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Revista Psicologia e Saúde

versão On-line ISSN 2177-093X

Rev. Psicol. Saúde vol.7 no.2 Campo Grande dez. 2015

 

ARTIGOS

 

Antecedentes judaicos da ética da alteridade em Emmanuel Lèvinas

 

An essay on the background of jewish ethics of alterity in Emmanuel Lévinas

 

Antecedentes judaicos de a ética de la alteridad em Emmanuel Lèvinas

 

 

Márcio Luís Costa Wercy; Rodrigues da Costa Júnior

Universidade Católica Dom Bosco

 

 


RESUMO

Este trabalho bibliográfico objetiva apresentar as influências dos antecedentes judaicos na obra de Emmanuel Lèvinas. Na origem do judaísmo está a experiência da intersubjetividade com ênfase na alteridade e não na subjetividade. É a experiência de uma transcendência e "trans-ascendência" a que não se pode escapar e que, por outro lado, não se pode abarcar, objetivar. A ética levinasiana ultrapassa a fenomenologia. O rosto é a própria fenomenalidade do fenômeno: é a sua condição. A manifestação como rosto dá-se de forma única, pois se manifesta sem se manifestar: apresenta-se como Enigma, intriga que por definição é uma intervenção que desarranja o fenômeno: escapa ao binômio ser ou não-ser. A ética é possível pela própria epifania do rosto.

Palavras-chave: Judaísmo; Intersubjetividade; Alteridade; Rosto; Ética.


ABSTRACT

This literature review aims at presenting the influences of history of Jewish ethics in the work of Emmanuel Levinas. At the origin of Judaism one finds the experience of intersubjective with emphasis on otherness, instead of subjectivity. It is the experience of a transcendence and "trans-ancestry" to which they can not escape and that one, on the other side, cannot deal with objectively. Levinasian ethics goes beyond phenomenology. The face is the phenomenality of the phenomenon itself: it is its very condition. The manifestation as face presents inself as unique, for it manifests itself without manifestation, in a way: it presents itself as an Enigma, an intrigue which by definition is an intervention that deranges the phenomenon: it dodges the binomial between being and non-being. Ethics is thus possible by the very epiphany of the face.

Key-words: Judaism; Intersubjectivity; Otherness; Face; Ethics.


RESUMEN

Este trabajo bibliográfico objetiva presentar las influencias de los antecedentes judaicos en la obra de Emmanuel Lévinas. En el origen del judaismo está la experiencia de la intersubjetividad con énfasis en la alteridad y no en la subjetividad. Es la experiencia de una transcendencia y "trans-ascendencia" de la cual no se puede escapar y que, por otro lado, no se puede abarcar, objetivar. La ética levinasiana ultrapasa la fenomenología. El rostro es la propia fenomenalidad del fenómeno: es su condición. La manifestación como rostro se da de forma única, pues se manifiesta sin manifestarse: se presenta como Enigma, intriga que por definición es una intervención que desordena el fenómeno: escapa al binomio ser o no-ser. La ética es posible por la propia epifanía del rostro.

Palabras-clave: Judaísmo; Intersubjetividad; Alteridad; Rostro; Ética.


 

 

Considerações iniciais: antecedentes judaicos

Assistimos de forma patente no milênio passado a intensificação do diálogo entre o judaísmo e o mundo cultural europeu, especialmente por causa da perseguição nazista, da criação do Estado de Israel, mas, fundamentalmente, porque a comunidade judaica ofereceu à cultura ocidental algumas das maiores figuras no campo das artes, letras e ciências. Não se trata de uma interlocução recentemente iniciada, mas o agravamento de um diálogo entre as duas culturas, pois a cultura europeia moderna ocidental, como cultura gerada a partir do cristianismo (Hegel, 1982) já está assinalada pelo encontro de duas raízes: a grega e a judaica, ainda que o próprio da cultura judaica tenha sido durante muito tempo filtrado pelo cristianismo, que a integrou à cultura europeia, depois de reinterpretá-la. Ademais, o próprio cristianismo é fortemente marcado pela cultura grega; fato que permitiu ao cristianismo se afastar da fonte religiosa judaica em que floresceu.

Marcadamente diferente é a forma de pensar grega e de pensar judaica, dado que os pontos de partida são distintos (Auerbach, 2000). A filosofia grega 'nasceu' da tentativa de compreensão da natureza, buscando explicá-la pela sua origem fundamental. Na busca da explicação tentava-se encontrar um ponto comum, uma origem do qual teria surgido toda diversidade, o antecedente arquetípico que explica toda realidade, segundo Brito (1992, p. 468); esta "arché é simultaneamente origem e substância de tudo." Já com a tríade Sócrates, Platão (2012) e Aristóteles (2001) assistimos a uma inversão de objeto de pensamento, pois a natureza que havia despertado a busca pela unidade na diversidade, dá lugar à antropologia, fazendo do homem o objeto de pensamento. Todavia, o homem buscado pelo pensamento grego não era o individual, o particular, mas o cidadão, o homem da polis.

Portanto, o que preocupava tais filósofos era o que tornava os homens iguais e não as diferenças. Buscava-se o que era universal e válido para todos os homens: a essência. Tal busca visava à organização da polis grega, de tal modo que a vida fosse possível. A diferença deveria ser condenada se não fosse possível abstraí-la e uniformizá-la. Assim, somente a dimensão da igualdade foi pensada: a dimensão cidadão.

Por nascer da originalidade de uma experiência, o pensamento judaico é de outra natureza. Um dos textos mais antigos da literatura judaica, a Thorá, põe na boca dos judeus esta afirmação: "Meu pai era filho de um arameu errante que desceu do Egito." (Thorá, Dt 26,5). A experiência original e primeira do povo judeu é o de haver sido interpelado e ouvido uma voz, "[...] o ter sido tratado por tu, o ter tido a experiência de que não estava sozinho, que havia alguém diferente que o chamava." (Brito, 1992, p. 469).

Na origem do judaísmo está a experiência da intersubjetividade com ênfase na alteridade e não na subjetividade. A grande distinção é a seguinte: a experiência de Abraão não foi a de ter visto algo, mas a de ter ouvido, escutado. Portanto, não foi a experiência do conhecer e do saber, mas a da obediência. Da escuta nasce a obediência e dela uma Aliança que implica necessária e absolutamente a existência de um outro, de uma intersubjetividade, de uma alteridade. "Na descrição bíblica do acto fundador deparamos com algo de estranho e que se apresenta com uma lógica abstrusa para o pensamento grego: a comunicação com algo que não se conhece." (Brito, 1992, p. 469).

