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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versión On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.14 no.spe Rio de Janeiro abr. 2022

 

RESENHA

 

Uma análise da atualidade brasileira a partir da "Psicologias das massas e análise do eu" de Freud

 

An analysis of the current Brazilian context based on Freud's 'Group Psychology and the analysis of the ego'

 

Un análisis del presente brasileño a partir de las "Psicologías de masas y análisis del yo" de Freud

 

 

Alessandro Pereira dos SantosI; Fídias Gomes SiqueiraII

IPsicanalista. Docente e supervisor clínico e institucional com percurso pelas políticas públicas de saúde, assistência social, juventude e segurança pública. E-mail: alessandrosantos_99744290@yahoo.com.br
IIPsicanalista. Co-coordenador do Programa de Extensão "Já É" e Pesquisador voluntário (PSILACS/UFMG). E-mail: fidias.siqueira@gmail.com

 

 

Resenha do livro 100 anos de Psicologia das Massas: atualização e reflexão, organizado por Jacqueline Moreira e Ana Carolina Dias da Silva. Editora CRV, 2021. 262 p.

 

 

O livro "100 anos Psicologia das Massas: atualizações e reflexões", organizado por Jacqueline de Oliveira Moreira e Ana Carolina Dias Silva, constitui-se como um potente dispositivo para leitura da realidade contemporânea dos fenômenos grupais e sociais, composto por artigos que fazem uma refinada leitura de alguns fenômenos políticos, sociais e culturais vivenciados no ocidente na atualidade. Sem perder o lastro com o clássico livro de Freud, as autoras e os autores oferecem aos leitores uma interpretação aguçada da nossa realidade atual.

Já na Apresentação do livro, Moreira e Silva (2021) advertem sobre a atualidade do texto de Freud, reportando-se ao psicanalista vienense para realçar a importância de se pensar o laço com o outro como fenômeno social. Enquanto, na Introdução, Drawin e Moreira (2021) colocam uma questão central e que de algum modo foi retomada ao longo dos artigos. Além de questionar acerca da superação do obscurantismo que marcou o período posterior à primeira Guerra mundial e o tempo da insensatez, os autores também abordam a problemática da inter-relação entre a paixão e a política; tratando da questão da política e sua relação com a razão metafísica.

Além disso, dissertam sobre a ética e a política, apontando para o ideal da atividade política que exige o domínio dos afetos e das paixões, o que será problematizado a partir da teoria psicanalítica sobre os afetos, estes últimos pensados como constitutivos dos sujeitos e sustentando a ação e a motivação vitais para a prática política. Ao lançarem mão da teoria psicanalítica dos afetos de um modo refinado, possibilitam aos leitores um avanço no entendimento dos modos de se fazer política na contemporaneidade no ocidente.

O livro foi estruturado em cinco seções, sendo a seção I intitulada como "O (in)atual autoritarismo brasileiro". Nela, o leitor terá acesso a três artigos que abordam o atual cenário político brasileiro e seu enlaçamento com um traço autoritário constitutivo da sociedade brasileira.

O artigo que abre esta seção é intitulado "A psicologia das massas e o recrudescimento autoritário brasileiro: um diálogo em duas cenas" de Angela Bucciano do Rosário, Fuad Kyrillos Neto e Thales Fonseca. O texto estabelece uma leitura atual do cenário político brasileiro e destaca o traço autoritário constituinte da organização social brasileira. Os autores tomam duas cenas em três episódios protagonizados pelo presidente Jair Messias Bolsonaro como forma de ilustrar a lógica do autoritarismo à brasileira. Para tal, ancoram na leitura psicanálise e na teoria estabelecida por Theodor Adorno e a escola alemã de filosofia. Além de tomar as cenas atuais da política para ilustrar a máxima freudiana de que ao compreender a lógica do líder se entende o comportamento da massa, abordam também a questão da agressividade e da sexualidade para explicar o posicionamento do presidente da república e seu modo peculiar de manobrar as massas, assim como o aspecto central que versa sobre a autoridade cínica e sobre o modo como a racionalidade cínica se constitui tão atual na realidade brasileira.

