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Revista Psicologia e Saúde

versão On-line ISSN 2177-093X

Rev. Psicol. Saúde vol.4 no.2 Campo Grande dez. 2012

 

ARTIGOS

 

Arte e saúde comunitária: contribuições para a compreensão do processo de desinstitucionalização

 

Art and healthy community: contributions to understand the process of deinstitionalization

 

Arte y salud comunitaria: contribuciones para la comprensión del proceso de desinstitucionalización

 

 

Sicília Maria Moreira de Araújo; Cândida Maria Farias Câmara; Verônica Morais Ximenes

Universidade Federal do Ceará

 

 


RESUMO

No processo de desinstitucionalização, que garante o direito humano de sua permanência no ambiente de convívio comunitário, ressalta-se o conceito de Saúde Comunitária, esta enfatiza a potência da comunidade e dos indivíduos que nela convivem, e em sua sabedoria construída e acumulada com o tempo. O objetivo desse artigo é trazer reflexões sobre a relação entre arte e saúde comunitária no processo de desinstitucionalização estabelecido com a Reforma Psiquiátrica Brasileira. Para este fim, as autoras realizam uma contextualização do processo da Reforma Psiquiátrica Brasileira e da utilização da arte no campo da saúde mental a partir de algumas publicações de referência no campo da saúde mental, saúde comunitária e arte, Neste sentido, os resultados e discussões referem-se ao direcionamento da arte para a comunidade como agente e instrumento promotor de saúde. Por fim, deste trabalho conclui-se que o processo de desinstitucionalização enfatiza a atuação na atenção primária em saúde e avança nessa concepção com o entendimento da saúde comunitária, privilegiando a expansão do potencial humano e comunitário através das expressões da arte e da criatividade.

Palavras-chave: Arte; Saúde; Desinstitucionalização.


ABSTRACT

In the process of deinstitutionalization, which ensures the human right of permanence in the environment of community contact, the concept of a healthy community emphasizes the potential of community and its subjects who live in it. The point of this article is to reflect the relationship between art and community health in the process of deinstitutionalization established with Brazilian Psychiatric Reforms. Finally, the authors make a contextualization about the process in Brazilian Psychiatric Reforms and also about the art used in the mental health field from published references , healthy community and art,. In this sense, the discussions and results refer to the destination from art to community as an agent and promoter of health instruments. Finally, this paper concludes that the process of deinstitutionalization emphasizes an action in primary healthcare and advances the conception of healthy community, believing the expansion of human and community potential trough expressions of art and creativity.

Key-words: Art; Health; Deinstitutionalization.


RESUMEN

En el proceso de desinstitucionalización, que garantiza el derecho humano de permanecer en un ambiente de convivencia comunitaria, resaltase el concepto de Salud Comunitaria, que da énfasis a la potencia de la comunidad y de los individuos que en ella viven y en su sabiduría construida y acumulada a lo largo del tiempo. El objetivo del presente escrito es reflexionar sobre la relación entre el arte y salud comunitaria en el proceso de desinstitucionalización establecido con la Reforma Psiquiátrica Brasileña. Para ello, las autoras han realizado una contextualización del proceso de la Reforma Psiquiátrica Brasileña e del uso del arte en el campo de la salud mental a partir de algunas publicaciones de referencia en el campo de la salud mental, salud comunitaria e arte. En este sentido, los resultados y las discusiones están referidos al direccionamiento del arte hacia la comunidad como agente e instrumento promotor de salud. Por ende, se ha concluido que el proceso de desinstitucionalización enfatiza la actuación en la atención primaria en salud y avanza con esa concepción hacia la comprensión de la salud comunitaria, de este modo, privilegia la expansión del potencial humano y comunitario através de las expresiones del arte y de la creatividad.

Palabras-clave: Arte; Salud; Desinstitucionalización.


 

 

Introdução

Este artigo surge do questionamento das autoras sobre algumas práticas desenvolvidas no campo da saúde mental na qual estão inseridas e que suscitaram problematizações acerca das práticas de cuidado em saúde comunitária, que fazem uso de recursos artísticos para o processo de desinstitucionalização. A partir deste contexto, são levantados alguns questionamentos: como se articula a atenção básica e a proposta de desinstitucionalização preconizada pela Reforma Psiquiátrica Brasileira? Como a arte, como recurso de cuidado em saúde mental, pode contribuir para o processo de desinstitucionalização?

Para tecer algumas considerações sobre estes questionamentos, buscou-se situar o processo de desinstitucionalização como uma forma diferenciada de lidar com a relação saúde-doença, superando práticas de tutela sobre os usuários dos serviços de saúde. Nesta perspectiva, a promoção da saúde implica na criação de espaços de cidadania, participação do sujeito e construção de seu próprio processo de saúde.

Destarte, a atenção básica, compreendida na perspectiva da saúde comunitária, apresenta-se como um espaço onde a Reforma Psiquiátrica ganha maior notoriedade pela rica possibilidade de compreender e trabalhar o sujeito de forma integral em seu próprio local de convivência: a comunidade.

