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Revista Psicologia e Saúde

On-line version ISSN 2177-093X

Rev. Psicol. Saúde vol.9 no.1 Campo Grande Apr. 2017

http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v9i1.463 

Gênero e práticas de saúde: singularidades do autocuidado entre adolescentes

 

Gender and health practices: singularities of self-care between adolescents

 

Género y prácticas de salud: singularidades del autocuidado entre adolescentes

 

 

Rodrigo Ribeiro dos SantosI; Norberto Marques Garrocho JuniorII; Alberto Mesaque MartinsIII; Celina Maria ModenaIV

IGraduando em Psicologia, pela Faculdade Ciências da Vida. E-mail: email@domain_name_here.com
IIGraduando em Enfermagem pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. E-mail: juninkb@gmail.com
IIIPsicólogo, mestre em Psicologia e Doutorando em Psicologia. Apoio Técnico à Pesquisa no Centro de Pesquisas René Rachou (CPqRR) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz Minas). Professor do curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras. E-mail: albertomesaque@yahoo.com.br
IVPsicóloga, Pós-Doutorado em Saúde Coletiva. Pesquisadora Visitante no Centro de Pesquisas René Rachou (CPqRR) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz Minas) e Docente do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do CPqRR-Fiocruz Minas. E-mail: celina@cpqrr.fiocruz.br

Endereço de contato

 

 


RESUMO

Este é um estudo descritivo e exploratório que buscou compreender as implicações de gênero nas práticas de saúde e autocuidado de adolescentes e identificar a opinião deles acerca das ações oferecidas nas Unidades Básicas de Saúde (UBS). Participaram 347 adolescentes matriculados nos anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio de duas escolas públicas de Belo Horizonte, os quais responderam a um questionário semiestruturado e autoadministrado. Os resultados revelam influências do processo de socialização e construção social das identidades masculinas e femininas nas práticas de autocuidado entre o grupo de adolescentes. Os meninos relataram maior frequência de atividades físicas e uma menor utilização dos serviços e ações voltados para a promoção da saúde e prevenção de agravos, utilizando, com maior frequência, os serviços de urgência e emergência. As deficiências estruturais e organizacionais das UBS e o acolhimento das equipes de saúde foram apontados como pontos negativos que dificultam a vinculação do público adolescente.

Palavras-chave: adolescência, gênero, saúde pública


ABSTRACT

This is a descriptive and exploratory study which aimed to understand the genders implications in the health practices and self-care of adolescents and to identify your opinions about the actions offered in Basic Health Units (BHU). It has participated 347 adolescents that were in senior years of their public primary and high school in the Belo Horizonte city, which answered a semi-structured and self-administered questionnaire. The results show the influences of the socialization process and social construction of masculine and feminine identities in self-care practices among the group of teenagers. The boys had reported higher frequency of physical activity and less use of services and actions aimed at health promotion and disease prevention, using more often, the urgent and emergency services. The UBS'structural and organizational and the reception of health agents were identified as weaknesses points which provide a bad approach to the adolescents.

Keywords: adolescence, gender, public health


RESUMEN

Este es un estudio descriptivo y exploratorio que tuvo por objetivo comprender las implicaciones de género en las prácticas de salud y autocuidado de adolescentes y identificar sus opiniones acerca de las acciones ofertadas en las Unidades Básicas de Salud (UBS). Participaron 347 adolescentes que cursan los años finales de educación primaria y secundaria de dos escuelas públicas de Belo Horizonte, los cuales contestaron a un cuestionario semi-estructurado y autoadministrado. Los resultados revelan las influencias del proceso de socialización y construcción social de las identidades masculinas y femeninas en las prácticas de autocuidado entre el grupo de adolescentes. Los chicos relataron frecuencia más grande de actividades físicas y una menor utilización de los servicios y acciones dirigidos a la promoción de la salud y prevención de daños, utilizando, con más frecuencia, los servicios de urgencia y emergencia. Las debilidades estructurales y organizacionales de las UBS, así como la acogida por los equipos de salud, fueron señaladas como puntos negativos que dificultan la vinculación del público adolescente.

Palabras clave: adolescencia, género, salud pública


 

 

Introdução

Já nas últimas décadas do século XX, observa-se um importante processo de mudança nos modos de se conceber e construir propostas de atuação junto à população infanto-juvenil brasileira (Ruzany, 2008). Desde o final da década de 1980 e início dos anos 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) destacava a necessidade de considerar os adolescentes como cidadãos de deveres e, também, de direitos sociais, retirando-os do âmbito estritamente assistencialista (Ruzany & Meirelles, 2009).

Com o reconhecimento da cidadania dos adolescentes, percebe-se a necessidade da construção de políticas públicas e programas sociais específicos que façam valer os direitos sociais da população infanto-juvenil. Assim, as ações governamentais voltadas para crianças, adolescentes e jovens passam a buscar o reconhecimento desse público como sujeitos sociais e cidadãos de direitos, inclusive de políticas de saúde específicas (Horta & Senna, 2010).

