SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.7 issue2The conceptions of what is the psychosocial care for mental health professionals of a CAPSQuality of work life and sustainable environmental actions author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista Psicologia e Saúde

On-line version ISSN 2177-093X

Rev. Psicol. Saúde vol.7 no.2 Campo Grande Dec. 2015

 

RELATO DE PESQUISA

 

O papel dos caminhoneiros na perpetração da exploração sexual de crianças e adolescentes

 

The role of truck drivers in the perpetration of children and adolescent sexual exploitation

 

El papel de los camioneros en la explotación sexual de niños, niñas y adolescentes

 

 

Elder Cerqueira-SantosI; Diogo Araujo de SousaII

IUniversidade Federal de Sergipe
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul

Endereço 1

 

 


RESUMO

Este estudo objetivou investigar relações entre variáveis associadas ao contexto de vida e profissão de motoristas de caminhão e o envolvimento com a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes (ESCA). Foram entrevistados 337 caminhoneiros, todos do sexo masculino, com idades entre 21 e 71 anos (M = 42,03; DP = 10,82), em diferentes regiões brasileiras. Sessenta e três participantes (18,7%) relataram o próprio envolvimento com a ESCA, constituindo o grupo de perpetradores, o qual foi comparado ao grupo de não-perpetradores (n = 274; 81,3%). O envolvimento com a ESCA se mostrou associado a fatores circunstanciais, como o consumo de drogas e o envolvimento com o comércio sexual nas folgas, e a atitudes específicas, como o machismo e a concordância com a ESCA. No entanto, despontaram mais semelhanças do que diferenças entre perpetradores e não-perpetradores. Implicações para o planejamento de ações preventivas e de combate à ESCA são discutidas.

Palavras-chaves: Caminhoneiros; Exploração sexual; Crianças; Adolescentes; Comércio sexual.


ABSTRACT

This study aimed to investigate relationships between variables associated with the life and profession context of truck drivers and their involvement with Commercial Sexual Exploitation of Children (CSEC). Three hundred thirty-seven truck drivers were interviewed, all male, aged between 21 and 71 years (M = 42.03; SD = 10.82). Sixty-three participants (18.7%) reported their own involvement with CSEC, constituting the perpetrators group, which was compared to the group of non-perpetrators (n = 274; 81.3%). Involvement with CSECwas associated to circumstantial factors such as drug use, involvement with sexual commerce during break times, as well as tospecific attitudes, e.g., male chauvinism and agreement with CSEC. However, more similarities than differences between perpetrators and non-perpetrators were found. Implications for planning on prevention and confrontation actions are discussed.

Keywords: Truck drivers; Sexual exploitation; Children; Adolescents; Sexual commerce.


RESUMEN

Este estudio tuvo como objetivo investigar las relaciones entre las variables asociadas con el contexto de vida y profesión de los conductores de camiones y su relación con la Explotación Sexual de Niños, Niñas y Adolescentes (ESCA). Fueron entrevistados 337 conductores de camiones, todos hombres, con edades comprendidas entre 21 y 71 años (M = 42.03, SD = 10.82) en diferentes regiones. Sesenta y tres sujetos (18.7%) reportaron tener alguna relación con ESCA, y con los cuales fue constituido el llamado grupo agresor, que se comparó con el grupo de no-argresores (n = 274; 81,3%). El involucramiento en la ESCA se asoció a factores coyunturales, como el uso de drogas y la participación en el negocio de comercio sexual fuera del trabajo, y también a actitudes específicas tales como el machismo y la aprobación de la ESCA. Sin embargo, surgieron más similitudes que diferencias entre los agresores y los no-agresores. Finalmente, son discutidas las implicaciones para el desarrollo de acciones de prevención y combate de la ESCA.

Palabras-clave: Conductores de camión; Explotación sexual; Niños; Adolescentes; Comercio sexual.


 

 

A Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes (ESCA) pode ser definida como uma relação de mercantilização e abuso do corpo de crianças e adolescentes por exploradores sexuais, que se aproveitam da sua relação de poder desigual com as vítimas em termos econômicos, cognitivos e psicossociais (Barnitz, 2005; Faleiros, 2004). Esse tipo de violência contra crianças e adolescentes recebeu maior atenção de estudos científicos na Brasil a partir dos anos 80, e principalmente após a implementação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) em 1993 sobre a prostituição infantojuvenil. Esta CPI tornou explícita a discussão da temática, provocando mudanças conceituais, como o uso do termo “exploração sexual” ao invés do termo “prostituição”.