O segundo artigo desta seção é "O fenômeno do bolsonarismo e a negação da alteridade: notas sobre psicanálise e política no Brasil contemporâneo" estabelecido por Eveline Abreu Silva, Emanuel Ramos Sales, Jerzuí Mendes Tôrres Tomaz e Leônia Cavalcante Teixeira, abordando a questão da política contemporânea e a negação da diferença. Os autores retomam as duas grandes guerras mundiais, a constituição da nação brasileira, a ditadura militar no Brasil e a lógica do estado de exceção para introduzir a formação da sociedade brasileira e o modo com que o autoritarismo e a violência se mostram constitutivos no nosso projeto de nação. Eles destacam o "memoricídio", ou seja, o apagamento da memória como estratégia política no Brasil. Além de apontar o comportamento do presidente Bolsonaro, realizam um paralelo com o pai da horda do mito freudiano sobre a fundação da civilização e compreendem que a lógica bolsonarista se sustenta pela negação da alteridade, como no caso da pandemia do COVID-19, que impossibilitou a familiares e amigos fazerem o luto e enterrar seus mortos, ressaltando ainda a importância do direito à memória como instrumento fundamental para o exercício da cidadania.

Ainda nesta seção, os leitores encontrarão o terceiro artigo, intitulado "O militarismo brasileiro como discurso não analisado e sua estrutura de massas" de autoria de Alberto Antunes Medeiros e Roberto Calazans, que tocam na questão do militarismo como um tema não analisado e elaborado na realidade brasileira, ressaltando o lugar dos militares na organização da sociedade brasileira desde a fundação da república até os dias atuais. Ao tratar da presença militar no cotidiano da vida brasileira, os autores apontam os efeitos que isto produziu na subjetividade, além de enfatizarem o lugar central e estruturante do significante "militar" na organização social brasileira, algo que ainda não foi analisado do ponto de vista da organização das massas, a aprovação dos golpes militares, os impactos na subjetividade e a instrumentalização da violência.

A seção II, nomeada como "Desilusão e Democracia: algumas facetas", é composta por dois artigos que abordam a questão das massas a partir da lógica da repetição e um retorno de modo crítico aos fundamentos da teoria freudiana acerca do surgimento da civilização e do Pai.

Iniciando com o artigo intitulado "Recordar, repetir e... repetir: as massas e os autoritarismos de ontem e de hoje", Domingos Barroso da Costa aborda a questão da repetição dos sujeitos e da sociedade e a relação com autoritarismo à brasileira, fazendo uma importante reflexão sobre a psicanálise aplicada ao social e defendendo o uso da psicanálise para a leitura e interpretação dos fenômenos sociais. Além disso, aborda a questão da repetição e do gozo, associando os retrocessos e as repetições a uma lógica conservadora das massas. Mas também discorre sobre como o capitalismo através da lógica neoliberal se constitui como uma ameaça à democracia em suas constantes produções de crises. Finalmente, o autor destaca a alienação e a despolitização das massas como instrumentos contrademocráticos; relembrando que os princípios que orientam as massas e foram apontados por Freud ainda se mostram atuais.

O segundo artigo desta seção II, intitulado "Nem horda primeva, nem além do Édipo: a "psicologia das massas" como possível solução à nossa melancólica pós-modernidade" de autoria de Marcelo Ricardo Pereira é um artigo de uma profunda reflexão crítica em que o autor retoma o mito freudiano da horda primeva e estabelece importantes questionamentos da teoria universal produzida por Freud. O autor recorre a Lévi-Strauss e sua posição contrária à teoria freudiana em torno da criação da civilização. Ele contrapõe as pontuações de Freud e Lévi-Strauss sobre a estruturação da civilização, o papel do pai, a função e funcionamento da lei de proibição do incesto, além da abordagem sobre o complexo de Édipo a partir do ensino lacaniano, apontando o giro dado por Lacan a partir de 1968 em relação ao pai em contraposição à lógica freudiana de salvar o pai, com destaque para a proposição lacaniana dos "nomes do pai" como uma invenção que tem força de amarração para os sujeitos.

Já na seção III – Populismo: algumas leituras, os leitores encontrarão proposições sobre o fenômeno do populismo a partir do texto freudiano e de outros autores, com a distinção atual das formas de manipulação das massas com o uso da tecnologia e digitalização.

