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Revista Psicologia e Saúde

On-line version ISSN 2177-093X

Rev. Psicol. Saúde vol.8 no.2 Campo Grande Dec. 2016

http://dx.doi.org/10.20435/2177-093X-2016-v8-n2(09) 

Gemido dos excluídos: a construção social do adoecimento

 

Moaning of the excluded: the social construction of illness

 

Gemidos de los excluídos: la construcción social del enfermarse

 

 

Jacir Alfonso ZanattaI; Márcio Luis CostaII

IDoutorando em Psicologia da Saúde pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e mestre em Psicologia da Saúde pela (UCDB). Formado em Psicologia pela (UCDB), Jornalismo pela (UFMS) e Filosofia pelas Faculdades Unidas Católicas de Mato Grosso (FUCMT). Professor da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), membro do Comitê Científico e vice-presidente do Comitê de Ética na Pesquisa (CEP/UCDB). E-mail: jacirzanatta@gmail.com
IIDoutor e mestre em Filosofia pela Universidad Nacional Autonoma de México. Especialista em Didática e Metodologia do Ensino Superior e formado em Filosofia pelas Faculdades Unidas Católicas de Mato Grosso (FUCMT). É Coordenador do Programa de Mestrado e Doutorado em Psicologia da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Editor da responsável pela revista Psicologia e Saúde e Presidente do Comitê de Ética na Pesquisa (CEP/UCDB). E-mail: marcius1962@gmail.com

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RESUMO

Esta pesquisa, desenvolvida na comunidade ribeirinha de Porto da Manga, situada a 76 km da cidade de Corumbá, MS, mostra que o adoecimento é uma construção social de responsabilidade do Estado. No local, vivem aproximadamente 30 famílias, em torno de 200 pessoas, que, na sua maioria, são coletores de iscas, pescadores profissionais e piloteiros. Para a coleta de dados, foram convidadas 55 pessoas, das quais 47 aceitaram responder ao questionário semiestruturado, e oito se recusaram a participar. Como metodologia, foi utilizada a análise qualitativa, com observação participante. A omissão do Estado no campo da saúde, educação, habitação, transporte público e segurança contribui para a produção do adoecimento dos ribeirinhos. Dessa forma, o Estado, que deveria ser gerador de vida, é produtor de adoecimento e morte: não só deixa morrer, mas faz morrer.

Palavras-chave: Comunidade; Coletores de iscas; Construção do adoecimento.


ABSTRACT

This study developed in the riverine community of Porto da Manga, located 76 km from the city of Corumbá, MS, shows that illness is a social construction for which the government is responsible. Nearly 30 families live in the area, approximately 200 people, most of whom are bait catchers, professional fishermen and fishing guides. Fifty-five were invited to provide data. Forty-seven accepted to answer the semi-structured questionnaire and eight refused to participate. The qualitative analysis methodology was used with participant observation. The government's omission in the fields of health, education, housing, public transportation and security contributes towards the production of illnesses in riverine communities. Thus, the government that should be a generator of life, is the producer of illness and death: it don't only allows them to die, but it does make them die.

Key words: Community; Bait collectors; Illness construction.


RESUMEN

La presente investigación, desarrollada en la comunidad ribereña de Porto da Manga, localizada a 76 km de la ciudad de Corumbá, MS, muestra que el enfermarse es una construcción social de responsabilidad del Estado. En el local, viven cerca de 30 familias, en torno de 200 personas, que, en su mayoría, son recolectores de carnadas, pescadores profesionales y conductores de barcos. Para la recolecta de los datos, han sido invitadas 55 personas, de las cuales 47 han aceptado responder al cuestionario semiestructurado y ocho han recusado a participar. Como método, ha sido utilizado el análisis cualitativo, con observación participante. La omisión del Estado en el campo de la salud, educación, habitación, transporte público y seguridad ha contribuido para que los ribereños se enfermen. De esta forma, el Estado, que debería ser el generador de la vida, es el productor de las enfermedades y de la muerte: no solo permite que se mueran, sino hace con que se mueran.

Palabras clave: Comunidad; Recolectores de carnadas; Construcción del enfermarse.


 

 

Introdução

"As palavras tornam-se fúteis quando se desvinculam da realidade vivenciada. Deixam de ter energia própria. E se tornam, com isto, incapazes de dar conta da energia em ação na socialidade contemporânea, que pode ser chocante, mas não menos vivaz" (Maffesoli, 2007, p. 14).

Este texto foi devidamente autorizado pelo sistema CEP/CONEP. O método, aqui entendido como caminho das pedras, tendo em vista o contexto ecogeográfico, pode ser também chamado de caminho/descaminho das águas. Isso significa afirmar que esta pesquisa se propõe ver e fazer ver o que se mostra/oculta a partir de suas condições de mostração/ocultação da realidade vivenciada pelo sujeitos/participantes da pesquisa. Para a coleta de dados, utilizou-se o formato de entrevista aberta e posterior análise das falas para construir uma interpretação da compreensão que os participantes expressaram de si mesmos, de seu entorno e de suas relações. Com isso, é possível notar o fenômeno da exclusão social e do adoecimento na forma de gemidos que permitem ver e fazer o 'des-cuidado' e a 'des-proteção' que se mostra/oculta na vida cotidiana de uma população esquecida.

Diante da realidade vivenciada pelos moradores da comunidade ribeirinha de Porto da Manga, faz-se necessário repensar os mecanismos sociais que levam ao adoecimento. De acordo com Maffesoli (2007), algumas investigações exigem que o pesquisador rompa com o círculo virtuoso das análises óbvias. Foi exatamente o que aconteceu durante o processo de contato com a realidade dos ribeirinhos. A forma como são excluídos, explorados e tratados com descaso pelo poder público fez com que as manifestações verbais dos sujeitos desta pesquisa chegassem como sussurros e gemidos aos ouvidos destes pesquisadores. De tanto gritar pelos seus direitos, perderam a voz; por não serem vistos pelo estado, já se confundem com a paisagem da natureza e, por terem sua cidadania roubada, preferem se comparar aos animais que vivem no Pantanal.