A ESCA é um fenômeno complexo, multideterminado, que ocorre em todo o mundo e mobiliza ações governamentais e não-governamentais, de diversos setores da sociedade, para o seu enfrentamento (Carvalho & Frota, 2005; Libório, 2005). Ela é considerada uma das piores formas de trabalho infantil pela Organização Internacional do Trabalho (OIT, 1999) e uma das mais graves formas de violação dos direitos e da dignidade das crianças pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF, 1995).

Os estudos dessa temática buscam compreender quais aspectos são mais relevantes na origem e na manutenção da situação de exploração. Libório (2005) destaca algumas variáveis, como: a violência sofrida dentro de casa, nas suas diferentes expressões; o rompimento (temporário ou duradouro) dos vínculos familiares significativos em uma idade precoce; e a consequente saída de seus lares para as ruas. Para entender esses contextos socio-econômicos e culturais, é importante conhecer o significado do termo vulnerabilidade. A vulnerabilidade relaciona o indivíduo e a sua suscetibilidade frente às adversidades da vida, havendo variações na sensibilidade da criança referente aos riscos enfrentados, dependendo da inter-relação com fatores do ambiente (Libório, 2005). A vulnerabilidade e o risco relacionam-se na medida em que a primeira só ocorre quando o segundo acontece, tornando a criança ou adolescente vulnerável às adversidades da vida, implicando a perturbação da noção de identidade e outros distúrbios de personalidade e adaptação social (Tardivo & Pinto Júnior, 2010).

Quanto às formas de proteção contra riscos de diversas naturezas, Yunes e Szymanski (2001), baseadas nos estudos sobre resiliência, citam três delas: 1) atributos pessoais; 2) laços afetivos na família e 3) presença de redes de apoio. Cada um desses fatores de proteção se mostra importante na situação de ESCA, pois a criança ou adolescente precisa de bom suporte familiar e social, além de uma estrutura psíquica capaz de subsidiar atitudes que não a envolvam ou mantenham-na envolvida com a exploração sexual.

Estimativas apontam que mais de dois milhões de crianças são vítimas das diferentes formas de exploração sexual no mundo. Essas formas incluem principalmente: redes de prostituição, pornografia, tráfico sexual e turismo sexual (Barnitz, 2005; Chase & Statham, 2005; Hipólito, 2007; Santos & Ippolito, 2009). Uma das formas mais comuns da ESCA é o envolvimento de crianças e adolescentes com redes de prostituição. Ela pode ser definida como as situações em que se oferecem os serviços sexuais de crianças ou adolescentes em troca de alguma forma de recompensa, seja esta um pagamento financeiro ou outra recompensa que o valha (Chase & Statham, 2005; Hippolito, 2007; Wills & Levy, 2002). Estimativas apontam que, ao redor do mundo, a cada ano, um milhão de crianças são forçadas a participar de redes de prostituição (Wills & Levy, 2002). No Brasil, dados do serviço nacional do Disque Direitos Humanos (Disque-100) indicaram que no período de 2005 a 2010 foram registrados 25.175 denúncias relacionadas à exploração sexual de crianças e adolescentes (Brasil, 2011). Já no primeiro trimestre do ano de 2015, estimativas do Disque-100 contabilizaram 4.480 denúncias sobre violência sexual, das quais 85% estariam associadas a casos de abuso sexual e 15% a ESCA (Campos, 2015).

Para compreender a multicausalidade e complexidade da ESCA, é preciso ter em mente que o fenômeno engloba, em geral, três categorias de atores sociais: vítimas, "clientes" e exploradores sexuais (Barnitz, 2005). A primeira categoria, as vítimas da exploração (crianças e adolescentes) são foco recorrente de estudos na área. No entanto, há uma escassez na literatura acerca dos outros atores envolvidos: os exploradores sexuais e aliciadores; e os "clientes" da ESCA que perpetuam o fenômeno (Morais, Cerqueira-Santos, Moura, Vaz & Koller, 2007). Ações preventivas eficientes precisam levar em consideração todos os atores envolvidos no processo e, para isso, é preciso avançar o conhecimento acerca das multifacetas da ESCA (Wills & Levy, 2002).

Segundo Davidson e Taylor (1996), algumas profissões específicas estariam mais fortemente relacionadas à possibilidade de envolvimento com a ESCA enquanto "clientela" desses serviços criminosos, principalmente sob a égide da prostituição. Seriam elas: trabalhadores migrantes, pescadores e motoristas de caminhão. Nacionalmente, estudos conduzidos por Morais et al. (2007) e Cerqueira-Santos, Morais, Moura e Koller (2008) focalizaram este último grupo - caminhoneiros - como um potencial grupo de risco para o envolvimento com a ESCA.

