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Revista Psicologia e Saúde

versão On-line ISSN 2177-093X

Rev. Psicol. Saúde vol.5 no.1 Campo Grande jun. 2013

 

ARTIGO

 

A função do enquadre analítico no contexto hospitalar: possibilidades e limites de atuação

 

The role of analytical frame in hospital: possibilities and limitations of practice

 

La función del encuadre analítico en el contexto hospitalario: posibilidades y límites de actuación

 

 

Júlia Catani1

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

 

 


RESUMO

O estudo tem como objetivo apresentar e discutir a definição e o papel que possui o enquadre analítico. Para tal, utilizaram-se três exemplos clínicos oriundos da instituição hospitalar, buscando compreender quais são as implicações do trabalho clínico e as adaptações necessárias a este contexto. Freud considerou o enquadre limitado à associação livre e à posição analista-analisando, posteriormente, modificou este conceito determinando quais os elementos que deveriam estar presentes e qual era a sua finalidade. O enquadre, segundo a psicanálise, consiste no estabelecimento de um contrato entre o analista e o paciente para facilitar o tratamento terapêutico e proporcionar limites ao trabalho. As normas do enquadre são estruturantes e sofrem a influência da relação transferencial. Portanto, estão intimamente ligadas à psicopatologia, à demanda e ao pedido de ajuda que o paciente vem buscar em sua terapia, daí a importância de se compreender e refletir acerca deste conceito tão pouco trabalhado.

Palavras-chave: Enquadre analítico; Contrato; Contexto hospitalar; Psicanálise.


ABSTRACT

The study aims present and discuss the definition and the role of analytic frame. To do it, we used three clinical examples from the hospital, putting in focus the implications and adaptations in this context. Freud considered the frame limited to free association and the position of the analyst-analysand. However, this concept changed to determining what elements should be present and for what purpose. The frame according to psychoanalysis constitutes the vicissitudes to establish a contract between the analyzer and the patient in order to facilitate the therapeutic analyses and provide limits. The rules included in frame are structural and influenced by the transference relationship. Those elements are closely linked to the psychopathology, the demand and the request for help, so it is important to understand and reflect on this concept.

Key-words: Frame; Contract; Hospital context; Psychoanalysis.


RESUMEN

El estudio tiene como objetivo presentar y discutir la definición y el rol que posee el encuadre analítico. Para eso, se utilizaron tres ejemplos clínicos oriundos de la institución hospitalaria, buscando comprender cuales son las implicaciones del trabajo clínico y las adaptaciones necesarias en ese contexto. Freud consideró el encuadre limitado a la libre asociación y a la posición del psicoanalista-analizado. Después, ha modificado este concepto, determinando cuales elementos deberían presentarse y cual era su finalidad. El encuadre, según el psicoanálisis, consiste en establecer un contrato entre el analista y el paciente, para facilitar el tratamiento terapéutico y proporcionarle límites al trabajo. Las reglas del encuadre son estructurantes y sufren la influencia de la relación transferencial. De esa manera, están íntimamente ligadas a la psicopatología, a la demanda y a la solicitación de ayuda que el paciente viene buscar en la terapia. Por esa razón es muy importante que se comprenda y reflexione sobre este concepto que es tan poco discutido.

Palabras-clave: Encuadre analítico; Contracto; Contexto hospitalario; Psicoanálisis


 

 

(...) o mundo exterior é uma realidade interior.
(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, 1982.)

A temática deste texto surgiu a partir da experiência clínica, pois desde o início dos atendimentos e da prática psicanalítica com pacientes fossem eles de convênio, particulares ou do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, as dificuldades pessoais com o estabelecimento do enquadre foram com o passar do tempo tornando-se cada vez mais evidentes, principalmente, após os ensaios preliminares quando se define que será iniciado um trabalho terapêutico e é de fato preciso conversar acerca de horários, faltas, pagamentos, entre outros. Segundo Freud (1913), antes de aceitar um paciente para um trabalho analítico é preciso conhecer o caso para analisar a possibilidade de um tratamento. A este processo o autor nomeia de ensaios preliminares, mas ressalta que este tempo não pode se estender por demais, pois, isto pode resultar no aumento das resistências e no aparecimento de maiores obstáculos.

