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Revista Psicologia e Saúde

versão On-line ISSN 2177-093X

Rev. Psicol. Saúde vol.5 no.1 Campo Grande jun. 2013

 

ARTIGO

 

Psicologia e saúde como campo de interrogações

 

Psychology and health as field questions

 

Psicología y salud como campo de interrogaciones

 

 

Rebeca de Cassia Daneluci1

Universidade de São Paulo

 

 


RESUMO

O presente artigo é parte de nossa revisão literária do mestrado e, por meio desta, problematizaremos a relação entre a Psicologia e a Saúde, a partir dos seguintes questionamentos: Há diferenças entre essas áreas? A existência de uma remete a outra? Por que ainda falamos da inserção do psicólogo na área da Saúde? Para tanto, apresentaremos as mudanças ocorridas no interior da Psicologia, tanto teóricas como de modelos e locais de atuação, com foco na área da Saúde, para chegarmos ao ponto mais preciso da nossa discussão, o qual se refere às fragmentações no interior do próprio campo da Psicologia culminando em diversas expressões e até especializações, como a Psicologia da Saúde e Hospitalar. Nosso posicionamento aparece na contramão dessas divisões, questionando o que compõe a Psicologia em sua singularidade, sem adjetivos e preposições. Como argumento para nossa defesa, utilizamos o conceito/campo interdisciplinar de Saúde, no qual a Psicologia deveria ser parte integrante, não havendo dessa forma, a necessidade de se falar em Psicologia na ou da Saúde, uma vez que a relação entre ambas não as excluem e nem as colocam em posições estanques ou complementares. Ou seja, em nosso entender não haveria uma Psicologia sem uma concepção embasada de Saúde e vice-versa, remetendo, desta forma, a existência de uma a existência da outra.

Palavras-chave: Psicologia; Saúde; Saúde pública.


ABSTRACT

The following article is the result of our Master Course research in which we examine the relationship between psychology and health, based on the following questions: Are there differences between these areas? Does the existence of one leads to another? Why do we still speak about the insertion of psychologists in health care? Therefore, we present the changes within the Psychology area, both theoretical and performance, focusing on the health sector, to arrive at a more precise point of our discussion, which refers to the fragmentation within their own field of psychology culminating in various expressions and even specialties such as Psychology of Health and Hospitals. Our position appears against these divisions, questioning what makes psychology in their uniqueness, without adjectives and prepositions. As an argument for our defense, we use the concept/Health interdisciplinary field in which psychology should be an integral part, not having thus the need to talk about in Psychology or Health, since the relationship between them did not exclude nor put them in positions watertight or complementary. In our opinion there would be no one Psychology without one conception grounded the Health and vice versa, thereby transmitting the existence of one to another.

Key-words: Psychology; Health; Public health.


RESUMEN

Este artículo es fruto de nuestra revisión de la literatura en la Maestría, por medio de la cual se examina la relación entre la Psicología y la Salud, con base en las siguientes preguntas: ¿Existen diferencias entre estas áreas de conocimiento? ¿La existencia de una apunta en la dirección de la otra? ¿Por que todavía se habla en la inserción del Psicólogo en la atención en Salud? Por ello, presentaremos los cambios dentro de la Psicología, tanto teóricos como de modelos y locales de actuación, centrándonos en el sector de la Salud, para llegar al preciso punto de nuestra discusión, que se refiere a la fragmentación dentro del campo de la Psicología que culminó con diversas expresiones y hasta especialidades como la Psicología de la Salud y la Hospitalaria. Nuestra posición va en sentido contrario a estas divisiones, cuestionando lo que constituye a la Psicología en su singularidad, sin adjetivos o preposiciones. Como argumento en favor de lo que defendemos, haremos uso del concepto/campo interdisciplinario de Salud en que la Psicología debe ser una parte integrada, por lo tanto, sin la necesidad de hablarse en Psicología en o de la Salud, ya que la relación entre las dos no es excluyente ni las pone en oposición o en posiciones estanques o complementarias. En nuestra opinión, no habría una Psicología sin una concepción embasada de Salud y viceversa, donde la existencia remite a la existencia de la otra.

