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Revista Psicologia e Saúde

versão On-line ISSN 2177-093X

Rev. Psicol. Saúde vol.9 no.2 Campo Grande ago. 2017

http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v9i2.498 

ARTIGOS

 

Movimento da reforma psiquiátrica em Goiânia, GO: trajetória histórica e implantação dos primeiros serviços substitutivos

 

Movement of the psychiatric reform in Goiania, GO: historical trajectory and implementation of the first substitute services

 

El movimiento de la reforma psiquiátrica en Goiânia, GO: trayectoria histórica e implantación de los primeros servicios substitutivos

 

 

Débora Jerónima ArantesI;; Gisele ToassaII

IBacharel e Licenciada em Psicologia pela Universidade Federal de Goiás (UFG), mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGPS/UERJ). E-mail: deboraarantes_@hotmail.com
IIProfessora Doutora da Universidade Federal de Goiás e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás. E-mail: gtoassa@gmail.com

Endereço de contato

 

 


RESUMO

O artigo investiga a trajetória histórica do movimento da Reforma Psiquiátrica em Goiânia, GO, objetivando mapear a implantação dos primeiros serviços substitutivos do município, entre os anos 2000 e 2004. O recorte temporal tem por referência o período de transformações nas políticas de assistência à saúde mental no âmbito nacional e local, principalmente após a promulgação da Lei 10.216/2001. A investigação fundamenta-se no método historiográfico tendo como procedimentos a pesquisa bibliográfica e documental. A fundamentação teórica abrange aspectos introdutórios do fenômeno em questão e apresenta alguns desdobramentos do movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil e em Goiânia. Posteriormente, desenvolve-se o mapeamento da implantação dos primeiros serviços substitutivos de Goiânia. A realização do trabalho permitiu sistematizar os principais acontecimentos e atores sociais da Reforma Psiquiátrica em Goiânia, possibilitando resgatar e dar visibilidade à trajetória histórica desse movimento e contribuir com o debate no campo da saúde mental no Brasil.

Palavras-chave: saúde mental, desinstitucionalização, história da psicologia, Goiânia


ABSTRACT

The article investigates the historical trajectory of the Psychiatric Reform movement in Goiania, GO, aiming at mapping the implementation of the first substitutive services in the municipality, between the years 2000 and 2004. The temporal cut refers to the changes in mental health care policies in national and local levels, especially after the enactment of Law 10.216/2001. The investigation is based on the historiographic method having as procedures such as bibliographical and documentary analysis. The theoretical foundation covers introductory aspects of the phenomenon in question and presents some developments of the Psychiatric Reform movement in Brazil and in Goiânia. Subsequently, the mapping of the implantation of the first substitute services of Goiânia is developed. The work allowed systematizes the main events and social actors related to the Psychiatric Reform in Goiania, publicizing the historical trajectory of this movement and contribute to academic knowledge in the field of mental health in Brazil.

Keywords: mental health, deinstitutionalization, history of psychology, Goiania


RESUMEN

Este articulo investiga la trayectoria histórica del movimiento de la Reforma Psiquiátrica en Goiânia, GO, con el objetivo de trazar el mapa de los primeros servicios substitutivos del municipio, entre 2000 y 2004. El corte temporal se refiere al período de cambios en las políticas de atención de salud mental nacional y local, especialmente después de la promulgación de la Ley 10.216/2001. La investigación histórica se fundamenta en el análisis bibliográfico y documental. Se presentan algunos aspectos conceptuales del fenómeno en cuestión, así como la trayectoria de la Reforma Psiquiátrica en Brasil y Goiânia. Posteriormente, se explora la implementación de los primeros servicios de sustitución en Goiania. Hasta aquí, el trabajo permitió sistematizar los principales acontecimientos y actores sociales de la reforma psiquiátrica en Goiania, así como dar visibilidad a la trayectoria histórica de este movimiento, buscando contribuir al debate en el campo de la salud mental en Brasil.

Palabras clave: salud mental, desinstitucionalización, historia de la psicologia, Goiânia


 

 

Introdução

O movimento da Reforma Psiquiátrica e a implantação da rede de serviços substitutivos em saúde mental não foram processos uniformes em todas as regiões do país. Devido às diferenças históricas, políticas, sociais e econômicas entre as várias localidades, tais processos ocorreram de maneira distinta em cada uma delas. Diante disso, o presente artigo objetivou investigar a trajetória histórica do movimento da Reforma Psiquiátrica em Goiânia, capital do estado de Goiás (GO), e mapear o processo de implantação dos primeiros serviços substitutivos no município.

O recorte histórico do mapeamento dos serviços substitutivos abrangeu os anos de 2000 a 2004. Em 2000 foi inaugurado o primeiro serviço substitutivo da cidade de Goiânia, GO. No bojo da promulgação da Lei Federal 10.216 de 6 de abril de 2001 (Brasil, 2001), que redirecionou a assistência em saúde mental no país, a rede de serviços substitutivos passou a ser efetivamente implementada no município, obtendo, no ano de 2004, expressão no âmbito da cobertura assistencial local.

