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Revista Psicologia e Saúde

On-line version ISSN 2177-093X

Rev. Psicol. Saúde vol.7 no.2 Campo Grande Dec. 2015

 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

 

Limites e alcances do trabalho de um psicólogo em um hospital geral

 

Limits and scopes of the work of a psychologist in a general hospital

 

Límites y alcances del trabajo de un psicólogo en un hospital público general

 

 

Juliana Peixoto Salgueiro NunesI; Sandra Aparecida Serra ZanettiII

IUniversidade de São Paulo
IIUniversidade Estadual de Londrina

 

 


RESUMO

O presente artigo busca refletir a respeito de limites e alcances do trabalho de um psicólogo em um hospital público geral. Baseando-se em autores como Guirado, Bleger, Lapassade e Guilhon Albuquerque, partimos do princípio de que a prática desse profissional em uma instituição pode ser pensada à luz de uma dinâmica própria, instaurada e construída dentro da mesma. O profissional de psicologia em um hospital pode ser convidado a ocupar o lugar de se responsabilizar por todo o tipo de "não-saber", e que as práticas institucionais, por meio da organização burocrática das relações, tendem a perpetuação do instituído, dificultando o trabalho do mesmo. Destacamos que os alcances da prática do psicólogo no hospital se relacionam com sua possibilidade de observar cuidadosamente a dinâmica institucional, construindo um diagnóstico sobre seu trabalho nessa realidade.

Palavras-chaves: Psicologia Institucional; Hospital; Psicanálise; Psicólogo Hospitalar.


ABSTRACT

This article intents to reflect on the limits and scopes of work of a psychologist in a hospital general public. Based on authors like Guirado, Bleger, Lapassade and Guilhon Albuquerque, we have assumed that the practice of a professional institution can be thought in the light of its own dynamic, established and built within it. The professional psychologist in a hospital may be asked to take the place of responsibility for all kinds of "not-knowing" and institutional practices, through the bureaucratic organization of the relations, tend to perpetuate the established, making it difficult the work of the same. We emphasize that the scope of practice of psychologists in the hospital are related their ability to observe carefully the institutional dynamics, building an assessment of his work in this reality.

Key-words: Institutional Psychology; Hospital; Psychoanalysis; Hospital Psychologist.


RESUMEN

En este artículo se pretende reflexionar sobre los límites y alcances del trabajo de un psicólogo en un hospital público general. Basado en autores como Guirado, Bleger, Lapassade y Guilhon Albuquerque, se supone que el trabajo del psicólogo en una institución puede ser considerado en función de su propia dinámica, establecida y construida en su propio interior. El psicólogo del hospital puede ser invitado para tomar el lugar de ser responsable de toda la clase de "no saber" y que las prácticas institucionales, a través de la organización burocrática de las relaciones, tienden a perpetuar lo establecido, lo que dificulta el trabajo del mismo. Enfatizamos que los alcances de la práctica de los psicólogos en el hospital se relacionan con su capacidad de observar cuidadosamente la dinámica institucional para construir un diagnóstico sobre su trabajo en esta realidad.

Palabras-clave: Psicología Institucional; Hospital; Psicoanálisis; Psicólogo del Hospital.


 

 

Introdução

O presente artigo visa a uma reflexão sobre o trabalho de um profissional psicólogo dentro de um hospital público geral. Mais especificamente, acerca dos limites e alcances que sua prática possibilita dentro de uma instituição que necessariamente remete todos à fragilidade humana, à doença, as dificuldades e à finitude da existência.

O trabalho de um psicólogo em um hospital tem sua especificidade que, em parte, está ligada às características desta instituição, e ao tipo de sofrimento que se propõe a tratar e que, colateralmente, provoca. Não se pode ficar internado pelo tempo que se quer, por exemplo. Não se pode escolher quando e por meio de quais cuidados será tratado; não se pode escolher a hora em se fará as refeições; quando e como será feita a higiene íntima e com quem se dividirá o quarto, quando esse não é individual. Enfim, a situação de internação hospitalar remete ao sentimento de impotência em muitos momentos. Entendemos que o sofrimento físico e o psíquico em um hospital se relacionam diretamente com o trabalho do psicólogo desta instituição, pois, diante desses sofrimentos, cabe perguntar: qual é o trabalho possível do profissional da psicologia?

