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Revista Psicologia e Saúde

versão On-line ISSN 2177-093X

Rev. Psicol. Saúde vol.7 no.1 Campo Grande jun. 2015

 

ARTIGOS

 

Dependência de exercício físico em atletas de endurance prolongada: corrida de aventura e triatletas

 

Exercise dependency in prolonged endurance athletes: adventure racers and triathletes

 

Ejercite dependencia en atletas de prolongada resistencia: atletas de carreras de aventura y triatletas

 

 

Ana Lúcia Gil de OliveiraI; Marco Túlio De MelloII,III; Sergio TufikIV; Hanna Karen M. AntunesV,VI

ICentro de Estudos em Psicobiologia e Exercício- CEPE, São Paulo-SP
IICentro de Estudos em Psicobiologia e Exercício- CEPE, São Paulo-SP
IIIEscola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG
IVDepartamento de Psicobiologia, Universidade Federal de São Paulo
VCentro de Estudos em Psicobiologia e Exercício- CEPE, São Paulo-SP
VIDepartamento de Biociências, Universidade Federal de São Paulo - Campus Baixada Santista

Endereço 1

 

 


RESUMO

A prática regular do exercício físico está associada com inúmeros benefícios a saúde, no entanto, quando esta prática é excessiva, efeitos negativos psicológicos e fisiológicos são observados, contribuindo para gerar um quadro de dependência de exercício. O objetivo do estudo foi verificar a existência ou não da dependência de exercício em atletas de endurance prolongada (corrida de aventura e triatlo) investigando se existe correlação entre os escores da escala de dependência de exercício e questionários de humor (POMS, IDATE) e se esta exerce alguma influência na qualidade de vida (SF-36) dos atletas. Os resultados demonstraram que esses atletas apresentaram escores indicativos de dependência de exercício, porém, sem influência significativa nos escores indicativos de distúrbios de humor e com qualidade de vida superior a 85%. Isto sugere que, embora exista dependência de exercício, este fato isolado não promove alterações significativas nos estados de humor e na qualidade de vida dos atletas.

Palavras-chave: Dependência de exercício; Atletas; Triatlo; Corrida de aventura; Humor.


ABSTRACT

Regular physical exercise are associated with numerous health benefits, however, when this practice is excessive, it may have physiologic and psychological negative effects, among them, the exercise dependence. The aim of the study was to determinate the existence or not of the exercise dependence on prolonged endurance athletes (adventure racing and triathlon), investigating the correlation between the scores of exercise dependence with questionnaires of mood (POMS, IDATE) and if this causes any influence on the athletes' quality of life (SF-36). Results showed that these athletes had scores indicating exercise dependence, however without significant influence on scores of mood disorders and with a quality of life superior to 85%. It suggests that, although exercise dependence, this fact alone does not promote significant changes on mood or quality of life of athletes.

Key-words: Exercise dependence; Athletes; Triathlon; Adventure race; Mood.


RESUMEN

El ejercicio físico regular se asocia con numerosos beneficios para la salud, sin embargo, cuando esta práctica es excesiva, puede tener efectos negativos, y entre ellos, la dependencia de ejercicio. El objetivo del estudio fue determinar la existencia o no de la dependencia del ejercicio en atletas de resistencia prolongada (carreras de aventura y triatlón) investiga si existe una correlación entre las puntuaciones de dependencia de ejercicio de la escala y los cuestionarios de estado de ánimo (POMS, IDATE) y este ejerce alguna influencia en la calidad de vida (SF-36) de los atletas. Los resultados mostraron que estos atletas tenían puntuaciones indicando dependencia de ejercicio, pero sin influencia significativa en las puntuaciones indicativas de los trastornos del estado de ánimo y calidad de vida superior a 85%. Esto sugiere que, a pesar de la dependencia de ejercicio, este hecho por sí solo no promueve cambios significativos en los estados de ánimo y calidad de vida de los atletas.

