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Revista Psicologia e Saúde

versão On-line ISSN 2177-093X

Rev. Psicol. Saúde vol.12 no.4 Campo Grande out./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.20435/pssa.vi.943 

RELATOS DE PESQUISA

 

População em situação de rua: trabalho em equipe e intersetorial

 

Population in street situation: team work and intersectionality

 

Población en situación de calle: trabajo en equipo e intersectorial

 

 

João Paulo Macedo; Adrielly Pereira de Sousa; Andressa Veras de Carvalho

Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar)

Endereço de contato

 

 


RESUMO

Este artigo tem por objetivo discutir o trabalho em equipe e intersetorial nas políticas sociais, na área da Saúde e Assistência Social, que assistem à População em Situação de Rua. A pesquisa empreendida é de natureza qualitativa. Para produção de dados, fez-se uso de entrevista semiestruturada, observação no cotidiano dos serviços e diário de campo. Participaram do estudo 15 profissionais integrantes das equipes dos serviços especializados na assistência à População em Situação de Rua, sendo cinco do Consultório na Rua e 10 do Centro Especializado para População em Situação de Rua. O perfil do público assistido, composto por necessidades complexas e que se estendem aos diversos núcleos profissionais e políticas setoriais, exige outras nuances ao fazer profissional: a imperatividade do trabalho em equipe e intersetorial. Embora imprescindível, tal perspectiva de trabalho colaborativo e em rede enfrenta desafios que comprometem a resolutividade e qualidade da assistência prestada.

Palavras-chave: pessoas em situação de rua, serviços de saúde pública, serviços sociais, intersetorialidade


ABSTRACT

This paper aims to discuss team and intersectoral work in social policies, in the field of Health and Social Care, that assist Population in Street Situation. The research carried out is of qualitative nature. For data production, we used a semi-structured interview script, observation of the services, and field diary. Participants were 15 professionals who are part of the teams of specialized services in care of Population in Street Situation, five of them were from the Street Clinic, and ten from the Centre for Population in Street Situation. The profile of the public attending these services, composed by complex needs, which are extended to several professional nuclei and sector politics, print other nuances to professional practice, such as the need for team and intersectoral work, which, although indispensable, face challenges that compromise the quality and resolution of the care provided.

Keywords: homeless people, public health services, social services, intersectoral collaboration


RESUMEN

Este artículo objetivó discutir el trabajo en equipo e intersectorial en las políticas sociales, en el área de la Salud y Asistencia Social, que asisten a la Población en Situación de Calle. Esta investigación tiene naturaleza cualitativa. Se utilizó entrevista semiestructurada, observación del cotidiano de los servicios y uso de diario de campo. Participaron del estudio 15 profesionales miembros de los equipos de los servicios especializados en asistencia a la Población en Situación de Calle, siendo cinco del Consultorio en la Calle y diez del Centro Especializado para la Población en Situación de Calle. El perfil del público asistido, compuesto de necesidades complejas y que se amplían a los diversos núcleos profesionales y políticas sectoriales, imprime otros matices al hacer profesional, como el imperativo del trabajo en equipo e intersectorial, que, aunque sean esenciales, enfrentan desafíos que comprometen la resolución y calidad de la asistencia proporcionada.

Palabras clave: personas sin hogar, servicios de salud pública, servicios sociales, colaboración intersectorial


 

 

Introdução

Este artigo é um recorte de uma pesquisa mais ampla que tratou da assistência, no âmbito das políticas sociais, voltada para População em Situação de Rua (PSR) na cidade de Teresina, PI. Para o presente artigo, objetivamos analisar as compreensões e os sentidos acerca das práticas de atenção e cuidado em torno do trabalho em equipe e intersetorial pelos profissionais que atuam nos serviços destinados à PSR nas áreas da Saúde e Assistência Social.

A PSR, enquanto fenômeno secular cujas origens e reprodução remetem ao surgimento e desenvolvimento do capitalismo, resulta numa população heterogênea, marcada por acentuado grau de marginalização e vulnerabilidade, com necessidades multidimensionais: desfiliação e conflitos familiares, falta de moradia e longa história de vida nas ruas, subemprego, níveis ínfimos de renda, pobreza, baixa escolaridade, problemas diversos de saúde, uso de substâncias psicoativas, exposição à violência etc. (Sicari & Zanella, 2018). Ademais, trata-se de uma população que vive sob a sombra de um paradoxo desconcertante: ao passo que as necessidades são complexas e extensivas aos distintos núcleos profissionais e setores das políticas públicas (Saúde, Direitos Humanos, Educação, Assistência Social, Trabalho e Renda, Habitação, Segurança Alimentar e Nutricional), é vigente o baixo nível de acesso desse segmento populacional a tais políticas (Paiva, Lira, Justino, Miranda, & Saraiva, 2016). Para Ferro (2012), as políticas sociais brasileiras voltadas à PSR têm em sua marca o histórico da criminalização e da omissão estatal.

Só mais recentemente que o Estado Brasileiro, sob pressão inclusive do Movimento Nacional da População em Situação de Rua, sinalizou avanços no âmbito das políticas públicas para ampliação do acesso e promoção de políticas de equidade para este público. Na esfera da Saúde, foi instituído em 2011, por meio da Portaria n. 122, o Consultório na Rua, serviço que integra o nível da Atenção Básica em Saúde. Na Assistência Social, temos o Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP), além do Serviço Especializado em Abordagem Social, ofertado pelos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS), e o Serviço de Acolhimento Institucional em abrigos e casas de passagem. Também, em 2009, por meio do Decreto 7.053/2009, foram instituídos a Política Nacional para População em Situação de Rua (PNPSR) e o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política (CIAMP-Rua) (Brasil, 2009; 2011a; 2011c). Outro serviço, não especificado nas políticas, mas muito utilizado por pessoas em situação de rua para pernoite, são os albergues públicos.