Como bem se vê, a originalidade da experiência judaica está no chamado feito por um Outro que escapa ao alcance da percepção e da compreensão do chamado. É a experiência de uma transcendência a que não se pode escapar e que, por outro lado, não se pode abarcar, objetivar. Portanto, é uma experiência que supõe a diferença absoluta e radical, própria da experiência de transcendência, a relação de alteridade própria da convivência entre humanos.

Como indica o título desse artigo, a presente reflexão está essencialmente construída em torno à questão que interroga pelas influências do judaísmo sobre o pensamento de Emmanuel Lèvinas e os desdobramentos que delas decorrem. Lèvinas, segundo Costa (2010), nasceu e foi educado no seio do judaísmo da Europa oriental, caracterizado por seu vigor hermenêutico e dialético. O nível de estudos pelo qual passou Lèvinas era muito elevado, realizando com facilidade uma passagem do estudo à vida e da vida ao estudo, dada a força da dialética.

Salienta Costa (2010), que Lèvinas insiste em reforçar a ideia de que não se tratava de um judaísmo marcado por um caráter eminentemente místico, mas ilustrado, com uma disciplina educativa tal que despertava, nos que por ela passavam, um grande interesse pelos livros e pela reflexão. Toda a formação de Lévinas, na Lituânia, parece ter sido realizada sob a influência do Rabbi Hayyin de Voloshyn (1759-1821), grande mestre do judaísmo. Segundo Costa (2000), a obra de Voloshyn introduz o leitor em uma peculiar, rica e poderosa síntese entre as muitas tradições divergentes que, na segunda metade do século XVIII, conviviam no interior da espiritualidade e da cultura judia, a saber: uma articulação ilustrada de elementos talmúdicos e cabalísticos em torno à Torah. Rabbi Hayyin de Volozhyn.

Essa experiência primigênia de Lèvinas colocou-se em movimento nas especificas condições desastrosas dos anos 20 e 30, do século passado. Lèvinas, ainda que profundamente marcado pelo itinerário filosófico de Heidegger, começou a aprofundar sua identidade judaica e a procurar o sentido dos eventos que tinha vivenciado, no horizonte da ética, estabelecendo um diálogo entre filosofia e religião.

Esse diálogo entre judaísmo e filosofia, em Emmanuel Lèvinas, remete-nos à escuta de uma perene e antiga sabedoria. A alteridade é colocada como questão fundamental, possibilitando com que Lèvinas desenvolva seu pensamento, de um lado, numa linha filosófico-fenomenológica e, de outro, segundo uma perspectiva hermenêutico-talmúdica. Daqui a atualidade de ético-filosófica em contraponto com a cultura ocidental.

Assim, de forma pontual, trataremos da categoria do Rosto, como possibilidade de o sentido para além do ser e da ontologia que caracterizam a filosofia europeia, uma vez que nossa hipótese sustente que a tradição moderna ocidental foi presidida por um princípio oculto que é o princípio da indiferença ou, de outra forma, da não sensibilidade.

Bíblia e Filosofia

São os traumatismos e as incertezas sobre as quais nem sequer sabemos dar uma forma verbal os meios pelos quais se inicia o pensar. Às vezes uma separação, a morte ou a angustiosa consciência da monotonia da vida marcada pela temporalidade (Rosenzweig, 1982) ou, de maneiras mais comuns, como por meio da leitura de livros nos deparamos com obstáculos ou problemas que levam a perguntas. Não é que na leitura aprendemos palavras, senão que vivemos a realidade de que "a verdadeira vida está ausente, mas que precisamente já não é utópica." (Lèvinas, 2007, p. 11).

Os livros não são somente fontes de informação ou instrumentos que conduzem ao aprendizado. Mas sim uma maneira de ser do humano, marcando a referência ontológica do humano ao livro. Pois na letra, que se encontra acorrentada na raiz, o espírito é livre. "Com efeito, ler é manter-se acima do realismo - ou da política -, da preocupação por nós mesmos, sem desembocar, contudo, nas boas intenções das nossas belas almas, nem na idealidade normativa do que deve ser." (Lèvinas, 2007, p. 11). Para Lévinas, neste caso, o livro por excelência seria a Bíblia, o primeiro grande livro encontrado.

Entretanto, em Lévinas não se percebe uma tentativa ou mesmo uma preocupação em conciliar pensamento filosófico e pensamento bíblico, haja vista que seu sentimento religioso não advinha necessariamente de uma crença determinada, mas antes, pelo respeito aos livros, uma vez que a Bíblia e seus comentários tradicionais reportam-se à interpretação de sábios antigos. Porém não se trata exatamente, no caso de Lévinas, de um mitigado sentimento religioso.

Esse sentimento de que a Bíblia é o Livro dos Livros aonde se dizem as coisas primeiras, as que deviam ser ditas pra que a vida humana tivesse um sentido, e que se dizem sob uma forma que abre aos comentaristas as dimensões mesmas da profundidade, não era uma simples substituição da consciência do sagrado por um juízo literário.

Para Lévinas, a presença da transcendência provinha da presença dos personagens nos textos que rompiam com a ordinariedade, das imensas e misteriosas possibilidades exegéticas e a própria plenitude ética intrínseca aos textos. Pois, "[...] não era pouco entrever e sentir a hermenêutica, com todas as suas audácias, como vida religiosa e como liturgia." (Lèvinas, 2007, p. 13). A Bíblia está muito próxima dos textos filosóficos que, generosos, abrem espaços para as interpretações, ainda que os temas eminentemente bíblicos não reflitam tais textos. Certamente em filosofia um versículo bíblico não pode servir como prova da existência de Deus, porém "[...] o Deus do versículo, apesar de todas as metáforas antropomórficas do texto, pode permanecer a medida do Espírito para o filósofo." (Lèvinas, 2007, p. 13).

Assim, se na obra de Lévinas parece haver acordo entre a filosofia e a Bíblia, isto não se deve a uma tentativa de conciliação, mas, antes, no fato de que todo pensar filosófico se assenta em experiências pré-filosóficas, que para Lévinas permanecem como experiência fundadora. Tal experiência marcou a sua construção filosófica, pois seu pensar é uma maneira de dirigir-se a todos os homens.