As dificuldades em abordar a questão do enquadre também estão ligados ao curso de psicologia, pois durante a graduação, mesmo quando foram feitos os estágios, o tema do contrato e suas especificidades pouco foi abordado. Ao longo deste texto o que se pretende é dar uma ênfase maior às dificuldades do enquadre no hospital tendo em vista que se trata de uma instituição e, que muitas vezes, eventuais mudanças são necessárias para a adaptação dos atendimentos e das rotinas institucionais. Assim, restam questionamentos do tipo: como manter e respeitar o contrato psicanalítico? É possível fazer algumas adaptações sem que o contrato seja quebrado /rompido? Para responder a tudo isto, a escrita inicia-se aqui com a retomada de algumas definições do conceito de enquadre com o intuito de buscar alternativas de trabalho.

A definição de enquadre provém da palavra enquadrar, isto é, pôr em quadro, emoldurar, ajustar-se às regras ou regulamentos. Em uma linguagem mais especializada, o enquadre em psicologia /psicanálise consiste em estabelecer um contrato com o paciente, de modo a facilitar, contribuir e oferecer limites ao ambiente de trabalho (Rocha, 1996). Para Freud mesmo a questão do enquadramento analítico também foi uma temática que sofreu variações ao longo de sua obra. Sendo o conceito caracterizado de início como algo vago, embora fundamental para o tratamento, definido como um "... conjunto de prescrições homogêneas e coerentes com as modalidades práticas e teóricas do tratamento." (Mijolla, 2005, p.563).

Para Freud (1904) a princípio bastava convidar o paciente a se deitar no divã, de modo que o analista ficaria de costas para o analisando e que se estabelecesse uma conversa sem que esta gerasse o mínimo esforço ou quaisquer falta de concentração. Segundo Viderman (1990) alguns detalhes, tal como não ter contato com o olhar do paciente, surgiu para Freud de inicio como um conforto, mas que aos poucos foi encontrando necessidade e função na prática clínica. Anos depois, mais precisamente em 1913 são apresentadas regras mais diretivas para a viabilidade do tratamento. Isto é, estabelecimento de frequência, horário, formas de pagamento e quaisquer outras regras possíveis que facilitem o analista a trabalhar.

O enquadre deve favorecer para que o terapeuta fique livre de preocupações objetivas. De acordo com Freud, deve-se estabelecer um horário com o paciente, pelo qual, ele deverá ser responsável, mesmo quando por qualquer razão, não possa utilizá-lo. A necessidade de se atribuir responsabilidade ao paciente sempre, consiste em evitar eventuais riscos, como por exemplo, o caso do paciente ser acometido por alguma enfermidade que o impeça de comparecer à sessão. É fato que tudo isto é passível de ocorrer, mas são estes eventos que possibilitam também o rompimento das regras e dos limites com os quais os pacientes devem lidar. Para Freud, essa tolerância e flexibilidade podem ser modificadas - sempre tentando avaliar a real necessidade desta mudança - mas apenas depois de um tempo considerável de trabalho analítico, quando o paciente está vinculado, comparece todas as vezes e sabe respeitar o contrato. No que se refere ao tempo de tratamento é quase impossível precisar a duração, pois em suas palavras: "... é preciso antes conhecer o passo do andarilho, para poder calcular a duração de sua viagem" (Freud, 1913, p.171).

No texto de Mendonça e Simões (2012, p.194) uma das leituras possíveis no meio social seria de que "... os enquadres não são vistos como molduras de sentido partilhadas e discursivamente mobilizadas. Elas se tornam estratégias de construção de proferimentos para gerar determinados efeitos". Ou seja, isto nos permite de novo assimilar a relevância em construir o enquadramento junto ao paciente, pois será a partir destas ações que se observará os possíveis efeitos para o tratamento.