Porém, pela complexidade das demandas que apresentam e por ter ganho maior visibilidade nos últimos anos, a PSR emerge no cenário nacional como um potente analisador quanto à urgência de se operar por ações colaborativas, interprofissionais e em rede entre as políticas públicas. Sabemos do histórico de ações hegemonicamente fragmentadas e setorializadas das políticas em geral, sem perspectiva de continuidade e complementaridade dos serviços, em função das especificidades, responsabilidades e burocracias que apresentam, ao localizarem e se deterem sob determinados aspectos da população, desconsiderando muitos outros, inclusive o quadro de multideterminações sociais que conformam tais necessidades (Carmo & Guizardi, 2017).

A pauta do trabalho interprofissional e intersetorial surge então como urgente, no sentido de uma “quase imposição a integração das políticas”, como reportam Romagnoli, Arraes-Amorim, Severo e Nobre (2017, p. 159). Para as autoras, tal desafio não pode ficar sob a responsabilidade das equipes e dos serviços em si. A agregação dos setores exige que as políticas operem com a radicalidade do princípio da integralidade enquanto estratégia transversal, que incide desde as equipes multiprofissionais no seu cotidiano de trabalho, com a integração de saberes e a estruturação de processos de trabalho que se pretendem interprofissionais, até o âmbito da gestão pública, com respostas organizativas e a criação de instâncias e arranjos articuladores entre os serviços com uma agenda de trabalho intersetorial (Romagnoli et al., 2017). Pretende-se, com este estudo, contribuir com as equipes de trabalho e com os serviços de saúde e assistência social, para avançarem diante das diversas e complexas necessidades que demanda a População em Situação de Rua no Brasil.

 

Método

Tipo de pesquisa

Trata-se de um estudo do tipo descritivo-analítico, de natureza qualitativa, realizado na cidade de Teresina, PI. Segundo o I Censo e Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua (Brasil, 2008), esta cidade contava com uma população de 370 pessoas em situação de rua. Em levantamento mais recente realizado pela instância municipal competente, no ano de 2014, foi identificado o total de 247 pessoas (Secretaria Municipal de Trabalho, Cidadania e Assistência Social [SEMTCAS], 2014), porém é possível que este número tenha aumentando, considerando o quadro de crise econômica que assola o país. Ademais, em Teresina, PI, há presença de serviços especializados no atendimento à PSR, no âmbito da Saúde (Consultório na Rua) e Assistência Social (Centro POP, Serviço Especializado em Abordagem Social [SEAS], Albergue Municipal e a Casa do Caminho).

Participantes

O estudo centrou-se no Consultório na Rua, no Centro POP e na Equipe SEAS (vinculada ao Centro POP), pois são responsáveis por realizar o primeiro acolhimento e abordagem aos usuários no próprio contexto de rua. Por ser de modalidade II, o Consultório na Rua conta com uma equipe composta por seis profissionais (1 psicóloga, 1 assistente social, 1 enfermeira e 3 agentes sociais). Já o Centro POP é composto por dez profissionais (2 assistentes sociais, 1 psicóloga, 1 gerência executiva, 1 coordenadora, 4 educadores sociais e 1 monitora). A equipe SEAS vinculada ao Centro POP é composta por 23 Agentes de Proteção Social (APS). A amostragem adotada pelo estudo foi não probabilística do tipo intencional, na qual os critérios de inclusão dos participantes visaram contemplar maior variação da amostra. Deste modo, foram selecionados 15 participantes, sendo cinco do Consultório na Rua (1 psicóloga, 1 assistente social, 1 enfermeira e 2 agentes sociais) e dez do Centro POP e da Equipe SEAS a ele vinculado (1 assistente social, 1 psicóloga, 2 educadores sociais, 1 monitora e 5 APS). Os profissionais eram em sua maioria do sexo feminino (73,3%), com formação de nível superior (73,7%), pós-graduação (53,3%) e faixa etária de 23 a 58 anos.

Instrumentos

Fez-se uso de entrevista semiestruturada, aplicada junto aos profissionais das equipes dos serviços investigados; observação no cotidiano dos serviços (Consultório na Rua e Centro POP) e em situações de abordagem na rua; além do diário de campo, para tomada de notas sobre aspectos de interesse dos pesquisadores.

Procedimentos e aspectos éticos

Após consentimento institucional, a pesquisa foi apreciada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Piauí, sob CAAE de n. 55537516.5.0000.5214, com Parecer de Aprovação n. 1.635.097. O trabalho de campo foi realizado entre junho e agosto de 2016. Para realização das entrevistas, foi apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), a fim de obter anuência dos profissionais entrevistados, resguardando o anonimato dos participantes. O roteiro abordou questões gerais de identificação do perfil dos entrevistados: sexo, idade, nível de escolaridade, profissão, vínculo empregatício, entre outras; e questões relativas ao cotidiano das práticas profissionais nos serviços e aos desafios enfrentados no trabalho com a PSR. Ademais, no decorrer da pesquisa, foi acompanhado o conjunto de ações desenvolvidas pelas(os) profissionais, desde aquelas desenvolvidas no espaço dos serviços, como reuniões de equipe e atendimentos, como também as que foram realizadas no espaço da rua, em diversos cenários da cidade.