Palabras-clave: Psicología; Salud; Salud pública.


 

 

Psicologia e Saúde: há diferenças entre essas áreas/campos de conhecimento?

Neste tópico nos debruçaremos nas particularidades que definem o campo da Psicologia e o da Saúde, na tentativa de respondermos a sentença acima, ou mesmo, propiciar reflexões.

A princípio pode dar a ideia de certa ingenuidade começarmos nosso diálogo com uma pergunta a qual de imediato o leitor poderá responder que sim, há diferenças, caso não houvesse, não precisaríamos de dois campos de conhecimento. Mas então, o que a que corresponde cada um desses campos?

Iniciaremos pelo campo da Saúde, campo este que, tanto em nível internacional como nacional, aparece por um entrecruzamento entre conceitos, políticas e economia. Então, para não nos perdermos nesse campo, recortaremos os dados que consideramos importantes para nossa discussão.

Por meio de um resgate histórico, sabemos que este campo foi fortemente influenciado pelo método cartesiano, em que há uma separação absoluta entre fenômenos da natureza e do espírito e, consequentemente, entre o corpo e a mente, consagrando-se o modelo biomédico. A principal característica deste modelo é a valorização dos aspectos observáveis, debruçando-se sobre o organismo doente e menosprezando aspectos psicológicos, sociais, ambientais e culturais (De Marco, 2003). Nele, a saúde é vista como ausência de doença, e esta como presença de sintomas.

No entanto, as mudanças de paradigmas nas ciências levam consequentemente às mudanças nos conceitos. A definição como ausência de doenças foi colocada a prova quando, em 1948, a Organização Mundial de Saúde (OMS) a definiu como o "estado completo de bem-estar físico, mental e social, e não somente ausência de enfermidade ou invalidez".

Conceito este, por sua vez, criticado por Dejours (1986), dada a impossibilidade de definição e de existência deste "estado completo de bem-estar". De acordo com este autor, é possível avançar para além dessa conceituação, por meio de três elementos: a fisiologia (organismo em constante mudança em oposição à estabilidade), a psicossomática (relação corpo-mente, Saúde Mental diferenciada do que vem a ser bem-estar psíquico e o desejo, inerente ao ser humano) e a psicopatologia do trabalho ("trabalho fundamental para a saúde", relação entre funcionamento psíquico e organização do trabalho). A partir disso, Dejours define que "a saúde para cada homem, mulher ou criança é ter meios de traçar um caminho pessoal e original em direção ao bem-estar físico, psíquico e social" (p.11).

Já no que se refere ao campo da política, a luta para a Saúde ser considerada como direito social no Brasil, liderada pelo movimento sanitarista, se iniciou nas décadas de 70 e 80, momento em que o país passava por uma grave crise econômica e social.

Como marco desse movimento, temos a 8ª Conferência Nacional de Saúde, ocorrida em 1986, consolidando as bases da Reforma Sanitária, por intermédio de uma sistematização de seus princípios e diretrizes.

Todavia, somente na Constituição Federal de 1988, conhecida como "Constituição Cidadã", é que a Saúde, passou ser considerada como um direito social. O capítulo Saúde aparece nos artigos de 196 a 200, sendo o Sistema Único de Saúde (SUS) parte de um Sistema maior, o Sistema de Seguridade Social. O SUS foi regulamentado pelo conjunto de duas leis: Lei Orgânica da Saúde (8.080/90) nº. 8080 e Lei Orgânica Complementar (8.142/90).

Com estas mudanças, o conceito de Saúde se ampliou, passando a ser visto como o "resultado de vários fatores determinantes e condicionantes, como alimentação, moradia, saneamento básico, meio ambiente, trabalho, renda, educação, transporte, lazer, acesso a bens e serviços essenciais" (Ministério da Saúde, 2009, p.338), sendo que, por esta perspectiva, tornou-se imprescindível que o trabalho na área da Saúde se realizasse por diversos profissionais, de modo a superar o isolamento entre as diversas áreas do saber.

