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Revista Psicologia e Saúde

On-line version ISSN 2177-093X

Rev. Psicol. Saúde vol.7 no.2 Campo Grande Dec. 2015

 

ARTIGOS

 

Conversando com a cultura militar a partir da teoria ator rede (TAR)

 

Chatting with military culture from actor network theory (ANT)

 

Hablando con la cultura militar a partir de la teoría del actor-red (TAR)

 

 

Werusca Marques Virote de Sousa Pinto; Regina Glória Nunes Andrade

Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ

Endereço 1

Endereço 2

 

 


RESUMO

O presente estudo tem como objetivo uma reflexão sobre hierarquia militar, articulando a Teoria Ator-Rede a fim entender os impactos desse aspecto cultural na vida pessoal e familiar dos militares oficiais do Exército Brasileiro. Trata-se de uma discussão no âmbito da Psicologia Social que busca uma interlocução com os Estudos Culturais e a Cultura Militar. A teoria ator-rede se propõe seguir os passos dos atores, observar e descrever suas interações e as redes que se estabilizam em torno dos elementos com os quais interage. E, assim, discutir a construção das subjetividades permeadas por essas articulações e atravessamentos. O estudo apresenta de forma breve, questões sobre a vida cotidiana das famílias dos oficiais do Exército Brasileiro e pretende suscitar novas indagações nesse contexto ainda pouco pesquisado.

Palavras-chave: Hierarquia; Cultura; Militares; Teoria ator-rede.


ABSTRACT

This study aims to reflect on the military hierarchy, the Actor Network Theory to understand the impacts of this cultural aspect in personal and family life of military officers of the Brazilian Army. This is a discussion within the social psychology that seeks a dialogue with cultural studies and the Military Culture. The actor-network theory intends to follow in the footsteps of actors, observe and describe their interactions and networks that stabilize around elements with which it interacts. And so, discuss the construction of subjectivities permeated by these joints and crossings. The study presents briefly, questions about the everyday life of the families of the Brazilian Army officers and plans to raise new questions in this context with little research.

Key-words: Hierarchy; Culture; Military; Actor-network theory.


RESUMEN

Este estudio tiene como objetivo reflexionar sobre la jerarquía militar, articulando la teoría actor-red para entender los impactos de este aspecto cultural en la vida personal y familiar de los oficiales militares del Ejército Brasileño. Esta es una discusión al interior de la psicología social que busca un diálogo con los estudios culturales y la Cultura Militar. La teoría del actor-red tiene la intención de seguir los pasos de los actores, observar y describir sus interacciones y redes que estabilizan los elementos del entorno con los cuales interactúan. Y así, discutir la construcción de subjetividades permeadas por estas articulaciones y cruces. El estudio presenta brevemente las preguntas sobre la vida cotidiana de las familias de los oficiales del Ejército de Brasil y pretende proponer nuevas cuestiones en este contexto todavía poco investigado.

Palabras-clave: Jerarquía; Cultura; Militar; Teoría del actor-red.


 

 

Introdução

Buscar-se-á ao longo desse artigo desenvolver o conceito de hierarquia dentro da cultura militar. Os diálogos que serão estabelecidos são discussões teóricas que utilizarão a teoria ator-rede para articular aspectos da observância à hierarquia enquanto pilar institucional e o contraponto: o rompimento das regras e normas vigentes. Os fluxos desses diálogos não seguem uma linearidade, pois a proposta é refletir sobre um aspecto institucional aparentemente naturalizado, porém sob uma perspectiva dinâmica e que sugere influenciar no processo de construção da subjetividade dos oficiais e suas famílias.

Assim, serão descritos aspectos do cotidiano para retratar a influência dos pilares institucionais do Exército Brasileiro nas redes de atores humanos e não humanos, aplicando o conceito de cotidiano proposto por Spink ( 2008), (...)"um fluxo de fragmentos corriqueiros e de acontecimentos em micro-lugares" (Spink, 2008, p. 70).

Para tanto, o que se propõe é pensar essa cultura a partir de um modelo heterogêneo e encontrar seus efeitos nas cadeias que forem sendo estabilizadas. Buscando contribuir para a proposta de uma "psicologia da relação indivíduo/sociedade não assimétrica" ( Arendt, 2010, p.27).