Palabras-clave: Dependencia de ejercicio; Atletas; Triatlón; Carreras de aventura; Humor.


 

 

INTRODUÇÃO

Diversos estudos apontam para os benefícios obtidos com a prática regular do exercício físico em diferentes faixas etárias e para ambos os sexos (Chen e Millar, 1999; Karacabey, 2005; Brukner e Brown, 2005; Ernst et al., 2006; Warburton et al., 2006; Vina et al., 2012). Mesmo considerando os benefícios do exercício físico, existe um consenso informal de que a prática excessiva de exercício físico pode desencadear efeitos negativos, como lesões musculares, síndrome do overtraining e a dependência de exercício físico.

Em particular, a dependência de exercício físico se apresenta por uma ânsia por exercício físico e resulta em um comportamento incontrolável em praticar essa atividade de forma excessiva, sendo manifestada por meio de sintomas fisiológicos (tolerância e abstinência) e/ou psicológicos (ansiedade e depressão) (Hausenblas e Downs, 2002).

A dependência de exercício físico pode ser descrita como um fenômeno de comportamento similar aos demais tipos de dependência e que, como em outras síndromes, pode ocorrer com diferentes quadros de gravidade (de Coverley Veale, 1987).

Assim, a caracterização desta condição segue os seguintes aspectos: (a) estreitamento do repertório, levando a um padrão estereotipado de exercício físico uma ou mais vezes durante o dia; b) saliência do comportamento de praticar exercício físico, dando prioridade sobre outras atividades, para que seja mantido o padrão de exercícios; c) aumento na tolerância à quantidade e frequência dos exercícios físicos com o decorrer dos anos; d) sintomas de abstinência relacionados a transtornos do humor (irritabilidade, depressão, ansiedade etc.) quando interrompida a prática de exercícios físicos; e) alívio ou prevenção do aparecimento de síndrome de abstinência por meio da prática de mais exercícios físicos; f) consciência subjetiva da compulsão pela prática de exercícios físicos; e g) rápida reinstalação dos padrões prévios de exercícios físicos e sintomas de abstinência após um período sem prática de exercícios físicos. Outras características também são associadas à dependência de exercício, como: 1) o indivíduo continua a prática de exercícios físicos, mesmo quando se apresenta doente, lesionado ou com qualquer outra indicação médica, ou quando a prática de exercícios físicos interfere negativamente nos relacionamentos com o companheiro (a), familiares, amigos ou no trabalho; 2) o indivíduo faz dieta alimentar para perda de massa corporal como um meio de melhorar o desempenho (De Coverley Veale,1987; Hausenblas e Downs, 2002). Quando impedidos de fazer exercício físico, sintomas como irritabilidade, ansiedade, depressão e sentimentos de culpa parecem ser uma constante em sujeitos dependentes de exercício físico (Morris et al., 1990; Antunes et al., 2010).

Tendo em vista a possibilidade do exercício físico desencadear um comportamento com características similares àquelas apresentadas por outras dependências, muitas pesquisas ao longo dos anos vêm procurando avaliar quais fatores estariam associados à dependência de exercícios físicos bem como construir hipóteses que têm como referência tanto fatores fisiológicos quanto psicológicos (Rosa, 2001; Antunes et al., 2010).

Entre os fatores fisiológicos, destacam-se as hipóteses relacionadas aos efeitos do exercício físico sobre os vários sistemas de neurotransmissão relacionados ao controle hormonal e metabólico (Bolles e Fanselow, 1982), embora haja hipóteses relacionadas com uma possível adaptação hormonal decorrente do próprio treinamento físico como desencadeante da dependência de exercício, além da ideia de que as sensações prazerosas promovidas pela prática do exercício físico poderiam ser moduladas pela liberação de opióides endógenos, catecolaminas e/ou função endocanabinoide (Thompson e Blanton, 1987; Hamer e Karageorghis, 2007; Boeker et al., 2008; Heyman et al., 2012; Raichelen 2012).