Neste ponto, destacamos que tanto na definição do conceito - saúde para além do biológico-, quanto nas políticas e programas - trabalho em equipe composto por diversas áreas do conhecimento - a ciência psicológica passa a ser incluída. Vale ressaltar aqui que a Psicologia corresponde a campo de conhecimento (teórico) e de atuação (prático).

Destacamos ainda que, o final da ditadura, o fortalecimento dos movimentos sociais, o movimento sanitarista, a criação do SUS e, os questionamentos quanto à função social do psicólogo e sua especificidade, contribuíram para alterar o modelo vigente do psicólogo (Spink, 2004).

De acordo com alguns autores (Dimenstein,1998; Oliveira et al.,2004) dois fatores acompanharam a inserção do psicólogo em outras áreas, como a da Saúde, sendo eles, a crise econômica ocorrida pela retração do mercado liberal e a luta pela democracia da atenção psicológica. Nessa direção consideramos que os fatores econômicos e políticos, os quais em um momento contribuíram para que a prática do psicólogo se desse primordialmente no setor privado, em outro, favoreceu tal prática em instituições de caráter público.

No entanto, devemos considerar o caráter ao mesmo tempo pluralista e fragmentado da ciência psicológica. Bleger (1982) discorre a respeito desta variedade de "escolas e sub-escolas, métodos e técnicas, correntes e ideologias", que se fazem presentes no campo da Psicologia, "isoladas" e "contrapostas" entre si. O autor problematiza ainda se a Psicologia é uma ciência ou se há muitas Psicologias e cada uma delas corresponde a uma ciência em si, considerando a "fragmentação" e "dispersão" do conhecimento psicológico.

Bleger (1982) ressalta que tal "divisão esquizoide" faz-se presente não apenas na Psicologia, mas também em todas as disciplinas científicas. Em relação à Psicologia, a discussão a respeito do objeto sobre o qual esta se debruça continua viva.

Outra discussão inserida pelo autor Bleger (1982) dirige-se ao fato de que os conflitos psicólogos assim o são não por que aparecem na mente e sim porque é um conflito de um ser humano. Deste modo, considera que as áreas do corpo e do mundo externo não são exteriorizações de um fenômeno interno, sendo consideradas condutas, independente da área em que ocorrem, possuidoras sempre de caráter psicológico, de maneira que as manifestações internas ou externas tenham o mesmo valor.

Deste modo, para finalizarmos este tópico, o que não significa que a discussão se encerre por aqui, destacamos que, mesmo tendo feito uma breve apresentação dos campos da Saúde e da Psicologia, tal ilustração nos serve para termos em conta a pluralidade existente dentro desses campos, que a partir de determinado momento histórico e teórico passaram a dialogar. Ou ainda, que sempre dialogaram, mas de forma não explícita. Pensamos que talvez por haver tantos conflitos dentro do interior de cada um deles, ainda seja difícil pensarmos na relação que se estabelece entre eles.

 

A existência de um campo (Psicologia) remete ao outro (Saúde)?

Após termos apresentado as sentenças que mostram que há diferenças entre esses campos, nos abrimos para outro questionamento: se a existência de um remete a outro, havendo uma relação a partir da definição de Guareschi (2003): "uma coisa que não pode existir, que não pode ser, sem que haja outra coisa para completá-la (p.82). Dito autor coloca em pauta também que "relação nem sempre une".