Ou seja, descrever o cotidiano e as relações sociais, buscando fazer uma leitura dos movimentos que acontecem de forma corriqueira e lançar um olhar atento, pode suscitar novas e diversas possibilidades de articulação. Latour ( 2004) chama de "caixas pretas", os eventos inegáveis, óbvios que não despertam nenhum tipo de estranhamento, como é o caso da hierarquia para o militar. Porém, a reflexão teórica proposta é um convite a buscar rastros de significados fabricados por esse grupo, mas que não estão explicitados em um primeiro olhar.

A teoria ator rede suscita, em quem entra em contato pela primeira vez com essa proposta, alguns questionamentos que se pretende discutir aqui: essa é uma metodologia que propõem um estudo a partir de uma teoria psicológica preexistente? Qual o referencial teórico que lhe dá suporte? Que lugar o pesquisador ocupa para investigar os fenômenos psicológicos?

A proposta dessa discussão é apresentar um discurso não universalizante, mesmo porque a teoria ator rede busca justamente desvencilhar-se desse "olhar de Deus". Sair desse lugar de quem sabe e busca uma generalização. Dessa maneira, pretende-se apresentar uma versão da hierarquia, buscando para tanto, o registro de eventos que marcaram a história dos militares.Procurando responder como eles compreendem e vivenciam um aspecto que na cultura militar é estruturante.

Hierarquia para os militares Oficiais do Exército Brasileiro

A hierarquia é aprendida pelos militares desde cedo e figura como um valor institucional. Desde a formação na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) o cadete, como é chamado o aluno dessa escola, é preparado para incorporar a cultura institucional do Exército Brasileiro.Partindo da proposição de como uma criança que nasce em Bali se torna Balinesa, e reafirmando que isso se dá quando ela incorpora sua cultura. Pergunta-se aqui: Como um militar se torna militar? Da mesma forma que a criança Balinesa. Incorporando sua cultura."Na Academia o cadete vive um processo de socialização profissional durante o qual deve aprender os valores, atitudes e comportamentos apropriados à vida militar (...)" ( Castro, 1990, p.12).É da incorporação dessa cultura que trataremos aqui. Militar é mais que profissão é um marcador identitário para os seus membros. É uma carreira que envolve não somente o tempo de trabalho, mas preenche todos os espaços sociais, envolvendo a família, os amigos, os ambientes que o indivíduo frequenta, e assim, a vida profissional figura como elemento central do cotidiano dessas pessoas.

Trata-se de uma instituição secular que, diferentemente de muitas outras instituições públicas e privadas do país tem suas atividades pautadas em um código de ética muito claro, definido e divulgado amplamente. Existem regras, deveres e sanções definidas para quando houver infrações, já preestabelecidas, para as mais diversas atividades desempenhadas dentro da instituiçãohá uma série de regulamentos que norteiam a conduta e exigem do militar uma postura disciplinada frente a essas normas.

A hierarquia militar - ou melhor, a hierarquia do corpo de oficiais - apresenta uma característica fundamental: ela fraciona um grupo de pares. Um capitão, um coronel ou um general já foram cadetes; pode-se dizer que, de certa forma, eles são cadetes com alguns anos de experiência e de idade a mais. Todos são oficiais e comungam o mesmo espírito militar. Os cadetes sabem que, ao concluírem o curso da Academia, passarão a ter a mesma condição social que seus superiores e que a distância entre as posições hierárquicas ocupadas por uns e outros será, basicamente, uma questão de quantidade de tempo (...) (...) Nesse sentido, pode-se chamar a hierarquia do corpo de oficiais de "hierarquia quantitativa", uma hierarquia que pressupõe a possibilidade de ascensãopara todos os seus membros, a partir de uma situação inicial de igualdade formal de condições.(Castro, 1990, p.23)

Hierarquia para o militar é a estratificação clara de profissionais a qual orienta a distribuição de cargos funções, responsabilidades e direitos. Essa definição está escrita em normas e regulamentos,mas se perguntarmos a qualquer oficial qual a definição de hierarquia para ele, muito provavelmente ouviremos parte dessa definição. Está internalizado, faz parte deles o pensar e o agir dessa maneira.

A hierarquia para o militar á algo natural e se torna invisível, pois para eles é um elemento que já estava lá na instituição quando ele chegou, precede suas ações é definido, coerente, singular. É uma realidade que independe dele. É uma estrutura que já foi produzida, para eles, é uma estabilização construída antes de sua entrada (Leirner, 2009).