Mas o que, para Lévinas (2007, p. 14), mede a profundidade religiosa da experiência fundadora da Bíblia é também a consciência aguda de que a História santa que conta não é simplesmente uma série de sucessos terminados, senão que tem uma relação imediata atual com o destino da dispersão judia no mundo.

Dessa maneira, toda dúvida intelectual, a principio tidas como inquestionáveis, em um ou outro ponto da Bíblia era incipiente em relação ao que de grave sempre ocorria na realidade histórica dos judeus. A tradição filosófica ocidental não perdia em nenhum momento seu direito à última palavra: "[...] com efeito, tudo deve ser expresso na sua línguagem." (Lèvinas, 2007, p. 14). Porém, talvez não seja na linguagem da filosofia ocidental o lugar do sentido primeiro dos seres, o lugar onde a plenitude de sentido se inicia. Se a filosofia se faz em grego seu sentido talvez seja judaico ou até mesmo, porque não, Indú, Árabe, Guarani, etc.

Rosto

Em toda obra levinasiana o rosto é a maneira típica de apresentação do Outro, uma manifestação excepcional que supera a concepção do Outro reduzido ao Mesmo. O rosto é a expressão do Absolutamente Outro e inaugura a perspectiva filosófica da anterioridade do ente em relação ao ser. A epifania do rosto é viva e "[...] sua vida consiste em desfazer a forma em que todo ente - ao entrar na imanência, isto é, ao se expor como tema - já se dissimula." (Lèvinas, 1993, p. 59). O rosto, para Lévinas, é por excelência o irrepresentável. É significação e significação sem contexto, pois o Outro é um personagem descontextualizado na apresentação de si por si mesmo. Pois, assim se dá a significação: estabelecida em relação a um contexto, pois o sentido de algo depende da outra coisa com a qual se relaciona.

Mas o Rosto é em si mesmo sentido. "Tu é tu. Neste sentido, pode dizer-se que o Rosto não é visto." (Lèvinas, 2007, p. 70). Por isso, não se pode falar de uma fenomenologia do Rosto em Lévinas, se fundamentalmente fenomenologia é a descrição daquilo que aparece e se mostra por si mesmo. A paralisia inevitável da manifestação é excedida pela epifania do rosto. "Enquanto o fenômeno já é, seja a que título for, imagem, manifestação cativa de sua forma plástica e muda, a epifania do rosto é viva." (Lèvinas, 1993, pp. 58-59). Sem ser reduzido a um fenômeno, o rosto significa através dele ultrapassando-o e o caráter enigmático do rosto é conferido por este algo não fenomênico. O rosto apresenta-se como a própria fenomenalidade do fenômeno que se apresenta como rosto: é sua condição de possibilidade. Na relação com o rosto há a relação com algo que é anterior ao próprio rosto, com algo que não se encontra nele próprio.

Rosto, pelo contrário, é aquilo que não pode ser convertido em conteúdo de pensamento, porque este não pode contê-lo. O Rosto é inapreensível e inobjetivável, conduz a um além. Dessa forma, a significação do Rosto faz sair do ser que se apresenta correlativa a um saber. A relação com o Rosto é de cunho ético e não ontológico. Por isso, não se trata de uma visão do Rosto, pois ver é conhecer e conhecer é possuir. Sua expressão é direta, sem defesa, uma vez que "a pele do rosto é a que permanece mais nua, mais despida. A mais nua, se bem que de uma nudez decente. A mais despida também: há no rosto uma pobreza essencial." (Lèvinas, 2007, p. 69-70). O que pode se apresentar de maneira tão direta e absolutamente exterior ao Eu é o que Lévinas chama de rosto.

Por visitação do rosto não compreendemos, portanto, o desvelamento de um mundo. No concreto do mundo, o rosto é abstrato ou nu. Ele é despido de sua própria imagem. É somente pela nudez do rosto que a nudez em si chega a ser possível no mundo. Fazer dessa pobreza conteúdo ou dar-lhe posses é a forma, por excelência, de mascará-la. O rosto, pela sua exposição e pela fraqueza, "[...] está exposto, ameaçado, como se nos convidasse a um acto de violência. Ao mesmo tempo, o rosto é o que nos proíbe matar." (Lèvinas, 2007, p. 70). Trata-se antes de uma impossibilidade moral e não real. Assim, o que não se pode matar é rosto, pois seu sentido consiste em dizer: não matarás.

Por conseguinte, rosto fala e "[...] a manifestação do rosto é o primeiro discurso. Falar é, antes de tudo, este modo de chegar por detrás de sua aparência, por detrás de sua forma, uma abertura na abertura." (Lèvinas, 1993, p. 59). O rosto fala e fala ordenando. Por isso, "há no aparecer do rosto um mandamento, como se um senhor me falasse. Apesar de tudo, ao mesmo tempo o rosto de outrem está nu; é o pobre por quem eu posso tudo e a quem tudo devo." (Lèvinas, 2007, p. 72). E eu sou aquele que busca de todas as maneiras responder a este chamado, ainda que tal encontro se efetue no modo da violência ou do desdém. Sua presença é em si, já uma intimação à resposta. À ordem que vem do rosto não faz possível a indiferença. Pois a forma como o rosto entra no mundo é precisamente a partir de um absoluto "[...] que é, aliás, o próprio nome da estranheza radical." (Lèvinas, 1993, p. 59).

Enquanto rosto o outro fala, emite uma palavra que é o discurso primeiro e que se manifesta como excesso, um além de qualquer ordenamento mundano. Tal palavra é uma exigência e, ao mesmo tempo, uma súplica, dada à nudez do rosto. Diante de tal pobreza que chama à responsabilidade, a supremacia da consciência é dissipada. O rosto escapa à consciência, pois no seu apresentar-se como alteridade absoluta, convida a renuncia do eu, abrindo um caminho ético.

Assim, o rosto propõe um sentido que é anterior ao Eu, independente de sua iniciativa e de seu poder. Um sentido que põe a consciência em um horizonte sem reflexão e, por isso, além dela mesma, aflorando o desejo do absolutamente Outro. "Na apresentação como rosto o exprimido assiste à expressão, exprime a sua própria expressão - permanece sempre mestre do sentido que comunica." (Lèvinas, 1997, p. 211).