Iniciamos nossa discussão a partir do encontro entre área da Psicologia Clínica com a área da Saúde. Sabemos que na década de 70, o foco inicial da Psicologia Clínica, ou seja, o indivíduo e o intrapsíquico, se tornou "alvo de críticas", redirecionando as atividades profissionais (tanto os modelos como os locais), antes restritas aos consultórios privados, para "Instituições de Saúde, Hospitais, Postos de Saúde ou Unidades de Cuidados Primários de Atendimento". Tal mudança, passou a considerar o contexto mais amplo: "contexto social que se refere a algo que é constitutivo do sujeito que busca o atendimento psicológico e não algo que apenas o influencia" (Féres-Carneiro & Lo Bianco, 2003, p.106).

Seguindo essa discussão, como marco histórico, na década de 70, no âmbito internacional, temos o início da "Psicologia da Saúde", em que se passou a valorizar os fenômenos sociais no processo Saúde-Doença e a ênfase dada à atenção primária (Matarazzo, 1980).

De acordo com Spink (1992) a Psicologia da Saúde surge como novo campo de saber, diferenciando-se da Psicologia Clínica tradicional, esta última fortemente marcada pelo trabalho individual, que acaba por desconsiderar as relações concretas e históricas.

Contudo, autores como Traverso-Yépez (2001) e Roso (2007) questionam os avanços práticos da Psicologia da Saúde, dizendo que esta mantém os padrões reducionistas e individualizantes, "embora todos demonstrem vontade de que a Psicologia da Saúde seja uma prática verdadeiramente emancipadora, ainda continuamos presos em modelos que priorizam a modificação de comportamento, mesmo quando trabalhamos sob o prisma da prevenção" (Roso, 2007, p. 80-81).

Spink (2007) diferencia a Psicologia da Saúde com a Psicologia Social da Saúde, uma vez que de acordo com a autora, o psicólogo que trabalha por esta última vertente tem como característica uma postura crítica, sendo "pesquisador" e "um profissional que não foge da complexidade e transita dos microprocessos de produção de sentido às questões institucionais e políticas" (p.382).

A institucionalização da "Psicologia da Saúde" na América Latina ocorreu por volta dos anos 80. Cuba foi o primeiro país a subsidiar, no ano de 1984, um encontro sobre Psicologia da Saúde na América Latina, o qual impulsionou a criação da Associação Latino-Americana de Psicologia da Saúde (ALAPSA) (Castro & Bornholdt, 2004).

Seguindo a tendência às especializações, constatamos que o Brasil é um dos poucos países em que se tem a especialidade "Psicologia Hospitalar" (Resolução do Conselho Federal de Psicologia (CFP) nº 014/00 de 20 de dezembro de 2000). No entanto, Castro e Bornholdt (2004) questionam tal especialidade, na medida em que esta se dirige ao nível terciário, enquanto que a denominação "Psicologia da Saúde" (usualmente utilizado em outros países) abarca todos os níveis de atenção.

Com este posicionamento Angerami-Camon (2000) e Chiattone (2000) também corroboram e postulam que seria mais adequado considerar a Psicologia Hospitalar como um sub-especialidade da Psicologia da Saúde, visto que tal prática se remete a um local específico, o que segundo Chiattone (2000) ao invés de delinear as atividades desenvolvidas, o próprio local se torna referência para determinar as áreas de atuação.

Vemos outra divisão, também frequente, quando os psicólogos ou as instituições intitulam tal profissional como o da "Saúde Mental", sem problematização dos significados embutidos nessas terminologias.

De acordo com Traverso-Yépez (2001), na prática, o psicólogo passa a ser visto como o profissional da Saúde Mental, com atividades direcionadas somente para esta área, distinguindo-se dos profissionais de Saúde.

Complementamos ainda que, área de Saúde Mental, do modo como estruturada, nos remete à reabilitação, quando esta deveria se incluir também em outros serviços. Para Bock (1999) o conceito de Saúde abrange também a Saúde Mental, permitindo a participação dos psicólogos nas equipes de qualquer instituição pública de saúde, não restringindo-se aos espaços psiquiátricos.