Tendo em vista ter sido esta pesquisa aplicada com observação participante, faz-se necessário explicar para o leitor a partir de qual conceito de comunidade estamos trabalhando. De acordo com Pierson (1969), "uma comunidade se define pela simbiose" (p. 119), isto é, pelo simples viver em comum. Já Almgren (2000) aponta que as comunidades têm funcionado, na sociologia contemporânea, como um objeto submetido a diversos tipos de mudança, invariavelmente relacionados com alterações trazidas pela modernidade. Sendo assim, fazer parte de uma comunidade significa não sermos estranhos entre nós mesmos. E esse processo de poder se enxergar através do outro e não se perceber estranho é que fortalece cada vez mais os laços que precisam existir para que uma comunidade se configure.

Mas, para que uma comunidade se configure, não basta que só anseios e sofrimentos sejam comuns, para isso é necessário a existência de uma série de elementos, que, segundo Tönnies (1973), são a "vontade comum, compreensão, direito natural (fundamentado na igualdade entre os homens), língua e concórdia" (p. 102). Importante ressaltar aqui que, quando falamos de elementos que caracterizam uma comunidade, não podemos defender a ideia de que estes são planejados ou projetados para existirem. Na verdade, eles aparecem de forma muito complexa para serem tratados de forma linear. A sua complexidade segue uma lógica interna que dá ao observador a impressão de tratar-se mesmo de processos espontâneos.

E, por ser aparentemente tão evidente e natural, o entendimento compartilhado que cria a comunidade passa despercebido, a tal ponto que Bauman (2003) chega a afirmar que esse "entendimento característico de uma comunidade é tácito por sua própria natureza" (p. 16). E esse comprometimento velado entre cada um dos moradores ribeirinhos do rio Paraguai é que acaba por criar a identidade desse povo. E, quando falamos de identidade, não nos restringimos só aos aspectos físicos que os moradores possuem, mas também às questões psíquicas e sociais. É importante ressaltar ainda que o processo de construção de identidade não é algo único e duradouro. Saquet (2007) defende que a identidade é constantemente reconstruída, histórica e coletivamente, e se territorializa, especialmente, através de ações políticas e culturais: "a identidade se constrói, descontrói-se e se reconstrói no tempo, ou melhor, através do tempo" (p. 149). Essas relações de trocas que devem ser levadas em consideração não são advindas só do presente, do momento vivido e factual, mas, sim, as trocas que já existiam até mesmo entre os antepassados.

É importante ressaltar que as subdivisões deste texto vão utilizar os animais que vivem no Pantanal, para mostrar que, em alguns momentos, os animais possuem mais direito à vida do que os próprios pantaneiros. A escolha estilística se faz necessária uma vez que os ribeirinhos, ao se compararem com esses bichos, estão tentando dizer que, por não terem sua condição humana respeitada, gostariam, ao menos, de serem tratados como os animais que convivem com eles no Pantanal. Mas o que foi possível perceber durante esta pesquisa é que, na escala de valor social dado pelos turistas e pelo Estado, eles estão abaixo da fauna da região. A atenção que os ribeirinhos não recebem, mostra esse precário valor social.

 

Capivara

Um dos sujeitos desta pesquisa tem 53 anos e ganha menos que um salário mínimo por mês (R$ 500,00 - quinhentos reais) para sustentar os 12 filhos. Durante nosso bate papo, Z_04 afirma: "nós estamos aqui, num beco sem saída. Se o cara ficar doente aqui, ele pode esquecer [...] Eu estou igualzinho a uma capivara". É possível não adoecer numa realidade em que as pessoas se comparam aos animais? As condições de existência deste personagem são piores que a dos bichos que vivem no Pantanal. Segundo Z_04 faz mais de um ano e meio que ele não vai para a cidade. Pode ser que ele esteja igual a uma capivara na quantidade de filhos e apenas nisso. Mas, nas demais questões sociais, ele está numa escala inferior.

Não precisa ser nenhum gênio para perceber que as leis ambientais protegem muito mais a fauna e a flora pantaneira do que os humanos que vivem na região. Os animais são livres, não precisam trabalhar para retirar o próprio sustento enquanto esse entrevistado se vê obrigado a ficar até 18 horas no rio para poder garantir a sobrevivência dos filhos. O que se percebe é uma morte anunciada. Será que os moradores da comunidade de Porto da Manga são realmente cidadãos? A pobreza, o trabalho que desenvolvem e a forma como são obrigados a viver da coleta das iscas faz com que esses ribeirinhos vivam em situação de escravidão.

Arendt (2010, p. 79) alerta para o fato de que "a pobreza força o homem livre a agir como escravo". É exatamente o que vem acontecendo no Porto da Manga. Não basta mantê-los presos ao ambiente que vivem, é necessário privá-los de todas as condições da própria existência. Não está mais em jogo apenas uma questão de saúde, educação ou segurança. O que se percebe na comunidade ultrapassa essas questões. O estado está matando lentamente aquela população que busca se reinventar diariamente para não sucumbir ao esquecimento e a tortura causadas pelo abandono e pelas condições desumanas com que são levados a trabalhar para manter os clientes.

Percebe-se ainda que, na maior planície alagável do planeta, a vida e a morte giram em torno das águas. São elas que definem o local das moradias, quem entra e quem sai do seu território. Elas regulam a vida e a organização dos ribeirinhos. A renovação passa pelo seu ciclo que possui poder sobre a vida e a morte.

Foram entrevistadas 47 pessoas, sendo 21 do sexo masculino e 26 do sexo feminino. Mas oito pantaneiros se recusaram a participar das entrevistas. Eles não acreditam mais que alguma pesquisa ou mesmo algum pesquisador possam contribuir para alterar a realidade em que estão inseridos. As entrevistas mostram que 85% dos ribeirinhos ganham até um salário mínimo. Isso significa que, dos 47 participantes, 40 sobrevivem com uma renda mínima. Isso ajuda a compreender o motivo pelo qual as casas de palafita são, na sua maioria, feitas com restos de madeira ou com lona. Apenas dois moradores (4%) informaram que ganham acima de cinco salários mínimos. Os outros cinco moradores, que correspondem a 11% da população, responderam que ganham até dois salários. Isso mostra que 96% dos ribeirinhos entrevistados são obrigados a sobreviver com até dois salários. É com esse dinheiro que eles contam para suprir as necessidades de saúde, alimentação e moradia.