Entretanto a implementação de políticas, programas e ações em saúde voltadas para a população infanto-juvenil ainda se configura como um grande desafio (Ruzany, 2008). Estudos apontam para o distanciamento dos adolescentes dos serviços de saúde, em especial, aqueles situados no âmbito da Atenção Primária (Ruzany & Meirelles, 2009; Horta & Senna, 2010; Nogueira et al., 2012; Reis et al., 2014). Tem sido evidenciada a dificuldade que gestores e profissionais de saúde ainda encontram para incluir o público adolescente nas propostas assistenciais ofertadas nesses espaços (Queiroz, Lucena, Brasil, & Gomes, 2011; Costa, Queiroz, & Zeitoune, 2012; Nogueira et al., 2012; Reis et al., 2014).

Na mesma direção, Nogueira, Modena, e Schall (2010) ressaltam o caráter incipiente e curativista das políticas públicas de saúde voltadas para os adolescentes no Brasil. Nesse sentido, ainda persiste a dificuldade de romper com os paradigmas biomédicos do cuidado e construir práticas que, de fato, possibilitem a construção de vínculos com os adolescentes e contribuam para a promoção da saúde integral desses sujeitos (Ayres, Carvalho, Nasser, Saltão, & Mendes, 2012).

Estudos apontam para a necessidade das intervenções voltadas para o público infanto-juvenil considerarem as implicações de gênero no processo de construção das identidades dos adolescentes (Borges & Nakamura, 2009; Taquette, 2012). Desse modo, é preciso construir espaços para refletir sobre como as questões de gênero constituem as relações entre os pares do mesmo sexo e oposto e, também, observar como o processo de socialização de meninos e meninas interfere nos modos de pensar, sentir e agir dos adolescentes em relação à saúde e ao autocuidado (Taquette, 2012).

Nesse contexto, vale ressaltar que, embora construídas a partir dos sentidos atribuídos às diferenças sexuais, as questões de gênero não se resumem à diferenciação anatômica e fisiológica entre homens e mulheres, mas refletem processos culturais e políticos amplos e complexos que transformam as diferenças entre os sexos, em desigualdades sociais (Scott, 1995). Desse modo, desde a tenra infância, meninos e meninas vivenciam distintos processos de socialização que contribuem para a construção de representações distintas sobre como a masculinidade e a feminilidade serão concebidas, experienciadas e exercitadas.

Apesar das mudanças nos papéis sociais de homens e mulheres, a sociedade brasileira ainda encontra-se fortemente marcada pela subordinação das mulheres aos interesses masculinos, de modo que a socialização de meninos e meninas ocupa um importante papel nos processos de subjetivação e construção de identidades (Gomes, 2008; Taquette, 2012)1. Vale ressaltar que as desigualdades entre os gêneros não prejudica apenas as mulheres. A luta pela manutenção do status de virilidade vem contribuindo para uma maior exposição dos homens a comportamentos e situações de risco, refletindo assim em danos à sua saúde (Gomes, 2008; Medrado & Lyra, 2008 ).

As implicações das questões de gênero na saúde dos adolescentes vêm sendo destacadas em diversos estudos (Medrado & Lyra, 2008; Ferreira & Nunes, 2010; Vianna, Carvalho, Schilling, & Moreira, 2011; Taquette, 2012). Cada vez mais, reconhece-se que o processo de socialização e os sentidos atribuídos ao ser-homem e ser-mulher contribuem para o delineamento de modos de pensar distintos que interferem nas práticas de autocuidado, bem como na utilização dos serviços de saúde (Gomes, 2008; Silva, Ribeiro, Barata, & Almeida, 2011).

Tratando-se das sociedades latino-americanas, os meninos ainda são estimulados a perseguir um modelo de masculinidade pautado no exercício da força física, coragem e risco que aumentam a probabilidade de envolvimento de situações que comprometem a saúde e bem-estar físico e psicológico (Gomes, 2008). Por outro lado, é recorrente que atributos, como a delicadeza, a fragilidade e a constância de cuidados, sejam atribuídos às mulheres, configurando-se como elementos que constituem o seu processo de socialização e reforçam as desigualdades de gênero.

Nessa perspectiva, o presente estudo teve como objetivo analisar as implicações das questões de gênero nas práticas de saúde e autocuidado de adolescentes e identificar a opinião desses sujeitos acerca das ações oferecidas nas Unidades Básicas de Saúde (UBS).

 

Métodos

Na perspectiva dos estudos descritivos e exploratórios, foi construído um questionário semiestruturado e autoadministrado (Breakwell, Hammond, Fife-Schaw, & Smith, 2010), dirigido ao público adolescente, composto por 54 questões, sendo 52 fechadas e duas abertas, alicerçadas nos seguintes temas: perfil sociodemográfico dos entrevistados; práticas de saúde e autocuidado; relação dos adolescentes com a UBS; opinião dos adolescentes sobre as ações ofertadas nesses espaços. Os questionários foram aplicados nos meses de abril e maio de 2013.

Participaram do estudo, adolescentes, de ambos os sexos, matriculados em duas escolas da cidade de Belo Horizonte, selecionados por meio dos critérios de intencionalidade: a) ser escola pública; b) ofertar os últimos anos do Ensino Fundamental (6º ao 9º ano); c) oferecer o Ensino Médio. A escolha por essa faixa de escolaridade buscou incluir, no grupo de sujeitos da pesquisa, adolescentes com idade entre 10 e 19 anos, de acordo com a definição de adolescência proposta pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A utilização desses critérios apontou a necessidade de inclusão de duas escolas públicas, uma vez que a primeira selecionada oferecia apenas o Ensino Fundamental, e a segunda, apenas o Ensino Médio.