Tal discussão também se mostra presente ao se discutir as especificidades do psicólogo no Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), como nos mostra Nunan ( 2009, p.24). De acordo com esse autor, o psicólogo, um dos profissionais chamados para integrar essa equipe, possui suas ações definidas da seguinte forma:

são ações de Saúde Mental: atenção aos usuários e a familiares em situação de risco psicossocial ou doença mental que propicie o acesso ao sistema de Saúde e à reinserção social. As ações de combate ao sofrimento subjetivo associado a toda e qualquer doença e a questões subjetivas de entrave à adesão a práticas preventivas ou a incorporação de hábitos de vida saudáveis, as ações de enfrentamento de agravos vinculados ao uso abusivo de álcool e drogas e as ações de redução de danos e combate à discriminação (Nunan, 2009, p. 28-29).

No entanto, Nepomuceno (2009) faz uma crítica à forma como se preconizou o NASF, fazendo com que a Psicologia fosse "colocada somente dentro do marco da Saúde Mental", pois segundo este autor:

a Psicologia, na Saúde Pública, já tem essa história de trabalhos vinculados a um tipo de prática clínica reducionista, ligada a uma visão limitada à cura de psicopatologias e à reprodução de práticas de atenção ambulatorial de atendimento individual, de enfoque psicopatologizante. As contribuições da Psicologia à ESF e ao SUS são bem mais amplas e transcendem a dimensão curativista. Historicamente, a Psicologia foi se colocando nesse lugar da clínica, do tratamento da psicopatologia. O termo Saúde Mental, apesar de também apontar para compreensões ampliadas de Saúde, principalmente quando dentro do ideário da reforma psiquiátrica, ainda traz uma carga ideológica muito forte de patologização, da ideia do tratamento da doença mental. Não se exclui a importância do trabalho da Psicologia nesse campo de atuação da ESF, mas não pode restringir a esse cenário (Nepomuceno, 2009, p.55).

Outro autor que faz uma crítica nesse sentido é Gama (2009), caso haja um isolamento em relação às outras áreas e uma restrição à Saúde Mental, ficando a atuação do psicólogo no NASF resumida ao atendimento, atuando-se dessa forma "como uma atenção secundária". Por outro lado, o autor diz que "há possibilidades de avanços se os profissionais entenderem o NASF como abertura de espaços, como incorporação da complexidade na atenção básica e estruturação de modelos (p.124).

Deste modo, podemos dizer que o campo para o debate está aberto e propício para novas compreensões e problematizações do posicionamento do psicólogo em relação seu fazer.

Para nos auxiliar nessa discussão, Campos et al. (1997), ao discutirem as especialidades médicas, realizam uma divisão entre campos de competência e núcleos de competência, sendo que no campo se "incluiria os principais saberes da especialidade-raiz e que, portanto, teria um espaço de sobreposição de exercício profissional com outras especialidades", não se caracterizando como um "monopólio profissional da especialidade" e sim como "um campo de intersecção com outras áreas". Já o núcleo seria o "mais específico", o qual "incluiria as atribuições exclusivas daquela especialidade, justificando, portanto, a sua existência como uma nova área".

Ainda segundo o autor "o campo de competência teria limites e contornos menos precisos e o núcleo, ao contrário, teria definições as mais delineadas possíveis".

com a criação destas duas lógicas de critérios, uma mais flexível e outra mais rígida, pretende-se assegurar tanto a necessária existência de especialidades, quanto a conservação da capacidade resolutiva das chamadas especialidades gerais ou especialidades-raízes. Senão, com o tempo, elas seriam expropriadas de toda capacidade resolutiva (p.143-144).

Com isto, não descartamos a necessidade de núcleos de competência na Psicologia, mas nos parece que ainda não temos claro nossos campos de competência, fazendo, em contrapartida, que se tenha um alargamento dos núcleos.