Análise de dados

O tratamento dos dados foi feito com base na análise de contéudo temática (Minayo, 2006), tomando como referência dois eixos − o trabalho em equipe e a atuação intersetorial. Inicialmente, foi realizada a leitura prévia do material; em seguida, este foi organizado em tabelas preliminares para identificação das linhas de respostas para as principais questões. Após a releitura completa das entrevistas e das tabelas preliminares, foi possível traçar as tabelas finais de análise, sendo realizada a categorização com o auxílio da literatura.

 

Resultados e Discussão

A PSR e a (im)possibilidade de escapar da organização do trabalho em equipe

O conjunto dos profissionais entrevistados aponta o trabalho em equipe como condição sine qua non na assistência e no cuidado à PSR, em razão de dois fatores que estão imbricados e se retroalimentam: fator profissional e público-alvo. Para os entrevistados, inicialmente (e, para alguns, ainda hoje), o trabalho em equipe assume o sentido de proteção, em especial para aqueles cuja atuação principal é o ambiente da rua, como é o caso dos agentes de proteção social: “Não podemos ir para o campo sozinha, a gente corre risco a todo instante, você tem que ter pelo menos mais uma colega ali, é essencial” (Profissional 2). Nesse sentido, o trabalho em equipe passa a ser uma exigência, pois “Um [profissional] protege o outro” (Profissional 1). No próprio serviço de APS há uma norma institucional que estabelece uma “equipe mínima” de dois profissionais para realização do trabalho na rua. Neste primeiro momento, o trabalho em equipe apresentou-se como resposta reativa por parte dos profissionais na busca por defesa e proteção, não representando elemento algum que indicasse uma inclinação para a complementaridade de saberes e composição de intervenções interprofissionais com foco na qualidade da atenção, adesão e cuidado (Pereira, 2014; Ceccim, 2018).

Nesse aspecto, é preciso indagar se essa “exigência” resulta numa “equipe agrupamento” ou “equipe integração”, conforme recupera Ceccim (2018, p. 1742) acerca do trabalho em equipe. Certamente que a própria cena/ambiente em que as ações profissionais acontecem, por ser atravessada de múltiplos elementos, impele a produção de competências interprofissionais e em equipe em função da própria dinamicidade que o trabalho de abordagem na rua exige, ou ainda pela natureza dos serviços, como no caso do Consultório na Rua, em que todos da equipe atuam juntos no contexto da rua. Além disso, no contato com o público assistido, os profissionais defrontam-se com inúmeras demandas que se apresentam em ato, com toda a complexidade e dinamicidade que cada caso exige, permitindo o reconhecimento de possibilidades colaborativas e complementares de saberes e práticas. Neste caso, sobressai a concepção de equipe integração como forma de enfrentar os desafios que os próprios serviços têm que manejar (Carmo & Guizardi, 2017).

Uma vez reconhecido tais aspectos, por parte de alguns profissionais, é preciso considerar outros que se desdobram entre o fator profissional e público-alvo, facilitando, portanto, o trabalho em equipe de forma mais integrada. No trabalho com a PSR, é fundamental que o manejo da construção do vínculo profissional-usuário seja ampliado enquanto elemento de investimento da equipe: “Facilita trabalharmos em equipe, pois às vezes tem moradores de rua que não simpatizam muito comigo, mas podem simpatizar com os outros colegas” (Profissional 1). O vínculo passa a ser manejado pela equipe, o que exige uma sensibilidade e tateio interprofissional de modo a facilitar a aproximação e o acolhimento dos usuários por diferentes profissionais. Por outro lado, a construção de vínculos, importante eixo orientador do trabalho com a PSR, apresenta-se como um elemento que borra a divisão rígida dos núcleos profissionais e fortalece o campo de competências interprofissionais (Silva, Cruz, & Vargas, 2015).

Para Campos (2000), o núcleo profissional se refere ao conjunto de saberes e responsabilidades de cada área específica do conhecimento em saúde, e conforma certa identidade profissional. Deste modo, cada profissão teria seu núcleo de competência. O campo compreende um espaço que não é rigidamente marcado, conflui em saberes e responsabilidades comuns. Nas palavras do autor, “Metaforicamente, os núcleos funcionariam em semelhança aos círculos concêntricos que se formam quando se atira um objeto em água parada. O campo seria a água e o seu contexto” (Campos, 2000, p. 221).

Almeida e Mishima (2001) e, posteriormente Ceccim (2018), demarcam como exemplo de campo o conhecimento que todos os profissionais devem ter acerca dos princípios básicos orientadores do SUS, como responsabilização, vínculo, as ações de matriciamento e supervisão clínico-institucional, além da gestão da clínica e do projeto terapêutico singular, entre outros dispositivos que garantam no âmbito da assistência a integralidade e a continuidade do cuidado, a educação permanente e ações no âmbito da vigilância sanitária, epidemiológica e promoção de saúde. No caso do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), uma perspectiva comum e orientadora do trabalho é a necessidade de reconhecer o público-alvo como sujeito de direitos, inclusive o de acesso aos programas e benefícios ofertados pelo serviço e demais seguranças garantidas pela política (de acolhida; social de renda; de convívio ou vivência familiar; de desenvolvimento da autonomia e de habilidades para a construção de projetos de vida voltados para cidadania; e de sobrevivência a riscos circunstanciais) (Brasil, 2011a).