No primeiro momento, em cada uma dessas escolas, foi feito contato com a coordenação pedagógica para apresentação dos objetivos da pesquisa e pactuação do trabalho de campo. Após a aprovação da parceria, em cada escola, por meio de sorteio, foram selecionadas duas turmas de cada uma das séries escolares que compõem os anos finais do Ensino Fundamental (5º ao 9º ano) e Ensino Médio. Em dia estipulado pela coordenação pedagógica, os pesquisadores visitaram as salas de aula e apresentaram a pesquisa aos adolescentes e deixaram os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que deveriam ser assinados pelos pais e/ou responsáveis, bem como pelos próprios adolescentes. Foi pactuada uma nova data em que os pesquisadores retornaram às salas de aula, recolheram os TCLE e aplicaram o questionário. Os estudantes que já possuíam idade igual ou superior a 18 anos, foram responsáveis pela assinatura dos próprios TCLE.

Assim, o grupo de participantes do estudo foi composto por todos os adolescentes matriculados nas salas sorteadas, que aceitaram o convite de participação e que receberam o consentimento dos seus pais e/ou responsáveis, totalizando 347 estudantes. Estes responderam aos questionários na sala de aula, durante o período escolar, em horário pactuado com a coordenação pedagógica.

Os dados foram tabulados com auxílio do software EpInfo e analisados por meio de estatística descritiva, estratificada por sexo. Essa etapa privilegiou uma análise qualitativa dos dados empíricos produzidos pelos questionários. Mais especificamente, buscou-se compreender como as questões de gênero poderiam contribuir para a constituição dos resultados obtidos.

O projeto de investigação foi submetido ao Comitê de Ética e Pesquisa do Centro de Pesquisas René Rachou (CPqRR) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), recebendo aprovação mediante o parecer n. 13/2010, em cumprimento da Resolução n. 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.

 

Resultados e Discussão

Perfil sociodemográfico dos participantes

A Tabela 1 apresenta informações relacionadas ao perfil dos adolescentes participantes do estudo. Do total de participantes (347), 41,2% são do sexo masculino, e 58,8%, do sexo feminino. Com relação à raça, observa-se um maior número de entrevistados que se autodeclararam pardos (43,5%), brancos (32,3%) e negros (15,3%). No que tange à religião, a maior parte dos adolescentes se autodeclarou católica (49%) e evangélica (30,3%). Quanto à idade dos participantes, observa-se que eles possuem entre 10 e 19 anos, com um maior percentual de adolescentes entre os 14 e 16 anos.

No que se refere à escolaridade dos entrevistados, observa-se uma distribuição uniforme, de modo que os adolescentes estão distribuídos entre as diferentes séries escolares, com um número menor de participantes matriculados no 8º ano do Ensino Fundamental. A escolaridade dos pais foi semelhante para meninos e meninas, de maneira que a maior parte dos adolescentes afirmou que seus pais completaram o ensino médio, correspondendo a 44,9% das mães e 39,4% dos pais.

Quanto aos relacionamentos afetivos, a maioria dos entrevistados afirmou estar solteira (68,6%), enquanto que um menor número afirmou namorar (17,6%) e "ficar" (12,4%). A maior parte dos adolescentes afirmou não ter filho (98%), sendo que apenas uma entrevistada, em todo o grupo, relatou ser mãe. Enquanto o número de meninos que afirmaram estar ficando (12,6%) é semelhante ao das adolescentes do sexo feminino (12,3%), o percentual de rapazes que afirmou estar namorando foi menor (9,8%) quando comparado com o número de meninas (23%) que estão engajadas no mesmo tipo de relacionamento. O fato de as meninas namorarem mais que os rapazes pode ser explicado tendo em vista a influência das questões socioculturais e de gênero, nos modos como a sociedade se posiciona diante dos comportamentos afetivo-sexuais das mulheres.

Nesse sentido, Justo (2005) atesta que, apesar das transformações nas relações de gênero, ainda hoje, em alguns grupos sociais, as meninas que se envolvem em relacionamentos menos estáveis, como o "ficar", podem sofrer certa discriminação e/ou rejeição tanto pelos rapazes quanto pelas meninas, já que culturalmente as mulheres que "ficam" com muitos homens, principalmente quando existe relação sexual, são consideradas "vulgares" e "promíscuas". Por outro lado, tendo em vista os estereótipos e as normas culturais de gênero, os rapazes que se engajam em diversas relações afetivo-sexuais, passam a ser reconhecidos como "másculos" e "viris", contribuindo assim para a maior valorização desse tipo de comportamento entre o público masculino (Justo, 2005).

Também é necessário levar em conta que, apesar as mudanças na sociedade brasileira, é recorrente que as relações afetivo-sexuais sejam constituídas pela diferença etária entre os parceiros, com uma maior valorização do engajamento de mulheres com homens mais velhos. De forma semelhante, a construção de parcerias amorosas em que a mulher possui idade superior ao homem ainda sofre reprovação social, sendo, assim, desestimuladas (Justo, 2005). Nesse sentido, é possível que as meninas participantes deste estudo reproduzam esse comportamento, justificando assim o maior número de entrevistadas que relataram estar em um relacionamento estável.