Uma preocupação atual, que circula entre os profissionais de saúde, se refere às questões de ordens prática e teórica para atuar com prevenção e promoção. Em geral, com prevalência do paradigma biomédico nessas atuações, o serviço ambulatorial e o posto de saúde ainda são considerados como promotores da saúde. Questiona-se aqui se a atenção primária pode ser assim conceituada simplesmente por se encontrar no lócus primeiro da instalação das doenças e desigualdades: a comunidade. Até que ponto se avança nesses serviços para a saúde e sua promoção? Em que lugar se situam os moradores nesse processo? Que visão de homem/mundo perpassa tais práticas? Que ferramentas são utilizadas com e para a comunidade?

Outrossim, a arte tem sido ratificada como um recurso de cuidado em saúde que pode promover o processo de desinstitucionalização. Dentro do conjunto de ações que vem sendo desenvolvidas a partir da Reforma Psiquiátrica, a arte e a cultura têm alcançado resultados positivos como recurso de cuidado em saúde mental. De acordo com o Relatório de Gestão de 2003 a 2006 sobre saúde mental, o Ministério da Saúde (Brasil, 2007) afirma que os centros de convivência de arte e cultura são considerados lugares, onde as políticas públicas para saúde mental se realizam de forma mais visível e constante.

Dessa forma, problematiza-se a atenção primária. A saúde e a arte podem ser um possível rumo, que re-oriente o profissional que atua neste campo. Dentro da perspectiva de desinstitucionalização estabelecida com a reforma psiquiátrica, situamos que esta corrobora com o foco da atuação básica e primária, encontrando uma forma privilegiada de considerar e expandir o potencial humano por meio da arte e da criação.

Para a construção desse artigo, realizamos uma busca por trabalhos publicados em revistas e em livros sobre saúde mental, saúde comunitária e arte e, a partir destes, tentamos levantar alguns questionamentos preliminares sobre as contribuições da arte no processo de desinstitucionalização em saúde no campo da atenção básica.

Na busca em refletir tal questionamento, foram traçadas considerações sobre a relação entre arte e loucura constituída ao longo da história; em que contexto surge o termo "desinstitucionalização" e suas relações com a utilização da arte. Por fim, acrescenta-se a contribuição no processo de desinstitucionalização da Reforma Psiquiátrica dos rumos apontados pela Saúde Comunitária, que dão ênfase à atenção primária, prevenção e promoção e saúde, tendo na arte uma forma comprometida e facilitadora do potencial de saúde dos usuários do Sistema Único de Saúde. Diante disto, este artigo busca refletir sobre as possibilidades de utilização da arte no contexto comunitário de cuidado em saúde mental a partir da atenção básica.

 

Arte e Loucura: uma Relação Antiga

Nos estudos de Lima e Pelbart (2007), influenciados pelo filósofo Michel Foucault, a relação de arte com doença mental possui registros desde a criação de hospitais especializados para loucos em território árabe, criados por volta do século XII. A música, a dança e os espetáculos, nessa época, são utilizados como forma de intervenção e de cura.

Da mesma forma, durante a época renascentista, na Europa, surgem os primeiros hospitais para os ditos loucos os quais, semelhantes aos hospitais árabes, faziam uso da arte como ferramenta terapêutica para os pacientes. De acordo com os autores, a arte era considerada como uma forma de expressão que continha "virtudes terapêuticas que atuavam na totalidade do ser humano, penetrando-lhe corpo e alma" (Lima & Pelbart, 2007, p.712).

Segundo Amarante (1995), a partir do século XVIII, a razão vai ocupando campo de valor e a desrazão, ou loucura, vai progressivamente perdendo espaço de convivência integrada com a sociedade para ser isolada e submetida a um tratamento moral nas instituições psiquiátricas. De acordo com Castel (1978), neste contexto o louco é definido como um sujeito desprovido do atributo da razão e, por este motivo, representa perigo para a sociedade. Nesta perspectiva, a função da psiquiatria seria de diagnosticar, fornecer tratamento e punições adequadas a estes sujeitos no intuito que tais práticas promovam a sua cura. Nesse contexto, a loucura é definida como doença mental e o isolamento e a negação da subjetividade do louco fazem parte do tratamento:

o louco é submetido ... a um controle moral ininterrupto; a cura significará reincucar-lhe os sentimentos de dependência, humildade, culpa ... o louco tinha que ser vigiado em seus gestos, rebaixado em suas pretensões, contradito em seus delírios, ridicularizado em seus erros.... E isto sob a direção do médico que está encarregado mais de um controle ético que de uma intervenção terapêutica (Foucault, 1975, p.82).

Neste sentido, a revolução burguesa serviu de contexto para a loucura fazer parte do horizonte da incapacidade para o trabalho. Desta inadequação social para o trabalho produtivo, associou-se o conceito de doença mental. Nesta época, de acordo com Lima e Pelbart (2007), têm-se as primeiras propostas para o tratamento moral da loucura onde, então, a arte é retirada do campo de interesse da doença mental. A compreensão sobre a arte, nesse momento, transita de uma forma de tratamento para uma manifestação de perversão e de doença mental.

Assim, com o afastamento da arte no trato da loucura, esta consegue definir uma linguagem própria, ou seja, uma forma peculiar e específica de expressão visualizada como diferente da arte.