A pesquisa indicou que os registros sobre o processo da Reforma Psiquiátrica na realidade goianiense são escassos e localizados em fontes dispersas. Destarte, o estudo se justificou pela necessidade de resgate e sistematização do processo em Goiânia, apresentando os principais acontecimentos da Reforma Psiquiátrica local e contribuindo com o desenvolvimento de uma documentação histórica e de memória.

A metodologia adotada no estudo foi o método histórico que consiste em um procedimento concreto que investiga acontecimentos, processos e instituições do passado para verificar sua influência na sociedade de hoje (Lakatos & Marconi, 2003). Antunes (2008) corrobora com essa concepção ressaltando que, na pesquisa histórica e de memória,

deve-se procurar [...] juntar os elementos disponíveis, organizá-los, buscando compreender suas contradições e a dinâmica de seu movimento e, fundamentalmente, tentar, com a limitação inerente ao olhar do presente, mais se aproximar do passado e compreendê-lo a partir dos sinais que permaneceram. Melhor compreendendo o passado e seu processo de construção, certamente se tornará mais límpida a compreensão do presente, no qual o passado se encontra como uma determinação e base de sustentação (p. 84).

Os procedimentos de pesquisa adotados foram, por um lado, uma revisão bibliográfica sobre o tema, para o desenvolvimento da fundamentação teórica, e por outro, o levantamento documental. A pesquisa bibliográfica foi realizada em fontes impressas e eletrônicas, estas últimas mediante levantamento nos principais portais de pesquisa em saúde e Psicologia tais como: SciELO (Biblioteca Virtual em Saúde - Fundação Osvaldo Cruz), LILACS (Literatura Latino Americana em Ciências de La Salud), PePSIC (Periódicos Eletrônicos em Psicologia), BVS-Psi (Biblioteca Virtual em Saúde - Psicologia Brasil) e portal do Ministério da Saúde. As palavras-chave pesquisadas foram: Reforma Psiquiátrica, luta antimanicomial, saúde mental, políticas de saúde mental, Reforma Psiquiátrica em Goiânia e saúde mental em Goiânia. Foi realizada leitura flutuante dos resumos dos artigos levantados para seleção do material.

Para investigação da história da Reforma Psiquiátrica em Goiânia, além da pesquisa bibliográfica, realizou-se o levantamento de documentos oficiais como normativas do Diário Oficial de Goiânia, relatórios da gestão local de saúde e saúde mental e noticias divulgadas por veículos de massa. Foram levantados documentos impressos e digitais, disponibilizados nos websites do Ministério da Saúde (MS) do Brasil, da Secretaria Estadual de Saúde (SES) de Goiás e Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Goiânia.

A recuperação de documentos é uma valiosa contribuição ao conhecimento. Contudo Brožek e Guerra (2008) ressaltam que "os documentos constituem a matéria-prima, dados crus da historiografia, não história mesma. Tornam-se história por meio de análise e elucidação" (p. 4). Assim, com base nos autores, entende-se que a síntese histórica deve ter raízes nos fatos, mas é preciso ir além da matéria-prima, para ver e apresentar os fatos na perspectiva interpretativa, ou seja, é necessário abordar os determinantes do contexto sócio-histórico em que estes foram produzidos.

O artigo estrutura-se apresentando, inicialmente, as bases teóricas da Reforma Psiquiátrica, a seguir apresenta-se a história do movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil em Goiânia, GO. Por fim, desenvolvem-se o mapeamento e as análises sobre o processo de implantação dos primeiros serviços substitutivos no município.

 

Reforma Psiquiátrica e as Transformações no Modelo de Assistência à Saúde Mental

Destaca-se o século XX como período de críticas, transformações e reformas no campo da psiquiatria. No início do século, as críticas e iniciativas reformadoras incidiram sobre os mani-cômios/asilos em uma perspectiva de humanização do atendimento aos sujeitos que se encontravam nessas instituições (Amarante, 2015). No período pós-Segunda Guerra Mundial emergiram questionamentos em todo o mundo ocidental e críticas às ciências humanas clássicas, especialmente à Psiquiatria e Psicologia como ciência e profissão. Nesse período, o foco passou do âmbito individual para o coletivo, buscando-se a prevenção e promoção da saúde mental das comunidades (Birman & Costa, 1994).

O debate efervescente dos intelectuais desse período culminou em movimentos reformistas de ruptura teórico-metodológica com a ciência psiquiátrica clássica (Patto, 1999). Os movimentos de "psiquiatria reformada" - conceito proposto originalmente por Rotelli (1990) e adotado por Amarante (2015; 2013) em sua análise da psiquiatria contemporânea -foram: a Psicoterapia Institucional, as Comunidades terapêuticas, a Psiquiatria de Setor, a Psiquiatria Preventiva ou Comunitária. Esses movimentos mantiveram a lógica da psiquiatria clássica da terapêutica moral visando à adaptação social, mas a despeito de suas limitações marcaram a mudança paulatina da ênfase na doença mental para o foco na promoção da saúde mental, fundando um novo objeto e campo para a psiquiatria e possibilitando novos rumos teóricos e assistenciais (Birman & Costa, 1994).

