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Revista Psicologia e Saúde

versión On-line ISSN 2177-093X

Rev. Psicol. Saúde vol.13 no.3 Campo Grande jul./set. 2021

http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v13i3.1243 

ARTIGOS

 

Interseccionalidades na experiência de pessoas trans nos serviços de saúde

 

Intersectionalities in the experience of trans persons in health services

 

Interseccionalidades en la experiencia de personas trans en servicios de salud

 

 

Francisco Jander de Sousa NogueiraI; Elaine Soares de Freitas LeitãoI; Emylio César Santos da SilvaII

IUniversidade Federal do Piauí (UFPI)
IIPontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

Endereço de contato

 

 


RESUMO

Este artigo tem o objetivo de analisar a implementação da Política Nacional de Atenção Integral à população LGBTTI+, bem como as dificuldades do acesso aos serviços de saúde a partir das interseccionalidades na experiência de travestis e mulheres trans na realidade de Parnaíba, PI. Trata-se de um estudo qualitativo com uso de alguns instrumentos e ferramentas da pesquisa etnográfica, cuja amostra contou com a participação de profissionais da saúde, travestis e mulheres trans. Os dados foram coletados através da observação participante, produção sistemática de diários de campo e entrevistas semiestruturadas. Os dados foram analisados por meio da análise de discurso. Como resultado, identificou-se o desconhecimento da referida política; a violência nos atendimentos, atravessados pelas interseccionalidades de raça, classe e gênero como agravante da vulnerabilidade. Concluiu-se que é necessário reavaliar o conteúdo da política e sua implementação, de modo que essas questões supracitadas sejam pensadas como latentes para sua efetivação.

Palavras-chave: saúde pública, LGBTTI+, interseccionalidades, serviços de saúde


ABSTRACT

This article aimed to analyze the implementation of the Brazilian National Policy of Integral Attention to the LGBTTI+ population, as well as the difficulties of access to health services from the intersectionalities in the transvestite and transsexual experience in the city of Parnaíba, Brazil reality. It is a qualitative study with influence of researches and use of some instruments and tools of ethnographic research, whose sample counted on the participation of health professionals, transvestites and transsexuals. Data were collected through participant observation, systematic production of field diaries and semi-structured interviews and analyzed through discourse analysis. As a result, the policy was not known; the violence in the services, crossed by the intersectionalities of gender and race and social class an aggravating factor of vulnerability. It is concluded that it is necessary to reassess the content of the policy and its implementation so that the above-mentioned issues are thought to be latent for its implementation.

Keywords: public health, LGBTTI+, intersectionalities, health services


RESUMEN

Este artículo tiene el objetivo de analizar la implementación de la Política Nacional de Atención Integral a la población LGBTTI+ en Brasil, así como las dificultades de acceso a los servicios de salud a partir de las interseccionalidades en la experiencia de travesti y transexuales en la realidad de Parnaíba, PI. Se trata de un estudio cualitativo con el uso de algunos instrumentos y herramientas de la investigación etnográfica, cuya muestra tuvo la participación de profesionales de la salud, travestis y transexuales. Los datos fueron recogidos a través de la observación participante, producción sistemática de diarios de campo y entrevistas semiestructuradas. Los referidos datos fueron analizados por medio del análisis de discurso. Como resultado, se identificó el desconocimiento de dicha política; la violencia en la Atención, atravesados por las interseccionalidades de género y raza y clase social como agravante de la vulnerabilidad. Se concluye que es necesario reevaluar el contenido de la política y su implementación para que las cuestiones antes mencionadas sean pensadas como latentes para su efectividad.

Palabras clave: salud pública, LGBTTI+, interseccionalidades, servicios de salud


 

 

Introdução

O lugar social ocupado ainda hoje pela população LGBTTI+1 no Brasil, em especial as transexuais e travestis, é fruto de uma construção que começou já na época da colonização do país, com a cristianização que propagou a teoria ocidental cristã de que essas existências são pecados, doenças, crimes, e se sustenta e defende um padrão cisheteronormativo2, patriarcal e machista, que segue arrastando vidas para a marginalização (Larrat, 2015). Essa marginalização, como lembra Simpson (2015), aparece como consequência da transgressão dos padrões de gênero que colocam travestis e transexuais como principais alvos dos preconceitos e das discriminações no país. Analogamente, Bento (2017) pontuou que esses corpos certamente se põem em risco ao escapar do processo de produção de gêneros. Isso porque há uma produção fundamental de seres abjetos3 que garante a reprodução da cisheteronormatividade, ou seja, produz e se alimenta perversamente das margens. Contudo, ao passo que esses corpos desobedecem, também possibilitam a transformação dessas normas e tal ação reverbera, pois, nas frestas das normas, habitam as resistências.