De acordo com Kaës (2005), o enquadre funciona a partir de uma função dialética, permitindo que o paciente tenha durante o processo de terapia movimento, ou seja, a elaboração e a criatividade para que seja possível fazer emergir as suas associações de paciente /analisando. Ainda de acordo com o autor, o estabelecimento do enquadre, proporciona um aspecto de organização, pois quando uma pessoa procura terapia ou análise, na maior parte das vezes apresenta-se bastante fragilizada e ter um norte auxiliará tanto na condução do tratamento, quanto no restabelecimento de uma organização que por consequência auxiliará no rearranjo psíquico.

Além destas contribuições já aqui mencionadas, o contrato aponta ainda a interdição. Segundo a definição freudiana, esta função é feita pela figura paterna que intercede "mostrando" a impossibilidade da criança em desejar sua mãe. A partir desta regra é instaurada a proibição do incesto e o fato de não ser permitido realizar as fantasias sexuais junto à figura parental (Freud, 1905 e 1923). A função do pai é central na questão do Édipo: o pai aqui não só é visto como pai simbólico, mas mais precisamente como metáfora, cuja função no complexo de Édipo é a de substituir o primeiro significante (o materno) introduzido na simbolização. Ou seja, na teoria psicanalítica desenvolvida por Lacan, esta remete ao significante do Nome-do-Pai como aquele que fundamenta a Lei e ensina a criança ao longo do seu desenvolvimento que nem tudo é possível (Nasio, 1999). De acordo com a teoria freudiana, a análise é uma segunda chance de reviver a relação com a figura materna e paterna, ou seja, as regras determinadas possibilitam a elaboração da castração e proporcionam ao sujeito situações em que tem que lidar com as suas impossibilidades e sua falta (Kaës, 2005).

Ao sublinhar que o enquadre funciona como um terceiro na relação do analista e analisando, Mijolla (2005) faz uma consideração importante na relação do analista e analisando, de modo a representar para o paciente o fato de que não existe um tipo de relacionamento que ocorra apenas entre duas pessoas. Segundo o autor, são estes elementos que permitem ao sujeito apropriar-se destas condições, bem como, ter espaço para falar dos eventuais incômodos e repercussões que esta figura do terceiro provoca. É para Mijolla uma possibilidade necessária para que o paciente esteja livre para se deparar inclusive com as suas fantasias, os seus próprios limites e os que são impostos em uma relação ou no meio social como um todo.

É importante lembrar também os elementos que compõem o cenário das relações psicanalíticas. Gilliéron (1996) observa que fazem parte dos dispositivos para um cenário terapêutico: o divã (elemento que proporciona ao paciente ficar fora do campo de visão do analista/terapeuta e, portanto; de ter que se haver consigo mesmo), a regularidade e a freqüência com que devem ocorrer as sessões, a atemporalidade (sentimentos e funcionamento do inconsciente) e os honorários. O autor expõe ainda que as regras da relação terapêutica são compostas por: associação livre, atenção flutuante, interpretação do analista, transferência, contratransferência, motivações e mecanismos de defesa. Segundo Sterian (2007), o enquadre depende do lugar simbólico que o paciente permitirá que o analista ocupe em seu psiquismo. Acrescenta ainda, que a relação terapêutica é uma tríade: analista, analisando e as fantasias que permeiam esta relação. O que nos remete novamente à definição de Mijolla acerca do enquadre enquanto terceiro e às fantasias que isto pode provocar e que devem ser fazer parte de um trabalho analíticos.