Quanto aos fatores psicológicos, alguns estudos (Salmon, 2001; Antunes et al., 2005; McNamara e McCabe, 2012) relatam que a prática de exercícios acarreta melhoria nos estados de humor de seus praticantes, porém existem controvérsias em relação às características psicológicas de indivíduos com diferentes níveis de dependência de exercícios (Rosa, 2001). Alguns estudos recentes demonstraram que praticantes de exercícios físicos eram mais extrovertidos do que seus pares sedentários. No entanto, quando foram analisados apenas os praticantes de exercícios físicos, distribuídos de acordo com seus níveis de dependência, nenhuma associação significativa com os escores de extroversão foi encontrada (Mathers e Walker, 1999; Rosa, 2001).

Tendo em vista que a prática de exercícios físicos proporciona tanto alterações fisiológicas quanto psicológicas, é possível que a dependência de exercícios físicos siga o mesmo modelo de reforço relacionado ao desenvolvimento da dependência de drogas psicoativas (Davis, 2000), ou seja, a prática de exercícios físicos apresentaria tanto propriedades de reforço positivo quanto negativo. As propriedades de reforço positivo estariam associadas à sua capacidade de alterar os níveis dos principais neurotransmissores envolvidos nas vias neurais do prazer, enquanto que as propriedades de reforço negativo relacionadas sua capacidade de minimizar os estados negativos de humor. Sendo assim, a prática de exercícios físicos contribuiria, para alguns indivíduos, na redução ou extinção de um estado geral desagradável, favorecendo a gênese ou manutenção de um estado de dependência (Antunes et al., 2010; Meyer et al., 2011).

Considerando a escassez de estudos sobre a dependência de exercícios físicos, o presente estudo teve como objetivo verificar a existência ou não deste fenômeno em atletas de endurance prolongada, investigando se existe correlação entre a dependência de exercício físico, estado de humor e efeito na qualidade de vida dos atletas.

 

MÉTODO

Procedimento ético

Antes de participar do estudo, todos os voluntários foram informados quanto aos procedimentos, desconforto e riscos envolvendo os processos de avaliação. Posteriormente eles assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido para a participação neste estudo. A identidade da amostra foi preservada. O projeto foi aprovado pelo comitê de ética em pesquisa da UNIFESP (#0749/04) e foi conduzido de acordo com a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde.

Voluntários

Participaram deste estudo 29 voluntários, atletas de corrida de aventura (Aventura) e de triatlo, de ambos os sexos, com histórico de prática da modalidade esportiva de pelo menos 3 anos, com experiência em provas nacionais e internacionais, residentes do estado de São Paulo (Capital e Litoral Norte). As médias (± desvio-padrão) da idade, estatura, massa corporal total, índice de massa corpórea (IMC) foram respectivamente: 32,17 ± 6,11 anos; 1,73 ± 0,07 cm; 72,16 ± 9,22 kg e 23,76 ± 1,48 kg/m2.

Questionários aplicados:

Os questionários foram aplicados individualmente em um dia de descanso dentro da periodização de treinamento individual de cada atleta. Antes de iniciar a aplicação dos mesmos, os procedimentos foram explicados aos voluntários os quais foram solicitados a respondê-los honestamente, sendo garantido o total sigilo de suas respostas.

ESCALA DE DEPENDÊNCIA DE EXERCÍCIO (EDE) - Este instrumento avalia os aspectos psicológicos "negativos" da dependência de corrida, por meio de uma escala de 14 itens, atribuindo-se a cada item um escore (0 ou 1). Escores altos estão relacionados a maiores níveis de dependência. Embora a versão original deste instrumento, Negative Addiction Scale (Hailey e Bailey, 1982), traduzida e validada por Rosa et al. (2003), use o termo "corrida", segundo estudo de Furst e Germone (1993), o mesmo pode ser substituído por "exercício" ou seja, este instrumento, já utilizado em vários estudos, possibilita a avaliação de dependência em todos os tipos de exercícios físicos.