O público-alvo, incluindo os territórios que habitam e suas características, configuram-se como outro elemento que impulsiona o trabalho em equipe. Como visto, trata-se de um contingente populacional marcado por demandas e atravessadores de múltiplas ordens e com níveis de complexidade/necessidades de intervenção também diferentes, não sendo possível ser reduzido a um único campo de saber. Por isso, demanda o esforço para que seja desenvolvido um trabalho interprofissional: “É necessário que seja um trabalho em equipe realmente, por conta das demandas que surgem. Eu acho que um só profissional, dois, três, não daria conta, realmente teria que ser uma equipe multiprofissional” (Profissional 15).

Diante das especificidades que esse público apresenta, os profissionais demarcam a necessidade da promoção de diversos olhares, compartilhando saberes e fazeres de diferentes áreas do conhecimento e políticas: “O público-alvo é o mesmo, o objetivo é o mesmo, que é promover a saúde e os demais direitos daquela pessoa. Então cada profissional tem esse olhar diferenciado que contribui e complementa o olhar do outro para conseguir esse objetivo maior” (Profissional 11). Para tanto, faz-se necessário buscar o paradigma da interdisciplinaridade a fim de promover outro modo de pensar e desenvolver o trabalho em equipe, não mais reativo, pelo contrário, ativo, de modo a favorecer a troca de informações e conhecimento, além da cooperação solidária nos fazeres e corresponsabilização na condução do cuidado e da proteção social (Ceccim, 2018).

Isso não representa o abandono das disciplinas e do fazer especializado; pelo contrário, trata-se de uma maior flexibilização e permeabilidade dos núcleos profissionais em busca do exercício da integralidade das ações no âmbito das políticas sociais (Almeida & Mishima, 2001; Monnerat & Sousa, 2009). O caminho para a oferta de uma assistência mais efetiva à PSR passa, no mínimo, pela construção de relações de interdependência entre a equipe e seus núcleos de competência mais especializados. Trata-se de uma compreensão em que cada área do conhecimento está inserida em um projeto assistencial e societário mais amplo, sendo que a relação de interdependência não é apenas de ordem técnica, do auxílio e da complementaridade do campo de saberes, é também do campo do apoio, da escuta, da afetividade, uma interdependência que ameniza e também acolhe o desafio e a tensão de trabalhar com um público com demandas e histórias de vida tão difíceis: “A gente que trabalha atendendo demandas difíceis, encontramos no trabalho em equipe algo que faz o nosso trabalho se tornar mais ameno e mais motivador... Um dá apoio ao outro... Um motiva o outro. . .” (Profissional 10).

O trabalho em equipe se materializa nas relações cotidianas entre os profissionais, nas reuniões de equipe, nos estudos de casos, realizados quando surgem demandas de maior complexidade e que exigem a atuação de diversos profissionais. Neste cenário, ele não é apenas necessário, mas via de promoção de melhorias dos serviços e da assistência prestada à PSR, com ações de educação permanente e autocuidado com a escuta e acolhida entre os próprios profissionais (Pinho, 2006).

Desta forma, os profissionais entrevistados enumeraram as seguintes potencialidades quanto à realização do trabalho em equipe: aumenta a resolutividade, coesão e produtividade, dando agilidade e eficiência ao trabalho; evita o trabalho duplo e intervenções desnecessárias por falta de comunicação entre os profissionais; proporciona a melhoria do atendimento e a integralidade da atenção à PSR. Por isso, não orientar as ações profissionais a partir do trabalho em equipe implica, para alguns profissionais, comprometer a assistência ofertada à PSR: “Ele é primordial, se ele falhar, a própria assistência ao usuário falha” (Profissional 11). Não trabalhar de modo articulado e integrado pode, inclusive, ser um fator promotor de desvinculação do usuário: “Eu chego e faço a primeira abordagem. Depois chamo outro profissional, que chega e vai fazer as mesmas perguntas. Daí logo o usuário se irrita, não quer conversar. Isso atrapalha totalmente, porque eles não gostam de muita pergunta” (Profissional 13).

Trabalhar em equipe exige competências técnicas, mas também relacionais e de manejo (Merhy, 2002). Avaliar o momento em que uma aproximação individual é mais eficaz e sensível do que uma ação conjunta com a equipe inteira é imprescindível para respeitar a singularidade de cada usuário: “Ele estava arrodeado por seis pessoas perguntando, ficou foi agoniado. Não quis mais saber de nós!” (Diário de Campo, 09/08/16). Por isso, Pinho (2006) demarca que nem sempre o manejo de uma intervenção com mais de um profissional é a melhor estratégia, sendo necessária uma avaliação cuidadosa acerca de sua necessidade. Atuar em equipe não necessariamente significa intervir sempre com toda a equipe numa dada situação. Mesmo que estrategicamente a intervenção tenha se dado por um único profissional, o processo continuado de construção da intervenção, iniciado pelo planejamento e finalizado com a avaliação conjunta da ação realizada e seus desdobramentos, integra, certamente, o trabalho em equipe.

Apesar da imperatividade do trabalho em equipe, muitos são os fatores que limitam sua plena execução, tais como: 1) o tamanho da equipe; 2) as diferenças profissionais; 3) a extrema divisão técnica do trabalho. Quanto ao primeiro fator, no Centro POP, por exemplo, a equipe é composta por mais de 30 profissionais, que trabalham em três turnos diferentes, alguns em dias intercalados, além de profissionais com mais de um emprego. Este é um fator que dificulta o diálogo e a articulação interprofissional, caso não se desenvolvam arranjos de gestão dos processos de trabalho para as equipes. O segundo fator compreende as diferenças entre os profissionais; por exemplo: escolaridade, nível econômico, compromisso, implicação, ritmo de trabalho, campos de sentidos. Tais aspectos podem ser responsáveis por estabelecer barreiras comunicacionais que dificultam a construção de caminhos comuns, criando divergências de compreensão e de operação, as quais se intensificam com a rotatividade e entrada de novos profissionais no serviço em função da precarização do trabalho (Pinho, 2006).