De acordo com Freud (1913), uma das primeiras e principais coisas que devem ser estabelecidas junto ao paciente após a aceitação do caso é a questão do preço que deverá ser pago por sessão, pois isto é um dos elementos que garantem a preservação do espaço, do papel do analista e de seu trabalho. Entretanto, afirma também que, este é um dos aspectos mais difíceis de serem abordados principalmente porque, para os homens civilizados o dinheiro e as questões sexuais têm igual importância, comumente são evitados e quando são postos em pauta, segundo ele, muitas vezes é de modo falso e hipócrita. Dentre outras, a função do analista será a de tratar ambos os temas (dinheiro e sexualidade) de forma natural, até para que o paciente sinta-se à vontade para poder falar de tais assuntos tão delicados para ele. Outra recomendação que Freud (1913) ressalta é quanto ao tratamento gratuito, segundo ele, isto não deve ser feito, pois é extremamente desgastante para a figura do analista, mais ainda porque o tratamento analítico se caracteriza como sendo um tipo de atendimento que requer um período longo e, portanto, retira do profissional a possibilidade de receber honorários de outros pacientes. Além do que, Freud afirma radicalmente que isto pode provocar resistências nos pacientes, mais explicitamente no caso dos homens que podem ficar revoltados e se sentirem desconfortáveis com a gratidão dos analistas.

Para referir-se ao que Freud nomeava de ensaios preliminares Quinet (1996) utiliza-se do termo entrevistas preliminares. Segundo o autor, as entrevistas se dividem em dois pontos fundamentais quanto à função do analista: o momento de compreender o que está ocorrendo com aquele paciente, quais foram os motivos que o trouxeram a um tratamento psicanalítico e um segundo momento que seria o de concluir, isto é, decidir se o caso é de fato passível de ser analisado e em caso afirmativo, estabelecer o enquadre. Mas ainda de acordo com Quinet (1996) há também algumas funções fundamentais que estão contidas nestas entrevistas: a função sintomal (sintoma-mal) que seria como o analisando se dirige ao analista para dizer a respeito de seu mal-estar e como formula suas questões para saber o que se passa consigo mesmo, a função diagnóstica, que servirá para auxiliar o analista na condução da análise e por fim, a função transferencial em que o terapeuta vai se basear para poder tratar o paciente e conseguir a partir da relação da transferência que o sujeito olhe para si e se formule questões acerca do que está vivendo e sobre como encontrar maneiras e estratégias para sair desta posição que lhe causa mal-estar (QUINET, 1996).

O primeiro maior objetivo a ser construído na análise é conseguir vincular o paciente à figura do analista, pois, a confiança neste trabalho é fundamental e será o que irá permitir ao paciente falar acerca de suas questões e dificuldades, de modo a favorecer o desenrolar do trabalho analítico. Isto porque o mais importante é qual o pedido de demanda /solicitação que o sujeito endereça ao analista por meio do seu sintoma. De acordo com Lacan (in Quinet,1996), o único pedido feito pelo paciente é de se livrar do seu sintoma, mas o que ele não percebe é que para que isto ocorra, ele terá que abrir mão de outras coisas que circundam a sua atual condição, e com relação às, mais muitas vezes, não está disposto a fazê-lo. De acordo com Gilliéron (1996), o enquadre é diferente no que se refere às entrevistas preliminares e ao processo de psicoterapia e devido a todos estes elementos descritos merece uma real atenção, até para que não se tenham interferências ou dúvidas não esclarecidas no contrato. Por fim; mas não menos importante, não se pode deixar de assinalar também a atenção que se deve ter ao modo como o paciente se apresenta no momento em que chega, pela primeira vez, pois está relacionado ao modo como a pessoa se sente e como se relaciona com o mundo.