Consideramos, contudo, que a prática de um profissional em uma instituição, em qualquer que seja, deve ser pensada à luz de uma dinâmica própria, singular, instaurada e construída dentro da mesma. Bleger (1984), um importante autor dentro do campo da psicologia institucional, afirma que uma instituição se caracteriza pelo conjunto de organismos de existência física concreta, que têm certo grau de permanência no espaço e no tempo, mas também pela vida humana e pelos fenômenos humanos que se dão em relação com a estrutura, funções e objetivos da instituição. Desta forma, o trabalho de um profissional institucional deve ser pensado em relação ao conjunto dentro do qual se encontra.

Por outro lado, Guirado (2004), apoiando-se em outros autores além de Bleger (1984), como Lapassade (1977) e GuilhonAlbuquerque (1978), compreende que para além do entendimento de conceber a instituição em sua totalidade e dinâmica psíquica, como Bleger (1984) propõe, necessitamos nos deter nas relações de poder, na tomada de consciência da dominação entre os grupos, na reprodução e legitimação do instituído, no reconhecimento da ordem estabelecida como natural e autêntica, no reconhecimento de algumas práticas e no desconhecimento de outras etc. Portanto, consideramos a proposta desta autora mais completa:

Tomamos a Psicologia (em geral percebida e efetivada como uma abordagem do indivíduo) e procuramos aproximá-la da Psicanálise, no sentido de fazer dela um trabalho no plano das representações e do inconsciente, no discurso; mas, fazemos isto para situá-la como forma de intervenção social. Por esta razão, temos que resgatar-lhe o caráter de conhecimento da relação (e não do indivíduo) - o que, pela Psicanálise, se justifica. Entretanto, destacamos o contexto em que se dará a prática psicológica: não mais a relação "bipessoal" cliente-terapeuta, mas os conjuntos das relações de uma instituição concreta, com objetos e objetivos próprios, com características particulares (por exemplo, o atendimento à população em situação de abandono e carência, o atendimento à saúde ou à educação), com uma determinada distribuição de tempo, espaço e relação de poder, que existem independentemente da ação do psicólogo (Guirado, 2004, p. 105).

Guirado (2004) aponta que a postura de um psicólogo dentro de uma instituição pode se diferenciar em duas, basicamente: a primeira se utiliza de recursos teóricos e técnicos aprendidos no curso de Psicologia, buscando uma intervenção centrada no indivíduo que está na instituição; e na segunda, por outro lado, coloca-se em destaque a necessidade de se pensar as subjetividades constituídas das relações institucionais. Esta última concepção, da qual ela se apropria e aprofunda, de acordo com a autora:

Privilegia a posição do sujeito na ordem institucional e não as características ou capacidades individuais e pessoais. Assim, os conflitos, os distúrbios, os desvios e inadequações são consideradas, sobretudo, como expressão desta articulação de posições, e não como sintoma de um indivíduo que está na instituição" (Guirado, 2004, p. 111).

Portanto, Guirado (2004), em sua proposta de intervenção, destaca que os indivíduos não devem ser tomados como coisas em si, mas por meio do universo de suas representações e afetos, além de sua inserção no discurso institucional. Tomando por base a Psicanálise, privilegia os afetos, as fantasias, as representações inconscientes e não simplesmente os acontecimentos exteriores ou as disfunções orgânicas. O que lhe interessa investigar é como se dá, em uma instituição, a "determinação simbólica e imaginária de um sujeito psíquico constituído pelo modo como singularmente organiza, percebe, vivencia as relações que lhe são significativas" (p. 113). Da Psicanálise, a autora ainda salienta que lhe é importante recuperar os conceitos de transferência e interpretação:

A transferência pode ser entendida como a repetição de modelos primitivos de relação que, como processo inconsciente, nega o tempo e o espaço como presentes, reproduzindo em vínculos atuais posições vividas em vínculos passados. A interpretação, por sua vez, pode ser compreendida como hipótese formulada sobre conteúdos inconscientes. (Guirado, 2004, p. 117).