Não obstante os indícios efetivos de ruptura teórico-metodológica e política com a ciência psiquiátrica clássica, estes emergiram com o movimento da Antipsiquiatria e da Psiquiatria Democrática. Este último movimento foi desenvolvido pelo psiquiatra Franco Basaglia na Itália, a partir da década de 1960. Os princípios e estratégias desse movimento eram a desconstrução e superação do aparato manicomial, fundado no isolamento, segregação e patologização da loucura (Amarante, 2013). Foi a partir desse processo que se constituiu o campo da saúde mental, tal qual compreendemos hoje, fundado no paradigma psicossocial e no princípio de desinstitucionalização do cuidado e assistência às pessoas em sofrimento psíquico/mental.

O modelo psicossocial em saúde mental tem a finalidade de resgatar atuações voltadas para a o cuidado e (re)inserção social com foco na pessoa concreta, seu sofrimento e sua história de vida, e não na doença (Silva, 2013). Assim, considera "inaceitável a utilização da psiquiatria como instrumento de segregação e controle social. Desvincula-se do foco na doença mental para apropriar-se da atenção psicossocial como meio de resgate da cidadania e autonomia do sujeito que sofre" (Tavares, Rabelo, & Faria, 2009, p. 21).

A desinstitucionalização busca construir um novo lugar social para as pessoas em sofrimento psíquico/mental objetivando transformar "a relação entre a sociedade e a loucura, questionando não só as instituições e práticas psiquiátricas vigentes, mas também os conceitos e saberes que dão fundamento e legitimidade a tais práticas" (Amarante, 2013, p. 12). Destarte, é entendida como um processo de desospitalização, mas não só, configurando-se principalmente por um processo de busca de novos conceitos e espaços de cuidado e assistência extra-hospitalar e de construção de um novo olhar social sobre a loucura (Amarante, 2013; Bezerra Júnior, 2007).

O Movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil emergiu no final da década de 1970. Nesse período, o país passava por um processo de redemocratização (Tenório, 2002; Furtado & Campos, 2005; Goulart, 2006), o qual influenciou e se inter-relacionou ao movimento da reforma psiquiátrica requerendo o resgate dos direitos e cidadania do "louco" (Tenório,

2002). Em meados de 1978, consolidou-se o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) que foi o ator político privilegiado na conceituação, divulgação, mobilização e implantação das práticas e políticas transformadoras instituídas ao longo das décadas de 1980 e 1990 no campo da saúde mental (Amarante, 2015).

Ao longo do processo histórico, mais precisamente no final da década de 1980, o Movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil consolidou-se como antimanicomial agregando novos atores sociais à luta do MTSM, os usuários e familiares. Destarte, passou-se a reivindicar a desinstitucionalização psiquiátrica e criação de serviços substitutivos com fins à efetivação de um modelo de cuidado em saúde mental pautado na atenção psicossocial e comunitária para inclusão e reabilitação social das pessoas com transtornos mentais (Brasil, 2004a).

O deputado Paulo Delgado (PT), em consonância com as reivindicações da Reforma Psiquiátrica, propôs em 1989 o Projeto de Lei n. 3.657, que tinha como conteúdo impedir a construção de novos hospitais psiquiátricos pelo poder público; propor a utilização dos recursos para a criação de serviços substitutivos; e obrigar a comunicação das internações compulsórias para as autoridades jurídicas (Tenório, 2002; Vietta, Kodato, & Furlan, 2001).

O projeto enfrentou desafios para sua implementação enquanto Lei, mas proporcionou um ambiente favorável para o debate de uma sociedade sem manicômios no âmbito parlamentar, influenciando a formulação de leis estaduais e municipais fundadas nos preceitos da Reforma Psiquiátrica antimanicomial (Moreira, 2014; Goulart, 2006). Nesse cenário, o Estado foi, finalmente, cumprindo a sua parte, "normas foram surgindo, decisões foram sendo tomadas, e enfrentamentos eternamente adiados - especialmente com o aparato hospitalar - passaram a ser o quotidiano dos gestores e militantes que assumiam a causa da Reforma" (Brasil, 2004b, p. 333).

Em 2001, o Projeto de Lei n. 3.657 foi promulgado, doze anos após ser proposto, em 1989, sofrendo alterações em seu conteúdo original (Tenório, 2002). Esse fato corrobora a análise de que "as ações em Saúde Pública são sempre práticas sociais e revelam o jogo de forças e interesse em questão em determinada situação" (Campos & Gama, 2010 p. 231). A lei n. 10.216 (Brasil, 2001) concretizou a mudança na política pública de assistência/cuidado em saúde mental no país, sendo uma conquista do movimento da Reforma Psiquiátrica. A partir dessa Lei e das portarias ministeriais subsequentes, a rede de serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos passou a ser implantada em todo país enquanto uma política pública de atenção à saúde mental do Sistema Único de Saúde (SUS) (Furtado & Campos, 2005).