Assim, a clínica, no início de sua forma moderna, desinteressou-se pela arte, e um silêncio ocupou o espaço entre esses dois campos. Um silêncio que coincidiu com o silêncio ao qual foi condenada a loucura por toda a época clássica. Mas foi dessa região do silêncio, que se concretizou no internamento, que a loucura pode, segundo Foucault (1975), conquistar uma linguagem que era sua. O reaparecimento da loucura no domínio da linguagem precedeu qualquer interesse da clínica pela arte, seja como aliada para a construção de uma teoria do funcionamento psíquico, seja como instrumento de procedimentos terapêuticos (Lima & Pelbart, 2007, p.712)

Segundo Teixeira (in Lima & Pelbart, 2007), durante o final do século XIX, surge um movimento no ocidente no campo das artes de busca por superação da norma clássica, explorando novas formas de expressão e operando no limite da linguagem artística. Nesta época, a Europa sofreu a influência das ideias de valorização da sensibilidade humana ocorrendo uma re-aproximação da ideia de loucura e arte. Neste contexto, estudiosos da loucura frequentavam espaços de exposição de arte e os artistas buscavam leituras sobre a loucura. Um campo de conhecimento buscava novas formas mais aprimoradas de pensar e trabalhar sobre a arte e a loucura.

Segundo Melo (2001), no Brasil, por volta de 1946, a médica psiquiatra Nise da Silveira, formada na Bahia no Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro, provocou rumos diferentes em relação à psiquiatria tradicional e dedicou-se a novas formas de cuidado em saúde mental, dentre as quais a que tomou mais expressão foi a arte. Com sua influência marcante, foram introduzidos os profissionais da arte, como músicos e pintores, nos trabalhos realizados com doentes mentais.

Enquanto, na década de 1940, a tecnologia da loucura evoluía para tratamentos com eletrochoques e cirurgias neurológicas (lobotomia), a referida psiquiatra foi precursora em formas inovadoras de atenção em saúde mental dentro do campo da terapia ocupacional e linguagens artísticas. Sua perspectiva considerava a psicopatologia, como uma forma de expressão da existência, e que seu interesse, enquanto profissional, seria penetrar no mundo interno dos pacientes, compreender suas formas de sofrimento e aproximar-se deles com o intuito de melhorar suas condições de vida (Cedraz & Dimenstein, 2005).

De acordo com Castro e Lima (2007), para sustentar essa opção, Nise da Silveira fortaleceu o método em terapia ocupacional e desenvolveu uma fundamentação teórica para tal abordagem a partir da psicologia analítica. Neste sentido, foram desenvolvidas pesquisas no Centro Psiquiátrico Pedro II, onde dirigia o setor de reabilitação, que comprovaram os efeitos nocivos dos tratamentos psiquiátricos tradicionais e a eficácia de sua proposta de tratamento através da criação de espaços que promovam capacidades criativas e de aprendizado.

Em setembro de 1957, Nise inaugurava uma exposição das obras dos pacientes no Museu de Imagens do Inconsciente, na presença de Carl Jung, admirador de seu trabalho e de cuja abordagem a psiquiatra se baseava para desenvolver seu trabalho. O trabalho desenvolvido pela psiquiatra influenciou não somente no reconhecimento de novos instrumentos para o trabalho em saúde mental, mas, também, em novas formas de relação entre profissionais e pacientes.

A experiência da médica Nise da Silveira permitiu revelar um novo caminho para o tratamento de pessoas com transtorno mental através da arte: valorizando outras formas de expressão, outras tecnologias de cuidado e de relação dos profissionais de saúde mental com pessoas em tratamento. De acordo com Lima e Pelbart (2007, p. 713), nesse contexto, "a arte explorou sua vizinhança com a loucura, tanto no processo de criação do artista, quanto no interesse por aquilo que alguns sujeitos, enredados nas malhas de instituições asilares, produziam". A experiência da referida médica se constituiu como um lastro a partir do qual se fundamentaram outras ações no campo da saúde mental, que envolvia atividades de arte e trouxeram novos questionamentos acerca da loucura e dos cuidados dispensados a pessoas com transtorno mental.

Apesar de, durante o século passado, surgirem outras atuações no campo da saúde mental, que faziam da arte um recurso terapêutico importante, somente com a Reforma Psiquiátrica validou-se cientificamente e politicamente a utilização de outros recursos para além do atendimento psiquiátrico e da medicalização. A partir da Reforma Psiquiátrica Brasileira, buscou-se a consolidação da atuação dos profissionais de saúde a partir da concepção do sujeito como ser bio-psico-social e promoveu movimentos sociais e a aprovação de projetos de lei, em especial a Lei nº 8080, que dispõe sobre o Sistema Único de Saúde (SUS), e fortaleceu essa forma de atuação. Neste sentido, faz-se pertinente a compreensão do processo da implementação da Reforma Psiquiátrica no Brasil para, em seguida, compreendermos sua relação com as práticas de arte no campo da saúde.

Contextualizando a Reforma Psiquiátrica Brasileira e o Conceito de Desinstitucionalização

A Reforma Psiquiátrica Brasileira constitui-se como um processo de mudança na forma de atenção em saúde mental e teve como princípio o Movimento Dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), em 1978. Este movimento tinha como objetivo a mudança no modelo tradicional de cuidado, centrado na figura do médico e da doença, para a implementação de práticas que revertessem o quadro de isolamento dos portadores de transtornos mentais e lhes promovessem o exercício de cidadania através de práticas que os reconhecessem como sujeitos de direitos (Amarante, 1995).