Morais et al. (2007) ressaltam que essa população deve ser mais pesquisada a fim de obter informações sobre os perpetradores da ESCA, especialmente a respeito do que eles pensam sobre o fenômeno e que fatores estariam associados ao seu envolvimento com ele. Essa mudança de foco no estudo da ESCA, saindo da perspectiva da vítima para considerar a do perpetrador, auxilia os pesquisadores a compreender melhor porque a exploração sexual se mantém e os motivos pelos quais homens se envolvem com ela.

A partir das necessidades apontadas por Morais et al. (2007) e Cerqueira-Santos et al. (2008), o presente estudo teve como objetivo analisar associações entre diferentes variáveis associadas ao contexto de vida e profissão dos motoristas de caminhão e o seu envolvimento ou não com a exploração sexual de crianças e adolescentes. Pretendeu-se investigar, em uma amostra de caminhoneiros brasileiros, relações entre o envolvimento com a ESCA e questões como o uso de drogas (álcool, cigarro e outras drogas psicoativas); comportamentos sexuais nas estradas; percepções quanto aos direitos da criança e do adolescente; e condições de trabalho e de saúde nas estradas.

 

Método

Participantes

Participaram do estudo 337 motoristas de caminhão brasileiros, todos do sexo masculino, com idades entre 21 e 71 anos, vivendo fora de casa, engajados no transporte rodoviário. A Tabela 1 apresenta a caracterização sociodemográfica da amostra.

Os caminhoneiros foram classificados em dois grupos: "perpetradores" e "não-perpetradores" da exploração sexual de crianças e adolescentes. Essa classificação foi feita a partir da autodeclaração do participante acerca do seu envolvimento ou não em situação de comércio sexual com algum(a) jovem com menos de 18 anos. Duzentos e setenta e quatro participantes (81,3%) compuseram o grupo dos não-perpetradores da ESCA e os 63 restantes (18,7%) compuseram o grupo dos perpetradores.

Instrumentos

O instrumento utilizado se baseou no questionário desenvolvido e descrito por Morais et al. (2007) e Cerqueira-Santos et al. (2008) para estudos sobre exploração sexual de crianças e adolescentes com caminhoneiros. O instrumento é composto por 64 questões investigando diversos aspectos da vida e da profissão dos caminhoneiros. Para os objetivos desse estudo, foram utilizadas as variáveis descritas a seguir.

Quanto à caracterização sociodemográfica, os dados coletados foram: idade; estado civil; número de filhos(as) e netos(as); escolaridade; e renda mensal familiar. Quanto à caracterização da profissão, foram investigados: o tempo de profissão; o esquema de trabalho (empregado de empresa, agregado ou fretista); a média de dias por mês que costuma passar na estrada; a média de horas que costuma esperar por carga; e as atividades que costuma realizar no tempo de folga. Todas essas perguntas foram realizadas como questões fechadas, oferecendo as opções de resposta para o participante, excetuando as perguntas de renda e média de dias/tempo. As opções para a questão de atividades que costumam realizar foram baseadas em estudos anteriores com caminhoneiros (Cerqueira-Santos et al., 2008; Morais et al., 2007), abrindo espaço para uma opção aberta ao final no caso de o motorista querer adicionar alguma atividade não listada.

Em relação ao uso de drogas, foi investigada a média de dias em que o participante consumiu álcool, cigarro e estimulantes no último mês. Quanto ao comportamento sexual, foi investigado: o que faz quando sente desejo sexual e está na estrada (busca prostituta, masturba-se, busca alguma mulher na comunidade onde se encontra, ou faz outra coisa para esperar voltar para casa); a média de parceiras sexuais no ano; e o envolvimento com o comércio sexual (se o participante saía ou não com prostitutas durante suas viagens). Essas perguntas eram fechadas, com as opções aqui apresentadas entre parênteses, a exceção das perguntas de média de dias/parceiras.

Foram investigados ainda o nível de religiosidade e os valores machistas dos participantes por meio de escalas também utilizados por Morais et al. (2007) e Cerqueira-Santos et al. (2008) em estudos com motoristas de caminhão. A escala de religiosidade, composta por sete itens, foi desenvolvida e validada por Cerqueira-Santos, Koller, e Wilcox (2008). A escala de machismo era composta por sete itens com afirmativas do tipo "As mulheres devem obedecer aos homens" às quais o participante respondia "discordo", "não concordo nem discordo", ou "concordo". Por fim, as questões diretamente relacionadas à exploração sexual de crianças e adolescentes investigaram a concordância com a prática da ESCA (i.e., "Meninas com menos de 18 anos podem se prostituir se quiserem") e o envolvimento direto do participante com o fenômeno (i.e., "Alguma prostituta com quem saí tinha menos de 18 anos") por meio de questões fechadas com resposta "sim" ou "não".