 

Vaca

Pode parecer estranho ao leitor (a) o fato de nesta pesquisa se ter anunciado que a análise das entrevistas seria composta com os bichos que fazem parte da fauna pantaneira e, utilizar, logo no primeiro sub-tópico, um animal que aparentemente não faz parte da região. Não pretendemos estender em justificativas, apenas trazer em defesa deste item o fato de que os animais que mais são vistos no Pantanal são bois e vacas. Esse tópico será utilizado para tecer alguns comentários sobre a situação educacional encontrada na comunidade. Conforme afirma uma das entrevistadas Z_15, que tem 47 anos e mora na comunidade há 23, "aqui na manga tem cachorro que pensa que é gente e vaca que pensa que é cachorro". A entrevistada manifestou esse pensamento no momento que fazia o relato sobre "Maria Perdida", uma vaca que conseguiu subir no terceiro andar do prédio do hotel onde estão as duas salas alugadas pela prefeitura de Corumbá e que servem como escola para os pequenos ribeirinhos.

Escadas que um adulto tem dificuldades para subir, pela distância dos degraus e por não possuir as mínimas condições de segurança, são utilizadas diariamente pelas crianças. Mas, por que se preocupar? São os filhos dos esquecidos que estão estudando lá. Ninguém se preocupa com a situação dos adultos que vivem na comunidade. No que se refere às crianças, a situação é ainda mais grave. Estão tirando delas o futuro. E, com certeza, os políticos ainda devem acreditar que estão fazendo muito ao oferecer educação àqueles "desclassificados", que só são lembrados em época de eleição. A percepção que os moradores possuem dos políticos se manifesta na fala de Z_01, um senhor de 46 anos, com primeiro grau incompleto e que mora na região há 34. Segundo ele, "em época de política eles vêm e promete, promete, mas não fazem nada". Isso revela o motivo pelo qual o poder público prefere matá-los lentamente. Eles ainda são úteis em anos eleitorais.

Agora entendemos o motivo pelo qual Maffesoli (2007) classifica como bárbaros aqueles que excluem e mantêm a escravidão dos espíritos. É exatamente isso o que estão fazendo com aquelas crianças. Roubando seus espíritos. Tirando delas a possibilidade de, pelo menos, ter um futuro diferente dos pais. Z_08 tem 18 anos e mora na comunidade desde que nasceu. Ela defende que está na hora de ter uma escola para "os alunos não subir no hotel e correr o risco de cair de lá". Essa situação de descaso com a vida dos ribeirinhos está causando estragos irreparáveis. Estão tirando deles o direito de sonhar.

Outra pessoa entrevistada para esta pesquisa foi uma senhora de 31 anos, aqui identificada como Z_30, mãe de quatro filhos e moradora do Porto da Manga há 20 anos. Ela é um retrato vivo da falta de perspectiva que atinge a população pantaneira: "não tem nada pra valorizar aqui não. Nada". Mesmo sentimento tem Z_43, um jovem de 28 anos que não conseguiu terminar nem o Ensino Fundamental, desistindo antes de concluir o segundo ano. De acordo com o morador "aqui pra nós não tem sistema médico. Não tem socorro, não tem nada". Olhando em volta, é possível entender o desânimo que se abate sobre os dois entrevistados. As crianças não possuem um único lugar para brincar. As mães precisam atenção redobrada para que as crianças não entrem no rio Paraguai. Mas, se resolvem brincar nas proximidades da comunidade, correm o risco de serem mordidos por alguma cobra. E nos questionamos sobre qual a dificuldade do estado em construir um espaço protegido para que os moradores e as crianças da comunidade possam ter melhores condições de lazer? Não é possível falar em qualidade de vida numa situação dessa. Será que é tão difícil o poder público construir umas 30 casas de alvenaria para que os pantaneiros daquela comunidade possam recuperar sua cidadania e dignidade? Pelo que se pôde perceber dos moradores, a dificuldade enfrentada por eles está no fato de que o Porto da Manga possui poucos votantes. Isso mostra bem que o estado está pouco se lixando para as regiões que não possuem representatividade política, como é o caso dos pantaneiros.

De acordo com Maffesoli (2007), existe um saber enraizado na existência cotidiana. E, esse saber que vem da simplicidade, ganha força na expressão de um dos sujeitos desta investigação que mora na comunidade há 42 anos. Ele será identificado como Z_22, um senhor analfabeto de 56 anos que, mesmo sem nunca ter frequentado os bancos escolares, sabe que "essa escola que tem aí é alugada e o dinheiro que já gastou alugando essa aí, já dava pra construir duas escola boa". Temos que fazer essa pergunta: quem é o analfabeto? Quem o poder público pensa que engana? De tanto serem explorados, excluídos e por viverem à margem da sociedade, eles podem ter perdido a voz, mas não deixaram de pensar a própria existência. Mas, quando as crianças chegam à adolescência, são obrigadas a enfrentar uma situação ainda mais revoltante. Ou abandonam a família para estudar na cidade, indo morar na casa de algum parente, ou abandonam a escola e ajudam os pais na coleta das iscas vivas. Como não percebem futuro na educação, pela falta da qualidade do que receberam, optam, ou melhor, são obrigados, na maioria das vezes, a continuar seguindo os passos dos pais. Eles não têm como optar, uma vez que não possuem nem liberdade para isso. É um sistema escravocrata muito bem disfarçado pelo próprio poder público e pela sociedade para que as autoridades educacionais e sanitárias não se sintam culpadas pela omissão e por matar de forma sádica os seres humanos que deveria proteger e servir.