A rede de atenção à saúde mental é maior que os serviços substitutivos dos municípios, pois articula os serviços com outras instituições e espaços da cidade, em busca da emancipação e (re)inserção social das pessoas com transtorno mental (Brasil, 2005). Os serviços substitutivos fundamentam-se nas diretrizes do modelo psicossocial e na política de desinstitucionalização, tendo como fim a cidadania e inclusão social das pessoas em sofrimento psíquico/mental grave (Brasil, 2004a, 2005).

Um dos serviços substitutivos criados pelo processo da Reforma Psiquiátrica foram os Centros de Atenção Psicossociais (CAPS) regulados pela portaria n. 336/2002. Com a consolidação do modelo psicossocial, integrado à rede do Sistema Único de Saúde (SUS), os CAPS constituíram-se os dispositivos estratégicos da Reforma Psiquiátrica, possibilitando o deslocamento do cuidado para fora dos hospitais e em direção à comunidade. Com a promulgação da portaria n. 3.088 (BRASIL, 2011a), os CAPS foram designados como os serviços especializados da RAPS e por definição,

têm a missão de dar um atendimento diuturno às pessoas que sofrem com transtornos mentais severos e persistentes, num dado território, oferecendo cuidados clínicos e de reabilitação psicossocial, com o objetivo de substituir o modelo hospitalocêntrico, evitando as internações e favorecendo o exercício da cidadania e da inclusão social dos usuários e de suas famílias (Brasil, 2004a, p. 12).

Além dos CAPS, o modelo psicossocial possui outros dispositivos e serviços de cuidado em saúde mental, regulamentados com fins à garantia dos direitos e da cidadania das pessoas com transtorno ou sofrimento psíquico. Dentre os serviços substitutivos que compõem a rede de saúde mental, destacam-se os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), projetos de Economia Solidária, Centros de Cultura e Convivência, serviços de urgência e emergência1.

 

História do Movimento da Reforma Psiquiátrica em Goiânia, GO

O exposto acima possibilita discutir a história do movimento da Reforma Psiquiátrica em Goiânia, GO, planejada na década de 1930 e inaugurada em 24 de outubro de 1933. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2015) estima que a cidade de Goiânia tem aproximadamente 1.430.697 habitantes, distribuídos num território de 729, 018 km2. Por ser a capital, Goiânia recebe demandas de serviços da população do estado como um todo. A Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Goiânia distribui-se administrativamente em sete Distritos Sanitários (DSs) sendo: Distrito Sanitário Sul, Sudoeste, Oeste, Norte, Noroeste, Campinas/Centro e Leste (Goiânia, 2014).

Conforme análises desenvolvidas por Tavares (2007), Rodrigues (2010) e Silva (2013), a rede substitutiva de saúde mental de Goiânia teve seus primeiros avanços entre 1997 e 2004. Observam-se diferenças entre a constituição das práticas antimanicomiais no município e no cenário nacional, tendo em vista que, na região Sudeste e em alguns estados do Nordeste, as práticas desinstitucionalizantes datam da década de 1980. Como exposto, Goiânia foi uma cidade planejada sendo "jovem" se comparada aos grandes centros urbanos do Brasil, como São Paulo e Rio de Janeiro. Desse modo, sua experiência com o processo de exclusão da loucura e o acúmulo no debate antimanicomial configuraram-se de forma distinta.

A efervescência do debate antimanicomial em Goiânia foi concomitante às conquistas do movimento sanitarista e da reforma psiquiátrica no plano nacional, com a criação do SUS e promulgação da lei federal de saúde mental Lei n. 10.2016/2001. Tal como no plano nacional foram as mobilizações dos atores e entidades sociais, como o Fórum Goiano de Saúde Mental (FGSM) - formado por trabalhadores, usuários, familiares, entidades e sociedade em geral - que levaram ao surgimento de um novo modelo de atenção ao sofrimento psíquico na cidade de Goiânia (Tavares, 2007).

Em Goiânia, as primeiras práticas que se diferenciam do tratamento psiquiátrico clássico começaram no Hospital Psiquiátrico Professor Adauto Botelho, através de um pequeno grupo de profissionais que atendiam no modelo Hospital-dia, no qual alguns pacientes podiam ir embora para casa no final do dia (Guilardi, Ferreira, & Zanini, 2005).

Em 1995, foi inaugurada a Casa de Atenção Integral em Saúde Mental Água-Viva, primeira instituição de Saúde Mental de Goiânia pensada para ser um espaço de atenção diária (Silva, 2010; Guilardi et al., 2005). O ano de 1995 foi marcado também por vários acontecimentos, como a desativação do Hospital Psiquiátrico Professor Adauto Botelho, em função das péssimas condições de suas instalações; fundação da Associação dos Usuários de Saúde Mental do Estado de Goiás (AUSSM/GO); implantação do ambulatório de psiquiatria no Pronto Socorro Psiquiátrico Wassily Chuc (PSPWC) (Guilardi et al., 2005). Analisamos que o primeiro fato foi determinante para os dois segundos, pois com a desativação do Hospital Psiquiátrico da cidade, os usuários passaram a se organizar formalmente na luta pela cidadania, e começaram a surgir novos serviços e práticas de assistência em saúde mental.

