de castração, que no menino coincide com a saída do complexo de Édipo e, na menina, representa a sua entrada.

Cabe dizer que não é só a diferença sexual que ameaça a integridade narcísica, mas qualquer diferença parece ameaçá-la. Em "Psicologia das massas e análise do eu", Freud (1921/2011) ensina-nos que nas antipatias e aversões, podemos reconhecer a expressão de um narcisismo que se empenha na afirmação de si, de modo que qualquer desvio trazido pelo outro é visto como uma afronta e o faz entrar em guerra contra qualquer sombra de divergência. Ainda nesse texto, Freud diz:

Conforme o testemunho da psicanálise, quase toda relação sentimental íntima e prolongada entre duas pessoas - matrimônio, amizade, o vínculo entre pais e filhos - contém um sedimento de afetos de aversão e hostilidade, que apenas devido ao recalque não é percebido. Isso é mais transparente nas querelas entre sócios de uma firma, por exemplo, ou nas queixas de um subordinado contra o superior. (FREUD, 1921/2011, p. 56)

O ponto central é que essa aversão, hostilidade e intolerância apega-se às pequenas diferenças. Contudo, em certos momentos, essa aversão/hostilidade é suspensa.

[...] toda essa intolerância desaparece, temporariamente ou de maneira duradoura, por meio da formação da massa e dentro da massa. Enquanto perdura a formação de massa, ou até onde se estende, os indivíduos se conduzem como se fossem homogêneos, suportam a especificidade do outro, igualam-se a ele e não sentem repulsa por ele. (FREUD, 1921/2011, p. 58)

Há então uma ligação entre os membros no interior de uma massa que permite suportar a especificidade do outro, de modo que o narcisismo das pequenas diferenças fica suspenso no interior da massa – afinal, os integrantes de uma massa supõem-se todos os irmãos indiferenciados. Embora seja suprimido no interior da massa, em um segundo tempo retorna - e com intensidade - na oposição que se estabelece entre grupos, gangues, facções, partidos etc.

Em "O mal-estar na cultura", Freud (1930/2006) acrescenta uma nova perspectiva: o narcisismo das pequenas diferenças seria outro modo de satisfação – cômoda e relativamente inócua – da destrutividade. Assim, o acento freudiano já não mais recai sobre a unificação de um grupo, mas sobre a exclusão, a rejeição do outro que passa a ser receptáculo da pulsão de morte. Desse modo, Freud evidencia que uma massa também poderia se formar por colocar um único e mesmo objeto como destino da pulsão de morte. Os sujeitos unem-se e identificam-se entre si, pois há outro a quem se pode hostilizar.

O esquema apresentado por Freud em "Psicologia das massas e análise do eu" nos é elucidativo neste ponto, pois revela as duas formas primordiais de incidência do narcisismo: como garantia de unidade do Eu – abordada por Lacan em seus desenvolvimentos sobre o estádio do espelho e esquematizado no esquema óptico -, e como garantia de uma coesão e singularidade de um grupo.

 


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O vínculo que integra os indivíduos em uma massa é de uma natureza inconsciente. Aqueles que acabam por submergir nas massas não são homens primitivos, mas, como aponta Freud, exibem atitudes primitivas contraditórias a um comportamento racional, pois as massas permitem uma suspensão do filtro imposto pela civilização. O mecanismo que transforma a libido na ligação entre líder e seguidores, e entre os próprios seguidores, é o da identificação, e tornar o objeto amado parte de si mesmo é um aspecto narcisista desse processo.

Em muitas formas de escolha amorosa, o objeto serve como um substituto para algum Ideal do Eu, inatingido pelo sujeito. Nós amamos por causa das perfeições que nos esforçamos para alcançar para nosso próprio Eu, e que agora gostaríamos de obter, deste modo indireto, um meio de satisfazer nosso narcisismo. O papel essencial do narcisismo em relação às identificações que estão em jogo na formação de grupos é reconhecido na teoria de Freud da idealização.

Em "Introdução ao narcisismo", Freud (1914/2006) define a idealização como uma fixação a um objeto. Esse objeto é engrandecido, de modo que sujeito o exalta ao nível de transformá-lo num Ideal, o que desvenda um importante panorama para a compreensão dos fenômenos de massa. O conflito entre o Eu ideal e o Ideal do Eu resulta em impulsos narcisistas que só podem ser absorvidos e satisfeitos pela idealização enquanto transferência parcial da libido narcísica para o objeto. Isso, por sua vez, corresponde à semelhança da imagem do líder com uma ampliação do sujeito: fazendo do líder seu ideal, o sujeito ama a si mesmo, por assim dizer, mas se livra das frustrações e descontentamentos que mancham a imagem que tem de seu próprio Eu.

O esquema apresentado por Freud (1921/2017) sistematiza sua definição de grupo como sendo vários sujeitos que elegeram um mesmo objeto como seu Ideal do Eu e, consequentemente, identificaram-se uns com os outros em seus Eus. O ganho narcisista fornecido pela identificação ao líder é óbvio: o seguidor, simplesmente por pertencer ao grupo, seria superior, melhor e mais puro que aqueles estão excluídos. O segredo desse tipo de identificação é que ela toma os homens pelo que eles são: despojados de autonomia e espontaneidade.

Após esse percurso, consideramos que há muito que aprender com as experiências de mulheres ocupando lugares de liderança em missões de paz, que nos apresentam modelos de liderança que, mesmo em um mundo carregado de intolerâncias, totalitarismos e ditaduras outras, agem sobre este mesmo mundo acreditando no potencial de reinventá-lo, doando mais dignidade ao nosso tempo. Retomamos a música supracitada: Só mesmo rejeita essa bem conhecida receita quem, não sem dores, aceita que tudo deve mudar. Não se trata de seguir uma receita, mas de queimar o mapa, traçar de novo a estrada, ver cores nas cinzas e a vida reinventar.

Finalizamos com as palavras da tenente Sarah Mota, de 35 anos, que serve à 2ª Brigada de Infantaria de Selva, em São Gabriel da Cachoeira, e atua como psicóloga da brigada, acolhendo colegas de farda e parentes em todo o município, que é o terceiro maior do país em extensão territorial. Além dos atendimentos na sede, Sarah percorre os mais de 109 mil quilômetros quadrados onde ficam os sete Pelotões Especiais de Fronteira. A tenente diz: "Levo meu armamento, preparada para usá-lo, se preciso for. Mas, efetivamente, uso como arma as palavras, o acolhimento verbal, como principal forma de defender a vida dos meus colegas" (Lima, 2021, n.p.).

 

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