Entrelaçada à discussão sobre as relações sexuais, está a orientação afetivo-sexual definida por Lopes, Botão, Félix, & Vieira (2010) como o direcionamento do desejo do indivíduo na busca do prazer que pode se dar entre indivíduos do mesmo sexo, sexo oposto ou ambos os sexos. Diante dessa questão, a maioria dos adolescentes se declarou heterossexual (95,7%) e um menor número se afirmou como bissexuais (1,3%) e homossexuais (1,2%).

No que se refere à ocupação, 15,6% dos entrevistados afirmaram trabalhar. Esses dados são semelhantes às estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010) que apontam que 21% dos jovens entre 10 e 19 anos trabalham. No presente estudo, dentre os adolescentes que trabalham, 39% afirmaram estar em um emprego formal, enquanto que 59% relataram desenvolver atividades de trabalho informais. Esses resultados, quando comparados aos dados do IBGE (2010), se mostram discrepantes, uma vez que a porcentagem de adolescentes brasileiros trabalhadores que estão inseridos no mercado formal é de 63,9%. Esse fato pode ser mais bem compreendido considerando-se as características sociais do grupo de adolescentes participantes: jovens pobres e pertencentes a um contexto urbano de uma grande capital brasileira.

Conforme destaca Ribeiro (2014), a menor inserção dos adolescentes no mercado de trabalho formal, pode ser explicada tendo em vista a maior preocupação desse grupo em concluir os estudos básicos antes de escolher o seguimento de trabalho e suas implicações. Nesse sentido, as atividades informais se configuram como possibilidades de conciliar a jornada de trabalho com a de estudo, contribuindo, talvez, para o maior número de jovens no mercado informal.

Ainda nessa direção, a renda familiar declarada também apresenta subsídios para uma melhor compreensão desse cenário. Mesmo que 46,3% asseguraram não saberem a respectiva renda familiar, dos que responderam a essa pergunta, a maior parte afirmou que suas famílias sobrevivem com renda entre dois e quatro salários mínimos. Assim, o ingresso desses sujeitos ao mercado de trabalho formal e/ou informal pode ter sido estimulada pela busca de uma complementação para a renda familiar.

 

Práticas de Saúde dos Adolescentes

Conforme lembra Spink (2003), as práticas de saúde também refletem as diferentes maneiras como os sujeitos pensam, sentem e se comportam cotidianamente, correspondendo, portanto, ao contexto e aos modos de produção da existência. Assim, longe de tratar-se de ações neutras, os modos como os sujeitos cuidam de si e dos outros se referem a práticas sociais que refletem ideologias, valores e crenças construídos e compartilhados socialmente.

Nesse sentido, tornam-se evidentes as implicações de gênero no modo como diferentes sujeitos se posicionam diante das práticas de cuidado. Conforme vem sendo destacado na literatura, apesar das transformações nas relações entre homens e mulheres, com diferentes orientações sexuais e identidades de gênero, sexo e gênero ainda se configuram como importantes determinantes sociais da saúde, interferindo no acesso e utilização dos serviços de saúde, bem como delineando práticas de cuidado (Gomes, 2008; Medrado, Lyra, Azevedo, Granja, & Veira, 2009; Silva et al., 2011). No presente estudo, a influência das questões de gênero pode ser observada entre as respostas dos adolescentes entrevistados quanto aos modos com que praticam o autocuidado (Tabela 2).

Com relação à prática de atividades físicas, 18,8% do grupo de entrevistados afirmou não fazer qualquer tipo de atividade física durante a semana. Esses dados são semelhantes àqueles encontrados na Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) (IBGE, 2013), em que foi identificado um elevado número de adolescentes brasileiros que não realizam atividades físicas regulares.

Por outro lado, no presente estudo, observa-se uma diferença significativa entre meninos e meninas que praticam atividades físicas, cotidianamente. Nesse sentido, quando perguntados sobre a realização dessas práticas, 19,6% dos meninos afirmou fazê-las sete vezes ou mais por semana, enquanto apenas 3,4% das meninas disseram manter essa mesma rotina. Levando em consideração a abrangência do esporte na cultura brasileira, especificamente no que tange ao contexto educacional, é muito comum atribuir aos sujeitos do sexo masculino um significado masculino na prática do esporte, algo expresso no comportamento hierarquizado e bem definido, em que força física e habilidade passam a ser percebidos como atributos da virilidade (Santos, 2006). Por outro lado, as meninas são desestimuladas à prática de esportes que exigem a força física, sendo socializadas para a realização de jogos e atividades lúdicas que remetam ao âmbito doméstico e estético. A divisão sexual das brincadeiras e atividades físicas vem sendo destacada em diversos estudos, especialmente, aqueles que analisam o cenário escolar onde essas desigualdades são institucionalizadas por meio das práticas de Educação Física (Altmann, Ayoub, & Amaral, 2011; Corsino & Auad, 2012).