Posteriormente, segundo Amarante (1995), um encontro de trabalhadores em saúde mental, ocorrido em dezembro de 1987, promoveu a ampliação do MTSM. Neste momento, o MTSM mudou sua natureza técnico-científica para tornar-se um movimento social. Com isto, o MTSM pedia a participação da sociedade nos encaminhamentos e discussões emergentes no campo da saúde mental.

A Reforma Psiquiátrica Brasileira surgiu por influência da Reforma Psiquiátrica Italiana e buscava desconstruir as ações de cuidado em saúde mental fundamentadas na clínica de Pinel, que tinham como proposta o controle e a medicalização. Nos estudos de Oda e Dalgalarrondo (2005), historicamente, a proposta de controle como forma de cuidado veio com Pinel, considerado o pai da psiquiatria, o qual conceituou a doença como um estado de desequilíbrio das paixões. Para Pinel, a cura do alienado, portanto, dar-se-ia na busca por trazê-lo à realidade e dar-lhe novamente o controle de suas emoções por meio de uma reeducação e da internação nas instituições psiquiátricas. Neste caso, defendia-se o tratamento moral como um recurso terapêutico.

Foucault (1975) compôs o grupo de alguns estudiosos que se dedicaram sobre a constituição da psiquiatria e da loucura e como se formou a relação entre ambos. Segundo o mesmo, a transformação da loucura em doença se deu com o fortalecimento do capitalismo, onde o indivíduo que não fosse capaz de trabalhar e gerar lucro seria visto como louco ou anormal, ou ainda, foi com o fortalecimento do capitalismo que a psiquiatria apropriou-se da saúde mental e da verdade sobre a mesma. Por conseguinte, as formas de intervenção da psiquiatria sobre a loucura acabaram por estimular reflexões acerca das formas de cuidado dispensadas aos portadores de transtornos mentais. Segundo Cedraz e Dimenstein (2005), deste questionamento nasceram os primeiros manifestos do que seria a Reforma Psiquiátrica, que ocorreu de formas diversas em vários países.

O movimento da Reforma Psiquiátrica teve início na Itália com Basaglia (1985), o qual a definiu como um movimento de reformulação de propostas de atuação concernentes a saúde mental, questionando o paradigma da psiquiatria clássica. A Reforma Psiquiátrica Brasileira, por influência da Reforma Italina, utilizou o conceito de desinstitucionalização.

No Brasil, se utilizou deste conceito, como alicerce para uma luta social contra formas de negação da subjetividade dos indivíduos ditos "loucos", construída através de concepções de saúde e doenças elaboradas pela psiquiatria tradicional.

O conceito de desinstitucionalização foi apresentado primeiramente por Basaglia (1985), psiquiatra que atuou no processo da Reforma Italiana, e desenvolvido pelo também psiquiatra Rotelli (Rotelli, Leonardis & Mauri, 2001). Tal conceito surgiu a partir das ideias de Michel Foucault sobre a história da loucura, o qual designava "instituição" a maneira como se construiu um conjunto de aparatos científicos, legislativos e administrativos eminentemente voltados para a "doença", em detrimento da compreensão do contexto social em que se situa o paciente. O processo de desinstitucionalização, para Basaglia (2005) e Rotelli (Rotelli, et al., 2001), seria o desmonte dos elementos que sustentam a instituição da psiquiatria tradicional, focada no conhecimento da doença, na crença do poder de cura e na tutela sobre o paciente, para a construção de uma instituição (saberes, aparatos legislativos e formas de cuidado) que desloque sua atenção da cura e da doença como "erro" ou "falta". A desisntitucionalização tem como base a compreensão do paciente, enquanto sujeito socialmente atuante que se encontra em uma existência de sofrimento em relação com a doença e a sociedade. Neste caso, a cura não seria o objetivo do cuidado em saúde mental, mas a promoção de uma cidadania ativa do sujeito portador de transtorno mental, através de uma maior participação deste no convívio social e em seu processo de adoecimento.

Neste sentido, podemos compreender o processo de desinstitucionalização como a desmontagem do dispositivo psiquiátrico, que diz respeito à ideia de desconstrução do manicômio reproduzido e praticado em diversos espaços sociais, e não apenas no interior do hospício ou instituição de saúde mental. Da desinstitucionalização faria parte a construção de uma relação de contrato com o sujeito, a qual substitui a relação de tutela instaurada pela psiquiatria tradicional.

O papel do técnico é reinserir a complexidade dos problemas com os quais lida, abrindo mão das interpretações da loucura segundo erro, incapacidade, inferioridade, doença mental - e potencializá-la como diferença, um modo diferente de relação com o mundo (...). Enfim, não usar o saber como técnica normativa, mas como possibilidade de criação de subjetividades, sujeitos ativos, espaços de sociabilidade (Torre, 2004, p. 59).

Neste sentido, no Brasil, movimentos sociais, conferências e encontros de trabalhadores de saúde mental e usuários de serviços de saúde reverberaram no desenvolvimento do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira que desencadeou várias ações em 1986, na 8ª Conferência Nacional de Saúde, quando o pesquisador Sérgio Arouca apresentou o projeto do sistema Único de Saúde (SUS), aprovado como projeto de lei em 19 de setembro de 1990.