Na prática as funções mais complexas são delegadas aos mais antigos. A antiguidade é a posição hierárquica de um militar dentro de uma escala de postos e graduações. Postos para oficiais e graduações para subtenentes e sargentos, também chamados de "as praças". Formalmente as relações se dão dessa forma.

Informalmente, dentro dos refeitórios, por exemplo, quando não se está em operações, os mais antigos se servem primeiro. Essa prioridade não está regulada por uma norma. Mas hierarquicamente o mais antigo precisa ser tratado com mais deferência que os demais.

Já quando em situações operacionais, de campanha, os mais antigos devem se certificar que os seus subordinados já se alimentaram para somente, então, se alimentar. Comer por último é uma forma de dar o exemplo, esse é outro valor pautado na hierarquia, aos mais antigos cabe o exemplo de como ser e se comportar para ser aceito culturalmente.

Em várias situações informais da vida pessoal do militar é possível perceber a presença da hierarquia. Nas festas, o primeiro que deve ser cumprimentado é o comandante e sua esposa, eles devem ser tratados com certa deferência. Nos aniversários do comandante as pessoas se mobilizam, geralmente, nessas ocasiões, concentram as ações festivas na pessoa da esposa do subcomandante. Isso em organizações militares menores, onde o contingente de militares não é tão grande.

Assim, de modo geral, a vida é regida por todo um sistema de crenças e valores específicos da instituição militar: um grupo considerado "fechado", tradicional e altamente hierárquico, no qual se configura a preeminência da coletividade sobre os indivíduos como fundamental para obom desempenho das atividades no quartel e nas demais organizações militares. ( Silva, 2009, p.108)

As festas podem ser alegres e descontraídas, mas tanto as esposas dos militares quanto os maridosse organizam em mesas por patentes. Geralmente as esposas de tenentes com as esposas de tenentes, as de oficiais superiores com de oficiais superiores e a esposa do comandante é sempre a anfitriã. Quando isso não ocorre e as pessoas se misturaram em círculos diferentes há uma estranheza muito grande: a esposa de um major, na mesa das esposas de tenente? É um fato inusitado para as pessoas inseridas nessa cultura. Outro aspecto hierárquico que se apresenta mesmo nas festas mais informais é de um lado homens e de outro as mulheres, esses grupos pouco se misturam.

Ainda descrevendo as festas, as pessoas precisam pensar em seus convidados e convidar os mais antigos e principalmente o comandante. A convivencia fora do quartel também é pautada pela hierarquia, principalmente nas vilas militares. Todos compartilham do mesmo ambiente trabalham no mesmo lugar físico e as regras são extensivas à vida privada. Ou melhor, fica difícil definir com dimensões claras o que é vida privada e vida pública, pessoal e profissional (Silva, 2009).

A hierarquia, por ser tão clara ecompartilhada pelos membros, supera as afinidades e empatias, a casa passa a ser a extensão do quartel. Diferentemente de um trabalho dentro de uma empresa privada ou qualquer outra instituição pública.

Ela extrapola os limites físicos do quartel e coloca as esposas também em uma relação hierárquica, vale ressaltar que essa hierarquia não é imposta por regulamentos, mas ela permeia as relações existentes. Seguindo esses atores, (mulheres de militares), conforme propõe a teoria ator-rede, pode-se verificar que as relações dentro das vilas militares não são meramente afetivas, ou relações de vizinhos como se dá em outros espaços e sim relações que oscilam entre a vinculação política, atravessada pelo interesse em ajudar, ou não prejudicar a carreira do marido e as relações de intimidade e amizade construída entre vizinhos. As mulheres não podem muitas vezes se negar ir em uma reunião social do trabalho do marido, porque isso é importante para a carreira dele.

A presença dos filhos intensifica a convivencia entre os militares das vilas.Os espaços compartilhados como, parquinhos, quadras de esportes e salões de festa possibilitam o estreitamento do relacionamento entre essas crianças que por vezes são afetadas pelos atritos e afinidades profissionais de seus pais militares.

Trata-se de relações singulares, diferente do estilo de vida da maioria das pessoas civis e assim tornase interessante lançar o olhar para compreender e produzir uma versão dessa realidade.

Rompendo com a hierarquia militar

Refletindo sobre hierarquia militar e corpos disciplinados por uma instituição permanente e regular,faz-se necessário estabelecer um contraponto, pois nem sempre as regras são aceitas e vivenciadas de forma homogenia.