Da obra de Guilhon Albuquerque (1978) destacamos, como a autora, que podemos pensar que o trabalho em uma instituição deve incluir as relações tais como se organizam no discurso de determinada prática institucional. Guilhon Albuquerque (1978) enfatiza o cuidado em detectar em uma instituição a reprodução do instituído: quando se reconhece a ordem estabelecida como natural e autêntica pelo simples caráter de ter se reproduzido ao longo do tempo. Lapassade (1977), segundo a autora, complementa esse raciocínio afirmando que a perpetuação do instituído se dá pela organização burocrática das relações, "que designa lugares definidos de decisão e execução" (Guirado, 2004, p. 115).

Para efeitos de conclusão, Guirado (2004) realça que seu intento concretiza-se em uma formulação que abarca compreender, dentro de uma instituição, a ordenação burocrática e discursiva, o jogo de reconhecimentos e desconhecimentos, o que supõe e perpassa as ansiedades, fantasias e defesas, e entender como isso se dá pela transferência da história de vida nas relações concretas da prática institucional em questão. Esses são parâmetros no qual pode se centrar um psicólogo cujo propósito seria proporcionar um efeito de "estabelecer, na legitimação do vivido, um corte que faz pensar" (p. 119).

Com a produção deste texto, buscamos exatamente isto. A proposta do trabalho deste profissional em qual nos baseamos para escrever este artigo não foi a de colocar-se na instituição como psicólogo institucional, aos moldes do que foi apresentado. Contudo, entendemos que por meio da presente produção, e com base nos conceitos apresentados, este corte na legitimação do vivido pôde ocorrer na construção deste trabalho teórico, ao permitir-nos pensar a prática desta instituição, principalmente em termos de limites e alcances.

Para tanto, pretendemos apresentar relatos de uma experiência sobre a vivência de um profissional como psicólogo durante aproximadamente três anos de atuação em um hospital público geral e, na sequência, discussões e reflexões que a teoria de Guirado (2004) nos permitiu sobre essas vivências. Concebemos que este trabalho pode ser de grande valor para profissionais da área que por ventura encontrem-se presos aos limites e para que possam ultrapassá-los, ajudando-os a observar os alcances de seu trabalho.

Limites do trabalho do psicólogo em um hospital geral à luz da psicologia institucional

O hospital a que nos referimos neste texto é público e geral, situado na cidade de São Paulo e caracterizado por prestar assistência à população por meio das modalidades de atendimento ambulatorial, internações clínica, cirúrgica e pronto-socorro.

O trabalho do psicólogo ao qual nos referendamos para a construção deste texto caracteriza-se pelo atendimento psicológico ambulatorial a pacientes que são encaminhados por médicos que avaliam, em suas consultas, que a problemática do paciente pode estar relacionada a uma questão psicológica. Esses atendimentos ocorrem com frequência semanal ou quinzenal, com duração de 50 minutos, a luz do referencial psicanalítico. Nesse sentido, ressaltamos, de imediato, que são os médicos quem avaliam a situação do paciente, encaminhando o mesmo ou não para o profissional da psicologia. Trata-se de uma espécie de relação de poder (Guirado, 2004), ainda que os médicos não sejam profissionais hierarquicamente superiores aos psicólogos, já que, em um hospital, os médicos exercem uma função historicamente mais valorizada, pois somente eles "poderão salvar as vidas" ali angustiadas diante do adoecimento, da fragilidade e da finitude do corpo.