Analisa-se, também, que, por ser o único hospital psiquiátrico público da cidade de Goiânia, o fechamento do Hospital Adauto Botelho representou um avanço, mas também um enorme desafio. O fechamento da instituição foi uma vitória no âmbito da implementação da Reforma Psiquiátrica no município, mas ocorreu antes da constituição da rede de atenção à saúde mental para dar suporte à população. Desse modo, a prática manicomial se fortaleceu por meio da oferta de leitos em clínicas/hospitais psiquiátricos privados convenia-dos com o SUS, seguindo uma lógica de privatização já efetiva no Brasil desde o golpe militar de 1964 (Devera & Costa-Rosa, 2007; Tenório, 2002).

Em 1997, Nion Albernaz (PSDB) assumiu a prefeitura de Goiânia, nomeando Elias Rassi como Secretário de Saúde do município. Segundo os dados de Guilardi et al. (2005), o secretário compreendeu o novo modelo de assistência em saúde mental e com ele contribuiu. No entanto não se pode dizer o mesmo do então Governador do Estado, Maguito Vilela (PMDB), que, por interesses do mercado imobiliário, travou embates com os movimentos sociais locais sobre o destino do prédio em que funcionava o Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho, o qual acabou sendo demolido.

Em 1997, foi iniciada pelo PSPWC e o Hospital-dia a municipalização da saúde mental em Goiânia (Guilardi et al., 2005; Tavares, 2007). Esse processo ocorreu sete anos após a implementação do SUS (em 1990), que tem, como uma de suas diretrizes, a descentralização. Esse extenso intervalo de tempo pode ser analisado como resistência à emergência do modelo de assistência da Reforma Sanitária e Psiquiátrica no âmbito local. Nesse contexto e frente às mobilizações sociais nacionais e locais, no ano de 1997 a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Goiânia iniciou o processo de reestruturação de sua Política Pública de Saúde Mental (Silva, 2013). Em 8 de abril de 1998, foi promulgada a lei municipal n. 7.775, que dispõe sobre a política de atenção integral à saúde mental no município, abrangendo da prevenção às ações nos níveis de promoção, assistência, reabilitação e pesquisa (Goiânia, 1998).

Segundo a Lei municipal n. 7.775, a política de atenção integral à saúde mental do município compreendia as seguintes ações e serviços: I- Núcleo de Atenção Psico-Social; II- Pronto Socorro; III- Leitos Psiquiátricos em Hospital Geral; IV- Pensão Protegida; V - Moradias; VI -Cooperativas; VII- Hospital Dia (Goiânia, 1998).

No ano 2000, o PSPWS passou a ser a porta de entrada do SUS para as internações psiquiátricas em Goiânia (Tavares, 2007), ação regulamentada posteriormente pela Portaria GM n. 251/2002. Destarte, a SMS de Goiânia estabeleceu como protocolo que toda internação psiquiátrica feita pelo SUS deve passar obrigatoriamente pelo PSPWC, sendo encaminhada por este serviço aos hospitais ou clínicas psiquiátricas. Caso não seja necessária a internação, deve-se realizar o encaminhamento aos serviços substitutivos ou outras unidades de saúde, segundo a demanda do usuário (Tavares, 2007).

Como consequência das transformações no modelo e na política de atenção à saúde mental de Goiânia, em novembro de 2000, foi inaugurado, com sede própria e equipe técnica multiprofissional, o NAPS do setor Novo Mundo. Este foi o marco inicial de implantação dos serviços substitutivos em saúde mental no município (Silva, 2013).

A Lei municipal n. 8.028, de 30 de novembro de 2000, autorizou a concessão de auxílio às famílias de portadores de doenças mentais internados nas clínicas psiquiátricas por períodos prolongados, no mínimo dois anos (Goiânia, 2000a). Essa lei se configurou como uma estratégia de desinstitucionalização, sendo superada pela Lei n. 10.708/2003, que institui, como parte do programa "De Volta Para Casa", o auxílio-reabilitação psicossocial para pacientes acometidos de transtornos mentais egressos de internações em âmbito nacional.

O Decreto n. 2.231, de novembro de 2000, aprovou o novo Regimento Interno da SMS e reestruturou a Divisão de Saúde Mental (DSM) de Goiânia, à qual competia desenvolver programas de atendimento integral à saúde mental; planejar, programar e avaliar as ações e serviços de saúde mental do município; promover investigações epidemiológicas no campo da saúde mental; promover, acompanhar e avaliar atividades de formação e qualificação de equipes multiprofissionais; e manter integração com as demais áreas de atuação em Saúde Mental no âmbito do município (Goiânia, 2000b).

Com relação ao cenário geral da saúde mental, em 2000, segundo o Jornal informativo do Fórum Goiano de Saúde Mental (citado por Guilardi et al., 2005) Goiânia,

contava com 10 hospitais psiquiátricos conveniados com o SUS com cerca de 1600 leitos, que representam 2% de todos os leitos psiquiátricos do país. O total de hospitalizações em Goiânia, segundo o DATASUS, nos anos de 1988 e 1999 foram de 13% em psiquiatria, o que correspondeu ao dobro da média Brasileira (6,7%) no mesmo período. Estima-se que o número de moradores nas clínicas seja elevado e aproxima-se de 100 (p. 25).