O instrumento foi utilizado como roteiro de entrevista e as questões foram formuladas com terminologia adaptada à linguagem popular, para melhor entendimento dos participantes. Por exemplo, referiu-se à exploração sexual de crianças e adolescentes como "prostituição infantil", o juizado da infância e da adolescência como "juizado de menores", o Disque-100 como "disque-denúncia" e assim por diante.

Procedimentos

O procedimento para a coleta de dados se baseou na proposta da Inserção Ecológica, descrita por Cecconello e Koller (2003) para uso no estudo do desenvolvimento-no-contexto. Os cuidados metodológicos relativos ao procedimento da Inserção Ecológica se deram desde o treinamento e a preparação teórica da equipe de pesquisa - sete entrevistadores, estudantes de graduação em Psicologia, todos do sexo masculino; duas assistentes de pesquisa, estudantes de graduação em Psicologia; e o coordenador do estudo, doutor em Psicologia.

A coleta ocorreu em seis Estados (Pará, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe), objetivando abranger diferentes contextos e rotas frequentadas pelos participantes. O processo de amostragem se deu por método de conveniência, contando com a participação dos motoristas que assentiram em responder à entrevista em seus momentos de folga. Ao final de uma entrevista, o entrevistado podia indicar novos participantes ou o entrevistador se despedia e depois de completar o questionário procurava por um novo participante. O número total de participantes para compor a amostra foi definido a partir do critério de saturação dos dados, discutido nas reuniões periódicas entre a equipe de pesquisa. Quando as respostas aos questionários atingiram padrões que não apresentavam grandes modificações nas novas idas a campo, deu-se por encerradas as coletas.

Durante as coletas, a equipe se inseria em pontos de parada dos caminhoneiros, como postos de gasolina nas rodovias, portos e estacionamentos. Os caminhoneiros eram entrevistados individualmente por um membro da equipe, que conduzia a entrevista e registrava as respostas do participante. Eles eram abordados quando estavam conversando com colegas, caminhando sozinhos ou em pequenos grupos, normalmente próximos aos seus caminhões ou em bares e restaurantes na região dos postos. As entrevistas duraram em média 50 minutos (variando de 40 minutos a duas horas). Evitou-se incomodá-los nos seus horários de refeição e sono, ou quando estavam envolvidos em alguma atividade como limpeza e conserto do caminhão. A abordagem tinha início com a apresentação dos objetivos do estudo e o recrutamento para a participação. Caso o motorista desse o seu consentimento em participar, dava-se início à entrevista. Ao término do questionário, o pesquisador preenchia a folha de registros anexa.

Os aspectos éticos que garantem a integridade dos participantes deste estudo foram assegurados durante a realização da pesquisa. Além da assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido, desde o contato inicial com o participante, foi garantida a compreensão das características da pesquisa e dos seus direitos como respondente, inclusive o caráter voluntário da participação e o sigilo das informações. Todos os procedimentos do estudo foram aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Sergipe.

Análise de dados

Os dados foram submetidos a tratamento quantitativo. Inicialmente, foram criados índices e grupos com bases nas respostas às escalas e a algumas questões específicas. O índice de religiosidade foi criado a partir da média das respostas a uma escala Likert (indo de 1 - discordo totalmente a 5 - concordo totalmente) de cinco pontos. O índice de machismo foi criado a partir das respostas a questões em uma escala Likert de três pontos (indo de 1 - discordo a 3 - concordo). Nesses dois índices, escores mais altos indicaram maior presença do aspecto investigado.

A concordância com a ESCA foi avaliada a partir da resposta à questão "Meninas com menos de 18 anos podem se prostituir se quiserem" em uma escala Likert de três pontos (indo de 1 - discordo a 3 -concordo). Foram formados dois grupos: aqueles que discordam dessa prática (respondentes que marcaram 1 na escala) e os que não discordam (respondentes que marcaram 2 ou 3). O envolvimento direto com a ESCA foi avaliado a partir da autodeclaração de envolvimento sexual em situação de comércio com alguma jovem menor de 18 anos. Os participantes que responderam já ter se envolvido alguma vez em suas vidas formaram o grupo dos perpetradores da ESCA, enquanto que os participantes que disseram nunca tê-lo feito formaram o grupo dos não-perpetradores.