Já o consumo diário de água mostrou-se semelhante entre meninos e meninas. Enquanto que a maior parte das meninas afirmou beber de três a quatro copos de água por dia (34,8%), a maioria dos rapazes disse tomar de sete a oito copos de água (33,6%). A maioria dos adolescentes afirmou dormir 8 horas por dia, tanto as meninas (26,5%) quanto os meninos (37%). A frequência do grupo, como um todo, em lavar constantemente as mãos parece atender a padrões de prevenção da saúde, de modo que 46,4% dos adolescentes afirmaram lavar as mãos seis vezes ou mais por dia.

Os problemas de saúde não variaram significativamente entre os sexos/gêneros. O problema mais relatado pelos adolescentes, de modo geral, foram as doenças respiratórias (24,7%). Dentre os entrevistados, apenas 11,2% afirmaram que utilizam medicamentos de modo contínuo (diário), enquanto que 88,2% relataram não utilizar nenhum tipo de medicação. Dos que utilizam medicamentos diariamente, as principais causas relatadas foram a rinite (15,2%), a asma (6,1%), a acne (6,1%) e a gastrite (6,1%). Apenas 2,4% dos entrevistados afirmaram utilizar medicamentos psiquiátricos.

Outra questão importante se refere ao consumo de cigarros entre os adolescentes. Dentre o grupo de participantes, 14,7% das meninas e 11,9% dos meninos afirmaram já terem feito o uso de cigarros. A maior parte dos entrevistados afirmou ter consumido o primeiro cigarro entre os 12 e 15 anos de idade (57,7%). Esses dados se mostram semelhantes aos da PeNSE (IBGE, 2013) e aos do II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad) realizado pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), em 2012 , que também apontou para essa faixa etária como aquela com o maior número de adolescentes brasileiros experimentando o cigarro.

Cabe ainda destacar que, dentre os meninos entrevistados, a maioria que relatou ter experimentado cigarros, afirmou que não mais o fez posteriormente. Por outro lado, ao contrário dos meninos, 41,4% das meninas que já experimentaram cigarro afirmaram que dele fazem uso diário ou esporádico, refletindo estudos recentes que vêm apontando para o crescimento do número de mulheres jovens brasileiras que já consumiram ou fazem uso constante de cigarros (Barreto et al., 2010; IBGE, 2013).

Quando se trata do uso de bebidas alcoólicas, entre os entrevistados, a ingestão é mais comum do que o cigarro, já que 67% das meninas e 57% dos meninos afirmaram ter feito uso dessas substâncias em algum momento da vida. O número de adolescentes que já experimentaram álcool corresponde aos achados na literatura nacional (IBGE, 2013). Ainda no que se refere ao consumo de álcool, 31,4% dos adolescentes entrevistados afirmaram que beberam apenas uma vez, e 65,5% relataram fazer uso diário ou esporádico dessa substância.

A maior ingestão de álcool pelas adolescentes do sexo feminino, constatada na presente pesquisa, se refere a algo ainda incomum na literatura científica, mas que vem se mostrando em ascensão (Matos, Carvalho, Costa, Gomes, & Santos, 2010; IBGE, 2013). O Health Behavior in School Aged Children (HBSC), conduzido pela OMS (World Health Organization [WHO], 2008), entre os anos de 2005 e 2006, indicou que 17% das meninas e de 25% dos meninos consomem álcool. Tal prevalência ocorreu na maioria dos 40 países pesquisados.

Conforme destacam Atanázio, Santos, Dionísio, Silva, e Saldanha (2013) tratando-se da cultura brasileira, o álcool é visto como instrumento de socialização, gerando prazer e autoestima, podendo também ser incentivado pela mídia, grupos de amigos e família. Ainda segundo Atanázio et al. (2013), sobre o sexo feminino, enquanto nas escolas privadas a timidez, o avançar da idade e a busca por espaço configuram-se como motivos para o uso de álcool, nas escolas públicas, é mais preponderante a influência do grupo de amigas para o consumo.

Em comparação ao álcool e tabaco, a incidência de respostas positivas ao uso de drogas ilícitas se manteve baixa, porém, ainda assim, preocupante: 8,8% das meninas e 4,2% dos meninos. No geral, a maioria desses adolescentes começou a fazer uso de drogas ilícitas aos 14 anos (37%), sendo que 52,4% das meninas e 62,5% dos meninos as utilizaram apenas uma vez na vida. Apesar disso, é interessante observar que as meninas também relataram um uso duas vezes superior ao de meninos, novamente contraditório ao esperado e recorrente na literatura. Em outras pesquisas, como a PeNSE (IBGE, 2013), o uso de drogas ilícitas (maconha, cocaína, crack, cola, loló, lança perfume e ecstasy) é mais comum entre meninos (8,3%) do que em meninas (6,4%).

A porcentagem de adolescentes que afirmou ter tido relações sexuais é equivalente em todo o grupo de entrevistados, sendo 21,6% nas meninas e 20,4% nos meninos. O mesmo se repete no que se refere à faixa de idade na qual ocorreu a primeira relação sexual: preponderantemente aos 15 anos - meninas (29,5%) e meninos (28,5%). Dos entrevistados que afirmaram terem tido relações sexuais, 88,6% das meninas e 72,7% dos meninos afirmaram usar preservativos em suas relações sexuais. No geral, 61,3% dos adolescentes que praticaram sexo utilizaram preservativos em todas as suas relações, outros 18,7% apenas em alguns encontros, e 10,7% somente uma vez. Alves e Brandão (2009) concluíram, em sua pesquisa, que o uso de preservativos pelos adolescentes pode estar associado com relações esporádicas e, à medida que se envolvem em relações mais estáveis, quando existe confiança no(a) parceiro(a), substituem os preservativos pela pílula anticoncepcional e também minimizam a possibilidade de transmissão de doenças sexualmente transmissíveis (DST's).