São essas questões trazidas até aqui, que não nos permitem falar de características sociodemográficas desta pesquisa nem de causas e sintomas das doenças. O que encontramos na comunidade de Porto da Manga ultrapassa toda essa visão, muitas vezes reducionista de apresentar os dados de uma pesquisa. Dos 47 sujeitos que aceitaram participar desta pesquisa, apenas 8% deles começaram ou concluíram o ensino médio. Ao cruzar os dados da escolaridade com a renda familiar, percebe-se que os maiores salários na comunidade são dos moradores que possuem o maior índice de instrução. A pesquisa revela ainda que, dos entrevistados, seis são analfabetos e outros 19 sujeitos não conseguiram concluir a 4ª série do ensino fundamental. Assim como os analfabetos, eles também não ultrapassam a renda mensal de um salário mínimo. É importante ressaltar que apenas três participantes concluíram o primeiro grau e cinco chegaram ao fim do Ensino Fundamental. Se forem somados todos os participantes que não terminaram o Ensino Básico, o número é assustador, uma vez que 39 sujeitos da pesquisa, o que equivale a 83% dos participantes, não conseguiram concluir o primeiro grau, e apenas três conseguiram forças para terminar o 9º ano.

Não é possível analisar as entrevistas feitas com os ribeirinhos sem levar em consideração a dimensão ética da injustiça e da violência psíquica que os moradores da comunidade vivem constantemente. É um sofrimento calado que se manifesta em olhares perdidos, cansados e desesperançados. As igrejas que vão até o local desenvolver suas atividades não conseguem nem olhar para os ribeirinhos. Se conseguissem, perceberiam a dor da vergonha que manifestam ao sair com os produtos "doados" embaixo do braço e com o olhar voltado para o chão o tempo todo, como se pudessem cavar um buraco para não serem vistos. Com certeza, esta não é uma dor física. É moral. Um pouco de sensibilidade e menos narcisismo desses "bons cristãos", com certeza ajudaria a perceber que os ribeirinhos precisam muito mais de dignidade e cidadania do que de caridade.

 

Jacaré

Para ser fiel à proposta de analisar as entrevistas com os animais da fauna pantaneira é preciso ir além dos sintomas de causa e efeito das doenças para os sujeitos desta investigação. Por esse motivo, este tópico tem como título o jacaré, um dos animais que já esteve na lista de extinção. Mas o que se percebe atualmente é que os pantaneiros estão em risco sendo ameaçados em sua condição humana. Essa ameaça tem raiz no descaso do estado que lentamente está dizimando os ribeirinhos e as comunidades da qual fazem parte. Estas questões apresentadas até aqui geram adoecimento físico e social nas pessoas que vivem no Pantanal. Percebe-se, pelo exposto, que Iyda (1994) tem razão quando afirma que a relação saúde e doença não é e nunca será uma relação neutra. Ela é permeada pelos interesses de diferentes frações de classes envolvidas no processo de coleta das iscas, demonstrando que, em sua essência, o adoecimento dos ribeirinhos acaba se transformando num fenômeno político.

Para entender as questões políticas, afetivas e sociais que fazem parte do adoecimento dos ribeirinhos basta prestar atenção ao desabafo de uma das entrevistadas para esta pesquisa. De acordo com a pescadora as causas do adoecimento das pessoas da comunidade que trabalham com a coleta de isca dizem respeito ao fato de que

[...] a água muito suja e muito contaminada. Tem vez que a gente vai num lugar que a água tá até verde. Já telemos assim, sem macacão. Inclusive fiquei aborrecida com o comprador. Falei para ele suspender um pouco o preço que está muito baixo das iscas [...silêncio .... lágrimas....choro....] eu falei [silêncio.. lágrimas]. Ai eu falei assim: - A água está muito contaminada. E daí ele falou assim [silêncio... lágrimas... choro...]. Daí ele falou assim: - Não posso mais levantar o preço né. Daí eu falei assim: [silêncio...]. Aí [lágrimas... silêncio...] Ainda falei: - Nós vamos ficar doentes! Daí ele falou assim: - Cadê o arrastão! Vocês acabaram com o arrastão com o jacaré.... [lágrimas... silêncio...] Aí eu falei assim.... [silêncio... lágrimas..]. Quer dizer que o arrastão é mais importante que nossa saúde? [silêncio... lágrimas... choro...]. Daí ele falou: - É. [lágrimas... choro... silêncio...]. Daí eu falei assim: - Então não vou mais pegar. Então o problema é seu. A gente estava até descascando da água suja. Ele falou que o arrastão dele era mais importante que nossa saúde? Daí não telei mais pra ele. Mas fiquei muito aborrecida com ele. A água estava verde, puro coco de jacaré, de tanta coisa suja, né?Daí eu vi que ele só queria explorar nós. Foi uma coisa muito [silêncio... lágrimas], mas tá bom. Eu esforço muito. A gente sai e pega pouquíssimo e para manter o freguês a gente esforça muito. Fico de manhã, fico à noite. O pé chega a ficar branco (Entrevistada Z_13, 47 anos).

Impossível não se comover com o desabafo dessa catadora de iscas. São lágrimas de indignação perante a exploração e o desprezo humano sentido na própria pele. O relato dessa ribeirinha choca, revolta e deixa a gente com a sensação de que foi atropelado por um trem. Como discutir a relação de saúde e doença numa situação desta? Por que o poder público não toma nenhuma atitude? Com certeza desconhecem esta realidade, uma vez que o estado não se faz presente na comunidade. Essa fala não mostra apenas o sofrimento humano, mas o aniquilamento lento da existência. Diante dessa realidade, não dá para falar de modelo de saúde, de prática ampliada ou de vulnerabilidade. É preciso, em primeiro lugar resgatar a vida que se perdeu diante dessa exploração.

De acordo com Z_15, "uma dipirona resolve quase todos os problemas de saúde. Uma dipirona e um, por exemplo, um anti-inflamatório simples resolve". Pode ser que, por ter o maior salário da comunidade e nunca ter enfrentado a realidade descrita pela entrevistada Z_13 ela pense desta forma. O que ela ainda não percebeu é que dipirona e anti-inflamatório não conseguem devolver cidadania, orgulho, respeito e nem devolvem sonhos desfeitos. O fato é que, por contribuir com esse ciclo de exploração, ela também não queira ver a dor daqueles que, com ela, partilham do mesmo isolamento social.