 

Mapeando a Rede de Serviços Substitutivos de Goiânia, GO

No ano de 2001, na gestão do prefeito Pedro Wilson (PT), sendo Otaliba Libânio o secretário de saúde, militantes do FGSM assumiram a Divisão de Saúde Mental (DSM) da SMS, impulsionando a continuidade das mudanças na assistência em saúde mental e os avanços da Reforma Psiquiátrica no município de Goiânia. Assim, em consonância com a promulgação da Lei 10.216/2001 e as legislações subsequentes, começou a se concretizar a implantação dos serviços substitutivos em Goiânia.

De acordo com o "Relatório Operacional: Implantação da Reforma Psiquiátrica em Goiânia", elaborado pela Divisão de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia (Goiânia, 2004a), a proposta era implantar um CAPS por DS na cidade de Goiânia, iniciando-se pelas regiões mais vulneráveis. Em 2001, inaugurou-se o CAPS Mendanha, tipo

II adulto, destinado a atender a região Noroeste e Oeste. Esse serviço posteriormente passou a se chamar CAPS Esperança. Segundo o respectivo relatório, nesse ano também foram convocados profissionais concursados para trabalhar na área da saúde mental, sendo oferecida capacitação.

No início da gestão da DSM, ano 2001, foi apresentada uma proposta de descentralização do Ambulatório Municipal de Psiquiatria seguindo a estrutura de funcionamento regionalizada dos DS, tendo em vista que tal serviço funcionava em uma edificação precária na região central. No entanto tal proposta não se concretizou devido à pressão dos psiquiatras que não queriam se deslocar para locais mais distantes, optando por permanecer na edificação precária, que mantinha o modelo médico (Goiânia, 2004a; Guilardi et al., 2005). Tal fato demonstra que o processo da Reforma Psiquiátrica em Goiânia constitui-se por avanços, mas também muitos desafios e resistência no interior do próprio sistema.

Em janeiro de 2002, foi instituída a Lei Municipal n. 8.088 criando o Conselho Municipal de Saúde (CMS) de Goiânia, enquanto um órgão colegiado, deliberativo, normativo, fiscali-zador e consultivo da saúde, no âmbito do SUS, no Município de Goiânia (Goiânia, 2002). A criação do CMS consistiu em um avanço no âmbito do controle social dos serviços de saúde em Goiânia, podendo ser considerado um avanço também no processo de descentralização do poder público atendendo aos preceitos das Reformas Sanitária e Psiquiátrica.

Nesse ano também foi aprovada a lei municipal n. 8129/2002, que criou a gratificação destinada especificamente para os médicos psiquiatras que exerciam suas atividades nos setores públicos de Urgência Psiquiátrica. Essa lei teve o objetivo de estimular a contratação desses profissionais de saúde, que se faziam escassos na rede psicossocial (Guilardi et al., 2005). Podemos indicar como justificativa para esse fato a tensão entre os paradigmas manicomial, ainda predominante na formação profissional, e o modelo psicossocial, que demandava novos saberes, práticas e novos espaços de assistência.

Como consequência das portarias nacionais n. 336/2002, 626/2002 e n. 1455/2003, a Casa de atenção Água Viva foi transformada em CAPS infantil. Guilardi et al. (2005) relatam que a conversão do modelo de ambulatório para o modelo CAPS garantiu o recebimento do incentivo do MS, mas não viabilizou, de fato, a existência de um CAPS infantil na cidade, pois este ainda funcionava em regime de ambulatório interdisciplinar.

O CAPS Novo Mundo, CAPS Esperança e CAPSi Água Viva foram cadastrados no MS em 2002. A Portaria Ministerial n. 1.455/2003 destinou incentivo financeiro para os novos CAPS cadastrados no MS em 2002 e 2003. Assim, receberam a verba os CAPS II Esperança e CAPSi Água Viva (R$ 30.000,00 para cada serviço). Segundo a Secretaria Municipal de Saúde (Goiânia, 2004a) foram encaminhados, em 2001 e 2002, projetos técnicos para firmar convênio entre MS e SMS, para implantação e financiamento de cinco novos CAPS. No entanto foram aprovados os projetos para implantação de apenas três novos CAPS, com recebimento do incentivo financeiro do MS no ato do cadastramento. Também foi solicitado incentivo para implantação de Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs).

Em 2002, a DSM conseguiu a cessão de uma casa, construída em terreno público, localizada no Setor Universitário para a implantação das unidades de atendimento a usuários de álcool e outras drogas. No entanto, por resistência da comunidade, a área foi cedida para a implantação do Programa Saúde da Família (PSF). A SMS autorizou o aluguel de imóvel para a implantação do serviço de saúde mental previsto nessa área (Goiânia, 2004a).