Em seguida, foram realizadas análises estatísticas descritivas (levantamento de frequências, médias e desvios-padrão) e testes inferenciais (qui-quadrado e teste t de Student) entre perpetradores e não-perpetradores, a fim de selecionar as mais prováveis variáveis preditoras para uso na etapa seguinte das análises - uma regressão logística tendo como desfecho o envolvimento com a ESCA. Para investigar o possível efeito de mediação do envolvimento com o comércio sexual no envolvimento com a ESCA, sugerido por outro estudo com população de trabalhadores de construção civil (Cerqueira-Santos, DeSousa, Melo & Rocha, 2012), foi seguido o procedimento de três passos recomendado pela literatura (Baron & Kenny, 1986; Judd & Kenny, 1981). Três equações de regressão foram construídas. A primeira equação testou o efeito das variáveis preditoras sobre a variável mediadora (envolvimento com o comércio sexual). A segunda equação testou o efeito das variáveis preditoras sobre a variável de desfecho (envolvimento com a ESCA). Por fim, a terceira equação testou o efeito da variável mediadora sobre a variável de desfecho com as variáveis preditoras incluídas no modelo. O tipo de mediação (nula, parcial ou total) foi investigado a partir das significâncias dos pesos de regressão das variáveis preditoras e mediadora na terceira equação; e a significância da mediação foi avaliada a partir do teste de Sobel.

Resultados

A Tabela 2 analisa comparativamente os grupos de perpetradores e não-perpetradores da exploração sexual de crianças e adolescentes. Os dados descrevem os dois grupos quanto à caracterização sociodemográfica, condições da profissão, uso de drogas, comportamento sexual, religiosidade, machismo, envolvimento com o comércio sexual e concordância com a ESCA.

Quanto à caracterização sociodemográfica, não foram encontradas diferenças significativas entre os grupos para nenhuma das variáveis investigadas (idade, escolaridade, estado civil, renda familiar, ter filhos e ter netos). O tempo de profissão, o tempo que passam na estrada e o tempo de espera por carga também não se diferenciaram entre os grupos. Por outro lado, as atividades que relataram fazer nos momentos de folga se diferenciaram significativamente, tendo os motoristas do grupo de perpetradores relatado mais frequentemente beber, fazer sexo e sair para conhecer a cidade.

O uso de drogas também foi significativamente distinto entre os grupos, tendo os perpetradores relatado utilizar álcool, cigarro e estimulantes no último mês com maior frequência do que os não-perpetradores. O índice de religiosidade não se diferenciou entre os grupos, mas o índice de machismo foi significativamente maior para os perpetradores.

Quanto ao que fazem quando sentem desejo sexual e estão na estrada, os grupos se diferenciaram significativamente da seguinte forma: perpetradores relataram com maior frequência buscar prostitutas, praticar masturbação e sair com alguém da comunidade; enquanto que os não-perpetradores relataram mais frequentemente fazer outra coisa para esquecer e esperar voltar para casa. Em concordância com esses dados, também o número médio de parceiras no ano foi significativamente maior para o grupo dos perpetradores. Comparado ao grupo dos não-perpetradores, o grupo de perpetradores ainda demonstrou maior concordância com a exploração sexual de crianças e adolescentes, e maior envolvimento com o comércio sexual.

A Tabela 3 traz uma síntese dos resultados pertinentes às análises de regressão realizadas tendo como desfecho o envolvimento com a ESCA e testando a mediação do envolvimento com o comércio sexual. Foram utilizadas como variáveis preditoras: (1) o índice de machismo, (2) o uso de drogas (álcool e estimulantes), (3) o sexo como atividade nos momentos de folga, e (4) o número médio de parceiras no ano. Embora, além dessas, outras variáveis também tenham demonstrado significância estatística na comparação entre perpetradores e não-perpetradores, optou-se por selecionar um menor número de preditores, dentre os que despontaram mais significativamente, primando pela parcimônia do modelo e evitando que houvesse preditores duplicados, como aconteceria, por exemplo, entre os itens "envolvimento com comércio sexual" e "buscar prostituta quando sente desejo sexual na estrada" ou entre "beber nos momentos de folga" e "uso de álcool no último mês".

Como mostra a primeira equação de regressão, o uso de álcool, o fato de elencar o sexo como atividade para os momentos de folga e o maior número de parceiras sexuais no ano estão associados significativamente ao envolvimento com o comércio sexual, isto é, ao hábito de sair com prostitutas (mediador). O nível de machismo e o uso de estimulantes não alcançaram associações significativas com o mediador. A segunda equação demonstra que todas as variáveis preditoras do modelo estão associadas significativamente ao envolvimento com a ESCA, quando não levado em consideração o efeito do mediador. Por fim, a terceira equação demonstra que, quando realizada a regressão com as variáveis preditoras e a variável mediadora em conjunto como independentes, o uso de álcool, o sexo como atividade nas folgas e o número de parceiras no ano perde a significância de suas associações com o desfecho (envolvimento com a ESCA).