O fato é que o trabalho em equipe também abre espaço para relações de tensão. Como bem postulou Merhy (2002), o campo das práticas é um espaço de disputas, visto se processar a partir da ação coletiva de diferentes agentes, interesses e capacidades de ação. Essas disputas, ao mesmo tempo que podem ser potencializadoras, no sentido de ampliar o olhar e escopo de ação para atenção à PSR, podem também se reduzir a um jogo de conflitos, permeado de olhares e ações reducionistas, comprometendo a atenção integral voltada para este público.

No tocante ao terceiro fator impeditivo, a extrema divisão do trabalho, reflexo da intensa especialização e fragmentação dos saberes, é a responsável pelo fortalecimento de cada núcleo profissional de forma isolada e desresponsabilizada da construção de um plano comum. Daí o entendimento de Pinho (2006), de que nesse tipo de distribuição de ações em equipes interprofissionais não comporta apenas definir papéis e responsabilidades, mas, acima de tudo, olhar para a questão do saber-poder entre os profissionais.

Trabalho intersetorial: entraves, jeitinho, “toma lá dá cá” e a inclusão excludente

Se o trabalho em equipe é um caminho imperativo na assistência à PSR, necessitando construir relações interdisciplinares para uma melhor compreensão e operação das demandas deste público, é urgente e necessário o trabalho intersetorial, pois tais demandas são eminentemente intersetoriais. Nesse cenário, a clássica clausura setorial das políticas públicas se torna insustentável, pois a complexidade e a multideterminação da PSR arrastam as políticas sociais ao limiar, tornando urgente e imperativo ultrapassar não apenas o isolamento dos núcleos profissionais conformados nas equipes, mas a rigidez setorial das políticas.

Tanto as políticas de Saúde quanto de Assistência Social sugerem a intersetorialidade, uma vez que se compreende que a fragmentação e a desarticulação das políticas representam um empecilho para responder ao conjunto de necessidades da população usuária (Schutz & Mioto, 2010). A própria Política Nacional para População em Situação de Rua apresenta um desenho nitidamente intersetorial, visando garantir a integralidade da proteção social para este público (Brasil, 2009). Assim, serviços como o Centro POP e o Consultório na Rua devem ter a intersetorialidade como norte de suas ações para ampliar o grau de respostas junto de outras políticas para o segmento das pessoas em situação de rua (Brasil, 2011a; 2011c).

Os profissionais reconhecem a necessidade de escapar das fronteiras do serviço e da política setorial que integram, definindo os serviços que trabalham como eminentemente intersetoriais. O Centro POP, como “... unidade de articulação e encaminhamento, não tem retaguarda de espaço para descanso, cursos, é necessário articular com a rede” (Profissional 9) e “... o Consultório como ponte, e não como um trabalho-fim, a gente não consegue dar uma solução a partir da gente. Só consegue resolver as questões do usuário encaminhando” (Profissional 11). Porém, é preciso ressaltar que encaminhar não necessariamente se configura como ação intersetorial (Pereira, 2014; Carmo & Guizardi, 2017).

O trabalho intersetorial é o grande “nó” dos serviços, sendo que 93,3% dos profissionais entrevistados o reportaram como desafio. A relação dos serviços com a rede para o atendimento à PSR depara-se com entraves/insuficiências institucionais, os quais são intensificados pelas características desse público. Tais obstáculos compreendem dois aspectos principais: a) desintegração dos setores e b) rede restrita e excludente. Em relação ao primeiro aspecto, a desintegração entre os setores impossibilita construir objetos e objetivos comuns: “Cada órgão tem sua coordenação, cada órgão tem seus objetivos, cada órgão tem seu limite de atendimento, tem suas peculiaridades e, pelo que eu vejo, o morador de rua é que acaba perdendo espaço dentro dessas peculiaridades” (Profissional 4).

De acordo com Pereira (2014), cada política tem seu núcleo de intervenção próprio. Nesse sentido, não é a setorialidade que deve ser superada, mas a distância e a desintegração dos setores. Essa desintegração se expressa, em especial, na política de saúde, é no seu seio que se assenta grande parte dos entraves, assim como na sua relação com as demais políticas. Na Saúde, até mesmo quem integra este setor, caso do Consultório na Rua, tem sérias dificuldades para articular e promover objetivos comuns: “É um trabalho diário de briga com os serviços, posso dizer até que é de briga mesmo e, por incrível que pareça, nossa maior dificuldade é com a Saúde” (Profissional 11).

As dificuldades com a rede de Saúde decorrem: 1) da ausência de documentação e da lógica produtiva e capitalizada da saúde, em que se argumenta acerca da obrigatoriedade da documentação para garantir o lançamento da produção e o repasse pelo serviço prestado: “Quando é direcionado para qualquer serviço fora do Centro POP, a primeira coisa que eles exigem é a documentação, principalmente no caso da saúde” (Profissional 7); 2) a exigência de o usuário ter um acompanhante; 3) e o desconhecimento do Consultório na Rua dentro da rede de saúde. Os dois primeiros pontos foram reportados por profissionais de ambos os serviços. O terceiro ponto surge com as profissionais do Consultório na Rua.