Outra dificuldade de atuação deste profissional está na concepção, em um imaginário construído a respeito da especificidade do trabalho de um psicólogo pelos demais profissionais da instituição. No atendimento a pessoas internadas, foi percebido que a função do psicólogo muitas vezes é entendida como a daquele que ajudará o médico na adesão do paciente ao tratamento, o que se estende à colaboração com a equipe de enfermagem, já que aderir ao tratamento implica em cooperar com os cuidados para a recuperação de sua saúde física. Quando o paciente queixa-se com frequência de dores e não aceita tomar determinado medicamento, é o psicólogo quem deve acalmá-lo para que o procedimento seja realizado. No entanto, ao possibilitar que esses pacientes falem, observa-se, na maioria dos casos, o desconhecimento destes com relação a sua doença e sobre as necessidades daquele cuidado para sua recuperação. Ou seja, o que observamos é que, em muitos casos, o paciente é mal informado sobre sua condição de saúde, destituindo-o, dessa forma, de um direito básico, e o fornecimento dessa informação resta ao psicólogo.

Contudo, como é sabido, esse não deveria ser o papel de um psicólogo. O psicólogo não é aquele profissional que "passa" nas enfermarias para conversar com o paciente e ajudá-lo na passagem do tempo durante a internação ou para convencê-lo a aderir ao tratamento. Ismael (2005) destaca que o trabalho do psicólogo em um hospital é focal, "centrandose no sofrimento e nas repercussões que o paciente sofre com a doença e a hospitalização, associado a outros fatores como história de vida, a forma com ele assimila a doença e seu perfil de personalidade" (p. 18). Nesse sentido, entendemos que o trabalho do psicólogo hospitalar é o de compreender o sofrimento psíquico diante das situações de adoecimento físico e de internação de um indivíduo (e sua família), considerando sua singularidade, entendendo-o como um sujeito único, que vai além da enfermidade e que precisa ser considerado em sua idiossincrasia a fim de receber a assistência adequada.

Essa confusão com relação ao papel do psicólogo ocorre aos membros de uma equipe multidisciplinar em um hospital porque este desvio expressa a articulação de posições na instituição, tal como aponta Guirado (2004). O reconhecimento de certos aspectos de uma prática e o desconhecimento de outras são efeitos ideológicos das práticas institucionais. Desta forma, partimos de um entendimento no qual a Psicologia dentro de um hospital é convidada, no imaginário social, a ocupar o lugar de se responsabilizar pelo "não-saber", pelos "não-ditos", por toda ordem de desconhecimento sobre a doença, pelas dificuldades da existência, e a manutenção desta ideologia atende as necessidades dos membros da equipe multidisciplinar de um hospital de fantasiar uma cura para todos os males da existência, depositados na figura do psicólogo. O psicólogo então é convidado a ocupar esse lugar de conseguir transformar todas as situações conflituosas que os médicos e enfermeiros não conseguem e como isso é impossível, e inclusive o seu trabalho não é esse, o psicólogo passa a ser visto como incompetente. Os efeitos deste depósito no psicólogo, por sua vez, são a aparição neste de sentimentos de angústias, impotência, medo, desesperança, cansaço etc. e este profissional carrega esses sentimentos porque eles foram rejeitados, reprimidos e projetados pelos demais profissionais da equipe no psicólogo, fenômeno que se compreende por meio do processo da identificação projetiva1 (Klein, 1946/1991).

Outro efeito da ideologia das práticas institucionais é a reprodução do instituído para legitimar esta reprodução (Guirado, 2004). Foi observado que é bastante frequente no hospital a dificuldade da equipe em aceitar uma nova proposta de trabalho, um novo modo de pensar a prática do psicólogo. Não se verifica com facilidade a possibilidade de se questionar o instituído e a justificativa, em geral, refere-se à falta de verba pública ou ao fato de os pacientes não aderirem as mudanças. Que conhecimento prévio é esse sobre a postura do paciente diante de um trabalho que nunca foi feito? A insatisfação com a tarefa desempenhada, com as condições e com o ambiente de trabalho, bem como a falta de aprimoramento e atualização profissionais também são fatores verificados que impedem a realização de mudanças favoráveis à melhoria do atendimento. O profissional insatisfeito e despreparado desempenha sua função de forma insatisfatória. E, inevitavelmente, esse despreparo gerará consequências no prognóstico do paciente, pois conforme destaca Moretto (2012): "O modo pelo qual a equipe de saúde de determinada instituição acolhe e analisa tais demandas (de atenção e atendimento) determina o restante do fluxo de processos e o que vai acontecer com o usuário do sistema, 'navegando' na rede de serviços que a ele são oferecidos" (p.135).