Esses resultados demonstram que o índice de machismo e o uso de estimulantes estão associados diretamente ao envolvimento com a ESCA. A razão de odds no modelo final para o índice de machismo foi de 3,73, e para o uso de estimulantes foi de 2,88, sugerindo que ter valores mais machistas e utilizar estimulantes na estrada aumentam perto de quatro vezes e três vezes, respectivamente, a probabilidade de o caminhoneiro se envolver com a exploração sexual de crianças e adolescentes. Já as demais variáveis no modelo (uso de álcool, relatar fazer sexo nos momentos de folga e maior número de parceiras sexuais no ano) parecem afetar o envolvimento com a ESCA indiretamente, por meio do processo de mediação do envolvimento com o comércio sexual. Isto é, essas variáveis aumentam a probabilidade de o motorista se envolver com prostitutas, o que, por sua vez, aumenta perto de quatro vezes (razão de odds de 3,82) a probabilidade do envolvimento com a ESCA. A mediação do envolvimento com o comércio sexual é total para as três variáveis supracitadas, visto que elas não apresentam significância na última equação. O teste de Sobel indicou que o efeito de mediação foi significativo para as três variáveis: uso de álcool (z = 2,79; p = 0,005); fazer sexo nas folgas (z = 4,50; p < 0,001); e maior número de parceiras no ano (z = 3,91; p <0,001). O modelo final explicou 33,4% da variância total do envolvimento com a exploração sexual de crianças e adolescentes.

Discussão

A partir dos resultados apresentados, percebe-se que despontaram mais semelhanças do que diferenças entre perpetradores e não-perpetradores da ESCA para a amostra de caminhoneiros participantes do estudo. Não foram encontradas diferenças significativas entre os dois grupos principalmente no tocante à caracterização sociodemográfica, mas também em relação a outras variáveis relacionadas à profissão, como o tempo de serviço, o tempo que passam na estrada e o tempo de espera por carga. Esses dados corroboram o argumento de Cerqueira-Santos et al. (2008) de que o perfil dos caminhoneiros que se envolvem com a exploração sexual nas estradas é muito semelhante ao daqueles que não se envolvem.

Pode-se argumentar que o envolvimento com a ESCA entre essa população estaria condicionado mais fortemente a fatores circunstanciais, como as atividades realizadas pelos profissionais em seus momentos de folga. São exemplos desses fatores circunstanciais: o consumo de drogas lícitas ou ilícitas; a procura por parceiras para relações sexuais, e outras variáveis que apresentaram diferenças significativas os grupos de perpetradores e não-perpetradores tanto neste estudo como em estudos passados com caminhoneiros (Cerqueira-Santos et al., 2008; Morais et al, 2007).

Outras variáveis relacionadas ao comportamento sexual do caminhoneiro na estrada se mostraram associadas ao envolvimento desses profissionais com a exploração sexual. Foram elas: a média de parceiras sexuais por ano; as alternativas a que recorrem para lidar com o desejo sexual na estrada, e o envolvimento com o comércio sexual. Algumas atitudes dos motoristas também demonstraram associação com o envolvimento com a ESCA. Especificamente, o machismo e a concordância com a exploração sexual (referida como "prostituição infantil" na entrevista) foram atitudes que apresentaram diferenças significativas entre os grupos de perpetradores e não-perpetradores. Como argumentam Morais et al.(2007), concepções machistas parecem atribuir maior valor aos homens que se envolvem em jogos de sedução e relações sexuais com mulheres mais jovens, que se enquadrariam nos padrões de beleza socialmente construídos. Por conta dessa lógica, as atitudes machistas tornariam os caminhoneiros mais suscetíveis ao envolvimento com a ESCA.

Os resultados deste estudo ressaltam a necessidade de se evitar a patologização do cliente da ESCA, assim como leituras maniqueístas destes ("bom/ mau; mocinho/vilão"). É preciso haver uma mudança de pressupostos na forma de encarar o cliente da ESCA. Ao invés de se insistir em rótulos, tais como de "pervertidos e pedófilos" e de se limitar a compreensão do fenômeno a uma questão de moral individual, necessário se faz o desvelamento das realidades econômicas, sociais, culturais e políticas envolvidas tanto na formação da demanda quanto da oferta do comércio sexual. Como assevera Libório (2005), a complexidade do fenômeno da ESCA não aceita análises simplistas ou reducionistas que procurem compreendê-la por meio de relações lineares de causa-efeito.