Durante o processo de fuga da norma hegemônica, as transformações pelas quais esses grupos passam desde a infância repercutem em seu acesso e na fragilidade da sua saúde integral. Indubitavelmente, os preconceitos e as discriminações - frutos da produção e reprodução de uma lógica binária e cisheteronormativa que promove a patologização social desses sujeitos - vivenciados por esses corpos, em seus respectivos percursos, impedem que os serviços de saúde se configurem como espaços de acolhimento, uma vez que nesses espaços ainda há estruturas organizadas para reproduzir e defender os padrões que direcionam e estão introjetados na sociedade, de modo que manejar sujeitos e corpos que desviam desse padrão recai, quase sempre, em exclusões e desrespeitos.

Assim, temos uma população LGBTTI+ que tem experimentado dissabores nesses espaços e vê sua saúde condicionada, quase sempre, a ações estratégicas para sanar agravos quando esses se tornam casos de saúde pública, e não antes a estratégias de prevenção e promoção. Isso fica mais claro quando percebemos a ausência de discussões e ações no âmbito da saúde referentes a esse grupo antes dos anos 1960-1970, quando houve uma epidemia de HIV/aids, e a necessidade de superação da ideia de que esses usuários pudessem ser resumidos a essa epidemia. Ou, quando mais tarde, os danos do uso emergente de silicone líquido industrial forçaram o Sistema Único de Saúde (SUS), por meio de debates, a iniciar, mesmo que timidamente, algumas ações envolvendo outras especialidades médicas para lidar com aquela demanda (Simpson, 2015).

Desse modo, diante das iniquidades presentes nos serviços de saúde, a percepção quanto à vulnerabilidade desses corpos e a ausência de atenção integral, em especial no campo da saúde, possibilitaram, após muito debate e pressão dos movimentos sociais, ações com propósito de superar as desigualdades históricas e proteger direitos dessa população por meio de políticas específicas (Santos, 2015; Bento, 2017; Soares & Silva, 2015). Nesse sentido, com o objetivo de reafirmar o compromisso do SUS com seus princípios norteadores, cria-se em 2011 a Política Nacional de Saúde Integral de LGBTTI+4. Esse avanço no campo da saúde é permeado por várias lutas, debates e mobilizações de vários movimentos sociais que acontecem desde a época do processo de redemocratização que o país experimentou no final da década de 1970 (Brasil. Ministério da Saúde, 2013).

Há então nessa política um caráter transversal, que busca englobar desde a promoção e prevenção da saúde, atenção, produção de conhecimento, participação social, até demandas específicas, tais como o processo transexualizador, redução de danos deste e o uso do nome social (Brasil. Ministério da Saúde, 2013).

Todavia, para além do avanço que representou a construção da citada política e do reconhecimento da saúde como um direito universal, estudos assinalam que ainda há um processo de exclusão e contrastes no atendimento de determinados grupos, que, como sabemos, estão em situação de vulnerabilidade, como é o caso da população LGBTTI+ (Simpson, 2015; Ferreira, Pedrosa, & Nascimento, 2018).

Nessa perspectiva, os serviços de saúde ainda são atravessados por processos discriminatórios, nos quais travestis e transexuais, em especial mulheres transexuais (doravante denominadas neste trabalho de mulheres trans), acabam por vivenciar com mais frequência e intensidade essas manifestações, seja de forma explícita ou não. Há uma incompatibilidade do sistema e dos serviços de saúde com as vivências desse grupo populacional refletida nas condições de saúde (Sampaio & Germano, 2014; Simpson, 2015; Ferreira et al., 2018; Guaranha, 2013).

Um ponto importante e essencial que, nesta, como em outras políticas, não está incluído é o debate acerca das interseccionalidades, que podem ser explicadas como camadas de vulnerabilidades de diferentes categorias sociais que intensificam e favorecem as iniquidades. Assim, a estrutura social que essas categorias (raça, classe social, gêneros, entre outras) estão inseridas e organizadas determinam o modo como essas interseccionalidades, ou seja, essas camadas de vulnerabilidades passam a marginalizar tais sujeitos (Das Dores et al., 2017; Kerner, 2012; Crenshaw, 2004; Akotirene, 2019).