Por meio dos relatos vistos até aqui, é possível perceber que Sawaia (2011) tinha razão ao ressaltar que todas as pessoas de alguma forma estão inseridas no circuito reprodutivo das atividades econômicas. O grande problema dos ribeirinhos é que eles estão inseridos nesse contexto pelas privações que passam diariamente. Em vários momentos, o termo exclusão acabou sendo utilizado sem que, no entanto, seu significado tenha sido explicado. De acordo com Sawaia (2011), exclusão é o "descompromisso político com o sofrimento do outro" (p. 8). Percebe-se, assim, que, para a autora, a exclusão é um processo complexo que envolve questões materiais e imateriais. Exatamente como o que vem acontecendo na comunidade ribeirinha de Porto da Manga. Por isso, é urgente resgatar a cidadania dessa população, uma vez que, na condição em que se encontram, já não conseguem nem agir coletivamente. Antes de pensar o público, eles precisam encontrar o que comer. É a sobrevivência batendo à porta constantemente. Com isso, os problemas com o lixo e com a organização do coletivo para ganhar força acabam sempre ficando em segundo plano.

De acordo com Arendt (2010), as pessoas que vivem aprisionadas no trabalho não conseguem conservar as marcas da pluralidade uma vez que estão obrigadas a se experimentar apenas em meio aos demais, na divisão de tarefas em vista do propósito de vencer os imperativos da necessidade de apenas estar vivo. Diante dessa realidade, não tem como não pensar nas afirmações feitas por Sawaia (2011) quando a autora busca mostrar que

O sofrimento ético-político abrange as múltiplas afecções do corpo e da alma que mutilam a vida de diferentes formas. Qualifica-se pela maneira como sou tratada e trato o outro na intersubjetividade, face a face ou anônima, cuja dinâmica, conteúdo e qualidade são determinados pela organização social. Portanto, o sofrimento ético-político retrata a vivência cotidiana das questões sociais dominantes em cada época histórica, especialmente a dor que surge da situação social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da sociedade. (p. 106).

É importante observar que os processos emocionais fazem parte da Representação Social que os ribeirinhos possuem de si mesmos. Dessa forma, eles possam criar estratégias para enfrentar as adversidades do modo de produção capitalista que vê o ser humano como mão de obra barata. Minayo (2011) acredita que a linguagem deve ser tomada como forma de conhecimento e de interação social. Isso porque é, por meio dela, que se manifestam os sentimentos e os afetos que contribuem para se ver com nitidez o que os ribeirinhos vivem no seu dia a dia.

Mas se faz necessário prestar um pouco mais de atenção ao alerta feita por Guareschi (2011) ao defender que o mundo do trabalho está se estruturando a partir de mecanismos que impossibilitam o acesso das pessoas. Dessa forma se faz necessário prestar muita atenção aos dados coletados. Caso contrário, corre-se o risco de se pensar as informações levantadas fora da relação social onde elas foram produzidas. Quando isso acontece, segundo Guareschi (2011), o ser humano acaba por se tornar o único responsável pelo seu êxito ou pelo seu fracasso. Assim, legitima-se quem vence e degrada-se o vencido.

 

Cobra

Mais do que as enchentes e as secas que assolam o Pantanal, o medo dos ribeirinhos recai sobre os animais com os quais são obrigados a dividir o espaço e, muitas vezes, a alimentação. Com 53 anos, semianalfabeta e mãe de 10 filhos, Z_37 sabe dos perigos da profissão e acredita que todo o cuidado é pouco. Ao pensar no processo de adoecimento, ela relaciona com os riscos diários vivenciados na coleta de iscas vivas. De acordo com a entrevistada, "o que pode ser é o seguinte. É esse negócio de você telar o dia inteiro a noite inteira dentro d'água [...] Ali você está arriscado, a sucuri e jacaré, tudo te pegar". No entanto um dos relatos mais duros com relação à situação de exploração e com a falta de humanidade foi feito por uma senhora de 35 anos. A fala da moradora mostra o descaso e abandono vivenciado pelos pantaneiros de uma forma geral.

Teve uma mulher que veio de lá de cima. Ela tava com um barrigão. Ela tava pegando isca. Daí a cobra picou ela. Ninguém queria levar. Ela ficou aí debaixo desse museu aí. Ela com o barrigão. Morreu aí mesmo com a criança. Porque ninguém levou a mulher para Corumbá. Ninguém deu carona. Se você não tiver um carro pra levar ou senão pagar a gente morre aqui. Não tem um médico, não tem um nada (Entrevistada Z_35).

Diante de um relato deste, a gente fica paralisado. Todos os problemas se tornam pequenos e perdem o sentido diante da experiência de morte descrita pela pantaneira. Mas a fala transcrita acima revela, nas suas entrelinhas, um problema, aparentemente simples de se resolver e que afeta todos os moradores: a falta de transporte público. Com isso, o discurso de que o estado está matando lentamente os ribeirinhos também cai por terra. O poder público não tem como matá-los de forma rápida para resolver a situação; então, a impressão que se tem é a de que ficam torcendo para que os animais do Pantanal terminem o serviço que o estado começou.

As questões relacionadas com o transporte chamaram a atenção na hora das entrevistas.

Para nós ir na cidade tem que pagar condução. R$ 150 para ir e R$ 150 para voltar. Faz falta uma linha de ônibus. A doença que a gente mais vê é febre, diarréia e dor de cabeça. Como a gente não tem como ir para a cidade, fica na base de remédio caseiro (Entrevistado Z_11, 47 anos).

E, um ônibus também é bom. Você traz um monte de coisa e paga só aquela taxinha. Isso é bom pra nós aqui na Manga (Entrevistado Z_24, 36 anos).

O médico disse que estou com problema de coração, mas até hoje não consegui fazer os exames que o médico pediu. Não faz pelo SUS. Tem que pagar e é muito caro. Trabalhei, trabalhei, mas não consegui dinheiro. É duro você está doente sem poder comprar um remédio. Sem você poder trabalhar para poder comprar aquele remédio. Já pensou você estar doente e não poder fazer nada? E não ter ajuda nenhuma? Torna difícil. De onde você vai tirar dinheiro pra poder pagar um carro até a cidade? Tem que rezar pra não ficar doente. Principalmente quem não tem carro. Não tem nada, como é que você vai? E se você não tem dinheiro como você faz? O que você ganha morre tudo aqui [...] Ganha só pra come. Se conseguir guardar um dinheirinho é até sair o seguro e olha lá [...] (Entrevistada Z_33, 52 anos).