Na Itália, o processo de desinstitucionalização culminou na extinção dos manicômios e no Brasil, a Lei Paulo Delgado propôs a progressiva extinção dos hospitais psiquiátricos, além de impedimentos da abertura de novos hospitais (Cedraz & Dimenstein, 2005). Por outro lado, no Brasil, apesar das tentativas, não se conseguiu força política suficiente que favorecesse a interdição dos hospitais e instituições que lucravam com a internação dos usuários. Dessa forma, em 1997, o Projeto de Lei Paulo Delgado foi rejeitado pela Comissão de Assuntos Sociais do Senado e seu substituto, Lei Lucídio Portela, ratificava a internação como recurso terapêutico válido, além de prever tal internação não mais como uma prerrogativa médica. Por conseguinte, os hospitais psiquiátricos mantinham-se, mas não seriam mais considerados como única forma de cuidado em saúde mental (Paiva & Yamamoto, 2007).

Apesar dos entraves, a Reforma Psiquiátrica Brasileira conseguiu conquistar espaço para a formulação de políticas públicas cujas propostas buscam estar coerentes com o conceito de desisntitucionalização, o qual, de acordo com Cedraz e Dimenstein (2005), consistiria em um processo de desconstrução cotidiana de ideologias e práticas de tutela enrijecidas, que se afirmam tanto dentro das instituições de saúde, como no contexto social de uma forma mais ampla. Outrossim, as políticas públicas, construídas neste contexto, consolidaram a arte e a cultura como práticas eficazes para o favorecimento do processo de desinstitucionalização da loucura através de Relatórios do Ministério da Saúde (Brasil, 2007) e do incentivo financeiro à iniciativas desenvolvidas pela sociedade civil, inclusive, no campo onde a arte e cultura são utilizados como instrumentos para promoção da saúde.

Devido as ações de arte e de cultura, apoiadas pelas políticas públicas de saúde pelo Governo Federal e por setores e grupos, torna-se pertinente o questionamento sobre a utilização da arte no campo da saúde mental. Neste sentido, é válido questionar: Será a arte em si um instrumento capaz de promover processos de desinstitucionalização nas instituições de saúde? Existem outros fatores condicionantes para que o processo de desinstitucionalização possa ocorrer através da arte?

Arte e o Processo de Desinstitucionalização no Brasil

De acordo com Hirdes (2009), a partir da 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986), da 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental (1987), da 2ª Conferência Nacional de Saúde Mental (1992) e da 3ª Conferência Nacional de Saúde Mental (2001) surgem outros movimentos que fortaleceram a superação do modelo manicomial em assistência. Além disso, a Conferência Regional para a Reestruturação da Assistência Psiquiátrica, realizada em Caracas, em 1990, trouxe uma mudança histórica em nível de Ministério da Saúde para o Brasil a partir da "Declaração de Caracas". Segundo Hirdes (2009) e Paiva e Yamamoto (2007), por meio desta, o Brasil e outros países da América Latina se comprometiam a promover mudanças no campo da assistência psiquiátrica, revertendo o quadro hegemônico dos hospitais psiquiátricos para a atenção em saúde mental, favorecendo a dignidade pessoal e os direitos humanos dos usuários, além de propiciar a sua permanência em seu meio comunitário.

Em 1987, o Encontro do Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental de Bauru, cujo lema foi "Por uma sociedade sem manicômios", desenvolveu o projeto TAMTAM, que incluía projetos culturais e artísticos como iniciativas válidas para o cuidado em saúde mental. Neste contexto, a arte tornava-se tanto uma proposta de cuidado coerente com a Reforma Psiquiátrica, como instrumento mobilizador em favor dos movimentos sociais que lutavam pela Reforma.

Em 2005, retomou-se a "Declaração de Caracas", com o documento "Princípios Orientadores para o Desenvolvimento da Atenção em Saúde Mental nas Américas", quando foram reavaliados os avanços no campo da saúde mental. Reafirmando, então, a "Declaração de Caracas" em relação a sua importância para a promoção da cidadania e dos direitos humanos.

Neste momento, transpareceu a necessidade de construção de redes e serviços alternativos aos hospitais psiquiátricos iniciando experiências de desconstrução do aparato manicomial, dentre as quais uma de destaque foi o fechamento da Casa de Saúde Anchieta, em São Paulo. A partir desse movimento, privilegiou-se a criação de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico (Hirdes, 2009). Posteriormente, a Lei Paulo Delgado propôs a extinção progressiva do modelo clássico em psiquiatria para o estabelecimento de outras modalidades de cuidado, que favorecesse o processo de desinstitucionalização (Amarante, 1995).

Alverga e Dimenstein (2006) consideram que a proposta de desinstitucionalização trazida pela Reforma é cotidianamente sabotada pelo fortalecimento do que conceituam como "Desejos de Manicômio", presente nas formas de relação entre opressores e oprimidos, minando formas éticas de cuidado, novas formas de lidar com a diferença e dificultando a efetivação da Reforma na atenção em saúde mental baseada no confinamento e controle para a interação, liberdade e criatividade. Os autores pontuam, ainda, que os espaços de arte, criados com a Reforma, favoreceriam formas de expressão amplas e livres, as quais não seriam submetidas à racionalização e verbalização, valorizando novas formas de perceber e atuar no mundo, o que ajudaria a criar uma nova forma de relação diferente da clinica na psiquiatria tradicional.