Entretanto, como aponta Guirado (2004), referendando-se em Lapassade (1977), a perpetuação do instituído ocorre por meio da organização burocrática das relações, "que designa lugares definidos de decisão e execução" (p. 115). Guirado (2004) assinala que as relações de poder instauram uma dinâmica em que "a autonomia de grupos e sujeitos é substituída pela heteronomia, em que o cumprimento das normas se esvazia de sentido e se estabelece como fim em si mesmo; em que o prestígio junto aos mandantes é uma forma de obter estatuto de poder em relação aos mandados" (p. 115). Deste enunciado, Guirado (2004) assinala que lhe parece fundamental destacar destas relações de poder o discurso dos agentes, porque é por intermédio deste que se organizam as representações da prática. Compreende que cada ator é sempre "sujeito suporte" da ação e do discurso institucional. E aproximando esses conceitos da Psicanálise entende, como visto anteriormente, que esta relação de poder também compreende uma relação interpessoal em que o sujeito transfere, confunde-se, indiferencia-se, defende-se de ansiedades, discrimina-se e normatiza-se. E, portanto, falar destes posicionamentos naturalizados pela prática é também falar de si, da ordem dos lugares, do objeto e da instituição que faz.

Condenar a prática de um profissional da psicologia à repetição de algo que foi instituído pode ser revelador, portanto, de dificuldades intrínsecas desta profissão dentro de um hospital. Retomando as questões que apontamos no início deste texto, trabalhar em um hospital implica em lidar com a dor, com a doença, com a finitude da existência e parece-nos que no imaginário de um hospital, e porque não, da sociedade, ao psicólogo cabe lidar com toda a dor existente e transformá-la em algo possível de ser representado e assimilado, proporcionando alívio de ansiedades e desespero. Contudo, como sabemos, o psicólogo é um ser humano como qualquer outro e, embora esteja realmente implicado na tarefa de lidar com a dor e com o sofrimento, nem sempre poderá promover uma transformação que ajude o outro a se sentir menos angustiado. Até porque as dificuldades e sofrimentos em um hospital abrangem aquelas que apontam para a fragilidade do corpo e para a morte, o que implica em uma transformação deste sofrimento a longo prazo. Assim, entendemos que aquilo que foi instituído e a necessidade desta manutenção da prática do psicólogo podem representar também a necessidade de cada profissional manter, por meio da repetição, a segurança de que pratica algo de benéfico, promovedor de efeitos garantidos, justamente pela sensação de estar referendando-se em outros profissionais, antepassados, e não correr o risco assim de sozinho assumir a responsabilidade pela impotência intrínseca à sua prática. Propondo uma nova prática é como se estivesse fazendo o grupo assumir a responsabilidade de realizar tudo o que nunca foi feito, como se fossem capaz de dar conta de toda dor e sofrimento que nunca foi possível até então, e diante da tarefa impossível, defendem-se e a afastam. Supomos que permanecer no mesmo lugar é também buscar uma fonte de segurança para o exercício de um trabalho complexo, que poucos compreendem, e que exige muito do profissional. Dentro desse panorama, acrescentamos a essa dificuldade de sair dessa "zona de segurança", como algo que a reforça, a preocupação que o psicólogo sente ainda hoje em oferecer um serviço de qualidade e que seja valorizado pela equipe médica, pensandose na hierarquia de poder dentro desta instituição, como já colocamos anteriormente.

Reflexões acerca dos Alcances do trabalho do Psicólogo Hospitalar

O atendimento a pacientes gravemente enfermos, muitas vezes sem possibilidades de recuperação, desperta nos profissionais de saúde diversos sentimentos que precisam ser identificados, a fim de que possam realizar o trabalho de maneira adequada. O psicólogo, em particular, durante o contato com o paciente internado, passa a conhecer a história de vida deste paciente, que inclui interesses, conquistas, sonhos e expectativas. Ao saber que determinado diagnóstico o privará de conquistá-los ou, até mesmo, impedirá que ele saia do hospital, como lidar com as identificações e sentimentos delas decorrentes? O ambiente hospitalar remete à fragilidade humana, à dependência e à falta de controle.