Assim, o texto de Ana Carolina Dias Silva, intitulado "O tipo de escolha objetal narcisista e a constituição das massas de Freud: uma releitura a partir de Ernesto Laclau", parte da perspectiva lacaniana da ideia de totalidade no político para discutir o avanço do totalitarismo no Brasil e no mundo, relembrando que o totalitarismo sempre esteve no horizonte da psicanálise quanto à incidência de fenômenos coletivos na subjetividade. Seu texto mantém no horizonte a proposição freudiana da constituição libidinal das massas e do líder para pensarmos as identidades coletivas. O passo adiante é a análise deste processo com a contribuição dada por Ernesto Laclau, quando este propõe pensar o populismo como categoria de análise política. Fato é que seu trabalho nos mostra como os elementos de mobilização das massas ainda são os mesmos da época de Freud e permanecem tão atuais.

Nesta mesma perspectiva da análise sobre o populismo a partir da teoria psicanalítica, Hélio Miranda Júnior em seu texto "As massas, o populismo e a corrupção no Brasil: uma leitura psicanalítica", analisa o fenômeno de mobilização das massas no Brasil a partir das narrativas em torno do significante "corrupção", apontando como esta narrativa estabeleceu condições para estabelecer fissuras no interior da coletividade. Recorrendo a Freud e Laclau, o autor também trata do percurso histórico de mobilização das massas e aponta como se institui um abismo no interior das mesmas a partir da ruptura daquilo que constituía uma identidade coletiva brasileira. Seu trabalho reafirma o modo como este rompimento deu lugar a um antagonismo sustentado no ódio, tendo no significante "corrupção" o início de uma narrativa que instituiu a ideia de usurpação e apropriação do gozo como se isto fosse algo inédito no interior da sociedade brasileira.

E, finalmente, Henrique de Oliveira Lee apresenta-nos uma leitura do populismo a partir dos mesmos embasamentos teóricos; porém, além das estratégias discursivas já tratadas anteriormente, o autor mostra em seu texto "A Psicologia das Massas e as técnicas de construção equivalência povo-líder no populismo digital", como a simplificação e a construção discursivas da identidade de um povo é algo constituído de maneira performativa. O autor ainda explora, na atualidade, como os aparatos tecnológicos possibilitaram um novo modo de se fazer política com o uso de tecnologias do universo digital que mobilizam recursos libidinais em cada indivíduo do grupo. Além disso, mostra-nos a existência de um cálculo hoje impulsionado pela tecnologia para alcançar efeitos de mobilização de massa.

Assim, estes autores nos apontam como a atualidade do texto freudiano coaduna-se com a atualidade das tecnologias usadas na mobilização das massas, na constituição de identidades e líderes com o apelo performativo, deixando-nos clara a tentativa totalizante de preenchimento do vazio característico do político.

Além deste contexto, o leitor encontrará na seção IV, Era Digital: duas leituras, a transposição ocorrida no tempo com o desenvolvimento tecnológico, onde os autores analisam a vida coletiva no ambiente da vida digital, demonstrando como o aparato tecnológico impulsiona a mobilização das massas. Desta maneira, encontramos no texto "A Psicologia das Massas freudiana e as atuais massas digitais: totalitarismos, distopia e sonhos", estabelecido por Rose Gurski e Cláudia Perrone, uma análise da política e da vida no interior e a partir do mundo digital. As autoras analisam o funcionamento das massas considerando o aspecto do totalitarismo que assombra o mundo na atualidade, apontando também como a pluralidade tende a ser apagada neste cenário. E se o texto se embasa na mesma letra freudiana que nos dá as coordenadas da leitura sobre a mobilização das massas, podemos ler tanto a dimensão do político como também as semelhanças e diferenças de épocas, ressaltando o fato de que, neste momento de nossas vidas, as "fake news" são o dispositivo que o texto ressalta como potente arsenal bélico para mobilizar as massas digitais. Este se torna o recurso apontado como diferencial em relação à época que Freud analisa a psicologia das massas. Além disso, o texto discute não só os aspectos do totalitarismo, mas sua associação ao neoliberalismo, apontando como a colonização da mente ocorre a partir de mecanismos totalitários, somados agora aos recursos digitais que levam os indivíduos e a massa a suspenderem a crítica e a capacidade de pensar por si mesmos.