Ainda em 2002, ocorreram vistorias do PNASH-Psiquiatria, portaria n. 251/2002, nos hospitais psiquiátricos de Goiânia. Como resultado dessa avaliação foi estabelecido o fechamento da Clínica Espírita de Repouso, por falta de condições adequadas de funcionamento (Brasil, 2007). Nesse ano, a Clínica Bom Jesus também se descredenciou do SUS, encerrando suas atividades em 2003. Nos anos que se seguiram, o descredenciamento dessas duas instituições acarretou em uma redução significativa do número de leitos psiquiátricos em Goiânia, constituindo-se em uma autêntica vitória da luta antimanicomial local (Goiânia, 2004a).

Em decorrência do fechamento da clínica Bom Jesus, sete pacientes de longa permanência, três mulheres e quatro homens, foram levados para o PSPWC, no qual havia mais duas pacientes institucionalizadas. O projeto de implantação dos SRTs foi elaborado e apresentado à SMS de Goiânia, no entanto, devido à impossibilidade de montar a estrutura para tal serviço, foi ampliado o convênio já existente com a Santa Casa de Misericórdia para administração das residências, por meio de terceirização do serviço. A primeira residência implantada foi inaugurada no dia 22 de dezembro de 2003, recebendo mulheres e tendo como referência o CAPS Esperança (Goiânia, 2004a). Ainda em 2003, segundo levantamento do número de pacientes institucionalizados solicitado pelo MS, a cidade de Goiânia foi escolhida para receber o benefício do "Programa De Volta para Casa", segundo a Lei n. 10.708. A implantação do SRT do Novo Mundo ocorreu em 2004, recebendo os homens em situação de institucionalização (Goiânia, 2004a).

Mediante o decreto n. 2719 de 2003, foi estabelecida a política antidrogas do município de Goiânia, visando a promoção, prevenção, tratamento, recuperação e educação, voltada aos problemas decorrentes do uso do álcool e outras drogas. Essa política teve abrangência intersetorial sendo executada conforme a competência de cada área e acompanhada pelo Conselho Municipal de Entorpecentes (Goiânia, 2003).

O MS iniciou, em 2003/2004, em algumas regiões brasileiras, dentre elas a cidade de Goiânia, a realização de investigações clínicas, jurídicas e psicossociais das pessoas internadas em manicômios judiciários ou presídios comuns, revelando que grande parte dos internos poderia se beneficiar com tratamento na rede SUS extra-hospitalar de atenção à saúde mental (Brasil, 2007). Desse modo, no âmbito do Estado de Goiás e Goiânia foi implantado o Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (PAILI) (Goiânia, 2004a; Brasil, 2007).

Os três CAPS aprovados em 2001/2002 foram inaugurados em 2003, sendo que o Hospital-Dia se transformou em CAPS Vida, tipo II adulto, mudando-se de endereço para um local mais apropriado e com melhores condições, atendendo a região sul/sudeste. Em 15 de outubro de 2003, houve a abertura do CAPS Infantil Álcool e Drogas, CAPSadi Girassol e, em 19 de dezembro, foi inaugurado o CAPS II Beija-flor para adultos, localizado na região sudoeste. O CAPS Beija-flor referenciou a abertura do terceiro SRT feminino. Todos os novos serviços foram implantados através do aluguel de imóveis (Goiânia, 2004a; Guilardi et al., 2005).

Segundo Guilardi et al. (2005), os serviços substitutivos estavam tendo dificuldades na relação com a coordenação da Divisão de Saúde Mental, e vários eram os problemas com os serviços já existentes e, nos novos serviços criados, as novas equipes tinham muitas dificuldades em compreender o modelo da Reforma Psiquiátrica. Em 2004, houve a mudança da coordenação da saúde mental na SMS.

Com a intermediação do Sindicato dos Trabalhadores do Sistema Único de Saúde no Estado de Goiás (SINDSAÚDE), os trabalhadores dos CAPS conseguiram, mediante embate com o poder público, estender a gratificação de saúde mental para as outras categorias, além dos médicos, através do Decreto n. 1.577 de 28 de junho de 2004 (Goiânia, 2004b). Em 2004, teve início o primeiro Curso de Especialização em Saúde Mental, destinado aos trabalhadores de saúde mental, promovido pela Universidade Católica de Goiás e financiado principalmente pelo MS. Vê-se o empenho dos profissionais do campo em garantir conquistas corporativas, mas também se aperfeiçoar nos preceitos da reforma psiquiátrica. Ainda em 2004, foi inaugurado o CAPSad Casa, para adultos com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas (Goiânia, 2004a).

As unidades de saúde mental implantadas a partir de 2000 não eram regulamentadas oficialmente; os gestores das unidades desempenhavam os cargos informalmente, não recebendo gratificação para o exercício destes. Após discussão da DSM com o Colegiado de Saúde Mental, foram definidos três cargos de gestão, sendo a proposta apresentada à SMS (Goiânia, 2004a). Guilardi et al. (2005) relatam que, após muita luta, com manifestações dos usuários e trabalhadores, moções de repúdios, apoio do sindicato, o projeto de lei n. 78, que tratava da regulamentação dos CAPS, foi enviado para a Câmara Municipal de Goiânia no dia 29 de junho de 2004, um dia antes do início do período eleitoral no município de Goiânia. O Projeto de Lei enfrentou muitos desafios e impasses até sua aprovação através da lei n. 8.292, de 3 de dezembro de 2004, que regulamentou os CAPS e criou os cargos comissionados de gestores: Diretor Geral, Supervisor Técnico e Assistente Administrativo de Unidade Sanitária (Goiânia, 2004c).