Inventário de Ansiedade Traço e Estado- IDATE - É um questionário de auto-avaliação dividido em duas partes: a primeira avalia a ansiedade-traço (referindo-se a aspectos de personalidade) e a segunda avalia a ansiedade-estado (referindo-se a aspectos sistêmicos do contexto). Cada uma dessas partes é composta de 20 afirmações. Ao responder o questionário, o indivíduo deve levar em consideração uma escala de quatro itens que variam de 1 a 4, sendo que ESTADO significa como o sujeito se sente no "momento" e TRAÇO como ele "geralmente se sente". O escore de cada parte varia de 20 a 80 pontos, sendo que os escores podem indicar um baixo grau de ansiedade (0-30), um grau mediano de ansiedade (31-49) e um grau elevado de ansiedade (maior ou igual a 50). Quanto mais baixo se apresentarem os escores, menor será o grau de ansiedade (Spielberger et al., 1970; Biaggio e Natalício, 1979; Andreatini e Seabra, 1993).

PROFILE OF MOOD STATES (POMS): consiste numa lista com 65 adjetivos relacionados ao estado de humor, onde o avaliado deve anotar como se sente em relação a cada adjetivo, conforme as instruções, considerando uma escala de 0 a 4. Seis fatores de humor ou estados afetivos são medidos por esse instrumento: tensão-ansiedade, depressão-desânimo, raiva-hostilidade, vigor-atividade, fadiga-inércia e confusão mental-perplexidade (Mcnair et al., 1971).

SF-36- PESQUISA EM SAÚDE- Questionário Genérico de Avaliação de qualidade de vida "Medical Outcomes Study SF-36", traduzido e validado para população brasileira (Ciconelli, 1997). Esse questionário tem o propósito de avaliar, de forma genérica, a qualidade de vida. Trata-se de um instrumento multidimensional, composto por 36 itens avaliando em 8 dimensões assim distribuídas: 10 itens relacionados com a capacidade funcional; 4 itens de aspectos físicos; 2 itens sobre dor; 5 itens relacionados com o estado geral de saúde; 4 itens sobre vitalidade; 2 itens com relação aos aspectos sociais; 3 itens a respeito dos aspectos emocionais; 5 itens relacionados com a saúde mental e mais 1 questão de avaliação comparativa entre as condições de saúde atual e a de um ano atrás. Para avaliar os resultados, é determinado um escore para cada uma das questões que, posteriormente, são transformadas em escala de 0 a 100, onde "zero" corresponde a um pior estado de saúde e "cem" a um melhor estado. Cada uma das dimensões é analisada em separado.

Análise Estatística

Inicialmente foi aplicado o teste Shapiro Wilk's para determinação da curva de normalidade. Para descrição dos dados foi utilizado o recurso de distribuição de frequências relativas e análise descritiva e para a comparação entre os escores da EDE entre os sexos e entre as modalidades esportivas foi utilizado o Teste t' para amostras independentes. Para correlacionar os dados do escore da EDE e os escores indicativos de ansiedade traço e estado, bem como o escore total e as dimensões do questionário SF-36, foi utilizado a Correlação de Pearson. Como os dados observados nas questões da EDE não seguiram um padrão de normalidade, a correlação entre o escore final e cada item do questionário foi realizada utilizando o coeficiente de correlação de Spearman. O nível de significância adotado foi p<0,05 e os dados estão apresentados em média ± desvio padrão e em porcentagem quando necessário. A análise estatística foi conduzida com o auxílio do software Statistica Statsoft®, versão 12.0.