As normas do enquadre são acima de tudo, estruturantes e sofrem a influência na relação transferencial e contratransferencial. Portanto, o enquadre e as interferências vividas neste espaço estão intimamente ligadas à psicopatologia, à demanda e ao pedido de ajuda que este paciente vem buscar em sua terapia. Assim, fazem-se necessárias distinções na forma como se conduzirá o trabalho a partir dos tipos de estruturas, isto é, neurose, psicose ou perversão. Para compreender o modo como o paciente funciona frente às normas, é preciso que estas estejam muito bem esclarecidas para ele. De acordo com Junqueira & Junior (2008): "(...) um enquadre flexível não significa um enquadre frouxo." (p.148), isto é, são possíveis diversas adaptações para cada tipo de paciente e muitas vezes mais do que possíveis são necessárias, mas a partir do momento em que for estabelecido o enquadre com o paciente, ele deverá ser cumprido. Nos casos que apresentam uma desorganização maior, a necessidade de um enquadre bem determinado é ainda mais fundamental para o restabelecimento do paciente.

A partir do momento em que as regras estão bem esclarecidas para ambos, é possível ao analista interpretar eventuais modificações ou rompimento que o paciente venha a fazer quanto ao contrato. Isto porque, segundo Uchitel (2002) a análise será o espaço de reviver suas próprias dificuldades e eventos que foram traumáticos para o sujeito sem que ele se dê conta (por exemplo, mudar o que foi estabelecido) e é preciso que o analista tenha disponibilidade para perceber e poder interpretar, de modo a devolver ao paciente esta percepção, que na grande maioria das vezes, não é percebida pelo próprio sujeito. Será a partir deste trabalho que o paciente poderá promover mudanças para romper com esta forma de funcionar que vem lhe provocando mal estar e é razão de suas queixas.

Segundo Freud (1913) é praticamente impossível estabelecer padrões para o tratamento analítico - deste modo, o autor faz apenas algumas recomendações - uma vez que, é preciso levar em conta que se trata de indivíduos e que, portanto, cada um apresenta um modo singular de funcionar, para solucionar tal impasse. De acordo com Nogueira (1993) não se adota nenhum tipo de enquadre a priori, pois, este é construído junto com o paciente, de modo a proporcionar um processo evolutivo, no qual, o analisando vai aos poucos se desprendendo de regras que, em um primeiro momento, eram impossíveis de serem desconsideradas. Ocorre uma mudança que acompanha as expressões da relação transferencial, e também na medida em que o sujeito se apresenta mais organizado pode, portanto, se desvincular de padrões estabelecidos, na direção de uma construção particular e que inclua a subjetividade do analisando.

Ao se pensar a questão da viabilidade do atendimento na instituição hospitalar, bem como, no enquadre, inúmeros problemas apresentam-se, pois, os casos comumente trazem níveis de angústia que paralisam ou silenciam o paciente, a família, e por que não dizer, a própria instituição. Por exemplo, é preciso se deparar com o fato de que em algumas vezes, nos consultórios da instituição hospitalar em que se atendem são necessárias tanto alterações do espaço quanto dos horários, entretanto, para lhe dar com este tipo de situação faz-se necessário que o analista esteja bem ciente de qual é o seu papel e como manejar o enquadre para que ele não se torne frouxo, tal como apontaram os autores Junqueira & Junior (2008).

A experiência de atender pacientes no ambiente hospitalar revela situações que pedem inevitavelmente a união de elementos teóricos ao exercício prático de forma a evitar erros que resultariam no distanciamento do sentido de fazer a psicanálise. A título de esclarecimento menciono algumas situações clínicas experimentadas, como por exemplo: a de uma mulher em psicoterapia que, após alguns meses de análise e diante das dificuldades que se mostraram presentes - devido a internação de sua mãe - teve que se ausentar por algumas vezes da terapia. Foi proposto assim, que caso houvesse necessidade, ela poderia telefonar que encontraríamos um horário, de forma que ela tivesse o atendimento próximo à enfermaria em que a mãe se encontrava internada, no mesmo hospital. A paciente não telefonou, mas esta possibilidade retornou em uma situação posterior quando, em um dia, ela telefona afirmando que não estava conseguindo estacionar o carro e questionando se o atendimento não poderia ocorrer dentro do veículo.