Mecca e Castro (2007) apresentam uma proposta de reconfiguração de espaço e desinstitucionalização de práticas em cuidado a partir da experiência de "bricolagem" desenvolvida no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de Guarulhos, São Paulo. Tal atividade consistia em uma construção conjunta e livre de objetos artísticos, no espaço da terapia ocupacional, por usuários do CAPS:

as experiências de criação artística na oficina uniam fragmentos da história da atenção em saúde mental e da história pessoal dos sujeitos, e os ressignificavam para, então, agenciar transformações de estados de ser, enrijecidos na dependência de outros, no lugar da doença, no não poder desejar, demandar ou opinar sobre o coletivo, para um novo acontecer histórico compartilhado (Mecca & Castro, 2007, p. 379),

Silva (2004) e Kantorski (2004) referem que as práticas pinelianas de cuidado em saúde mental acabam por promover espaços de mortificação de subjetividades das pessoas com transtorno mental e afirmam que os espaços de arte podem promover um ambiente de criação, auto-conhecimento e crescimento pessoal, onde as abordagens terapêuticas diversificados podem "compor uma teia criativa em que cada fio ofereça mais uma possibilidade de acolhimento, cuidado e sociabilidade ao sujeito com sofrimento psíquico" (Kantorski, 2004, p. 28). Para Valladares (2004), a arte auxiliaria no restabelecimento e integração da pessoa na sociedade através da produção de materiais artísticos significativos. Tal perspectiva vai ao encontro das idéias de Silva (2004), que afirma a experiência estética da arte como caminho para a desinstitucionalização, que traz novas formas de relação entre os sujeitos podendo promover relações de solidariedade, espaços de diálogo e a reconstrução criativa do que se entende por saúde. Neste sentido, o trabalho com arte conduz a uma reflexão do trabalho com saúde para além da intervenção terapêutica, onde se busca a reversão de um quadro patológico. Neste caso, o diagnóstico permanece em segundo plano e outras possibilidades de compreensão acerca do processo de desinstitucionalização ganham espaço.

Partindo dessas concepções, a saúde se configura como possibilidade de participação social integrando a expressão criativa do sujeito no campo relacional. A criação artística promoveria a saúde do sujeito, haja vista que o retira de práticas automatizadas, vivenciadas no cotidiano, para a valorização de práticas criativas, inovadoras que apontam para a saúde.

Práticas de criação por meio da arte, então, seriam formas de atividades conscientes de escolhas dos sujeitos que possibilitariam formas singulares de apreensão e desenvolvimento das atividades em que participam. Neste sentido, espaços de arte promovem ainda o encontro com o diferente, o estranho, o novo, com formas diversas de ser, de se expressar e estar no mundo, com o que é próprio de si e com o que é compartilhado com outros.

Nessa perspectiva, compreende-se que as formas de cuidado coerentes com o processo de desisntitucionalização aproximam o processo criativo, intercedido pela arte, e a promoção da saúde dos sujeitos e da comunidade.

Desinstitucionalização, Arte e Saúde Comunitária: um caminho para a construção de novos olhares sobre o cuidado

As ações voltadas para a promoção do processo de desinstitucionalização apontam cada vez mais para a inserção dos sujeitos em seu âmbito comunitário. Neste sentido, compreendemos a proposta da saúde comunitária, como uma possibilidade de participação comunitária, tendo a arte como recurso potencializador e promotor de saúde.

Experiências com arte suscitam importantes discussões no campo da saúde mental. A arte facilita, como visto anteriormente, mecanismos de expressão da individualidade necessários para o fortalecimento das dimensões relacional e participativa dos sujeitos. O que se busca aqui, no entanto, é problematizar e aprofundar tais questões e experiências, pois muitas delas ainda se restringem à instituição formal em saúde, como no caso da experiência de bricolagem, ocorrida no CAPS. Sendo assim, a desinstitucionalização perde sua força ao restringir-se às instituições em saúde mental.

A proposta de desinstitucionalização, considerada como direito humano a permanência no ambiente de convívio comunitário, estabelece a relevância da participação social, considerando o trabalho artístico como recurso fortalecedor das relações sociais no âmbito da comunidade.

A arte contribui com o processo de construção da saúde dos sujeitos e da comunidade, enraizada no cotidiano que vai além das instituições ditas de saúde, mas se insere como uma forma de cuidado que a própria comunidade e suas famílias criam para lidar com a saúde de seus moradores. Os espaços de arte tornam-se ambientes para expressão criativa e momento de vinculação e contato. A problematização em Saúde Comunitária enfatiza as ações da atenção primária com a arte e a participação social no tecido comunitário.

A Saúde Comunitária, referida neste artigo, vincula-se ao aporte teórico da Psicologia Comunitária. A Psicologia Comunitária constitui-se como uma área da Psicologia Social da Libertação (Góis, 2005a) que afirma o psiquismo como decorrente do modo de vida do lugar ou comunidade em que o sujeito vive e surge da "confirmação de que o indivíduo é uma realidade social, histórica ou pelo menos que se encontra fortemente submetido a um processo cultural"(Góis, 1993, p. 45). A Psicologia Comunitária tem como base em seus trabalhos as metodologias participativas e artísticas a partir do método dialógico-vivencial (Rebouças Junior & Ximenes, 2010), que propicia a interação social entre os membros de uma comunidade mediante o diálogo e a vivência. Nesse contexto, a Saúde Comunitária configura-se como uma prática que favorece o exercício de liberdade e cidadania dos sujeitos. O cuidado com a saúde está, nesta perspectiva, associado a promoção de espaços de construção dialógica em que os sujeitos participam de seu processo de saúde-doença e de ações locais para a mudança de situações avaliadas pelos sujeitos como promotoras de uma má qualidade de vida na comunidade. Nesta perspectiva, as práticas de cuidado que favoreça a saúde comunitária implicam em participação dos sujeitos comunitários.