 

RESULTADOS

A Tabela 1 apresenta os dados da amostra de acordo com a distribuição sócio-demográfica e as características da prática de cada modalidade esportiva. Observa-se que os indivíduos do grupo Aventura possuem um nível de escolaridade um pouco mais elevado em relação aos indivíduos do grupo de Triatlo. Com relação ao nível de ocupação, 100% dos atletas de Triatlo possuem uma ocupação profissional, enquanto que entre os atletas de Aventura, a maioria relatou ter trabalho fixo (77,77%), enquanto que 22,22% não tem ocupação profissional, apenas treinam. Quanto às horas de treino por semana, a maioria (72,22%) dos atletas do grupo de CA treina entre 10 e 15 horas, já no grupo de triatlo, a maior parte (72,72%) se dedica aos treinos por mais de 15 horas semanais. Cerca de 72,41% dos atletas de ambos os grupos treinam durante seis dias na semana. Porém, no grupo de CA, 16,66% treinam 5 dias e 11,11% os 7 dias da semana, enquanto que no grupo de triatlo, apenas 9,09% treinam 5 dias e 18,18%, todos os dias.

A Tabela 2 apresenta os resultados referentes aos escores observados na EDE e os escores observados nas escalas de ansiedade traço e estado. Quanto aos resultados da EDE, o escore médio encontrado apresentado pelo total da amostra foi de 5,65, não havendo diferenças significativas entre as modalidades e nem entre os sexos, visto que os atletas de triatlo apresentaram pontuação média de 5,60, enquanto que para os de CA, a média foi de 5,38 pontos. No grupo de CA, o índice apresentado pelas mulheres foi de 6,25 e o dos homens, 5,14. Já no grupo de triatlo, os homens obtiveram a média de 6,33 e as mulheres, 5,0. Os resultados do IDATE Estado e IDATE Traço revelaram que homens e mulheres dos grupos de CA e triatlo apresentaram níveis de ansiedade moderada, não sendo observada nenhuma diferença significativa quando os sexos foram comparados.

Na Tabela 3 são apresentados os resultados referentes à correlação entre a pontuação total na EDE e cada item do questionário, mostrando que apenas as questões 3,4,5,7,8,9,11 e 13B apresentaram níveis significativos de correlação.

A Figura 1 apresenta os resultados observados nos questionários SF-36 pesquisa em saúde quando considerado o total da amostra (ambos os sexos). Quando as modalidades esportivas foram comparadas, não foram observadas diferenças significativas. Os valores médios das oito dimensões que refletem a qualidade de vida foi de 88,72% para os atletas de CA e 83,05% para os triatletas.

A Figura 2 apresenta os dados obtidos na análise dos diferentes fatores da escala POMS. Na prancha A apresentamos os resultados referentes ao sexo feminino, e na prancha B o sexo masculino. Tanto no A quanto no B foi observado o perfil "iceberg" no fator vigor, demonstrando que, tanto os atletas de CA como os triatletas possuem altos níveis de vigor em relação às outras dimensões do questionário. As outras análises realizadas não demonstraram diferenças significativas.

 

DISCUSSÃO

Diversos estudos têm demonstrado ao longo dos anos, que a prática do exercício físico agudo e crônico produz benefícios nas esferas física e cognitiva, elevando a qualidade de vida do praticante (Warburton et al., 2006; Vina et al., 2012). Entretanto, em alguns indivíduos, essa prática pode levar a um sentimento de obsessão-compulsão, conhecido como dependência de exercício, e que resulta em um comportamento incontrolável em praticar exercício físico de forma excessiva.

Tendo em vista que a Corrida de Aventura e o Triatlo são esportes de endurance prolongada que implicam em um elevado desgaste físico, e considerando que este desgaste está presente tanto no treinamento quanto nas provas propriamente ditas, diversos questionamentos podem ser realizados. Entre eles, o fato de que diante de tantos desconfortos relacionados com mudanças ambientais (calor, frio, chuva), cansaço, fadiga, lesões e, especialmente na corrida de aventura, a restrição do sono e redução do consumo alimentar e hídrico (Mann e Shaad, 2001; Caldwell e Siff, 2001; Adamson, 2004), tanto em uma modalidade quanto na outra, o atleta tem que ter uma motivação intrínseca muito forte que o leve a seguir adiante. Portanto, considerando que esses atletas frequentemente terminam uma prova já planejando a próxima, perguntamos: seriam eles dependentes de exercício físico?