A situação aqui relatada evidenciou uma fragilidade do enquadre que não foi esclarecida e que causou uma desorganização para esta mulher. Em uma das sessões, a partir do momento em que ela pode expressar pela primeira vez sua agressividade e suas dúvidas frente ao que poderia ou não ser feito e o local onde deveriam ocorrer os atendimentos, todos estes elementos puderam ser trabalhados. Foi preciso inclusive que o contrato fosse retomado de modo a refazê-lo e podendo ser trabalhado e esclarecido o que seria ou não possível a partir daquele dia. De fato, este é um exemplo que esclarece a importância do enquadre enquanto elemento estruturante para qualquer paciente e como é possível ocorrer uma intensa desorganização, quando algo não é respeitado fazendo emergir o funcionamento mais primitivo do sujeito em análise. Sem dúvida nenhuma houve uma falha no cumprimento das normas. Mas, a experiência permite pensar no aproveitamento que pode ser feito a partir destas situações. Ou seja, a retomada do enquadre ou a construção de um novo junto ao paciente foram oportunidades importantes inclusive para a continuidade do trabalho analítico. Observa-se, igualmente, que a situação permitiu o aparecimento da agressividade que pode ser expressa em meio às circunstâncias ali presentes e que, até o momento não havia aparecido. É evidente que não devem criar situações, tudo isto deve ser trabalhado na medida em que os fatos forem aparecendo, mas a questão é poder aproveitar tais elementos no contexto analítico para que estes tornem conteúdo de análise e os problemas possam ser solucionados.

Há outro exemplo que merece ser apresentado, um paciente atendido na mesma instituição e com o qual se fez necessária a mudança de sala por questões institucionais, frente a isto, observou-se um incomodo por parte do paciente que disse: "por que mudamos de sala? Esta é tão opressora, preferia a outra. Não podemos voltar?". Tendo em vista a impossibilidade de um retorno para a sala anterior, isto foi explicado ao paciente, reassegurando que a partir daquele dia, aquele passaria a ser o espaço dele com o analista, no mesmo horário e com o mesmo consultório, na medida do possível. Na medida do possível, pois como já foi colocado em se tratando de uma instituição ainda que se tente estabelecer uma rotina e uma estabilidade, modificações são passíveis de ocorrer. Vale ressaltar, que estas dificuldades frente às alterações indicam também os sintomas deste paciente ao deparar-se com a possibilidade de falar acerca de si mesmo e de suas questões, bem como de uma insegurança que surge no momento em que um elemento novo lhe é apresentado. Tais mudanças oferecem empecilhos para este paciente poder lidar com os conflitos que isto emerge. De todo modo, é necessário sublinhar que este episódio também serviu como material de análise e pôde ser interpretado junto ao paciente, de modo que ele pudesse associar acerca desta temática e unir estas repercussões a sua história de vida. As situações relatadas são distintas, a primeira diz respeito a uma falha no enquadre por parte da posição do analista, já a segunda, remete às questões da prática institucional, e novamente reforçam a necessidade das regras bem construídas e em termos individuais, ainda que sejam possíveis de serem flexibilizadas.

Ao fazer um apontamento em seu texto, Viderman (1990, p. 40) menciona:

(...) Se se levasse, pacientemente, em consideração cada uma das regras técnicas elementares que organizam o campo analítico, perceber-se-ia que, na primeira fase de sua elaboração, elas visam a permitir o emergir dos conteúdos formais inconscientes pelo afrouxamento da vigilância do ego e pelo incremento do impulso das representações inconscientes que abrem os caminhos de uma expressão cada vez menos deformada. Há um esforço por permitir dessa forma, à pulsão estar presente por representações que a expressem, de maneira aproximadamente alusiva, pelo desvio da associação inesperada ou da figuração simbólica, de tal maneira que as defesas do ego achem-se desatentas e como que surpreendidas (...).