Ao longo da história existem alguns exemplos de militares que transgrediram as normas, que optaram por defender ideologias e políticas particulares que se chocavam com as propostas pela instituição.

No período histórico marcado pela alternância entre políticos de Minas Gerais e São Paulo, denominada política do "café com leite", em que as oligarquias regionais dominavam o cenário político e sócio cultural, as pessoas que tinham acesso à educação eram somente as classes mais favorecidas, ou seja, os grandes produtores de café e comerciantes dos Estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Assim, os indivíduos que não pertenciam às essas classes, para obter acesso à educação tinham que optar pela carreira militar ou eclesiástica. Diante dessa configuração, surge nesse momento histórico, uma série de contestações que eclodiu em manifestações deliberadas, tendo como ápice a tomada do forte Copacabana, no movimento intitulado 18 do forte, promovido por tenentes e capitães do Exército Brasileiro, reivindicando transparência na políticae na econômica. A partir daquele momento, os atos de transgressão foram marcados pela questão político ideológica presente no discurso e na prática dos militares ditos desviantes.

Outro exemplo público de desobediência às regras institucionais, foi a invasão da prefeitura de Apucarana, no ano de 1987. Um militar, capitão do Exército Brasileiro, para reivindicar melhores salários deu ordem a seus subordinados para ocupar a prefeitura da cidade e fazer um protesto. Esse é um ato que tomou grandes proporções, pois não se trata de uma manifestação permitida pelo estatuto dos militares. O militar que protagonizou esse evento, foi julgado pelo Tribunal Militar e condenado em primeira instância e os demais seguidores, subordinados ao líder do movimento, foramtambém julgados, sendo alguns condenados e outros absolvidos. O Capitão foi consciente de sua transgressão e assumiu a responsabilidade pelo ocorrido.

De forma ilustrativa foram apresentados esses dois fatos históricos que tiveram vulto nacional, um com consequências históricas de grandes proporções e o outro regionalizado, mas que para o público em questão é um fato grave. Esses dois relatos são exemplos de militares que tendo a mesma formação que os outros, passando pela mesma escola, recebendo as mesmas ordens não tiveram a mesma adesão ao elemento cultural estruturante da instituição: obediência aos parâmetros hierárquicos. Dessa forma, permanece a reflexão de que os corpos disciplinados por essa cultura produzem um tipo específico de subjetividade, mas que mesmo sendo a cultura institucionalum elemento forte, há sempre lacunas, que permitem um modo de produção de subjetividades desviante da conduta amplamente aceita.

As famílias, também, mesmo que indiretamente, estão submetidas a essa cultura, tomam para si algumas regras e se envolvem com os elementos da hierarquia presentes no território que habitam. Por algumas vezes, mulheres de militares foram às ruas promover manifestações em nome de seus maridos, já que estes estão sujeitos as regras da hierarquia e disciplina e a eles é vedado o direito de manifestar-se e sindicalizar-se. Elas fizeram movimentos intitulados "panelaços", pedindo melhores salários e condições de vida para a família militar. Esses movimentos são de alguma forma uma maneira de reivindicar sem romper com as regras estabelecidas pela organização que seus maridos fazem parte.

Nesses relatos de descumprimento das normas e desvios dos padrões estabelecidos vê-se claramente que para o militar o que está preconizado, desde às ordem diárias mais simples até a ideologia institucional, são elementos fundamentais que possuem uma dimensão maior do que para outras categorias funcionais. As regras se estendem à vida pessoal e a normatização da subjetividade acontece sem que se passe pelo crivo da deliberação individual, ou seja, os membros da instituição aderem à cultura com mais facilidade que outros públicos.

Pensar esse cotidiano a partir da TAR

A vida militar,permeada pela hierarquia,pode ser observada em diversos micro-lugares que esses atores frequentam: a vila militar, o quartel, os colégios militares e as confraternizações. Pretende-sebuscar um olhar de perto, tentando compreender como são as relações nesse espaço social, sem pensar,a priori, o que é certo, ou errado, bom ou não, tentando buscar as influências dos "não humanos" nesse processo, ou seja, os regulamentos, as normas registradas em papeis, são elementos físicos que estabelecem e norteiam o comportamento dessas pessoas. O regulamento e as normas fazem parte da rede que queremos descrever. Dito de outra forma, são as sociabilidades influenciadas pela materialidade desses aspectos valorativos e que se manifesta em forma de comportamentos (Law & Mol, 1995).