Diante de tudo o que se escutou dos sujeitos que aceitaram contribuir com esta pesquisa, é importante prestar atenção ao alerta feito por Sawaia (2011), ao mostrar que, para analisar as ambiguidades existentes na exclusão, o pesquisador precisa captar o enigma da coesão social sob a lógica da exclusão na sua versão social e subjetiva. Uma tarefa complicada, mas, ao entrar na vida daqueles seres humanos tão singulares, as questões subjetivas dos entrevistados começaram a aparecer e a fazer sentido dentro do que se propunha a investigar.

Por isso, a exclusão não é resultante apenas da ausência de renda, mas de fatores como acesso aos serviços públicos. Dessa forma, os mecanismos de exclusão criam, de acordo com Wanderley (2011, p. 25), "indivíduos inteiramente desnecessários ao universo produtivo, para os quais parece não haver mais possibilidades de inserção". Percebe-se assim, que os ribeirinhos acabam sendo descartáveis pelo sistema durante o período em que a pesca é proibida. Ao dependerem dos programas criados pelo governo, cria-se a falsa ilusão de que eles possuem autonomia, liberdade e cidadania.

Mas é preciso prestar atenção nos fenômenos da exclusão. Até porque os integrantes da comunidade são, em sua maioria, de acordo com Carreteiro (2011), os que permanecem à margem das grandes dimensões institucionais como sistema de educação, saúde e trabalho. Isto significa perceber que os sujeitos desta pesquisa mantêm posição social extremamente frágil. De acordo com Sawaia (2011), faz-se necessário colocar, no centro das discussões sobre exclusão, a ideia de humanidade. Dessa forma, é possível perceber que a temática da exclusão gira em torno do sujeito e da maneira como ele se relaciona com o social. Assim, Sawaia (2011) defende que, ao falar de exclusão, "fala-se de desejo, temporalidade e de afetividade ao mesmo tempo que de poder, de economia e de direitos sociais" (p. 100). Wanderley (2011) reforça essa postura ao alertar para o fato de que os excluídos são rejeitados física, geográfica e materialmente do mercado e de suas trocas. Eles também são excluídos, de acordo com Wanderley (2011), "de todas as riquezas espirituais, seus valores não são reconhecidos, ou seja, há também uma exclusão cultural" (pp. 18-19). Mas, apesar de toda exploração e exclusão sofridas, eles precisam se reconhecer uns nos outros como membros do mesmo grupo.

A pesquisa revela ainda que, em algum momento, todos passaram pelo processo de desqualificação social e acabaram se tornando dependentes dos serviços sociais, principalmente no período de defeso, quando a pesca é proibida. Por isso, a humilhação que sofrem diariamente por serem coletores de iscas os impede de aprofundar qualquer sentimento de pertença a uma classe social. Com relação à ocupação profissional dos habitantes da comunidade, levou-se em consideração a primeira profissão informada por eles. Essa observação é importante, uma vez que, por serem obrigados a desenvolver outras atividades no período de defeso, muitos não se reconhecem como tirando o próprio sustento da pesca e de seus derivados. Dos entrevistados, 19 deles se declararam pescador e fizeram questão de reforçar que são profissionais, ou seja, durante as entrevistas faziam questão de dizer que eram profissionais. Apenas sete assumiram que são coletores de iscas vivas e cinco se posicionaram como piloteiros. É interessante observar que, ao serem indagados se também coletavam iscas vivas, todos foram unânimes em afirmar que sim. Percebe-se assim, que dos 47 entrevistados, 31 sustentam a família das atividades ligadas diretamente à pesca.

É importante observar ainda, que de todos os entrevistados, apenas uma pessoa afirmou estar desempregada no momento da entrevista. Ao fazer uma comparação com a faixa etária dos entrevistados, constata-se que os mais jovens, com idade entre 18 e 29 anos, possuem maior dificuldade de se aceitarem como coletores de iscas. A pessoa mais jovem que concedeu entrevista estava com 18 anos e informou que era estudante. Ao indagar sobre a série que estava estudando, a entrevistada afirmou apenas que tinha parado de estudar na 6ª série e que estava ali na comunidade ajudando os pais na coleta de iscas. As outras duas pessoas mais jovens da entrevista, uma com 20 e outra com 21 anos, declararam-se doméstica e manicure, respectivamente. As duas também confirmaram que, nos dias em que não estão exercendo a profissão, ajudam a família a coletar iscas.

A investigação revelou ainda que os ribeirinhos que moram na comunidade de Porto da Manga não possuem vínculos sociais, o que atualmente acarreta a fragilidade e a dependência a que são submetidos constantemente aos órgãos públicos. Diante disso, Carreteiro (2011) argumenta que as pessoas que pertencem às categorias profissionais que possuem um acúmulo de desfiliações sociais, como habitação e educação, o trabalho legalizado é o único meio simbólico que eles encontram para manter algum tipo de vínculo com a cidadania. A impressão que temos é que este é um dos motivos de eles insistirem tanto em se denominarem pescadores profissionais. É como se pertencessem a uma classe e, com isso, recuperassem a própria cidadania.

 

Piranha

Outro animal que não é muito visto, mas é temido pelos ribeirinhos é a piranha. Não assusta tanto como jacaré, a cobra ou a onça, mas seus dentes afiados podem fazer um estrago nas pernas dos coletores de isca se a pessoa não tiver o cuidado necessário quando for pegar as iscas de dentro das telas. Uma das entrevistadas com apenas 18 anos já sabe bem o que significa a piranha para quem sobrevive da coleta de iscas. Identificada como Z_08, a jovem explica que já foi obrigada a ficar internada por causa do peixe. De acordo com a entrevistada, ela já foi mordida de piranha. Z_08 explica: "estava coletando iscas. Foi uma mordida só no pulso e daí fiquei internada três dias". Pelo exposto até o momento, é possível perceber que a produção social do adoecimento dos ribeirinhos também passa pelo trabalho que desempenham.