Quanto ao primeiro, a documentação, este por si só é um critério excludente, pois uma característica desta população é a ausência de documentos, quadro que é decorrente do próprio contexto de vida na rua, da vida nômade, das ações higienistas e violentas, em que tanto são expulsos dos locais, por serem indesejados, como são expropriados dos poucos bens que possuem, a exemplo, dos documentos (Balieiro, Soares, & Vieira, 2017). A ausência de documentação e a lógica mercantil da saúde que, conforme Mota (2008), tem se acentuado no cenário atual com a mercantilização e privatização das políticas sociais, receituário posto pelas reformas neoliberais em curso do Estado, são processos que corroboram a exclusão desta população de seu direito básico à saúde.

No ano de 2011, foi editada a Portaria n. 940, que regulamenta o Sistema Cartão Nacional de Saúde, flexibilizando para a PSR a exigência de endereço permanente, a fim de facilitar o acesso e o cadastro (Brasil, 2011b). A expedição do Cartão do SUS é ofertada pelo Consultório na Rua e sua elaboração consiste de questões autodeclaradas, o que é um fator facilitador: “Se a desculpa é ter o cartão do SUS pra ser repassado pelo procedimento, a gente tem o cuidado de sempre que é aberto o prontuário ir atrás de fazer esse cartão do SUS, pra tentar quebrar essa barreira” (Profissional 11).

Outra exigência que esta política setorial coloca é a necessidade do acompanhante. Trata-se de uma população com vínculos fragilizados ou rompidos, não havendo, na maioria das vezes, familiares que possam acompanhar. As únicas opções são outro morador de rua ou a própria equipe se responsabilizar: “Nossa intervenção tem facilitado o acesso deles, porque às vezes o Centro POP em si tem se responsabilizado por esse acompanhamento. Veja onde chegamos...” (Profissional 10). O acompanhamento deveria ser entendido como direito do usuário, sendo assim, este deveria decidir pela necessidade de ser ou não acompanhado, em vez de ser compreendido como um requisito para ter atendimento. Outra questão reportada é o desconhecimento do Consultório na Rua por parte da rede de serviços, barreira que tem sido ultrapassada aos poucos, com esclarecimentos acerca do serviço prestado e a responsabilização e comprometimento da equipe no acompanhamento dos usuários nos outros serviços da rede.

A Assistência Social também apresenta seus problemas internos. Nessa política, há um fluxo de atendimento estabelecido pelo Plano de Reordenamento do Serviço de Acolhimento Institucional para População em Situação de Rua, que prevê o fluxo integrado entre a Equipe SEAS, Centro POP e Serviço de Acolhimento Institucional (Casa do Caminho). A PSR pode acessar a assistência especializada por meio da equipe SEAS, que faz as abordagens na rua e encaminha para o Centro POP, a Casa do Caminho e demais serviços da rede, ou ainda acessar diretamente pelo Centro POP por demanda espontânea. O Centro POP faz o encaminhamento para a Casa do Caminho. Esses dois serviços devem ter funcionamento articulado, enquanto o Centro POP realiza o estudo social, a Casa do Caminho faz o acolhimento institucional, e ambos são responsáveis pela inserção e acompanhamento do usuário na rede intersetorial (SEMTCAS, 2014). Embora o empenho em estabelecer um fluxo de atendimento, dada a necessária e urgente intersetorialidade, os entraves se iniciam dentro da própria política setorial, com relações hierarquizadas que barram o fluxo estabelecido: “A gente (APS/SEAS) faz um encaminhamento [para a Casa do Caminho], que muitas vezes é barrado. Aí basta a ligação de um superior mais hierárquico que já resolve. A gente se sente impotente, porque nós fazemos parte da rede e não conseguimos muita coisa” (Profissional 2).

A relação mais próxima e fluida entre as duas políticas setoriais investigadas (Saúde e Assistência Social) se constrói, especialmente, entre os serviços destinados ao atendimento da PSR (Centro POP e Consultório na Rua). Porém, quando se requisita um nível de articulação para além desses dois serviços, evidencia-se todos os tipos de entraves. Uma estratégia adotada tem sido o estabelecimento de parcerias com redes de Ensino e Pesquisa, como a Universidade Federal do Piauí (UFPI). Também se estabeleceram parcerias com a Defensoria Púbica do Estado do Piauí, por meio do Núcleo Especializado de Direitos Humanos e Tutelas Coletivas, que vai uma vez por mês ao Centro POP realizar orientações jurídicas e encaminhar processos jurídicos: “Essa é uma parceria importante, porque imagina um morador de rua chegando à Defensoria Pública, se não consegue nem o hospital” (Diário de campo, 25/08/16).

O terceiro setor também integra a rede de proteção. Há parcerias com empresas privadas e organizações não governamentais (ONGs), as quais, em sua maioria de ordem religiosa, prestam serviços de abrigamento e tratamento de dependência de álcool e outras drogas (Comunidades Terapêuticas). O terceiro setor, enquanto participante e executor da proteção social, integra o quadro da refuncionalização neoliberal das políticas sociais, que promoveu a redução do gasto público e o consequente aumento das desigualdades sociais, recaindo para a sociedade civil o papel social de oferecer serviços comunitários, filantrópicos e voluntários (Yamamoto, 2007).