Nesse sentido, uma tentativa de chamar a atenção para a complexidade de variáveis envolvidas na ESCA parece abarcada neste estudo pelas análises de mediação e regressão conduzidas. Elas fornecem algumas pistas para o entendimento dessa questão no contexto específico das estradas do Brasil e a partir do estudo dos perpetradores envolvidos. Os resultados apontam para a importância do envolvimento com o comércio sexual enquanto preditor e mediador do envolvimento com a exploração sexual de crianças e adolescentes no contexto das estradas e rodovias brasileiras. Comportamentos relacionados ao uso de drogas, promiscuidade e crenças machistas se mostraram associados ao envolvimento com a prática da ESCA, em alguns casos diretamente e em outros enquanto facilitadores do envolvimento com o comércio sexual, o qual por sua vez levaria ao contato com a ESCA. Esses achados seguem uma lógica condizente com a literatura da área, corroborando hipóteses já colocadas no Brasil (Cerqueira-Santos et al., 2008; Morais et al, 2007).

 

Considerações Finais

Considera-se que o papel de cliente é fundamental para a manutenção do comércio sexual com crianças e adolescentes e a conseqüente sustentação das redes de aliciadores, traficantes e agenciadores/cafetões da ESCA. Assim como, pela presença das próprias meninas nas ruas das cidades, bordéis, "boates", portos e em postos de gasolina pelo país afora. Neste sentido, o esclarecimento desse fenômeno mostrase como uma ferramenta útil para a conscientização dos clientes e outros potenciais clientes do comércio sexual com crianças e adolescentes. Parece consenso nacional e internacionalmente que, para que as estratégias de prevenção e combate à ESCA se mostrem efetivas, elas devem considerar maiores esforços para o entendimento dos fatores que levam adultos a se envolveram como clientes desse bárbaro crime contra crianças e adolescentes.

 

Referências

Barnitz, L. (2005). Effectively responding to the commercial sexual exploitation of children: a comprehensive approach to prevention, protection, and reintegration services. Child Welfare, 80(5),597-610.         [ Links ]

Baron, R. M., & Kenny, D. A. (1986). The moderator-mediator variable distinction in social psychological research: conceptual, strategic, and statistical considerations. Journal of Personality and Social Psychology, 51,1173-1182.         [ Links ]

Brasil (2011, Maio 18). Levantamento aponta mapa com casos de exploração sexual contra crianças e jovens. Blog do Planalto da Presidência da República. Retirado de http://blog.planalto.gov.br/assunto/exploracao-sexual/        [ Links ]

Campos, A. C. (2015, Maio 18). Disque-100 recebe 21 mil denúncias de violações contra crianças no 1º trimestre. EBC Agência Brasil. Retirado de http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos        [ Links ]

Carvalho, Q. C. M., & Frota, M. A. (2005). Exploração sexual na infância e na adolescência: cotidiano e perspectivas. Revista da Rede de Enfermagem do Nordeste, 6(3),63-70.         [ Links ]

Cecconello, A. M., & Koller S. H. (2003). Inserção ecológica na comunidade: uma proposta metodológica para o estudo de famílias em situação de risco. Psicologia: Reflexão e Crítica, 16(3),515-524.         [ Links ]

Cerqueira-Santos, E., DeSousa, D. A., Melo Neto, O. C., & Rocha, A. C. (2012). Sexualidade do trabalhador da construção civil: percepções sobre a exploração sexual de crianças e adolescentes. Psicologia: Reflexão e Crítica, 25(3),578-587.         [ Links ]

Cerqueira-Santos, E., Koller, S. H., & Wilcox, B. (2008). Condom use, contraceptive methods, and religiosity among youths of low socioeconomic level. The Spanish Journal of Psychology, 11(1),94-102.         [ Links ]

Cerqueira-Santos, E., Morais, N. A., Moura, A. S., & Koller, S. H. (2008). Exploração sexual de crianças e adolescentes: uma análise comparativa entre caminhoneiros clientes e não-clientes do comércio sexual. Psicologia: Reflexão e Crítica, 21(3),446-454.         [ Links ]

Chase, E., & Statham, J. (2004). The commercial sexual exploitation of children and young people: an overview of key literature and data [relatório]. London: Thomas Coram Research Unit, Institute of Education, University of London.         [ Links ]

Chase, E., & Statham, J. (2005). Commercial and sexual exploitation of children and young people in the UK - a review. Child Abuse Review, 14,4-25.         [ Links ]