O lugar vila militar, ou qualquer dos lugares ditos acima são compostos por micro-lugares que vão produzindo identidades e que o pesquisador atento deve se colocar para assim, como uma pessoa conectada com o ordinário, o corriqueiro conseguir descrever as redes sociais que ali se apresentam.

O apelo figurativo para os micro-lugares é um apelo para a importância dos pesquisadores se conectarem com os fluxos constantes de pessoas, falas, espaços, conversas e objetos, assumir-se como também actante(...) (Latour, 2004), parte de um processo contínuo de negociação, resistência e imposiçãode sentidos coletivos. (Spink, 2008,p.71).

A TAR propõe uma pesquisa no cotidiano, em que os detentores das informações são os atores do processo e não o pesquisador. O pesquisador estará ali para propor questões interessantes que suscite nos atores uma possibilidade de produzir uma versão do seu cotidiano. Arendt (2008), em seu texto: Maneiras de Pesquisar no Cotidiano: contribuições da Teoria Ator-Rede, conta que um professor foi orientar seu aluno em como pesquisar segundo esse referencial. O aluno questiona a necessidade de se ter um referencial por base e o professor responde dentre outras coisas: " (...)Se eu fosse você abriria mão dos referenciais, contextualizações. Apenas descreva o estado de coisas ao seu alcance. Os próprios atores produzirão seus referenciais, suas teorias, seus contextos. Apenas descreva(...)" (Arendt, 2008, p.8).

Na perspectiva da TAR as expectativas do pesquisador estão implicadas nos resultados encontrados por ele.O sujeito pesquisado sempre se questiona "o que ele quer de mim?" E dependendo de como o sujeito interpreta esse desejo ele responde a essas demandas de formas diferentes (Despret, 2011).

No caso da investigação sobre a hierarquia para o militar, quando ele é questionado, por ser um corpo treinado e disciplinado nesse modelo cultural, ele primeiramente responde de forma técnica, um conceito que consta em manuais de normas da instituição.

A TAR compreende os fenômenos a partir das especificidades, estudando casos, ouvindo os discursos situados, percebendo de onde se vê, de onde se fala. A forma como as realidades e dinâmicas cotidianas se combinam é que vão dando consistência e coerência. Verificar como o processo de estabilização se dá, mais ainda, perceber os processos de desestabilização. Ouvir o que é dito e, principalmente, procurar se no "não dito" está o foco. Em uma pesquisa tradicional o que é dito é mais importante e valorizado pelo pesquisador, já na perspectiva dessa teoria o que fica de lado, o que escapa é tão importante quando o que está posto.

Para a TAR o importante é fazer as perguntas e tomar posturas que auxiliam seguir os atores, tais como: "a) postura etnográfica; b) pensar primeiro na cena e a teoria vem depois; c) pensar no como a mudança dos recursos promovem transformações e desarrumação na vida social; d) estar no mesmo nível da pessoa com quem está falando" (Arendt, 2010, p.52).

Pensando dessa forma, pode-se, então, buscar que tipo de produção de sentido e o que esperar dos indivíduos que estão inseridos nessa cultura. A hierarquia, aspecto visível, tem em seu subsolo os valores institucionais que moldaram e disciplinaram os fazeres cotidianos. Quando se fala em militar a população tem sempre uma construção imaginária que reflete a memória cultural e histórica do militar no país. Pessoas acima de 40 anos talvez tenham em mente os resquícios da época do governo militar, os mais jovens e moradores do sul e sudeste pensam no papel do militar como membros do projeto de pacificação nos morros Cariocas e na presença do exército em momentos críticos da história. Já na região da Amazônia se a populaçãofor questionada irá associar o Exército aos médicos e dentistas que atendem à população ribeirinha e as ações de vigilância das fronteiras. Porém, o foco aqui é como a hierarquia produz sentido na vida dos militares.Não importa como ele é visto, importa como ele se vê e como produzem suas verdades com esses critérios determinados.

A TAR busca certa diplomacia, ou seja, a pesquisa precisa ser interessante para ambas as partes, para os atores e pesquisadores. Dessa maneira é necessário formular questões que mobilizem as pessoas, isso gera uma pesquisa com resultados menos autoritários, produz um saber que vai além do meramente técnico, uma construção coletiva (Arendt, 2010).