Diante de situações como essa, Salgueiro (2008) afirma:

É muito importante o olhar cuidadoso do psicólogo para suas ações diante das limitações do exercício da autonomia e da independência do paciente a fim de não limitá-lo ainda mais. Também é importante buscar meios para que a pessoa se sinta atuante em seu ambiente e nos assuntos a ela referentes, garantindo a valorização de suas idiossincrasias e das capacidades preservadas (p.149).

Para tanto, a mesma autora aponta a necessidade do estabelecimento do vínculo terapêutico: "Estar próximo ao paciente, buscando conhecer os valores e as atitudes que lhe são importantes, é fundamental para o estabelecimento desse vínculo e de ações eficientes baseadas na necessidade, no desejo e nas possibilidades da pessoa enferma" (p.144). Na internação hospitalar, a maior parte dos pacientes está acompanhado por um familiar. Assim, atender um paciente internado, muitas vezes, é também estar com a família, é ouvir suas queixas, presenciar suas angústias, medos e dúvidas sobre o prognóstico do ente querido. O olhar do psicólogo aos familiares do paciente descreve Salgueiro (2008), é essencial. A autora salienta que esse profissional deve oferecer ajuda e amparo ao familiar que também pode adoecer, necessitando de atenção. Ajudar os familiares de uma pessoa enferma, sem dúvida alguma, é uma forma de ajudar o paciente.

De maneira geral, segundo Lopes (2012), o lugar do psicólogo não está demarcado a priori em uma instituição, devendo ser construído "e essa construção só ocorre por meio de um trabalho diário, comprometido, técnico e ético, atento aos objetivos e demandas institucionais, uma vez que a construção sólida e alicerçada de qualquer obra exige tempo e paciência" (p.95).

O trabalho desta construção, a nosso ver, envolve a compreensão da dinâmica institucional a qual o psicólogo hospitalar faz parte. Conforme aponta Lopes (2012), o psicólogo em um hospital precisa estar atento a determinados fatores que certamente interferirão em seu trabalho, como a clientela e as demandas a serem atendidas, sua orientação teórica prática, os objetivos pretendidos na intervenção e o contexto institucional.

Neste texto, procuramos nos ater principalmente ao contexto institucional e, neste sentido, os alcances da prática do psicólogo se relacionam com a possibilidade deste profissional conseguir exercer seu trabalho observando a dinâmica da instituição e tomando o cuidado de com ela não se misturar, e, ao dar esse "passo para trás", permitindo-se uma visão mais ampliada de sua realidade, de sua vivência, de seus sentimentos contratransferenciais (ódios, amores, raivas, insegurança, culpa, impotência, medo, desamparo etc.) e, dentro da proposta de análise institucional apresentada neste texto, procurar construir um diagnóstico que diz respeito ao seu trabalho em específico dentro da realidade institucional.

Cabe ao diagnóstico, por exemplo, examinar as relações de poder existentes, a tomada de consciência da dominação de alguns grupos, a reprodução e a legitimação do instituído, o reconhecimento e o desconhecimento das práticas. Apresentamos neste texto as dificuldades enfrentadas por um psicólogo em sua instituição e escrevê-lo o fez pensar que o sentimento de impotência, angústias, insegurança, raiva e desconforto por diversas vezes sentidos no cotidiano de seu trabalho, por exemplo, representam uma dinâmica instituída que coloca o psicólogo no lugar daquele que não dá conta de todo o trabalho, em função de uma projeção de todos os demais membros da equipe que necessitam fantasiar uma saída possível para a morte, para o sentimento de culpa, para sofrimento, somente ainda não encontrada porque é incompetente o profissional da psicologia.