A problemática do enquadre e de suas repercussões para o trabalho analítico também se apresenta em outro contexto no ambiente hospitalar, esta diz respeito especificamente aos pacientes do ambulatório de Transtornos Somatoformes (TS). Os transtornos somatoformes caracterizam-se por queixas físicas que não podem ser totalmente explicadas por uma condição médica geral ou outro transtorno psiquiátrico. Compreendem um grupo bastante heterogêneo do ponto de vista psicopatológico e etiológico, uma vez que, o critério básico para seu agrupamento no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV, 2000) é a presença de queixas físicas como principal sintoma. A primeira preocupação diagnóstica deve ser a exclusão de doenças orgânicas, ou seja, qualquer condição médica não considerada neurológica ou psiquiátrica. Nesses transtornos, os sintomas devem causar sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes.

De acordo com a Classificação Internacional de Doenças e do Comportamento (CID-10, 1993), os TS consistem nas repetições de sintomas físicos associados à busca incessante de cuidados médicos. No que se refere aos pacientes do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas que atende este público, o que se observa é que são pessoas com uma condição econômica menos favorecida e que, por vezes, solicitam que à terapia aconteça no mesmo dia da consulta médica, mesmo que esta aconteça quinzenalmente. Segundo eles evitaria que o paciente tivesse que comparecer outros dias ao hospital, pois isso implicaria em um gasto ainda maior. Entretanto, é importante neste momento fazer a seguinte observação, apesar destas justificativas tão comuns utilizadas por estes pacientes que frequentam o ambulatório de TS, eles mesmos comparecem a diversas consultas ao longo da semana em outras clínicas, tais como: reumatologia, neurologia, dermatologia, entre outros.

O que se coloca como questão são as conseqüências e limitações que isto provoca no tratamento analítico, uma vez que, freqüentemente eles passam primeiro nas consultas médicas para depois vir à terapia o que acaba sendo comum resultar em atrasos, pois o residente deve discutir o caso com o médico assistente, para que, em seguida, possa "liberar" o paciente apresentando as condutas do tratamento psiquiátrico. Além disto, o fato do paciente ter a consulta psiquiátrica no mesmo dia gera três pontos que merecem reflexão: a) ele vem para uma consulta psiquiátrica que funciona de modo objetivo e em que deve falar acerca de seus sintomas, excluindo a subjetividade, para que seqüencialmente, possa ir à terapia em que ele deverá dar prioridade ao mundo psíquico deixando os fatos mais concretos em segundo plano. O segundo ponto de reflexão consiste no fato de que: b) ao vir no mesmo dia da consulta para a psicoterapia tem-se algo muito articulado, de forma a não deixar permitir que os seus próprios desejos, anseios e expectativas apareçam, pois os próprios pacientes ficam tomados por estes compromissos. Por fim, mas não menos importante, um dado que também precisa ser destacado é a dificuldade que se encontra nestes pacientes para criarem um vínculo no processo de terapia.

Os pacientes deste ambulatório, em especial, são pessoas que passam por várias clinicas e chegam para a análise já habituadas ao funcionamento do processo dos atendimentos e com a troca dos médicos que ocorre anualmente tais dados implicam em inseguranças e em questionamentos tais como se eles devem confiar já que todos vão embora (ainda que o processo analítico não apresente uma perspectiva de termino anunciada, sendo avaliada de acordo com cada caso e não como ocorre com os residentes em psiquiatria) e frente a este fator demoram a conseguirem falar de seus problemas por receio de que a relação seja desfeita, sendo este um tema recorrente nos processos terapêuticos.