Os serviços já conseguiram ampliar consideravelmente a relação com a rede, driblando a desintegração dos setores, mas não se pode deixar de considerar o modo como isso ocorre. Trazer representantes de outros serviços da rede para dentro do serviço especializado para PSR, ao mesmo tempo que facilita o acesso, segrega o usuário ao espaço do serviço especializado. Ao não favorecer seu livre acesso pela cidade e seus equipamentos, opera com uma inclusão excludente, com pouca potência de mobilização e participação social. O desafio reside em favorecer que o exercício da cidadania não se restrinja aos muros e espaços protegidos dos serviços especializados, mas que a população atendida também possa ter acesso e participação no controle social das políticas voltadas para as suas necessidades. Se por um lado tem-se a necessidade de programas específicos para a PSR, é também imperativo questionar a que mais servem tais serviços. Sua função é resguardar os usuários entre seus muros? Que sentido a intersetorialidade adquire no contexto dos serviços especializados voltados para PSR e dos demais serviços da rede?

A intersetorialidade adquire o sentido de acesso às políticas, de continuidade da assistência e cuidado, pois, como reportam os participantes da pesquisa, não basta encaminhar, é necessário o acompanhamento, construir instâncias que garantam a articulação entre os serviços (Pereira, 2014; Carmo & Guizardi, 2017). Outra questão que tem se colocado com vigor, em especial nos serviços não especializados, é o da desresponsabilização (Schutz & Mioto, 2010). Ao longo da pesquisa, constatamos os serviços da rede SUS e SUAS operando como força centrípeta, ou seja, empurrando a PSR para os serviços especializados. Em contrapartida, o Consultório na Rua e o Centro POP robustecem esta força quando trazem outros serviços para dentro dos seus espaços, em detrimento de operar como força centrífuga capaz de impulsionar a PSR por toda a rede. A rede se transforma num jogo de “toma lá dá cá”, no qual quem perde lugar é o público-alvo das ações: pessoas em situação de rua.

Ao quadro elencado, somam-se as insuficiências institucionais relacionadas a uma rede restrita e excludente, com vagas aquém do necessário e pouca oferta de políticas setoriais (Carmo & Guizardi, 2017), a começar pela baixa cobertura e funcionamento restrito dos serviços especializados. O Consultório na Rua, por exemplo, funciona apenas no turno vespertino. Segundo dados do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS) e do Cadastro Nacional do Sistema Único de Assistência Social (CadSUAS), em 2018, havia 127 Consultórios na Rua e 231 Centros POP em todo o país. O Estado do Piauí tem uma das mais baixas coberturas da Região Nordeste, em ambos os serviços. A maioria dos estados da Região Nordeste apresenta de três a cinco serviços de Consultório na Rua. Quanto à cobertura do Centro POP, os demais estados da região apresentam de quatro a 16 serviços, enquanto no Piauí contam-se dois.

Em relação ao Serviço de Acolhimento Institucional para adultos, há apenas a Casa do Caminho, na Assistência Social, sendo que é um local que funciona como albergue, apenas para pernoite, com limite de tempo de permanência: “Você tem uma oferta de 33 pessoas pernoitando e a demanda que temos é muito, muito superior a isso. Então é lógico que tem muita gente sobrando pra poder acessar alguma retaguarda assim” (Profissional 9). Ademais, são estabelecidas restrições para pessoas com transtorno mental ou que estejam demandando maiores cuidados. No mais, trata-se de um serviço da rede que enfrenta muita resistência por parte dos usuários em função da rigidez das regras e do modo rude no tratamento direcionado aos usuários. Se for usuário com demanda relacionada a álcool e outras drogas, na perspectiva da redução de danos, só há o Centro de Atenção Psicossocial de Álcool e Drogas (CAPS AD). Os demais são Comunidades Terapêuticas de vertente religiosa, nas quais a abstinência não é entendida como uma linha de cuidado possível entre outras no atendimento desta população, e sim como a única e exclusiva opção.

Os entraves são intensificados pela aparência maltrapilha da PSR, da pouca higiene ou por apresentar doenças infectocontagiosas e fazer uso de substâncias psicoativas, o que acaba por acionar/aprofundar certos rótulos e estigmas, incidindo em preconceitos, obstáculos e constrangimentos quanto à oferta de assistência (Balieiro et al., 2017). Um caso emblemático foi de um usuário assistido pelo Consultório na Rua que tinha aids, sífilis, tuberculose, hepatite e leishmaniose. A equipe o levou para o Hospital de Doenças Infectocontagiosas (HDIC), onde argumentaram que não seria possível atender um paciente “que tinha tantas doenças”. Entretanto, é o único hospital do Estado preparado para receber um paciente com essa complexidade. Depois de muita insistência, apesar de internado, o paciente não resistiu, morrendo dias depois (Diário de campo, momentos diversos).

Isto posto, é preciso que as equipes estejam atentas a situações de negligência, desassistência ou até mesmo omissão de socorro que sofrem a PSR por parte dos serviços, sendo que muitas vezes os(as) profissionais dos serviços especializados acabam tendo de ameaçar que vão oferecer denúncia ou orientar os usuários que o façam. Há situações em que a saída é acompanhar o usuário na rede, pois somente proceder com encaminhamentos por escrito acerca da condição social do usuário e necessidade de atendimento não é suficiente. A discriminação, o preconceito e os constrangimentos nos espaços institucionais evidenciam o racismo institucional que atravessa este público, situando-se como fortes entraves para o acesso às políticas setoriais (Barata, Junior, Ribeiro, & Silveira, 2015; Sicari & Zanella, 2018). Alguns serviços da rede não apenas se recusam a atender, como também acionam a polícia para recolherem usuários que buscam algum tipo de assistência: “Ainda há muito preconceito e muita discriminação, muitas instituições telefonam pra fazer denúncias de uma pessoa em situação de rua ou de um grupo deles em frente a sua instituição, por conta de uma limpeza urbana” (Profissional 10).