É importante observar que, para a grande maioria dos entrevistados, ter saúde é poder trabalhar, e ficar doente é estar incapacitado de exercer suas atividades profissionais. Pela forma como se posicionam nas entrevistas, é possível constatar que eles não gostam de depender dos demais para o desenvolvimento das atividades e que ninguém quer ser um fardo para o outro. Isso mostra bem que Singer, Campos, e Oliveira (1988) têm razão ao defender que, na sociedade capitalista, as pessoas são consideradas doentes em função de sua incapacidade de desempenhar seus papéis. Os moradores do Porto da Manga sabem dos riscos para a saúde no trabalho que desenvolvem, mas a falta de instrução e de novas oportunidades, acaba obrigando os ribeirinhos a se subjugarem a um regime de opressão e de adoecimento.

Para compreender a relação do trabalho com o adoecimento, é importante perceber o sofrimento de um dos entrevistados ao relatar que causou a morte de dois filhos por não saber manusear os instrumentos do seu trabalho diário.

Em 83 pegou fogo na minha casa [silêncio... olhar distante... começa a mexer a mão e os pés...] Perdi duas crianças. Um guri e outra menina. [voz trêmula... silêncio.... pigarro na garganta... a voz fica embargada... olha para o céu... os olhos ficam cheios de lágrimas). E esse sinal tudinho é do fogo. [se olha em silêncio...] Tava mexendo com gasolina. Tava enchendo o tanque pra sair outro dia cedo. Só que a casa fechada e eu não tinha mais ou menos a orientação como que era. Se estivesse aberta ou a janela saia o vapor [silêncio... olha para cima...] Essa luz aí chegou tem uns dois anos. Antes era vela e lamparina [a voz volta a ficar trêmula.. vira a cabeça para o lado do rio] Daí começou a depositar o gás lá, da gasolina. De repente eu só senti que explodiu na minha cara. Pra não coisa eu peguei o tanque e saí. E quando saí trompou no, no [olha para o chão... fica um tempo em silêncio..] Eu tinha um armário bem na porta cheinho de vasilha. Bateu o tanque no armário daí derramou mais gasolina ainda e daí pegou fogo mesmo. Sai com o tanque, joguei o tanque pra fora pegando fogo, daí eu caí na água [olhos cheios de lágrimas... silêncio]. Daí me levaram. Eu, a mulher e duas crianças [...] A menina morreu no caminho, no rio. Tinha nove meses. O guri tava com dois anos. Morreu no hospital quando tomo o soro (Entrevistado Z_22, 56 anos).

Aproximadamente 30 anos depois, o sofrimento psíquico ainda é latente. Uma ferida que teima em não cicatrizar. O rosto sofrido e as mãos calejadas reclamam apenas das dores nas costas por ter que ficar muito tempo sentado pilotando barco para poder sobreviver. A tragédia, segundo ele, fez com que o casamento não resistisse. Percebe-se aqui, que Backes, Da Rosa, Fernandes, Becker, Meirelles, e Santos (2009) têm razão quando defendem que a doença possui caráter histórico e social, sendo que a natureza social se verifica no modo característico de adoecer e morrer nos grupos humanos. Dessa forma, faz-se necessário ressaltar que, para Backes et al. (2009), a concepção de saúde como qualidade de vida é condicionada por vários fatores que englobam inclusive paz de espírito, abrigo decente, equidade e justiça social. Nota-se, no relato acima, que, além de acarretar sofrimento psíquico, a doença deixa marcas profundas, sobretudo em quem foi por ela afetado, mas, em alguma medida, atinge também aos que o cercam.

Estudar a saúde e doença é, num primeiro momento, perceber que não é possível desvincular a saúde do ambiente concreto no qual o sujeito está inserido, uma vez que o contexto influencia na vida psíquica dos participantes/sujeitos da pesquisa. Assim, é possível notar que Contini (2010) tem razão ao defender que a saúde de uma população é condicionada pela nutrição, moradia, higiene, condições de trabalho, lazer, educação e todos os demais fatores ambientais onde as pessoas estão inseridas. Nesse sentido, é importante lembrar o que Scliar (2007) defende com relação ao conceito de saúde. Para Scliar (2007) a saúde reflete sempre a conjuntura social, econômica, política e cultural de uma determinada localidade.

As entrevistas mostram ainda que uma das causas do adoecimento físico dos moradores da comunidade ribeirinha de Porto da Manga está relacionada, principalmente ao fato de os ribeirinhos não possuírem água tratada. Como o local não possui saneamento básico e sistema de tratamento da água para consumo humano, os moradores acabam sendo obrigados a tratarem individualmente a água que vão consumir. Mesmo com todo o cuidado que tomam com relação à medida dos produtos químicos utilizados nesse tratamento, eles reclamam que, algumas vezes, erram a medida e a água acaba ficando amarga o que gera, segundo os entrevistados, dores no estômago e diarreia. A forma como os moradores descrevem o tratamento que recebem quando procuram os serviços de saúde mostra que eles não confiam no poder da ciência instituída pelo modelo biomédico. Também é possível perceber a falta de perspectiva de futuro, uma vez que dependem da coleta de isca para sobreviver e, por isso, adoecer é, na concepção dos ribeirinhos, inevitável.

Diante do que foi exposto até aqui, é importante ressaltar que, para Oliveira (2011 p.602), as representações sociais se articulam em redes interdependentes. Dessa forma, "pode-se inferir que as representações de saúde e doença interagem para determinar concepções específicas de necessidades humanas e de saúde" (Oliveira, 2011, p. 602). Assim, Oliveira (2011) defende que, quanto mais complexas forem as representações de saúde e doença, maiores serão as demandas por saúde, uma vez que as necessidades das pessoas, enquanto representações, são determinadas, dentre outros aspectos, pelas concepções de saúde e doença socialmente construídas.

Observa-se aqui, que Rosen (1979) tem razão ao defender que a relação entre saúde e doença mostra a instabilidade entre os vários componentes do corpo e entre o corpo e o ambiente externo onde ele se manifesta. Com isso, percebe-se que Dejours (1986) está correto ao defender a saúde como uma sucessão de compromissos com a realidade. Fica evidente, então, que a saúde é um processo em permanente construção e conquista. Dejours (1986) defende ainda que a realidade do ambiente material, a realidade afetiva e a realidade social devem ser levadas em consideração quando se pretende trabalhar a saúde de uma determinada população.