Em ambos os sexos, a conversa com os pais sobre relações sexuais frequente ou regularmente se apresentou em 25,9% em ambos os sexos. Por outro lado, 73% das moças e 71,4% dos rapazes afirmaram que nunca ou raramente conversam com seus pais sobre esse tema. Entretanto a conversa com os amigos sobre a vida sexual se mostrou mais frequente do que com os pais, já que 57,4% das meninas e 54,5% dos meninos afirmaram terem esse tipo de conversa.

Outro dado relevante se refere ao fato de que 46,1% das meninas, assim como 47,6% dos meninos disseram que nunca ou raramente tiveram uma conversa com seus pais sobre saúde. Quando perguntados se conversavam sobre saúde com os amigos, 79,9% das meninas e 76,9% dos meninos nunca ou raramente conversaram sobre esse assunto. A maior abertura dos adolescentes para conversarem com os seus pais sobre saúde talvez seja explicada por Alarcão (2000), ao afirmar que essa abertura é dada pelo vínculo afetivo que se desenvolve na família, pois é o primeiro contato, começando no processo de socialização precoce. Só depois o contato com a escola acontece e mais tardiamente com os amigos e/ou parceiros.

 

Relação dos adolescentes com a Unidade Básica de Saúde (UBS)

De modo geral, grande parte dos adolescentes afirmou que eles e suas famílias usam planos de saúde (73,8%). Essa adesão significativa aos serviços de saúde suplementar pode ser justificada uma vez que, atualmente, grande parte desses planos é oferecida aos trabalhadores através de convênios com empresas comerciais, atendendo uma população mais jovem, saudável e economicamente ativa (Paim, Travassos, Almeida, Bahia, & Macinko, 2011).

Na Tabela 3, encontra-se descrita a frequência dos adolescentes entrevistados, aos serviços de saúde nos últimos doze meses em que a pesquisa foi realizada:

Analisando a Tabela 3, nota-se que a maior parte dos adolescentes afirmou ser mais frequente a visita aos hospitais, quando precisaram recorrer a um atendimento de saúde, com exceção de ir à farmácia. Em um estudo semelhante, realizado com adolescentes mineiros, também foi possível constatar uma maior procura de ações curativas (Reis et al., 2013). Esse comportamento pode ser justificado pelo fato de a cultura brasileira ainda ser, em grande parte, hospitalocêntrica, ou seja, o hospital é sinônimo imediato da prestação de serviços de saúde, ignorando a atenção primária e secundária que são outros meios de resolução de problemas com maior rapidez e eficácia dependendo da complexidade.

Apesar da procura pelas UBS ser menor entre adolescentes de ambos os sexos, observa-se que esse número é ainda menor quando considerado o público masculino. Nesse sentido, os garotos foram os que mais referiram utilizar os hospitais e pronto-atendimento e, ao mesmo tempo, os que menos utilizam os dispositivos com maior potencial de realização de atividades de prevenção de agravos, como clínicas médicas, odontológicas e UBS, além de laboratórios e farmácias. Esse quadro também vem sendo constatado em outros estudos, com homens adultos, nos quais constata-se uma menor utilização dos serviços de promoção da saúde e prevenção dos agravos, quando comparados com o público feminino (Medrado et al., 2009; Silva et al., 2011).

Nota-se que os sentidos atribuídos ao ser-homem e ser-mulher, bem como a forma como as masculinidades e feminilidades são vivenciadas cotidianamente, interferem nas práticas de cuidado do público adolescente. Nesse sentido, observa-se que, já na adolescência, os jovens já apresentam comportamentos que refletem o processo de divisão sexual do cuidado, em que os homens atestam sua virilidade por meio de comportamentos de risco, e as mulheres são estimuladas, desde tenra idade, a desenvolver hábitos constantes de autocuidado, em especial aqueles relacionados à promoção da saúde e prevenção de doenças (Gomes, 2008).

Por outro lado, 83,8% das meninas e 77,6% dos meninos afirmaram saber da existência de uma UBS em seus bairros. Além disso, a maior parte dos entrevistados (67,7%) afirmou que as UBS se localizam próximos às suas moradias. Nessa mesma direção, 92,2% das meninas e 91,6% dos meninos afirmaram ter acessado a UBS nos doze meses que antecederam à pesquisa, sendo que grande parte relatou que foi acompanhada por algum responsável.

Os principais motivos citados para que os adolescentes recorressem às UBS foram: por apresentarem sintomas de alguma doença (36,9%), fazerem um exame de rotina (22,2%), para consultarem o dentista (20,2%) e para acompanharem outra pessoa que iria consultar (19,6%), por terem sofrido algum acidente (6,3%).