Acrescentamos a isso aquilo que assinala Bleger (1984): o autor afirma que a presença de um psicólogo na instituição incomoda todos os demais porque se trata de um profissional que naturalmente desperta ansiedades e resistências ocultas pelo o que ele representa: a possibilidade de se pensar sobre o sofrimento. Assim, concebemos que o maior dos alcances do trabalho do psicólogo em um hospital encontra-se em sua capacidade em lidar com as angústias que serão nele depositadas e conscientizar-se da dinâmica institucional vigente para que compreenda o mecanismo em que foi inserido, muitas vezes sem dar-se conta disso. Essa consciência pode ser libertadora e produzir, a partir dela, novas propostas de atuação mais eficientes ao levar em consideração a dinâmica institucional da qual faz parte.

 

Considerações Finais

Com relação à postura do psicólogo em uma instituição hospitalar, Romano (1999) ressalta as seguintes ações que possibilitam um trabalho de qualidade: respeitar às pessoas (reconhecimento da diversidade), trabalhar em equipe (demonstração de solidariedade), poder falar e saber ouvir (ter liberdade), dividir responsabilidades e ter oportunidades para aprender e melhorar sempre (equidade).

Contudo, conforme pudemos perceber na construção deste artigo, nem sempre, ou mesmo arriscaríamos a dizer, muito raramente, essas dimensões importantes para o desenvolvimento do trabalho de um psicólogo são atendidas. Embora haja necessidade disso, o que também ficou claro no desenvolvimento deste trabalho é que, a dinâmica institucional pode ser reveladora dos motivos que impedem o reconhecimento e as oportunidades do trabalho da psicologia em um hospital. E buscar este entendimento é justamente uma possibilidade de deparar-se com o "corte que faz pensar", ou seja, com um rompimento na prática cotidiana, com uma pausa no fazer repetitivo que visa analisar o lugar em que se foi convidado a estar na instituição e os seus motivos. Ressaltamos, por fim, que caso a visão do psicólogo ainda que ampliada pela compreensão da dinâmica institucional não lhe permita colocar-se de forma diferenciada, ou sua apresentação de propostas, com base no seu entendimento da dinâmica das relações, não dê resultados, acreditamos, como Guirado (2004), que o melhor a ser feito então é procurar a contratação de um consultor institucional.

 

REFERÊNCIAS

Guilhon Albuquerque, J. A. (1978). Metáforas da Desordem. Rio de Janeiro: Paz e Terra.         [ Links ]

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Lopes, S. R. A. (2012). A psicologia hospitalar na teoria e na prática. In D. F. Gioia-Martins, (Org.), Psicologia e saúde: formação, pesquisa e prática profissional (pp.85-106). São Paulo, Vetor.         [ Links ]

Moretto, M. L. T. (2012). Reflexão crítica sobre os critérios diagnósticos e de encaminhamento dentro de instituições de saúde. In D. F. Gioia-Martins, (Org.) Psicologia e saúde: formação, pesquisa e prática profissional (pp.135-148). São Paulo, Vetor.         [ Links ]

Romano, B. W. (1999). Princípios para a prática da psicologia clínica em hospitais. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Salgueiro, J. P. (2008). Descrição e compreensão dos processos de perdas e luto vivenciados por uma pessoa com Esclerose Lateral Amiotrófica. Dissertação de mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.         [ Links ]

 

 

Recebido: 30/07/2013
Última revisão: 23/09/2015
Aceite final: 30/09/2015

 

 

Sobre os autores
Juliana Peixoto Salgueiro Nunes - Psicóloga Hospitalar e Mestre em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
Sandra Aparecida Serra Zanetti - Professora Doutora do Departamento de Fundamentos de Psicologia e Psicanálise da Universidade Estadual de Londrina (UEL).

 

 

1 Identificação Projetiva é uma "expressão introduzida por Melanie Klein para designar um mecanismo que se traduz por fantasias em que o sujeito introduz a sua própria pessoa (his self) totalmente ou em parte no interior do objeto para o lesar, para o possuir ou para controlar" (Laplanche, 2004, p. 232). Para os autores, a identificação projetiva surge como uma modalidade de projeção na qual o sujeito tende a projetar aquilo que rejeita em si, uma projeção do que é mau (pulsões destruidoras do sujeito).

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