A Saúde Comunitária parte do que existe de potente na comunidade e nos indivíduos que nela convivem, na sabedoria construída e acumulada com o tempo:

um conceito positivo e coletivo, por nela considerar, como ponto de partida, o potencial de vida e a experiência acumulada presentes em cada morador e entre moradores. Por ver o indivíduo como sujeito da realidade, cidadão, capaz de aprender a cuidar, cada vez melhor, de sua saúde, da saúde dos outros e da Natureza (Góis, 2008, p. 104).

Nesse sentido, Valla (1999) corrobora quando ressalta o apoio social, como alternativa ao modelo biomédico e ao que denomina de crise na saúde, uma visão que compreende saúde além da ausência de doenças e que engloba os saberes construídos pela própria comunidade.

Nessa perspectiva, a saúde é compreendida como responsabilidade social, política e crítica que se posiciona na construção do SUS e da saúde por meio da criação de uma prática coletiva em saúde que já é desenvolvida pela própria comunidade, em suas relações de vizinhança, de solidariedade, apoio mútuo e que através da participação social se realiza.

O SUS coloca a saúde como problema do cidadão, reorganiza a saúde no seu fazer cotidiano, no local de sua moradia. A atenção primária em saúde refere-se ao compromisso e engajamento social, prioriza a comunhão entre moradores na construção de uma nova saúde, da qual também participam os profissionais das instituições responsáveis. Preocupa-se com o lugar onde nasce, crescem e se reproduzem as doenças, mas também com os seus focos de resistências.

Segundo Heidmann (2006), a atuação primária refere-se, especificamente, às mudanças no estilo de vida da população que se encontra intimamente ligada às condições e qualidade de vida. Assim, é um modo de ver e compreender a relação saúde-doença que se faz no cotidiano comunitário.

Essas estratégias de promoção, a nosso ver, apontam para a participação social como o elemento-chave para desenvolver os potenciais comunitários e individuais de luta e reivindicação por direitos em saúde. Além disso, nos espaços participativos aproximam-se comunidade e serviços, moradores e profissionais, gestores e população com a finalidade de estabelecer um diálogo transformador e coerente com as peculiaridades da saúde local (Oliveira, 1998). Sua importância é decisiva visto que "o que fará a diferença para a promoção da saúde entre ser instrumento do neoliberalismo ou da igualdade social, de fato, seja a participação social" (Marcondes, 2004, p.12).

Mas, então, qual o lugar da arte diante de tais entendimentos?

De acordo com Dantas (2005), a arte atua no estabelecimento da saúde do indivíduo, fortalece a capacidade de auto-regulação e resiliência dos usuários e não somente colabora no desaparecimento dos sintomas de doenças. Além disso, em âmbito coletivo, as formas de expressão por meio da arte retratam também a realidade do povo produzindo novas formas de denuncia e superação de seus anseios. A arte pode expressar o potencial criativo, crítico, político e coletivo da comunidade em busca de soluções aos problemas. Assim, as linguagens da arte como teatro, dança, fotografia, artesanato, pintura, dentre outros, expressam as diversas dimensões de sua vida cotidiana comunitária, sendo capaz de estimular o apoio mútuo e solidário tanto na rede de saúde como na comunidade. As narrativas de cada grupo podem abordar uma leitura crítica e coletiva do vivido, imprescindíveis na ultrapassagem do individualismo e isolamento dos usuários e moradores das comunidades.

Segundo Vygotsky (1999), a arte é um mediador pedagógico que potencializa a capacidade de imaginar. A arte, sob o ponto de vista da psicologia, é um importante recurso para a expressão e a recriação do indivíduo, ela reflete o mundo de percepções, pensamentos, sentimentos e emoções (Lane & Araújo, 1999) e revela, também, seu poder de imaginação (Góis, 2005b). A arte seria, portanto, uma proposta de expressão, recriação e fortalecimento individual e coletivo.

Nesse sentido, a arte pode ser utilizada no sentido de estabelecer novas perspectivas e sonhos dos moradores de forma que valoriza e, ao mesmo tempo, transforma a cultura local. Vista como visão de homem que cria e, também, como técnica, tem-se vários meios de expressar-se: dramatizações (Pinheiro, 2008), teatro de rua (Dantas, 2005), arte-identidade (Góis, 2005b; Castro, 2009), Biodança (Toro, 2002), dentre tantos outros.