Segundo Pereira (2014), é necessário visualizar cada setor da política pública, e não como um todo homogêneo, pois cada um deles comporta movimentos, hierarquias e contradições próprias, sendo resultado de relações conflituosas, disputas de poder e interesses contrários. Nesse sentido, a tarefa de intersetorializar significa pôr em jogo os conflitos e as contradições de cada setor. Deste modo, a intersetorialidade, mais do que uma estratégia de ordem técnica, é, sobretudo, política, pois tenciona e desestabiliza saberes, práticas e departamentos consolidados, acionando um campo de disputas e jogos de poder.

Embora imperativa, a tarefa de intersetorializar transcorre em meio a entraves, hierarquias, disputas para garantir o acolhimento por meio de relações de amizades e favores, o que gera inclusões excludentes, esbarrando no preconceito dos serviços que entendem que os usuários estão “sujos demais”, “fedidos demais”, “doentes demais”, “drogados demais”, mas, acima de tudo: assistidos de menos. Isto faz com que a intersetorialidade seja ainda mais desafiadora, especialmente quando entra em cena a PSR.

 

Considerações Finais

Pretendemos, com este estudo, compreender os sentidos atribuídos no trabalho em equipe e intersetorial realizado nos serviços de Saúde e Assistencial Social voltados a pessoas em situação de rua. A atenção à PSR demanda alterações nos processos de trabalho das equipes de saúde e assistência social, na medida em que os cenários que habitam, no caso a rua, e as necessidades sociais e em saúde que apresentam exigem dos profissionais dos serviços outras nuances do seu fazer técnico, teórico-prático e ético-político, incidindo na imperatividade do trabalho em equipe e intersetorial. Embora o trabalho interprofissional esteja sinalizado no corpo das diversas políticas sociais, frequentemente não chega a se concretizar em razão dos inúmeros fatores limitadores que reforçam o saber-fazer pontual, especializado e fragmentado. Nesses casos, a não efetivação do trabalho em equipe traz prejuízos para a qualidade dos atendimentos prestados à PSR.

O trabalho em equipe apresenta-se para os profissionais dos serviços investigados como um imperativo do qual não se pode escapar sem comprometer a própria assistência. Apesar disso, ainda saltam muitos entraves que comprometem a resolutividade dos serviços prestado à PSR, como a desintegração dos setores, uma rede restrita, fragmentada e excludente, o despreparo de alguns profissionais da rede e os preconceitos e estigmas acerca da especificidade do público, incorrendo, assim, em práticas de racismo institucional. Estes fatores dificultam o acesso e a continuidade da atenção e do cuidado à PSR.

Com relação à intersetorialidade, os resultados mostraram que esta tem adquirido diversos sentidos na assistência à PSR: acesso às políticas, continuidade da assistência e cuidado, mas também desresponsabilização e desassistência, figurando o trabalho da rede assistencial num jogo de “toma lá dá cá”, acentuando a desproteção da PSR. Diante desse cenário, é imprescindível atentar para os sentidos e os efeitos que a intersetorialidade adquire para os profissionais que integram a rede, a fim de não subverter o seu real sentido e propósito: a garantia de acesso e continuidade do cuidado, no caso para a população em situação de rua, promovendo uma atenção integral e humanizada.

Ressaltamos como fatores limitantes deste trabalho o fato de se tratar de uma realidade particular (Teresina, Piauí), não tendo poder de generalização. Além disso, centrou-se em serviços específicos voltados para PSR, podendo se desdobrar estudos futuros envolvendo de forma mais abrangente o trabalho em rede e intersetorial, a partir da perspectiva de outros serviços, considerando demais redes de atenção. Outras possibilidades de investigação ainda encontram fôlego com relação às demais políticas setoriais que não foram foco dessa investigação. De igual forma, destacamos a urgência de se investir no trabalho em equipe, sob a perspectiva da interprofissionalidade, e na construção de uma pauta intersetorial com a criação de arranjos articuladores e o fortalecimento de ações integradas entre os serviços e as políticas públicas, de modo a responder ao conjunto das necessidades complexas e multicausais apresentadas pela População em Situação de Rua em todo o país.

 

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Endereço de contato:
João Paulo Macedo
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E-mail: jpmacedo@ufpi.edu.br

Recebido em: 27/02/2019
Última revisão: 19/06/2019
Aceite final: 29/07/2019

 

 

João Paulo Macedo: Doutor e mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Psicólogo pela Faculdade Santo Agostinho (FSA). Professor associado da Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar), vinculado ao Curso de Psicologia, e aos Programas de Pós-Graduação em Psicologia da UFDPar e da Universidade Federal do Ceará (UFC). Bolsista de Produtividade CNPq.
E-mail: jpamcedo@ufpi.edu.br
Orcid: http://orcid.org/0000-0003-4393-8501
Adrielly Pereira de Sousa: Mestre em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Bolsista CAPES. Psicóloga Clínica com atuação em consultório particular, e como voluntária do Centro de Atenção Psicossocial Arthur Bispo do Rosário, DF.
E-mail: adriellypsi@hotmail.com
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-4408-5355
Andressa Veras de Carvalho: Doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Psicóloga.
E-mail: dressacarvalho7@gmail.com
Orcid: http://orcid.org/0000-0003-2721-7472

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