Quando se opta por uma proposta autoritária de ciência exclui-se realidades importantes e muitas vezes não se consegue criar um conhecimento que seja aplicável. É preciso pensar que o que foi feito abre campo para o que não foi feito.

Foi produzida uma tradução dessa realidade para que ela se tornasse um pouco mais compreensível e fazendo conexões com os aspectos da vida dessas pessoas. Sabe-se que toda tradução não é totalmente fiel ao original, ela cria algo novo. Ao contrário da psicologia experimental que busca enxergar a emissão de respostas, na TAR busca uma participação dos atores para perceber a rede.

 

Considerações finais

Foi proposta uma descrição um tanto minimalista da hierarquia na vida do militar e da sua família, abrindo mão de explicar o que isso significa e sem buscar generalizações. Fez-se aqui uma reflexão sobre uma temática central na vida desse público, algo que para muitas pessoas inseridas em outras realidades não produz significado algum, mas para esses indivíduos é estruturante e definidor das suas relações pessoais e profissionais.

Por se tratar de um estudo inicial, não se pode afirmar que o texto produzido conseguiu abarcar todas as possibilidades de articulação da rede de atores envolvidos, mas houve, sim, uma tentativa de aproximação dos atores e da rede mediada pelo valor institucional hierarquia.

Procurou-se refletir sobre o que faz desse corpo militar um corpo tão obediente, quais condições existenciais eles, dentro daquele contexto permitem emergir para assim experimentarem essa realidade de uma interferência dos valores institucionais na vida pessoal.

No decorrer dessa proposta o pesquisador se deixou afetar por essas questões e se deparou com algo que não foi dito, mas que permeia, que paira: as emoções e cognições dos militares frente a tantas exigências da carreira. Eles gostam do que fazem, estão totalmente implicados nas tarefas e operações que realizam, eles escolheram essa profissão, mas até que ponto essa escolha é atravessada pelo social. Permeada de elementos que não são somente internos. Essas emoções e cognições que pairam não são tão idiossincráticas, elas operam nas instâncias sociais, históricas e antropológicas.

Para o militar, ser militar é mais que receber um salário por uma atividade desenvolvida, é vestir uma farda e ser respeitado por isso, é ter um papel social, institucional, é ter uma responsabilidade constitucional, é ser o defensor do país. É eternizar o papel de "super herói"( Bruno, 2010). Talvez no Brasil o militar não seja visto dessa forma pela população. Em países como EUA o militar é símbolo de virtude e proteção (Lutz, 2001). Mas no presente estudo o que nos importa é como o militar se percebe erastreando os caminhos traçados encontramos as pistas de que ele se vê como alguém que abdica de parte de sua vida e da sua subjetividade para pertencer a uma instituição que lhe confere uma identidade louvável.

Essa reflexão abre portas para pensar o cotidiano e os fazeres diários dos militares, seus ritos, símbolos, crenças que se articulam em rede formais e informais, possibilitando pensar a construção da subjetividade de militares e suas famílias a partir da convivência com esses elementos. Como que a interação com os artefatos materiais e simbólicosproduz uma nova realidade, modificando o conhecimento e produzindo história a partir dessa vivência.

Como não se pretende responder todos os questionamentos e a TAR nos propõe abrir questões que possam servir para novas investigações pensa-se ser possível dar continuidade investigando questões mais profundas sobre hierarquia. Na bibliografia pesquisada, foi verificada uma série de lacunas. Como eles se tornam corpos militares? Que cultura é essa que transforma, molda e estrutura a vida de jovens que escolhem servir em tempo integral a Pátria?

Compreender essas questões permitiria adentrar um universo pouco explorado, por esse ângulo, e refletir que tipo de prática pode tornar as pessoas mais comprometidas com os objetivos institucionais. Não com a intençãode generalizar, mas de analisar como determinadas ações produzem desestabilizações, transformações e novas acomodações que muitas vezes se cristalizam e tornam-se estabilizadas para os indivíduos daquele contexto.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido: 27/02/2014
Última revisão: 23/09/2015
Aceite final: 07/10/2015

 

 

Sobre os autores:
Werusca Marques Virote de Sousa Pinto - Doutoranda em Psicologia Social pelo programa de Pós-graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. E-mail: weruscavirote@hotmail.com
Regina Glória Nunes Andrade - Professora Titular do programa de Pós-graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ

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