Entre atletas que praticam esportes de longa duração, especificamente o triatlo e a corrida de aventura, é comum observarmos alguns comportamentos que, segundo De Coverley Veale (1987), caracterizam a dependência de exercício. Em nosso estudo, os escores médios observados para ambos os sexos em ambas as modalidades, sugerem a existência desta dependência. Esses valores foram semelhantes aos observados por Rosa et al. (2003), que estudaram maratonistas brasileiros, que por sua vez também foram semelhantes aos do estudo de Hailey e Bailey (1982). Quando comparamos os escores da EDE entre a amostra masculina e a amostra feminina em ambas as modalidades, não foram observadas diferenças significativas, sugerindo que não há diferenças quanto ao desenvolvimento da dependência nesses esportes, entre os sexos.

Furst & Germone (1993) e Rosa et al. (2003) também não encontraram diferenças na EDE quando homens e mulheres foram comparados, embora haja outros estudos como o de Crossman et al. (1987) demonstrando que homens apresentam maiores sentimentos de desconforto quando interrompem seus programas de treinamento quando comparados às mulheres. Por outro lado, Pierce et al. (1997) encontraram maiores escores na EDE em mulheres, quando o volume de treinamento foi pareado.

Geralmente, distúrbios comportamentais são associados com a dependência de exercício, uma vez que sujeitos dependentes podem apresentar escores elevados para ansiedade, alterações psicológicas tais como distúrbios de humor e algumas vezes, anorexia nervosa. Em nosso estudo, a aplicação do IDATE (traço e estado) demonstrou um escore médio relativo à classificação de ansiedade moderada para ambas as modalidades e para ambos os sexos. Esse resultado pareceu exercer pouca influência na qualidade de vida desses sujeitos uma vez que o escore total do SF-36, quando avaliadas todas as dimensões, se encontra acima de 85%. É possível que o nível de ansiedade apresentado pelos atletas não tenha sido suficiente para interferir na qualidade de vida dos mesmos, como foi demonstrado pelo resultado observado por meio da aplicação do POMS, que evidenciou um perfil conhecido como "iceberg" no qual a dimensão vigor se apresentou mais evidenciada do que as outras dimensões, sugerindo não haver a presença significativa de distúrbios de humor. Em nossa amostra, o fato de haver dependência de exercício e que essa dependência parece não estar necessariamente associada a um distúrbio de humor, nos leva ao questionamento sobre quais fatores poderiam estar relacionados com esta disparidade, uma vez que a literatura relata a concomitância entre a dependência de exercício e distúrbios de humor. Levantamos a hipótese de que o aspecto ambiente onde é praticado a modalidade esportiva tem um peso considerável, pois os atletas de corrida de aventura treinam e competem em lugares com muita diversidade ambiental tendo grande contato com a natureza e sempre competem em equipes. Esses fatores em conjunto poderiam atenuar os aspectos referentes aos distúrbios de humor. Outro ponto a ser discutido é o fato que a corrida de aventura e o triatlo são multiesportes, o que impediria, por exemplo, a monotonia observada em outros esportes, como a maratona.

Porém, atletas de triatlo, principalmente das grandes cidades, enfrentam trânsito e correm risco de vida nas rodovias para poder cumprir seus treinos, aspectos esses que poderiam favorecer a incidência de distúrbios de humor, por serem considerados fatores estressantes. No entanto, o grupo de triatlo também não apresenta esta característica associada à dependência de exercício físico.