As dramatizações são elementos que favorecem os processos de abstração, de imaginação e de criação. Para Pinheiro (2008), essa técnica pode contribuir com a resignificação e reorganização de regras presentes na vida das pessoas, sendo um mediador das relações entre as pessoas. No caso das pessoas com transtorno mentais, a dificuldade ou impedimento de explicitar os problemas pode ser contornada pelos processos de dramatização, o que possibilita outro caminho de acesso a sua identidade. Já o teatro de rua, é um meio de restituir ao "público" o poder de fazer teatro, criando para isso uma nova linguagem que desmitifica a arte, reaproximando-a do povo. Possui dois princípios inalienáveis: transformar o espectador em um protagonista e ser sempre um ensaio do que se poderá viver na realidade social.

Segundo Góis (2005b), a arte-identidade é uma abordagem pedagógica e terapêutica, que partiu do referencial da Biodança, e facilita o desenvolvimento evolutivo da expressão criativa inerente à identidade por meio da arte. Seu foco é o processo criativo mediado pela arte e tem como objetivo permitir que a identidade se expressasse. Castro (2009) ressalta a relação entre a arte, os processos criativos e as possibilidades de recriação da própria identidade humana, o que facilita a construção de vínculos afetivos entre as pessoas. A arte-identidade é utilizada em trabalhos com Biodança. A Biodança (Toro, 2002) é um sistema de desenvolvimento humano, que busca fortalecer as potencialidades do ser a partir da unidade "música-movimento-vivência". Possui linhas de vivências, que estão presentes no desenvolvimento do ser humano, são elas: vitalidade, afetividade, sexualidade, criatividade e transcendência. Todas essas técnicas são realizadas em grupos com metodologias participativas.

Outra aproximação da arte dentro do campo da Saúde Comunitária é que, assim como nesta, "a prioridade é o processo de grupo e a interação social positiva, isto é, com sentido de vida e cooperação, seja em seus aspectos pedagógicos e/ou terapêuticos" (Góis, 2008, p. 107), a arte contribui sobremaneira na intensificação das interações sociais com espontaneidade de forma criativa e saudável. Promove-se a humanização em saúde entre profissionais e usuários quando estes vivenciam coletivamente a descoberta da arte em si mesmos.

 

Considerações Finais

Por fim, neste percurso do artigo, iniciado com breves considerações sobre a arte e a loucura desde a Antiguidade e finalizado com tais reflexões sobre a arte no campo da saúde hoje, buscou-se esclarecer muitas tentativas e formas de estabelecer o diálogo entre arte e saúde. Pode-se concluir que ambas estiveram sempre juntas no fazer humano, criar faz parte da saúde, saúde faz parte do homem, o homem é um ser criativo, cria e cuida de sua própria saúde. Assim, pensar saúde em termos de SUS significa considerar, os homens e mulheres como sujeitos capazes de construir formas de participação nos espaços comunitários que possam promover a saúde do coletivo. Tais sujeitos podem se tornar importantes colaboradores e norteadores da gestão em saúde na medida em que constroem instrumentos que facilitam a mobilização, a interação e a construção de espaços pedagógicos em saúde e de desenvolvimento da consciência e da cidadania através da arte e da cultura.

As atividades artísticas coerentes com a proposta de desinstitucionalização possibilitam práticas de cuidado que podem transformar o modo do sujeito se apropriar de sua experiência e transformar suas relações pessoais. Neste caso, os espaços de arte não se configuram apenas como atividade estética de ocupação de tempo: podem tornar-se mecanismos de transformação social acerca das formas da sociedade lidar com as questões referentes à saúde mental. Não podem ser considerados meramente como entretenimento, numa perspectiva que fortalece a ideia de incapacidade do sujeito com transtornos mentais e reforça práticas de tutela e isolamento.

Consideramos que o desafio dos serviços, que utilizam a arte como recurso em saúde mental, seria a busca por uma educação permanente em cuidado em saúde mental com o objetivo de se estabelecer práticas e formas de relação não manicomiais. Tal mudança na forma de cuidado provocaria uma ressignificação nas formas de relação que nos constituiu como seres humanos e exigiria um estado de constante vigilância em relação à construção das práticas em saúde mental. Neste contexto, a proposta da arte, como um recurso em saúde mental, possibilita a diversidade de expressão e não se atrela a normatização da racionalidade, mas possibilita espaços de criação, afetividade e fortalecimento de laços com a comunidade através da cultura.

 

Agradecimentos

Prestamos agradecimento à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que disponibiliza uma bolsa de estudos para uma das autoras deste trabalho, e ao curso de Mestrado em Psicologia da Universidade Federal do Ceará, que se constituiu para as autoras como um importante espaço para o aprofundamento de estudos e pesquisas no campo da saúde mental.

 

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Recebido: 16/11/2010
Última revisão: 02/08/2012
Aceite final: 23/10/2012

 

 

Sobre os autores:
Sicília Maria Moreira de Araújo - Psicóloga, Mestre em Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Foi bolsista da CAPES-Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Endereço: Rua Braz de Francesco, 100/201. Bl. 7. Presidente Kennedy. CEP 60325-010. Fortaleza, Ceará, Brasil. Telefones: 85-32173146/85-87771010.
E-mail: sicilia.moreira@gmail.com
Cândida Maria Farias Câmara - Psicóloga, Mestre em Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Foi bolsista da CAPES-Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
E-mail: candidacamara@yahoo.com.br
Verônica Morais Ximenes - Psicóloga, Doutora em Psicologia (Universidade de Barcelona), Professora da Graduação e da Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Bolsista em Produtividade do CNPq.
E-mail: vemorais@yahoo.com.br