Deste modo, surgem as seguintes perguntas: quais são as viabilidades de se atender a partir de um referencial psicanalítico no hospital? Que tipo de enquadre pode ser mantido neste tipo de instituição? Ao formular estas perguntas, é possível perceber as necessidades das adaptações recomendadas por Freud. Por exemplo, o fato de que já não se atende mais seis vezes por semana e devido a esta circunstância, o modelo de análise passou a se estender por períodos mais longos, resultando em anos de atendimento. Por que não pensar então nestas possibilidades para o próprio hospital? Afinal, apesar de todas as sugestões de Freud (1913), a regra fundamental do autor foi a da associação livre. Outro questionamento passível de discussão também é oriundo do texto de Freud, seria ele, de que forma o paciente paga pelo seu atendimento em uma instituição púbica?

Segundo Figueiredo (1997) o paciente, de modo geral, não encontra problemas com isto, pois em se tratando de um ambiente público, muitas vezes este compreende que já está pagando pelo seu tratamento por meio dos impostos. Outro elemento que acaba, segundo a autora, deixando o trabalho do analista mais "livre" (ainda que seja passível de debates) seria de que há ainda a possibilidade numa instituição pública de interromper o atendimento caso se julgue necessário tendo em vista as faltas consecutivas do paciente durante a terapia, portanto, segundo a Figueiredo (1997) isto não é difícil de ser sanado ou compreendido pelos pacientes.

Assim sendo, a partir do exposto acima, torna-se pertinente dizer que aparecem alguns atravessamentos na instituição hospitalar, como por exemplo, as mudanças de sala, desmarcar um atendimento em decorrência de uma reunião clínica, atrasos na terapia em função de consultas, entre tantos outros. O que se precisa saber é que quando se trata de uma instituição, independente de qual tipo, sabe-se que há não mais uma relação tríade como Sterian (2007) nos diz, mas acrescenta-se mais um elemento para relação, ou seja, tem-se portanto, o analista, o analisando, as fantasias e a própria instituição. Deste modo, o que precisa ficar claro é que, provavelmente, os elementos que compõem este espaço possivelmente poderão criar interferências nos atendimentos. No entanto, cabe ao analista junto ao paciente saber trabalhar com as repercussões que o analisando trouxer acerca destas problemáticas. Isto porque, qualquer elemento e incomodo também diz respeito ao próprio sintoma daquele paciente e significa que ele provavelmente sente-se do mesmo modo com outras pessoas, ou seja, torna-se sim, um tema para a análise daquele sujeito.

É possível pensar também que o movimento de fazer com que o paciente construa uma relação de confiança com o analista torna-se ainda mais imprescindível se pensarmos na instituição, uma vez que, no primeiro momento o paciente procura não o psicanalista ou o psicólogo, mas sim, os médicos para que ele possa se tratar. Portanto, fazer com que ele faça um laço social de modo a abrir mão aos poucos do que o trouxe a instituição psiquiátrica para, por exemplo, remeter-se a própria terapia é fundamental. Em um debate na Revista Percurso (2003), Gurfinkel, Mercandante, Wongtschowski, Labaki, afirmam que os impasses no cenário analítico podem se apresentar em qualquer ambiente, inclusive no consultório, o que o terapeuta deverá ter claro é a função do analista para que estes obstáculos não impeçam a realização da Psicanálise, seja onde for. Ou seja, faz-se necessário que o psicanalista saiba exatamente a função e a importância que o enquadre tem para o seguimento de uma análise.

 

Referências

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Recebido: 30/08/2012
Última revisão: 04/03/2013
Aceite final: 07/03/2013

 

 

Sobre a autora:
Júlia Catani - Psicóloga e Psicanalista. Mestranda em Psicologia Clínica no Instituto de Psicologia (IP) da USP com bolsa do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Membro do Laboratório Teoria Social Filosofia e Psicanálise (LATESFIP) da USP. Especialista em Psicologia Hospitalar pelo Curso Avançado de Formação Continuada em Psicologia Hospitalar: Saúde, Subjetividade e Instituição, do Centro de Estudos em Psicologia da Saúde (CEPSIC). Curso de Aperfeiçoamento Profissional: Prática Clínica em Saúde Mental na Instituição Psiquiátrica.
E-mail: juliacatani@usp.br

 

 

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