Considerando que a amostra do grupo de triatlo utilizada neste estudo mora e treina na cidade de Ubatuba, Litoral Norte de São Paulo, usufruindo de praias, trilhas e rodovias calmas para os treinos de natação, corrida e ciclismo, reforçamos a hipótese de que um ambiente que favoreça o contato com a natureza pode atenuar os aspectos referentes aos distúrbios de humor.

No entanto, não sabemos quais seriam os resultados de uma amostra de atletas de triatlo, que moram e treinam em um grande centro, onde a possibilidade de estar em contato com a natureza são menores. Sendo assim, observamos a necessidade de outros estudos, para que seja possível fazer as devidas comparações.

Em relação aos possíveis mecanismos envolvidos com a dependência de exercício físico, a não concomitância de distúrbios de humor pode estar relacionada às possíveis alterações neuroquímicas desencadeadas pelo próprio exercício físico. O exercício aumenta a liberação de ß-endorfina, esta liberação está associada com a analgesia, com efeitos antidepressivos causados pelo exercício físico e particularmente com a liberação do neurotransmissor dopamina (Heitkamp et al., 1996; Goldfarb e Jamurtas, 1997). Este neurotransmissor está relacionado com a ativação de áreas cerebrais responsáveis por prazer e satisfação, talvez este seja o mecanismo pelo qual os atletas de endurance prolongada, mesmo apresentando escores para dependência de exercício físico, apresentem escores baixos para distúrbios de humor, o que reflete uma qualidade de vida alta.

Além disso, outros mecanismos recentemente têm sido sugeridos. Atualmente a hipótese da participação do sistema endocanabinóide tem ganhado notoriedade, particularmente pela observação de que nem todos os atletas de endurance prolongada se tornam dependentes de exercício físico (Dietrich e McDaniel, 2006; Sparling et al., 2003). Muitos dos sintomas relatados por atletas de endurance são similares àqueles causados pelo uso do THC que por sua vez ativa receptores CB1 e CB2 e induz a alterações similares reportadas por atletas de endurance como sedação, diminuição de ansiedade e bem-estar (Sparling et al., 2003; Chaperon e Thiebot 1999).

Para um melhor esclarecimento da participação dos diversos mecanismos envolvidos com a dependência de exercício, particularmente em atletas de endurance prolongada, sugere-se que sejam realizados novos estudos.

 

CONCLUSÃO

Nossos dados sugerem que atletas de endurance prolongada, especificamente das modalidades corrida de aventura e triatlo, apresentam escores indicativos de dependência de exercício físico, porém, sem influência significativa nos escores indicativos de distúrbios de humor, pelo contrário, os atletas embora apresentem dependência de exercício, eles se encontram com um percentual de qualidade de vida superior a 85%. Esses resultados são interessantes e podem contribuir com a elaboração de estratégias relacionadas ao treinamento destas modalidades esportivas, bem como ampliar o campo de investigação que envolve essas modalidades, uma vez que comumente escores de dependência de exercício físico estão envolvidas com alterações psicobiológicas.

 

Referências

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Endereço 1:
Departamento de Biociências, Universidade Federal de São Paulo
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Telefone: (13) 3878-3732

Recebido: 15/10/2012
Última revisão: 20/05/2015
Aceite final: 22/05/2015
Suporte Financeiro: CAPES, FAPESP, CNPq.

 

 

Sobre os autores:

Ana Lúcia Gil de Oliveira - Graduada em Educação Física, Unimodulo, Caraguatatuba-SP.

Marco Túlio De Mello - Livre Docente, Doutor em Ciências pelo Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo, Unifesp. Atualmente Docente da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Belo Horizonte-MG.

Sergio Tufik - Professor Titular do Departamento de Psicobiologia, Universidade Federal de São Paulo, Campus São Paulo.

Hanna Karen M. Antunes - Doutor em Ciências pelo Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo, Unifesp. Atualmente Professora Adjunto do Departamento de Biociências da Universidade Federal de São Paulo - Campus Baixada Santista. E-mail: hanna.karen@unifesp.br.

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