Ao serem questionados acerca da UBS próxima a sua casa, 68,9% dos adolescentes afirmaram não gostar de utilizá-la. Um número também preocupante (50,5%) de adolescentes também afirmou que não procura os profissionais de saúde para esclarecer suas dúvidas. Na mesma vertente, o atendimento recebido em uma UBS foi avaliado como adequado apenas por 45,6% dos participantes. Por meio de perguntas abertas, os entrevistados também foram estimulados a citar os pontos negativos e positivos percebidos por eles nas UBS. A Tabela 4 apresenta uma sistematização das respostas dos adolescentes, agrupadas em categorias:

Analisando as respostas, de modo geral, nota-se que o bom atendimento, a competência profissional e a disponibilidade de medicamentos (49%) são percebidos pelos adolescentes como pontos positivos das UBS. No que tange às reclamações, estas se fundamentam na demora no atendimento, na superlotação e espaço físico reduzido (41,8%). Portanto a expansão dos programas de atenção primária, como a Estratégia de Saúde da Família (ESF) e o Programa de Saúde na Escola (PSE), é fundamental para difundir a prevenção e minimizar a necessidade de as pessoas recorrerem aos centros de saúde ou outras instituições de saúde.

Estudos semelhantes vêm apontando para a insatisfação dos adolescentes com os serviços e ações oferecidos no âmbito da Atenção Básica, bem como para a fragilidade dos vínculos estabelecidos entre esses as Equipes de Saúde da Família e o público infanto-juvenil (Nogueira, Modena, & Schall, 2010; Costa, Queiroz, & Zeitoune, 2012; Marques & Queiroz, 2012).

Nesse sentido, torna-se necessária a construção de dispositivos de escuta dos adolescentes nos serviços de saúde e o reconhecimento de suas singularidades e necessidades específicas. Ainda nessa direção e, conforme indicado nas Diretrizes Nacionais para a Atenção Integral à Saúde de Adolescentes e Jovens na Promoção, Proteção e Recuperação da Saúde (Brasil, 2010):

(...) a produção de saúde para adolescentes e jovens não se faz sem que haja fortes laços intersetoriais que abram canais entre o setor saúde e a participação e colaboração de outros setores, e da própria comunidade, especialmente das pessoas jovens e suas famílias, uma vez que as necessidades de saúde ampliada, dessa população, ultrapassam as ações do setor saúde (p. 15).

Desse modo, faz-se necessário ressignificar as ações voltadas para a população adolescente no âmbito do SUS, de maneira que, tanto as necessidades específicas, quanto as singularidades relacionados ao processo de desenvolvimento humano sejam consideradas e problematizadas. Tal movimento não pode se dar alheio à inclusão dos próprios adolescentes no processo de (re)construção da assistência a ele dirigida. Portanto considerar suas percepções acerca dos serviços e equipes de saúde e compreendê-las de forma atenta e crítica parece ser um caminho promissor para garantir a efetividade das práticas de saúde voltadas a esse público específico.

 

Gênero, autocuidado e práticas de saúde

Os resultados do presente estudo apontam para influências do processo de socialização e construção social das identidades masculinas e femininas nas práticas de autocuidado entre o grupo de adolescentes. Conforme destacado, apesar dos avanços e conquistas de movimentos que lutam pela equidade entre os gêneros, ainda é possível perceber os efeitos das desigualdades de gênero sobre a vida de homens e mulheres, especialmente sobre os modos como concebem e cuidam da sua saúde. Desse modo, os sentidos atribuídos ao ser-homem e ser-mulher, bem como os diferentes modos como as masculinidades e feminilidades são vivenciadas cotidianamente por esse público, parecem contribuir para o delineamento de práticas distintas entre esse grupo, em especial, no que se refere ao uso de álcool, cigarros, drogas ilícitas e, ainda, na construção de relacionamentos afetivo-sexuais e na prática de atividades físicas.

Nessa perspectiva, observa-se que, já na adolescência, os jovens apresentam comportamentos que refletem o processo de divisão sexual do cuidado, no qual os homens buscam exercer modos de vida que possibilitem atestar aos demais a sua virilidade, e as mulheres são estimuladas, desde tenra idade, a desenvolver hábitos constantes de autocuidado. Por outro lado, indícios de um processo de mudança também puderam ser observados, como por exemplo, no que se refere a maior utilização de álcool, cigarros e drogas ilícitas entre as adolescentes do sexo feminino, atestando que os papéis sociais de gênero não são estanques, mas, sim, dinâmicos e mutáveis em função do contexto sócio-histórico, político e cultural no qual os sujeitos se inserem.

Vale ressaltar também que, ao comparar as afirmações dos adolescentes participantes deste estudo com pesquisas realizadas com o público adulto, percebe-se uma maior similaridade nos modos como meninos e meninas exercitam o autocuidado. Esse fenômeno pode ser explicado pelo fato de que as questões de gênero encontram-se intimamente relacionadas às questões geracionais. Dado o seu caráter histórico e contextualizado em tempos e territórios específicos, é possível perceber novos modelos de masculinidade e feminilidade serem apropriados pelos adolescentes, resultando em comportamentos mais flexíveis e que ampliam as possibilidades de cuidado, em especial, no que se refere ao público masculino. Tais resultados se mostram, em alguma medida, esperançosos, uma vez que apontam para avanços no alcance da equidade de gênero e uma maior flexibilidade nos papéis sociais de homens e mulheres.