Como ilustração, citamos Koda (2009) a respeito do fazer do psicólogo na Atenção Básica à Saúde:

O trabalho do psicólogo no campo da atenção básica envolve uma série de aspectos: a articulação daquilo que na formação é tradicionalmente construído separadamente (Psicologia Escolar, Clínica, Social, Institucional, do Trabalho etc); o aprendizado daquilo que muitas vezes não constou de sua formação (gestão de serviços, políticas públicas, Saúde Coletiva); o trabalho em equipe multidisciplinar; o desenvolvimento de ações intersetoriais; a construção de uma relação dialógica com a comunidade (p.72).

A partir dessa citação, pensamos que os aspectos mencionados pela autora devem estar presentes na prática de todos os profissionais, contextualizados de acordo com os locais, mas não apenas em uma especialidade ou outra. A impressão que nos fica é a seguinte: a relação entre Psicologia e Saúde aparece por meio de uma preposição, em que compete a uma especialidade fazer tal relação. Neste ponto, questionamos se a Psicologia por si só já não estabelece (ou deveria) tal relação com a Saúde.

Por que ainda falamos da inserção do psicólogo na área da Saúde?

Continuando nossa argumentação, a questão que nos colocamos nesse momento, é o por que ainda falamos de inserção do psicólogo na área da Saúde, haja vista que se falamos sobre a inserção deve-se ao fato de ainda não vermos a Psicologia como disciplina integrante da área da Saúde.

Para iniciarmos, nossa atenção será direcionada para como os psicólogos passaram a exercer sua prática profissional no campo da Saúde Pública, a partir das mudanças na política de Saúde em nosso país ocorrida a partir dos anos 70, a qual favoreceu a entrada e expansão de psicólogos inseridos em equipes de Saúde.

Oliveira (2005) ressalta que, embora a inserção do psicólogo tenha sido efetiva após a implementação do SUS e o reconhecimento como profissional de Saúde tenha ocorrido 1997, desde o Governo Figueiredo (1979-1985) já existiam psicólogos na área, porém de forma não regulamentada.

O foco da Psicologia foi e ainda é fortemente marcado nos serviços de reabilitação, tais como os Hospitais Gerais e o atendimento a pacientes com intenso sofrimento psíquico. Silva (1992) coloca como recentes as discussões em que se versa sobre a atuação dos psicólogos nos diversos níveis de atenção, pontuando o predomínio das ações de Saúde Mental: "é, portanto, muito inicial a prestação de que os componentes da área de Saúde Mental são, antes de tudo, profissionais de Saúde e como tal devem se integrar as ações de Saúde em geral" (p.25).

Uma das entradas do psicólogo na área da Saúde foi o Hospital, registrando-se a atuação desde 1945, com a psicóloga Mathilde Neider, a pedido do chefe do grupo de cirurgia de coluna do Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas, para atendimento das crianças submetidas às cirurgias e seus familiares , ou seja, mesmo antes do período citado acima.

Também destacamos como área pioneira de atuação a área da Saúde Mental, em cujas exigências normativas encontraremos a formação de equipes, fato diretamente responsável pelo aumento do número de psicólogos nos serviços públicos de Saúde. O primeiro registro oficial desse trabalho no estado de São Paulo data de 1982. Com a desospitalização dos pacientes psiquiátricos, estendeu-se os serviços de Saúde Mental à rede básica, com atuação nos níveis primário, secundário e terciário (Spink,1992).

Ainda referente ao início da participação dos psicólogos nas equipes de Saúde, "sua inserção era, frequentemente, como facilitador do processo de tratamento, havendo - com raras exceções - poucas oportunidades para contribuir nesse processo como profissional autônomo" (Spink, 1992, p. 13).

Contudo, de modo geral, apesar de ainda presenciarmos dificuldades práticas no trabalho em equipe, vemos um avanço na composição de equipe na maior parte dos serviços de Saúde e uma busca pela autonomia profissional de cada classe.

Tendo em vista o exposto acima, outro ponto que merece ser abordado refere-se aos órgãos de formação acadêmica, de modo a saber o quanto eles têm se (re) arranjado frente às mudanças sociais e políticas, trazendo novos modos de se pensar e fazer.