É importante observar que a fala dos entrevistados, além de ser carregada de afeto, traz no seu bojo a visão social, política, econômica e cultural da comunidade da qual fazem parte. Nessa linha de pensamento, estão Guareschi e Jovchelovitch (2011), ao argumentarem que o caráter simbólico e imaginativo dos ribeirinhos traz à tona a dimensão dos afetos. Isso porque a construção da significação simbólica que a comunidade tem de si mesma é, ao mesmo tempo, um ato de conhecimento do mundo que a cerca, mas também é um ato afetivo que exige interação e participação com os demais membros que compõem a coletividade. De acordo com Traverso-Yépez (2001), a doença gera nas pessoas sentimentos de insegurança e temor, uma vez que a população de um modo geral conhece cada vez menos o funcionamento do próprio corpo, desvalorizando os sinais emitidos antes do processo de adoecimento. Com isso se justifica o discurso dos ribeirinhos de que não há nada para ser feito com relação à doença, ela sempre vem.

 

Considerações Finais

Estudar a saúde e doença é, num primeiro momento, perceber que não é possível desvincular a saúde do ambiente concreto no qual o sujeito está inserido, uma vez que o contexto influencia na vida psíquica dos participantes/sujeitos da pesquisa. As entrevistas mostram ainda que uma das causas do adoecimento físico dos moradores da comunidade ribeirinha de Porto da Manga está relacionada, principalmente ao fato de não possuírem água tratada. Como o local não possui saneamento básico e sistema de tratamento da água para consumo humano, os moradores acabam sendo obrigados a tratarem individualmente a água que vão consumir. Mesmo com todo o cuidado que tomam com relação à medida dos produtos químicos utilizados no tratamento da água, eles reclamam que, algumas vezes, erram a medida, e a água acaba ficando amarga, o que gera, segundo os entrevistados, dores no estômago e diarreia.

Para entender as causas e os sintomas das doenças enfrentadas pelos ribeirinhos, faz-se necessário compreender como as ações individuais e coletivas acontecem no contexto das relações sociais vivenciadas no espaço da própria comunidade. Dessa forma, é preciso valorizar a cultura dos moradores da comunidade, que, por estarem à margem da sociedade, acabam buscando na sabedoria popular a forma de combater os males que sofrem e enfrentam na difícil luta pela sobrevivência. Assim, fica claro o que Moscovici (2011) tentou mostrar ao afirmar que as pessoas não são apenas processadoras de informações, nem meros portadores de ideologias ou crenças coletivas, mas pensadores ativos, que, produzem e comunicam representações e soluções específicas para as questões que se colocam a si mesmas.

O texto em questão mostra claramente a violação dos direitos humanos básicos e a falta de políticas públicas que atendam aos ribeirinhos. A comunidade não é atendida pelo transporte público e não possui água tratada, posto de saúde, coleta de lixo nem rede esgoto. Isso mostra que estão completamente esquecidos pelos órgãos públicos. Assim, o Estado que deveria ser gerador de vida é produtor de adoecimento e morte: não só deixa morrer, mas faz morrer. A omissão do Estado no campo da saúde, educação e segurança contribui para a produção do adoecimento dos ribeirinhos que são obrigados a viver em casas que não oferecem as mínimas condições de moradia digna. A construção social do adoecimento, a falta de políticas públicas eficientes e o descaso com os direitos humanos dos ribeirinhos também fica evidente na forma de trabalho que desenvolvem como coletores de iscas vivas.

Para finalizar, é importante ainda destacar que, dos ribeirinhos que participaram da pesquisa, 27 estão com a idade acima dos 40 anos, o que equivale a 58% dos entrevistados. Destes, apenas três, ou seja, 6%, possuem idade superior aos 60 anos. Dez sujeitos possuem entre 18 e 29 anos, e outros dez têm idade entre 30 e 39 anos. Isso mostra que 42% da população pesquisada têm idade inferior a 30 anos. Ao analisar a idade dos moradores, constatou-se que 26 residem no local há mais de 20 anos. Nota-se assim, que 55% da população residem no local desde a década de 90 do século passado. Percebe-se ainda que 19% dos moradores, ou seja, nove entrevistados, passaram a residir na comunidade no século XXI. Ao cruzar os dados da idade com o tempo de residência na comunidade, foi possível perceber que os mais velhos estão no local há mais tempo e não pensam em sair.

Dos entrevistados, 13 moradores, o que equivale a 28% deles, estão com idade entre 40 e 49 anos. A faixa etária com o segundo maior número de entrevistados está com a idade entre 50 e 59 anos, isso significa que, dos 47 integrantes da pesquisa, 11 pessoas ou 24% delas têm idade superior aos 50 anos. Essas duas camadas da população compõem quase que a maioria dos ribeirinhos que residem no local há mais de 20 anos. Pelo exposto, é possível que os mais jovens, por estarem no local há menos tempo ainda alimentam esperança de deixar a comunidade para morar na cidade. Dessa forma, constata-se que, quanto maior a idade, maior o tempo de permanência na profissão e, quanto menor a idade, menor o tempo de residência na comunidade.

Ao término desta pesquisa, foi possível perceber que, apesar do abandono e do esquecimento em que os ribeirinhos são colocados constantemente, é possível perceber que Maffesoli (1998) tinha razão ao afirmar que a vida, em nenhum momento, se deixa enclausurar. Percebe-se assim que a Psicologia Social pode desempenhar um papel importante junto à comunidade, caso busque focalizar as dimensões simbólicas e os processos psicológicos que se articulam aos fundamentos materiais das relações vivenciadas pelos ribeirinhos. Dessa forma, fica evidente que é preciso respeitar o espaço de interação no seio no qual as pessoas ou grupos se constroem e funcionam. Ainda escutamos o gemido de dor e sofrimento dos moradores motivados pelo descaso do estado. Excluídos e explorados, eles não tem mais a quem recorrer. Não sabem mais o que fazer para resgatarem a própria cidadania. A falta de água tratada, saneamento básico, moradia digna, educação para os jovens e adultos e a ausência de um sistema de saúde e segurança só reforçam o sentimento de que eles não são vistos pelo poder público como seres humanos e, para conseguir a proteção do estado de direito, precisam ser "igualzinho uma capivara".

 

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Recebido: 20/09/2016
Última revisão: 16/11/2016
Aceite final: 18/11/2016

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