Segundo Nunes (1991, p. 41), o "[...] rosto do Outro faz-me sentir o peso da minha unicidade; na sua presença eu sinto-me único e eleito, responsável sem limites pela sua miséria." Sou escolhido e enviado pelo Infinito como rosto. Minha unicidade e subjetividade são conferidas na medida em que obedeço a tal eleição. A minha liberdade e consciência são estabelecidos por esta obediência. O Infinito se positiva quando há uma conversão no modo da aproximação e, conseqüentemente, da responsabilidade pelo Outro, como resposta ao Infinito. "O Infinito manda-me a mim, pela minha própria voz e, neste sentido, Ele, que é o mais exterior, faz-se voz interior." (Nunes, 1991, p. 41). Por conseguinte, é preciso buscar o que se apresenta no rosto como algo que está para além dele, como algo que se manifesta como Vestígio.

Rosto e Sensibilidade

É pela visão que se processa incontestavelmente de modo privilegiado a objetivação. A visão ao abordar os seres exerce sobre eles um poder, dominaos. Mantendo-se no Mesmo acede à coisa dada que é oferecida. Porém, diferentemente de outras coisas dadas, o rosto está presente na recusa a ser conteúdo. Por isso, não poderá ser englobado, mesmificado e compreendido na abordagem. Outro não é simplesmente Outro em comparação com as espécies, Outro de uma alteridade relativa.

Não obstante, a relação entre Outro e eu, marcada pela expressão, não termina no modo do conceito ou do número.

Outrem permanece infinitamente transcendente, infinitamente estranho, mas o seu rosto, onde se dá a sua epifania e que apela para mim, rompe com o mundo que pode ser comum e cujas virtualidades se inscrevem na nossa natureza e que desenvolvemos também em nossa existência. (Lèvinas, 2000, p. 173).

A palavra é produzida pela diferença absoluta. Só a linguagem é capaz de instituir a diferença absoluta. A unidade do gênero é rompida pela linguagem que instaura uma relação entre termos, guardando suas diferenças. "A linguagem define-se talvez como o próprio poder de quebrar a continuidade do ser ou da história." (Lèvinas, 2000, p. 174).

De forma alguma é negatividade o fato de a presença de Outrem ser marcada pela impossibilidade de compreensão. Somente o discurso é capaz de pôr e manter a relação com o que continua existindo sempre no modo do transcendente. A compreensão é incapaz disso. A linguagem é o veículo que apresenta, mostra e aponta para o transcendente e só pode constituir-se entre termos separados, distanciados. Assim, "a um, o Outro pode sem dúvida apresentar-se como tema, mas a sua presença não se funde no seu estatuto de tema." (Lèvinas, 2000, p. 174).

Dessa maneira, a inviolabilidade ética do Outro é sinalizada pela estrutura formal da linguagem. A relação que o Outro estabelece e mantém com o Mesmo no discurso, não o inclui no Mesmo. Interrompe-se a dialética solipsista e englobante da consciência nesta relação, uma vez que o Outro continua absoluto nela. "A relação ética que está na base do discurso não é, de fato, uma variedade da consciência, cuja emancipação parte do Eu. Põe em questão o eu e essa impugnação do eu parte do outro." (Lèvinas, 2000, p. 174).

Assim é fixado o estatuto do infinito, por meio de um ser que resiste e recusa a ser inserido no Mesmo ao extravasar. Mas, o extravasamento do Outro não se efetua por causa de sua constituição física, senão pela posição com que entra na relação: pelo frente a frente. E "[...] a posição em frente de, a oposição por excelência, só se coloca com um pôr em causa moral. Esse movimento parte do Outro." (Lèvinas, 2000, p. 175).

Sobre a aparência de uma relação com o rosto é produzido aquilo de que tratávamos no capítulo anterior: a Idéia do Infinito. Única capaz de manter a exterioridade radical do Outro em relação ao Mesmo, "de maneira que se produz aqui uma articulação análoga ao argumento ontológico: neste caso, a exterioridade de um ser inscreve-se na sua essência. Só que assim não se articula um raciocínio, mas a epifania como rosto." (Lèvinas, 2000, p. 175). A idéia do Infinito, epifanizado como rosto, é a experiência por excelência.

Este ultrapassamento não reproduz, no entanto, a sede de dominação intrínseca ao Mesmo. Nela o Outro de forma alguma exclui ou limita a liberdade do Mesmo. Pelo contrário, o Outro o chama à responsabilidade, justificando-a e implantando-a. A Relação com o Outro enquanto rosto cura da alergia, é desejo, ensinamento recebido e oposição pacífica do discurso.

Da Idéia de infinito cartesiano deve-se, pois, reter a sua positividade, "[...] a sua anterioridade relativamente a todo pensamento finito e a todo pensamento do finito, a sua exterioridade em relação ao finito." (Lèvinas, 2000, p. 176). A relação do pensamento com o que excede a sua capacidade é efetuada como Idéia do Infinito, onde o conteúdo a todo instante ultrapassa o próprio pensamento, sem ser colidido na sua apreensão.

Precisamente nesta dinâmica se efetua a situação denominada como acolhimento do rosto. "Tal relação com o rosto - com a Idéia de Infinito - se realiza e mantém-se sem violência na paz com essa alteridade absoluta. A resistência do Outro não me faz violência, não age negativamente, tem uma outra estrutura positiva: ética." (Lèvinas, 2000, p. 175). A anterioridade do Outro - realidade que marca toda relação - não me convida a agarrá-lo na sua resistência, mas a responder à sua revelação, à sua expressão.

Rosto e Ética

Fica evidente que a relação que se estabelece com o rosto é de uma natureza distinta, pois o meu poder não pode possuí-lo, haja vista que há nele uma recusa. Na sua manifestação o sensível dado já à apreensão, altera-se ao expressar-se como resistência à captação. Mas, só por meio da abertura de uma dimensão totalmente nova pode dar-se tal transmutação. Doravante, esta resistência à captação introduzida pela expressão do rosto, se verifica como um desafio à fraqueza dos meus poderes. Pois, "o rosto, ainda coisa entre as coisas, atravessa a forma que, entretanto, o delimita. O que quer dizer concretamente: o rosto fala-me e convida-me a uma relação sem paralelo com um poder que me excede [...] quer seja conhecimento." (Lèvinas, 2000, p. 176).