Ainda no contexto de análise da mobilização das massas na Era Digital, encontraremos no trabalho de Ana Catharina Paixão Vasconcellos, Jacqueline de Oliveira Moreira, Bianca Ferreira Rodrigues e Juliana Morgante, intitulado "A rede social TikTok e a modulação de novas formações grupais", a análise de uma pesquisa inovadora em que as autoras recorrem à perspectiva freudiana da análise de formação grupal adentrando o universo digital e dialogando com os jovens entrevistados em uma linguagem e em um território predominantemente digital. A análise da formação de grupos no espaço digital suscitará muitas questões para o leitor, inclusive levando-nos a indagar se se trata de formações grupais ou "ajuntamentos" de indivíduos favorecidos pelo momento de digitalização, mas intensificados pela pandemia do novo coronavírus – SARSCOV-19 – que amplificou a tendência a mergulhar no mundo digital. A outra questão que o trabalho suscita diz respeito ao estabelecimento de novas relações no interior do mundo digital, deixando-nos como pergunta se não se trata mesmo de uma transposição de relações para o interior do mundo digital, favorecido pela Era Digital que marca uma mudança nos destinos da humanidade. Muitas são as novidades e as questões que o trabalho coloca, pois, são os adolescentes e jovens aqueles que sempre nos apresentam as direções para onde o mundo tende a caminhar.

Finalmente, o último aspecto contemplado à luz da Psicologia das Massas freudiana e encontrado na seção V, intitulada Colonialidade, torna-se uma condição necessária hoje para pensarmos a constituição e mobilização das massas. Trata-se de um tema que exige coragem dos autores, pois, implica um exercício novo no interior da teoria psicanalítica.

E, Andréa Maris Campos Guerra traz uma escrita que nos encoraja a fazer este movimento. Em seu texto "Um olhar da psicanálise sobre a branquitude a partir da 'Psicologia das Massas e Análise do Eu", a autora trata de um aspecto muito específico no processo de colonização e que permanece como herdeiro nas nossas relações de colonialidade: o problema da branquitude. Ao tomar tal problema sob a perspectiva do privilégio instituído pelo passado escravagista e da negação do racismo, aponta-nos como o privilégio do gozo pode ser pensado a partir dos aspectos metapsicológicos do narcisismo, da identificação e do estádio do espelho, além dos recursos à linguagem nos processos de subalternização e inferiorização dos povos escravizados. Nesta profunda análise, encontramos ainda as dimensões do não dito implicadas no processo de radicalização bem como a imposição da branquitude como um ideal, gerando exclusão, segregação e morte. Assim, o trabalho mostra a hegemonia violenta da branquitude e as contradições envoltas nos processos identificatórios e de alienação dos sujeitos racializados, além de uma leitura deste fenômeno a partir da psicologia das massas que nos aponta não só o ideal ali circunscrito, mas também a matriz identificatória inerente à mobilização das massas em direção ao racismo, à violência e destruição dos corpos racializados, mostrando-nos como a linguagem é um elemento colonizador.

Prosseguindo nesta análise tão atual das massas, Rodrigo Goes e Lima formula um texto que traz no título a sua questão: "Podem as massas pensar? Freud e o desafio político da emancipação". É com esta pergunta que o autor destaca não só a atemporalidade, o frescor e o vigor do texto freudiano, mas também nos coloca uma pergunta que, antes de ser respondida, abre novas questões. Além de propor um diálogo desafiador entre Fanon, Lazarus e Freud, o texto centra na discussão sobre o que devemos esperar das massas além do pior, pois, embora este seja um aspecto pessimista dado pelo fundador da psicanálise, podemos encontrar no pensamento de Fanon e Lazarus a perspectiva da revolução, da esperança e da potência do pensamento no interior das massas como possibilidade de mudança e não somente manipulação.

Aos leitores e leitoras fica o nosso convite a pensar os eventos atuais a partir das trilhas deixadas pelos autores e autoras que se dispuseram a retomar um texto centenário, mas tão atual e necessário para os nossos dias. Além disso, fica a advertência de que, após cem anos, o estudo sobre a psicologia das massas hoje deve levar em consideração não só a distância, o tempo e o mundo em que viveu Freud, mas também requer atenção para o fato de que todo estudo sobre as massas na atualidade deve, principalmente nos continentes americanos e africano, ter no seu horizonte o fato de nossa subjetividade ser caracteristicamente marcada pelos efeitos da colonização, da escravização, do contexto atual do capitalismo e do neoliberalismo.

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