Oliveira (2005) pontua que, com o SUS, foi possível a consolidação da Psicologia enquanto profissão de Saúde, sendo que discussões referentes ao seu papel e sua ação em diferentes níveis de atenção se tornaram presentes nas entidades representativas, com vistas à contribuição da Psicologia.

Referida autora destaca os fóruns de discussão de entidades acadêmicas e de representação profissional referentes à necessidade do desenvolvimento de novas modalidades de ação da Psicologia para um trabalho de acordo com o contexto da Saúde Pública: "mudanças sociais e dos indivíduos, para resgatar a cidadania dos usuários e para fazer da Psicologia uma profissão que pudesse ser referenciada por sua possível ação transformadora" (Oliveira, 2005, p.23).

Contudo Oliveira et al. (2004) mostram que tais mudanças não parecem ter se desdobrado na prática do profissional que está no dia a dia do serviço: "é possível que as mudanças nos referenciais teóricos e nas práticas não tenham passado de um discurso no seio das entidades representativas, sem repercussão para os profissionais que atuam na rede" (p.32).

Vemos ainda inúmeros trabalhos (Ronzani & Rodrigues, 2006; Hoenisch, 2004; Dimenstein, 1998, 2001; Pombo de Barros & Marsden, 2008) a respeito da deficiência na formação em Psicologia, quanto às políticas de Saúde.

Cabe aqui indagarmos se tais questionamentos devem partir de toda a classe profissional (campo de competência) ou somente daqueles (núcleos de competência) que direcionam suas práticas a locais considerados da área da Saúde.

E mais, por que com toda a história registrada de trabalhos dos psicólogos, mesmo antes de sua regulamentação profissional, ainda recorremos a expressão "inserção", como se ainda tivéssemos que mostrar o por que e o que fazemos. Será que ainda não sabemos?

 

Considerações finais (mas não fechadas)

Pretendemos com este trabalho abrir questionamentos quanto aos lugares ocupados pela Psicologia e à forma como isto tem sido feito, considerando o momento atual com suas consequentes fragmentações, em que se torna cada vez mais difícil estabelecer uma identidade profissional sem recorrer às especialidades.

Nosso entendimento é de que sendo o conceito e o campo da Saúde, interdisciplinar, podemos pensar a Psicologia como uma das ciências presentes/integrantes nesse conceito/campo, não havendo mais necessidade de se falar sobre Psicologia na ou da Saúde, uma vez que a relação entre ambas não a excluem e nem a colocam em posições estanques ou complementares. Ou seja, não haveria uma Psicologia sem uma concepção embasada de Saúde e vice-versa, remetendo desta forma a existência de uma a outra.

Deste modo, o psicólogo se definiria como um profissional de Saúde, e apesar das diferenças entre as diversas profissões, passaríamos a considerar também as similaridades, haja vista todos serem profissionais de Saúde e a política ser igual a todos.

Talvez o desafio seja ser profissional da Saúde (com atribuições gerais a todos os profissionais) e ser, concomitantemente psicólogo (com as singularidades de sua profissão). E nesse ponto parece difícil ainda estabelecer a singularidade do psicólogo, considerado a fragmentação existente.

Na prática, encontramos enfaticamente discursos condizentes a inserção do psicólogo na Saúde. Mencionar ainda a inserção significa desconsiderar a discussão realizada acima, pois se precisamos inserir é porque uma existe sem a outra e que, ainda não encontramos nosso lugar.

 

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Recebido: 21/08/2012
Última revisão: 19/03/2013
Aceite final: 20/03/2013

 

 

Sobre a autora:
Rebeca de Cassia Daneluci: Doutoranda em Psicologia Social - IP /USP (Bolsista CNPq). Mestre em Psicologia Clínica - IP /USP (Bolsista CNPq). Aprimoramento em Psicologia Clínica - Hospital do Servidor Público Estadual (Bolsista Fundap). Graduação em Psicologia - Universidade Metodista de São Paulo.

 

 

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