É na aparência sensível da epifania do rosto que se abre esta nova dimensão. Porém, esta dimensão profunda que se descortina na sensibilidade, confere uma mudança no modo de ser do poder: o poder pode matar, uma vez que a dimensão de profundidade resiste à captação. "O assassino visa ainda um dado sensível e, entretanto, encontra-se perante um dado cujo ser não poderá suspender-se por uma apropriação." (Lèvinas, 2000, p. 177). De modo algum este dado pode ser neutralizável, porque diferentemente dos objetos, nenhum modo de destruição de coisa e, tampouco, a extinção dos seres vivos visam o rosto, que não é do mundo.

Paradoxalmente, há uma maneira de o assassino poder sobre o que escapa ao seu poder, porque num primeiro momento o rosto exprimi-se e fala no sensível. Todavia, nesta epifania já é denunciado o não poder de poder, pois o rosto rompe e ultrapassa o sensível. A única matéria possível à negação absoluta é oferecida na epifania do rosto expressa como alteridade. "Só posso querer matar um ente absolutamente independente, aquele que ultrapassa infinitamente os meus poderes e que desse modo não se opõe a isso, mas paralisa o próprio poder de poder." (Lèvinas, 2000, p. 177). Só posso querer matar a Outro, pois é o único cuja resistência torna impotente o meu poder de poder.

Ainda que insignificante na totalidade da contextura do mundo, Outro é o único que tem o poder de opor à luta e à força que o acomete pela sua reação imprevisível. É capaz de opor-me não com uma força de resistência maior, mas como transcendência de ser frente ao todo, "[... ] como o infinito da transcendência." (Lèvinas, 2000, p. 178). O rosto é o lugar da resistência do Infinito; mais que lugar é a própria resistência do infinito, mais potente do que o poder de aniquilar do assassino, uma vez que é a expressão original, é a primeira palavra: "[...] não cometerás assassínio." (Lèvinas, 2000, p. 178). A infinita resistência do Infinito é capaz de estagnar o poder do assassino. Tal resistência que nega toda transposição ou captação, fulge "[...] no rosto de outrem, na nudez da abertura absoluta do transcendente." (Lèvinas, 2000, p. 178).

A resistência do irresistente que se manifesta, que se expressa na relação com o absolutamente Outro é, então, a resistência ética. Ética é a epifania do rosto, onde a transcendência e a expressão configuram o fundamento da luta onde o rosto se expressa como ameaça. O rosto, como resistência ética, é a apresentação como Infinito e Infinito é a apresentação como rosto, capaz de "[...] paralisar os meus poderes e se levantar dura e absolutamente do fundo dos olhos, sem defesa na sua nudez e na sua miséria." (Lèvinas, 2000, p. 178).

A partir da compreensão de sua miséria e da sua fome é instaurada a proximidade do Outro. A manifestação do rosto é em si mesmo expressão - não informação de um mundo escondido e interior -, um apresentar-se de si mesmo. Tal apresentação de si é já uma convocação, um apelo e "[...] uma solicitação que me envolve a partir da sua miséria e da sua altura." (Lèvinas, 2000, p. 178), uma vez que o assistir de tal apresentação não se configura numa neutralidade de uma imagem.

Falar-me é transpor a todo momento o que há de necessariamente plástico na manifestação. Manifestarse como rosto é impor-se para além da forma, manifestada e puramente fenomenal, é apresentar-se de uma maneira irredutível à manifestação, como a própria retidão do frente a frente, sem mediação de nenhuma imagem na sua nudez, ou seja, na sua miséria e na sua fome. No desejo, confundem-se os movimentos que vão para a altura e a humanidade de outrem.

Como argumentam Costa e Costa Júnior (2010), o desejo metafísico do outro apresenta-se contraposto à necessidade, por se tratar de uma aspiração pura, que se mantém depois e, não obstante, a satisfação. Ele se encontra acima da necessidade e não apresenta nenhuma consolação ao fim da privação pela satisfação. A necessidade descreve um movimento circular que acaba por retornar sempre a si, uma vez que ela se abre sobre um mundo que a satisfaz. A necessidade "[...] é o próprio retorno, a ansiedade do eu por si, egoísmo, forma original de identificação, assimilação do mundo, em vista da coincidência consigo, em vista da felicidade". (Lèvinas, 1993, p. 55).

Dessa maneira o desejo metafísico se constitui como expressão antropológica decisiva para expressar a relação com o outro. Ele indica a abertura, sem cortinas e limites, à exterioridade e à separação radical, entre o eu e o outro: "[...] o Desejo do Outro, que nós vivemos na mais banal experiência social, é o movimento fundamental, o elã puro, a orientação absoluta, o sentido". (Lèvinas, 1993, p. 57). Não se trata, então, na obra levinasiana, de um ser marcado pela indigência, incompleto ou decaído da sua antiga grandeza (Lèvinas, 2000). A medida sempre desmedida pelo desejo insatisfeito é rosto.

Há, portanto, a impossibilidade de surdez que advém da expressão do rosto do Outro que apela para mim da sua fome e nudez, que de modo algum tira a minha liberdade, antes convoca-a ao suscitar a minha bondade evidenciada como responsabilidade. No discurso que o rosto abre na sua epifania não me deixa esconder pelo silêncio; haja vista que "[...] perante a fome dos homens, a responsabilidade só se mede objetivamente. É irrecusável." (Lèvinas, 2000, p. 179). Por conseguinte, o plano ético é anterior ao ontológico, pois a relação com um ente que se expressa, fala e discursa preexiste à relação que marca o conhecimento e a compreensão do ser em geral.

Rosto e razão

Não há negação do Mesmo pelo rosto - lugar de apresentação do absolutamente Outro - e, tampouco, violência na loquacidade contida na sua expressão. Não é uma expressão que destrói. Antes, põe-se na mesma medida daquele que a acolhe, permanecendo terrestre. "Essa apresentação é a não violência por excelência, porque em vez de ferir a minha liberdade, chama-a à responsabilidade e implanta-a." (Lèvinas, 2000, p. 181). A epifania do rosto ao apresentar-se como não-violência, não reduz simetricamente à relação com o Mesmo: conserva tal pluralidade. No entanto, a expressão do Outro pode representar um escândalo para a razão fechada na sua identidade de Mesmo e segura no exercício inescrupuloso onde toda diferença, toda relação assimétrica põe-na em questão.