Em síntese, entre os anos 2000 e 2004, foram inaugurados sete CAPS, sendo quatro CAPS II (Novo Mundo, Esperança, Vida e Beija-flor), CAPSi Água Viva, CAPSadi Girassol e CAPSad Casa e três SRTs. Os avanços foram a regulamentação dos CAPS, implementação dos cargos de gestores com gratificação, gratificação para os profissionais de saúde mental, contratação de servidores públicos concursados, atividades de formação para os profissionais, descre-denciamento de duas clínicas psiquiátricas e a redução do número de leitos e dos dias de internação.

No entanto, o PSP Wassily Chuc e o Ambulatório Municipal de Psiquiatria se mantiveram em funcionamento, embora estivessem na contramão da reforma psiquiátrica, devido à centralização do atendimento e estrutura física manicomial. Esses dois serviços têm abarcado, até os nossos dias, as demandas de crises e emergências do município, tendo em vista não ter sido implantado o CAPS III, 24 horas, como era proposto pela SMS de Goiânia desde 2004. Também não se efetivou a proposta da implantação de um CAPS por DS de Goiânia. As dificuldades materiais e estruturais dos novos serviços e a instabilidade do funcionamento em imóveis alugados foram outros obstáculos aos preceitos da reforma no período de análise.

 

Elucidações e Considerações Finais

O percurso histórico apresentado evidenciou que a assistência em saúde mental no Brasil e no município de Goiânia, em especial, passou por importantes transformações resultantes da Reforma Psiquiátrica e da luta antimanicomial. A emergência da Reforma Psiquiátrica, em um contexto não linear e histórico-social determinado, resultou em tensões entre o modelo manicomial e o modelo de atenção psicossocial e transformações na esfera da realidade, como, por exemplo, da cotidianidade de profissionais e usuários.

Em Goiânia, a emergência da atenção psicossocial e do projeto de desinstitucionalização desenvolveu-se no bojo das conquistas dos movimentos nacionais da reforma sanitária e psiquiátrica, que determinaram a constituição do SUS e as mudanças nas políticas públicas de saúde mental. Tal como no cenário nacional, as transformações locais emergiram dos movimentos sociais, travando-se o embate com o poder público pelo início da implantação dos serviços substitutivos no município.

O mapeamento da rede de saúde mental de Goiânia consistiu em um trabalho complexo, tendo em vista a escassez de material que sistematizasse essa trajetória. Contudo o levantamento bibliográfico e a recuperação de documentos sobre a Reforma Psiquiátrica em Goiânia permitiram organizar as relações entre os eventos passados, estabelecendo marcos significativos da trajetória da reforma. Assim, foi possível produzir um relato coerente e sistematizado desse recorte da realidade evidenciando alguns determinantes das políticas de saúde mental do município.

O início das transformações nas práticas e na política de saúde mental no município ocorreu em 1997, conforme exposto por Tavares (2007), Rodrigues (2010) e Silva (2013). Analisa-se que o processo de reestruturação da Política Pública de Saúde Mental (Lei n. 7.775/1998) e a implementação da rede de serviços substitutivos entre 2000 e 2004 ocorreram devido à mobilização dos movimentos sociais locais, articulados ao debate nacional, ao apoio de gestores da Secretaria Municipal de Saúde e pelo fato de militantes do movimento da Reforma Psiquiátrica terem sido indicados para coordenação da DSM.

Como exposto, a trajetória de implantação dos primeiros serviços substitutivos em Goiânia desenvolveu-se por mobilizações, embates com a lógica manicomial local e a busca de apoio do poder público para implantação do projeto de desinstitucionalização em Goiânia. Esse processo foi marcado por avanços e desafios. Como apontado por Antunes (2008), a compreensão do passado e seu processo de construção certamente possibilita uma compreensão mais clara do presente. Destarte, o trabalho buscou contribuir também para uma visão crítica da realidade da saúde mental de Goiânia.

Ressalta-se que a problemática descrita é complexa e os apontamentos e análises realizadas não esgotam a discussão acerca do fenômeno, sendo um dos objetivos do presente estudo fomentar futuras pesquisas de exploração da temática, além de produzir artigo complementar focando o período 2004-2015.

 

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Endereço de Contato:
Débora Jerônima Arantes
CLIO-PSYCHÉ- Programa de Estudos e Pesquisas em História da Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Rua São Francisco Xavier, 524, Maracanã
Rio de Janeiro- Brasil. E-mail: de-boraarantes_@hotmail.com

Recebido: 28/06/2016
Última revisão: 02/05/2017
Aceite final: 09/05/2017

 

 

1 A esse respeito ver: Brasil (2005; 2011a; 2011b).

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