Davidson, J. C., & Taylor, J. S. (1996). Child prostitution and sex tourism - Venezuela [relatório]. World Congress against the Commercial Sexual Exploitation of Children.         [ Links ]

Estes, R. J., & Weiner N. A. (2001). The commercial sexual exploitation of children in the U. S., Canada and Mexico. Full Report of the U.S. National Study [relatório]. Philadelphia: University of Pennsylvania, School of Social Work.         [ Links ]

Estes, R. J. (2001). The sexual exploitation of children: A working guide to the empirical literature [report]. Philadelphia: University of Pennsylvania, School of Social Work.         [ Links ]

Faleiros, V. P. (2004). O fetiche da mercadoria na exploração sexual. In R. M. C. Libório & S. M. G. Souza (Eds.). A exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil: Reflexões teóricas, relatos de pesquisa e intervenções psicossociais (pp. 51-72). Goiânia: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Fundo das Nações Unidas para a Infância [UNICEF] (1995). Child rights - The ultimate abuse. In UNICEF. The progress of nations. Nova York: Autor.         [ Links ]

Gomes, R. M., Minayo, M. C. S., & Fontoura H. A. (1999). A prostituição infantil sob a ótica da sociedade e da saúde. Revista de Saúde Pública, 33(2),171-179.         [ Links ]

Hipolito, C. (2007) The commercial sexual exploitation of children [tese]. Arlington, Texas, Estados Unidos da América: University of Texas.

Judd, C. M., & Kenny, D. A. (1981). Process Analysis: A Model-Comparison Approach. San Diego: Harcourt Brace Jovanovich.         [ Links ]

Leal, M. L. P. (1999). A exploração sexual comercial de meninos, meninas e adolescentes na América Latina e Caribe: Relatório final, Brasil [relatório]. Brasília: CECRIA.         [ Links ]

Libório, R. M. C. (2004) Exploração sexual comercial infanto-juvenil: categorias explicativas e políticas de enfrentamento. In R. M. C. Libório & S. M. G. Souza (Eds.). A exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil: Reflexões teóricas, relatos de pesquisa e intervenções psicossociais (pp. 19-50). Goiânia: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Libório, R. M. C. (2005). Adolescentes em situação de prostituição: Uma análise sobre a exploração sexual comercial na sociedade contemporânea. Psicologia: Reflexão e Crítica, 18(3),413-420.         [ Links ]

Morais, N. A., Cerqueira-Santos, E., Moura, A., Vaz, M., & Koller S. H. (2007). Exploração sexual comercial de crianças e adolescentes: um estudo com caminhoneiros brasileiros. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 23(3),263-272.         [ Links ]

Organização Internacional do Trabalho [OIT] (1999). Convenção número 182: Convenção sobre a proibição das piores formas de trabalho infantil e ação imediata para sua eliminação. Genebra: Autor.         [ Links ]

Santos, B. R, & Ippolito, R. (2009). Guia de referência: Construindo uma cultura de prevenção à violência sexual. São Paulo: Childhood Brasil.         [ Links ]

Tardivo, L. S. P. C., & Pinto Júnior, A. A. (2010). IFVD: Inventário de frases no diagnóstico de violência doméstica contra crianças e adolescentes. São Paulo: Vetor.         [ Links ]

Willis, B. M., & Levy, B. S. (2002). Child prostitution: Global health burden, research needs, and interventions. The Lancet, 359(9315),1417-1422.         [ Links ]

Yunes, M. A. M., & Szymanski, H. (2001). Resiliência: Noção, conceitos afins e considerações críticas. In J. Tavares (Ed.). Resiliência e educação (pp.13-42). São Paulo: Cortez.         [ Links ]

 

 

Endereço 1:
Elder Cerqueira-Santos
Universidade Federal de Sergipe, Departamento de Psicologia
Av. Marechal Rondon, s/n, Cidade Universitária
São Cristovão, SE, 49100-000

Recebido: 21/08/2013
Última revisão: 25/05/2015
Aceite final: 09/06/2015
Apoio e financiamento - Childhood Brasil - World Chilhood Foundation (Childhood); e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

 

 

Sobre os autores
Elder Cerqueira-Santos - Pós-Doutor em Sexualidade Humana pela University of Toronto - Canadá. Doutor em Psicologia pela UFRGS/University of Nebraska - USA. Professor do PPG Psicologia Social da Universidade Federal de Sergipe. E-mail: eldercerqueira@yahoo.com.br
Diogo Araujo de Souza - Doutorando em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Creative Commons License