Por não admitir uma parte na sua totalidade, a identidade perfeita, "[...] pode perder a sua tranqüilidade se o Outro, em vez de chocar com ela, lhe fala, ou seja, se mostra na expressão, no rosto e vem de cima." (Lèvinas, 2000, p. 182). Diante da expressão do Outro na nudez do seu rosto, que convoca à responsabilidade, a liberdade inibi-se, não pelo choque advindo da resistência, mas por sentir-se injusta e culpada. A responsabilidade pode ser acedida na sua culpabilidade.

Esta impossibilidade de poder que marca a contingência, isto é, a irracionalidade da liberdade, não vem de fora, do Outro, da sua Altura, mas dela. É o egoísmo incapaz de justificar-se a si mesmo que constitui tal contingência e não a relação limitadora do Outro. "A ligação com Outrem como ligação com a sua transcendência, a ligação com Outrem que põe em questão a brutal espontaneidade do seu destino imanente, introduz em mim o que não estava em mim." (Lèvinas, 2000, p. 182).

Ou seja, instaura-se em mim a Razão quando a minha liberdade é posta em questão pela ação do Outro, pondo fim à contingência e à violência. É o ensinamento mostrado pelo mestre que torna capaz a passagem de um espírito a outro, "[...] dado que a Idéia do Infinito, longe de violar o espírito, condiciona a própria não-violência, ou seja, implanta a ética." (Lèvinas, 2000, p. 182). Consequentemente o Outro é para a Razão ensinamento, não escândalo. Um ser que recebe a idéia do infinito - que recebe, pois não a pode ter de si - é um ser ensinado de uma maneira não maiêutica, um ser cujo existir consiste na incessante recepção do ensino, no incessante transbordamento de si (ou tempo).

Encontra-se referido o ensinamento racional este ensino, uma vez que ser ensinado ou ter a Idéia do Infinito é pensar. Tal estrutura de conhecimento é nova por fugir da estrutura formal do pensamento lógico, que supõe uma definição. A epifania do rosto funda e supõe toda evidência, assim como o racionalismo cartesiano está fundado na veracidade divina.

O Enigma do Rosto

Anteriormente já apontamos para a irrepresentabilidade do rosto. O rosto é próximo e, ao mesmo tempo, distante, estabelecendo a impossibilidade de sua representação ou conceituação dada esta certa ambigüidade. Sem poder ser representado, escapa aos enquadramentos tradicionais da filosofia, porque não sendo nem imagem e, tampouco, representação não é conhecimento. Também não é um fenômeno: não se mostra e não se revela por si mesmo à luz. Entretanto, Lévinas usa a terminologia epifania quando se refere ao rosto. E epifania é manifestação. Porém, a manifestação do rosto dá-se de forma única: manifesta-se sem se manifestar. A este original modo de aparecer não se revelando totalmente, Lévinas chama Enigma. Uma questão então se impõe:

[...] como pensar ou imaginar a realidade que não é fenômeno? Como pode a nossa mente, tão habituada à 'clareza' dos conceitos gregos, à 'coerência da lógica', pensar uma realidade que sequer se manifesta no modo indiscreto do fenômeno? (Nunes, 1991, p. 6).

Para a filosofia, torna-se inimaginável e difícil pensar sem a realidade em si no modo da sua manifestação, depois da fenomenologia hussserliana. Mas, para tal trabalho, Lévinas não prescinde totalmente do método fenomenológico. Para ele, "[...] a fenomenologia é um método filosófico, mas a fenomenologia - compreensão através da iluminação - não constitui o acontecimento último do próprio ser." (Lèvinas, 2000, p. 15). Enquanto parte da própria realidade, Lévinas se instrumentaliza do método fenomenológico; mas o fato de haver escolhido o rosto como centro da sua filosofia impede que ela seja reduzida à fenomenologia. "É precisamente seguindo as indicações básicas do método fenomenológico, que consiste em ir às coisas mesmas, que Lévinas descobriu que o rosto não se dá no modo do fenômeno indiscreto." (Nunes, 1991, p. 7).

Por não ser uma realidade puramente empírica, o rosto escapa à percepção do fenomenólogo, inviabilizando uma relação intencional. "Enquanto que o conhecimento repousa no fenômeno, a significação é fruto de um Enigma que ultrapassa todo e qualquer conhecimento." (Nunes, 1991, p. 7). Enigma é aquilo que precisa ser decifrado, dado a ambigüidade de sentido. Por isso, Lévinas em seus textos se utiliza da metáfora, tentando, primeiramente, mostrar que é no rosto que o enigma se desvela e, depois, propõe o seu deciframento.

Não obstante este esforço, o Enigma poderia quase resumir-se na seguinte frase: intervenção de um sentido que desarranja o fenômeno. O Enigma aqui em questão é um modo de significar que não é nem o desvelar-se nem o velar-se. O Enigma é Enigma enquanto escapa ao binômio ser ou não-ser. O enigma, então, não se apresenta à minha consciência e, tampouco, na minha consciência, pois a lógica que o 'explica' não é a da fenomenologia que aponta para uma relação intencional entre sujeito e objeto. Também não é explicado pela lógica do conhecimento humano.

Enigma: abertura ao transcendente

Sendo por definição o Enigma a intervenção de um sentido que desarranja o fenômeno é certo afirmar que a relação face a face não é da ordem dos fenômenos. O rosto sempre envia uma mensagem que nos excede, "[...] como que reenviando ao transcendente" (Nunes, 1991, p. 8), estabelecendo, assim, uma nova ordem. Todavia, não é nas estruturas da consciência e do ser que esta nova ordem deve ser buscada, porque a correlação entre consciência e ser não é suficiente para conter o surpreendente que se encerra no rosto do Outro. Esta surpresa que se encerra no rosto é de fato a intriga do Infinito no finito.

Evidencia-se, desse modo, que a relação com o Infinito não se dá no modo da relação intencional, haja vista que trata-se antes de uma proximidade que não se revela totalmente ao significar, trata-se de uma nova ordem que vai além do ser.

A relação com o rosto do Outro, enquanto relação com o Infinito, é essencialmente proximidade e significação. Porém, esta proximidade não se deve entender ou confundir com a proximidade enquanto presença física, é uma relação diacrônica que nunca pode ser sincronizável. (Nunes, 1991, p. 8).

Tal relação seria dissimulada se a proximidade como significação pudesse ser representada: a ambigüidade seria reduzida a um simples sinal, a um jogo de fisionomia. Rosto é mais que fisionomia, pois é mais do que aparece.