Por outro lado, os resultados também chamam a atenção para a marcante divisão sexual do cuidado ainda presente em nosso contexto, mesmo entre as gerações mais jovens, indicando que ainda é preciso investir em estratégias que contribuam para a reflexão crítica sobre as desigualdades sociais entre homens e mulheres. Apesar de não se tratar de um estudo representativo da população adolescente brasileira, os dados apontam para a necessidade de maior investimento em ações de saúde e educação que trabalhem a temática de gênero de forma transversal, possibilitando instaurar espaços de diálogo e que incluam a participação dos próprios adolescentes na reflexão e transformação desse cenário.

Conforme destaca Scott (1995), faz-se necessário lembrar o caráter sociocultural e histórico das questões de gênero e, portanto, romper com discursos essencialistas que naturalizam as diferenças e desigualdades entre homens e mulheres por meio de discursos biologicistas ou que, frequentemente, tomam a cultura como um determinante a-histórico que justifica as desigualdades sociais, mas que, ao mesmo tempo, inviabilizam as possibilidades de mudança. É preciso resgatar que é justamente o caráter sociocultural das questões de gênero que viabilizam e inspiram as idealizações de modificação nos modos de pensar, sentir e agir em relação às masculinidades e feminilidades. Portanto faz-se necessário e urgente, investir em estratégias educativas em saúde que busquem ir transpor a dimensão informativa e conteudista e que inclua nas suas discussões temas socioculturais, como por exemplo, a perspectiva de gênero, raça e classe social, explorando as experiências cotidianas dos sujeitos diante do cuidado.

Os dados também apontam que os adolescentes utilizam, ainda que de diferentes formas e por diferentes motivos, os serviços ofertados nas UBS. Entretanto estes ainda se deparam com problemas relacionados a estrutura e organização das instituições de saúde, também identificados por outros grupos populacionais, como adultos e idosos. Tais desafios configuram-se como barreiras que, além de dificultar a utilização dos serviços também favorecem a construção e manutenção de uma opinião negativa dos adolescentes sobre as UBS, refletindo na fragilidade dos vínculos entre esses sujeitos e os profissionais que atuam nesses espaços. Assim, torna-se necessário investir em ações que considerem as opiniões e experiências dos adolescentes diante dos serviços de saúde, buscando incluí-los nos processos de construção de um SUS universal, integral e equânime.

 

Considerações Finais

Os resultados do presente estudo revelam efeitos do processo de socialização de meninos e meninas e suas influências no âmbito da saúde e do autocuidado. Apesar das constantes mudanças nos papéis sociais de homens e mulheres, ainda é possível perceber a divisão sexual do cuidado que delineia e restringe práticas de saúde a cada sexo/gênero. Ainda hoje, que meninos e meninas vivenciam processos de socialização distintos que contribuem para singularidades nos modos como exercem o autocuidado, bem como na maneira que se vinculam aos serviços e equipes de saúde.

Os resultados também corroboram com a literatura científica que destaca a necessidade de maiores investimentos na compreensão dos diferentes modos que os adolescentes se vinculam aos serviços de saúde e às práticas de cuidado, especialmente, no que se refere à influência das questões de gênero. Desse modo, o estudo se soma a outras produções científicas da área que apontam para o distanciamento dos adolescentes dos serviços e ações da Atenção Primária à Saúde e revelam a fragilidade dos vínculos entre esse público dos profissionais e das ações ofertadas pelas instituições de saúde.

Também reforça a necessidade de profissionais e gestores investirem na construção de propostas que levem em conta as singularidades e as necessidades em saúde desse público específico, numa perspectiva integral que transcenda a dimensão biológica. Por outro lado, a inclusão da temática de gênero nesse cenário ainda esbarra em discursos essencialistas e extremistas que, ainda hoje, vêm ganhando forças e formas como, por exemplo, em propostas que defendem o silenciamento do debate da temática de gênero no contexto educativo e da saúde. Os resultados do presente estudo, junto com outras pesquisas da área, reforçam a necessidade de transformar as práticas de saúde, sejam estas educativas ou assistenciais, tendo em vista as evidências das implicações dos modos de conceber as masculinidades e feminilidades nas condições de saúde e nas práticas de autocuidado do público adolescente.

Por fim, também é preciso reconhecer que os resultados dessa investigação se limitam a um grupo de adolescentes que vivem em grandes centros urbanos e matriculados em escolas públicas, sendo necessária a realização de novas investigações que incluam outros grupos de adolescentes como os rurais, indígenas e de pequenas cidades e, ainda, estudantes de escolas privadas. Tais estudos poderiam auxiliar na compreensão de outros modos de construção e experiência tanto da adolescência, como também, das masculinidades e feminilidades.

 

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Recebido: 20/04/2016
Última revisão: 19/12/2016
Aceite final: 02/02/2017

 

 

1 Visando a uma melhor apresentação dos resultados, no presente estudo, será utilizado o termo "sexo" quando remeter às diferenças sexuais, e "gênero" quando a referência estiver relacionada à construção social das masculinidades e feminilidades. Entretanto é preciso considerar que, mesmo a dimensão biológica, representada pela anatomia sexual, não se encontra alheia às questões de gênero, também sendo permeadas por discursos que transformam essas diferenças em dispositivos de desigualdades sociais (Scott, 1995; Gomes, 2008).

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