O excesso de significação que se manifesta no Rosto, marcando a sua originalidade e, ao mesmo tempo, sua ambigüidade, aponta para uma outra realidade que está além dele. Esta realidade é apenas indicada, apontada, mas jamais explicada pelas categorias transcendentais.

É pela sua ambivalência que resta sempre Enigma, que o Transcendente ou o Infinito não se deixa reunir nem enquadrar em nenhum presente. Ele é passado que nunca foi presente. Apenas deixa o Vestígio de sua incarrnação e da sua desmedida. (Nunes, 1991, p. 9).

Para significar no modo do Vestígio, o rosto vem de um além. O rosto está no vazio ausente de um passado absoluto. Esta presença-ausência que marca o rosto faz com que Lévinas classifique o rosto como abstrato; mas abstração que se dá diversamente daquela apontada pelo empirismo. Tal abstração do rosto é fundamentalmente Visitação.

Para tal dinâmica, necessitar-se-ia de um estranho, chegado, certamente, mas que já partiu antes mesmo de ter chegado, absoluto na sua manifestação, uma vez que a simultaneidade seria insuficiente para causar o rompimento na ordem. O seu assombro é num mais além para onde se retira depois da Visitação.

Visitação e Vestígio de uma Anterioridade

Eminentemente o Enigma se manifesta como Enigma na Visitação. Na Visitação a ordem dos fenômenos recebe um sentido novo, por meio de sua intervenção. Intervenção de um sentido novo apenas indicado, pois já se retirou ao ser percebido. Tal acontecimento é metaforicamente demonstrado por Lévinas: "[...] tocamos a campainha e não vejo ninguém à porta: teremos tocado?" (Lèvinas, 1997, p. 253).

Ora, é evidente que tal metáfora revela o incômodo que alguém sente ao ser tirado do seu bem-estar, do mundo da vida devidamente estabelecido e normatizado. Observa ainda Lèvins que "um desconhecido tocou à minha porta e interrompeu o meu trabalho. Fiz-lhe perder algumas ilusões. Mas ele pôs-me a par dos seus assuntos e dificuldades, perturbando a minha boa consciência." (Lèvinas, 1997, pp. 250-251). A extraordinária duplicidade do Enigma se expressa na simultânea imagem da porta aberta e fechada.

Nesta metáfora, a boa consciência, é posta em questão e incomodada pela Visitação do Outro, provocando transtorno e desarranjo ao seu mundo da vida. O encontro dessas duas ordens - da Visitação e da consciência - conduz ao desarranjo dado o impacto. "Mas a nova ordem deve levar a uma integração, ou seja, ao acatamento da ordem nova, fazendo-a tomar parte do meu universo, deixando que o universo que eu me tinha criado seja perfurado por esta ordem nova." (Nunes, 1991, p. 12).

Mas tal rompimento foi possível por causa da Visitação, pela surpresa do rosto, de um estranho longínquo que está atrás da porta. É certo que a desordem se expressa como movimento; mas movimento que não propõe um conflito entre duas ordens marcadas pela estabilidade, mas perturba a ordem - esta é a missão própria da Visitação - no modo da não seriedade. Ela entra "[...] de uma forma subtil que se retira de imediato, a menos que a conservemos. Insinua-se; retira-se antes de entrar. Só permanece para aquele que lhe quiser dar seguimento." (Lèvinas, 1997, p. 253).

Mas realizada tal interferência, o Outro se retira para o lugar de onde veio como que se sentindo indesejado. Ao ser percebido se retira; já não está lá "[...] a menos que estiquemos a orelha na direcção desses passos que se afastam, é própria transcendência, a proximidade do outro enquanto Outro." (Lèvinas, 1997, p. 259). O vestígio só pode ser deixado por um ser que transcenda o mundo, pois ele é presença de algo que nunca esteve lá, daquilo que é sempre e radicalmente passado. Tal proximidade é enigmática porque nunca chega a ser presença total. É de um passado irrecuperável que chega o significado do Enigma.

Esta forma de significar que não consiste nem em revelar-se, nem em ocultar-se, absolutamente estranha ao jogo de escondidas do conhecimento, essa forma de sair das alternativas do ser - escutamo-la sob o pronome de terceira pessoa, sob a palavra Ele. O Enigma vem-nos da "Eleidade". (Lèvinas, 1997, p. 260).

Lévinas designa como Ele - pronome de terceira pessoa - este lugar, este além de onde vem o rosto. O Ele não está presente no mundo, mas ausente, sendo, por isso, impossível fazer dele conteúdo ao tentar incluir a transcendência na imanência. Esta forma de significar da Eleidade não consiste nem em revelar e, tampouco, no desvelar. Mas, como modo de sair das alternativas do ser, escapando à Ontologia. É no rosto que o enigma se desenha, pois é nele que se dá uma relação com algo que é sempre passado. No apresentar-se de si por si mesmo, realiza-se, igualmente, sua retirada, sua volta pra o além de onde veio.

Não é na ordem intra-mundana que o Vestígio se inscreve; onde uma coisa revela e aponta necessariamente para outra, numa dinâmica de causa e efeito, ou se revela em função de si mesma. "A causa e o efeito, mesmo separados pelo tempo, pertencem ao mesmo mundo." (Lèvinas, 1997, p. 244). O Vestígio é de outra ordem por apresentar algo original; "[...] a sua originalidade está no fato de ele exercer a sua função no mundo fenomênico, uma função que vai para além deste mundo onde ele significa." (Nunes, 1991, pp. 14-15). É por isso que a sua função não se reduz ao sinal.

É no rosto que o Vestígio é vazio de uma ausência que não pode ser recuperada antes mesmo de significar como signo. Ele vem sobre-impressão. "O seu significado original esboça-se na impressão deixada por aquele que quis apagar os seus vestígios, com o desejo de cometer um crime perfeito." (Lèvinas, 1997, p. 242). A ordem foi perturbada de maneira que não há recuperação, dado que ocorreu uma passagem de forma absoluta. "Ser na acepção de deixar um vestígio é passar, partir, absolver-se." (Lèvinas, 1997, p. 242). Ainda aqui o Vestígio tem a função de sinal, mesmo que haja a necessidade da instrumentalização de outros meios, como as impressões deixadas, a memória, para chegar à causa.

Porém, por meio da memória não se pode reportar à origem do Vestígio do rosto, pois a dimensão do seu passado é irrecuperável para ela. E a irrecuperabilidade do passado pela memória abre-se já na percepção da proximidade como Outro. Não porque a memória não possa fazer voltar um acontecimento passado, mas pelo próprio modo de ser do Vestígio: retira-se ao ser indicado.

A nudez é por excelência o vestígio original, desolação primordial da expressão do rosto. Para Lévinas, "[...] o desvelamento do rosto é nudez-não-forma-abandono de si; envelhecimento, morrer; mais nu do que a nudez: pobreza, pele com rugas: vestígio de si mesmo." (Lèvinas, 1974, p. 141). É no modo da nudez, do envelhecimento e da pele com rugas que se realiza o desvelamento do rosto. E o ordenamento lógico dos fenômenos é interrompido pela nudez acanhada do rosto.

Nesta apresentação o rosto está nu e derrotado. Por meio desse derrotismo, dessa timidez que não ousa ousar, por meio desta solicitação que não tem coragem de solicitar e que é a não audácia, por meio dessa solicitação de mendigo. Se tal significação não ocorrer é sinal que, antes de significar, a mensagem já foi desfeita. E é este não ousar, não ousar violentar à ordem, que não acolhe a sua mensagem, que revela a timidez e a nudez do rosto. No rosto, o Vestígio é o vazio de uma ausência.

A passagem do Infinito

Da significação do rosto é-me enviado um "mandamento augusto, mas sem constrangimento nem dominação, que me deixa fora de toda correlação com sua fonte; não se estabelece nenhuma estrutura com qualquer correlato, até o ponto precisamente de que o dizer que me vem é minha própria palavra." (Lèvinas, 1974, p. 235).

Dizer, no entanto, que o dizer que me vem é a minha própria palavra significa que "na proximidade, na significação, em minha doação de sentido, já fala o Infinito mediante o testemunho que dou dele em minha sinceridade, em meu dizer sem dito, em meu dizer pré-originário que se diz na boca daquele que recebe o testemunho." (Lèvinas, 1974, p. 237). Este maneira de linguistificar a realidade não é uma traição ao logos grego, mas uma nova forma de anunciar o excesso do vestígio, do além e da transcendência. Este tipo de linguagem kerigmática apresenta-se como um 'eis-me' testemunhal e obediente ao mandamento que vem do Infinito.

É neste sentido que o Infinito é glorificado e recebe obediência pela minha própria boca. A interioridade deixa de ser um lugar desconhecido do eu, para se transformar no lugar da passagem do absolutamente Outro ao próprio eu. O sujeito é indispensável na glorificação do Infinito. É no 'eis-me' que explode a desproporção entre passividade e idéia do Infinito; a maneira pela qual o finito é ultrapassado pelo Infinito. A intriga pela qual aparece o Infinito, Lévinas chama de religiosa: "Intriga que se refere àquele que se desprende absolutamente, ao Absoluto [...] Se trata de uma intriga que estou tentando chamar de religiosa, que não se expressa em termos de certeza ou de incertezas e não repousa sobre nenhuma teologia positiva." (Lèvinas, 1974, p. 230).

Finalmente, para Lèvinas, a missão do profeta é a de testemunhar a glória do Infinito estando ao seu serviço. "O eis-me aqui me significa em nome de Deus ao serviço dos homens que me olham, sem ter nada com o que identificar-me a não ser o som da minha voz, ou a figura do meu gesto - o próprio Dizer." (Lèvinas, 1974, p. 233). Tal sentimento de eleição significado já no testemunho e, conseqüentemente, o sentir enviado é o início daquilo que Lévinas entende por ética.

 

Considerações Finais

Em toda obra levinasiana, torna-se claro que é como rosto que se manifesta excepcionalmente o absolutamente Outro. Rosto é o que pode se apresentar de modo direto e absolutamente exterior ao Eu. O rosto fala e sua manifestação é já discurso. Falar, no caso excepcional do rosto, é o modo privilegiado de chegar por trás de sua forma e da sua aparência, porque é uma abertura na abertura.

Por isso, a ética levinasiana ultrapassa, assim se pode dizer, a fenomenologia, haja vista que em Lévinas não se pode falar de uma fenomenologia do rosto, pois a fenomenologia é a descrição daquilo que se mostra por si mesmo. O rosto não pode ser reduzido a um fenômeno; ele apenas significa através dele, ultrapassando-o. O rosto é a própria fenomenalidade do fenômeno: é a sua condição.

Como rosto, a apresentação do absolutamente Outro abre, dessa maneira, um caminho ético, uma vez escapa à consciência por apresentar-se como alteridade absoluta. A manifestação como rosto dá-se de forma única, pois se manifesta sem se manifestar: apresenta-se como Enigma, que por definição é uma intervenção que desarranja o fenômeno: escapa ao binômio ser ou não-ser. E o Enigma remete a um passado irrecuperável que significa no modo do Vestígio, que é a presença de algo que nunca esteve lá, daquilo que é sempre.

Por fim, vale ressaltar que é pela própria epifania do rosto que a ética levinasiana é possível. Pois, diante dessa apresentação torna-se impossível fazer-se surdo, uma vez que como rosto o Outro apela para mim de sua nudez, convocando a minha liberdade e suscitando a minha bondade, através da responsabilidade. Nesse sentido, abre-se a possibilidade de diálogo da ética levinasiana e a incorporação de suas categorias com e nas diversas áreas de produção do conhecimento humano, especialmente com aquelas que tratam do tema da promoção da saúde, como a Psicologia da Saúde.

A possibilidade que se abre quando se opera com a produção de saúde, reside justamente em transformar a afetação passiva em uma afetação ativa, ou seja, em um campo aberto à provocação da alteridade. A promoção de saúde deixaria de operar com o Mesmo, com o igual, para operar com a diferença, com aquilo que resiste a um determinismo, mas que apenas é possível pela provocação do Outro, pela alteridade.

 

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Recebido: 01/06/2015
Última revisão: 20/10/2015
Aceite final: 10/11/2015

 

 

Sobre os autores:
Dr. Márcio Luis Costa - Professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Psicologia da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Doutor em Filosofia pela Universidad Nacional Autónoma de Mexico (UNAM).
Me. Wercy Rodrigues Costa Júnior - Doutorando em Psicologia no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Psicologia da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Mestre em Educação pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB).

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