Nesse contexto, desejando contribuir efetivamente com essas discussões, buscamos, neste artigo, analisar a implementação da Política Nacional da Saúde Integral LGBTTI+, bem como as dificuldades no acesso aos serviços de saúde a partir das interseccionalidades na experiência de travestis e mulheres trans na realidade de Parnaíba, estado do Piauí (PI). Assim, a pesquisa é relevante na medida em que contribui para identificar os desafios da implementação e de acesso aos serviços de saúde por parte desta população específica, bem como na percepção de como os(as) profissionais de saúde lidam com as questões da política supracitada.

 

Método

Esta pesquisa é um estudo qualitativo, com uso de alguns instrumentos e ferramentas do cunho etnográfico (Minayo, 2017). Participaram deste estudo profissionais da saúde e usuárias da população LGBTTI+, em especial mulheres trans e travestis. Os(as) interlocutores(as) foram identificados(as) em diferentes circunstâncias, tais como: serviços de saúde (Unidades Básicas de Saúde e Hospitais Públicos), espaços prostitutivos e lugares ligados à militância social do público LGBTTI+.

A amostra foi composta por sete interlocutores(as), sendo três profissionais da saúde (categorias: enfermagem e serviço social) e quatro usuárias, sendo duas travestis e duas mulheres trans. Com o intuito de preservar a identidade dos(as) interlocutores(as) desta pesquisa, será utilizada a respectiva legenda: nomes próprios iniciados com a letra T, para as usuárias travestis e mulheres trans, e sobrenomes iniciados com a letra P, para profissionais de saúde, que, desta forma, também não poderão ser identificados(as) quanto ao gênero.

A coleta de dados foi realizada por um período de dez meses, no município de Parnaíba, litoral do estado do Piauí, que tem aproximadamente ‎150.547 habitantes. O estudo não é uma etnografia, e sim uma pesquisa qualitativa. No entanto, foram utilizados na coleta de dados alguns instrumentos e ferramentas de cunho etnográfico, com o intuito de dar mais flexibilidade e compelir melhor os dados da realidade, tais como: a observação participante, produção sistemática de diários de campo e a realização de entrevistas semiestruturadas. Todas as entrevistas foram gravadas, com autorização prévia dos(as) interlocutores(as) e transcritas posteriormente.

O roteiro semiestruturado direcionado aos(as) profissionais de saúde continha perguntas sobre a política, sobre o atendimento e possíveis situações envolvendo discriminação nos serviços. Já o roteiro semiestruturado direcionado às mulheres trans e às travestis continha perguntas sobre experiências com os serviços, conhecimento da política, possíveis violências sofridas, nome social e relação com o corpo. Os roteiros tinham como objetivo capturar possíveis violências e questões ligadas à implementação da política e acesso aos serviços de saúde. A pesquisa foi autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa Humana (CEP) da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Campus Ministro Petrônio Portella, com o número de registro 2.527.830. Todos(as) os(as) interlocutores(as) assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para Participação em Estudo Científico.

No que concerne à análise de dados, executou-se um plano seguindo o método de análise de discurso, e, de acordo com Caregnato e Mutti (2006), seu processo

. . . tem a pretensão de interrogar os sentidos estabelecidos em diversas formas de produção, que podem ser verbais e não verbais, bastando que sua materialidade produza sentidos para interpretação; podem ser entrecruzadas com séries textuais (orais ou escritas) ou imagens (fotografias) ou linguagem corporal (dança). (p. 280)

Para tanto, realizaram-se oficinas nas quais foram analisados e discutidos os conteúdos que emergiram a partir da observação participante, da produção de diários de campo e das entrevistas que resultaram em pontos nevrálgicos a serem analisados e discutidos, tais como interseccionalidades nos serviços de saúde, desconhecimento da Política Nacional de Saúde Integral de LGBTTI+ e violências simbólicas e institucionais.

 

Resultados e Discussão

Interseccionalidades nos Serviços de Saúde

O conceito de interseccionalidades carrega consigo diversas dimensões que se diferem nos mais variados contextos. Os diálogos referentes às análises interseccionais surgem principalmente (mas não somente) de estudos feministas e de gênero, sobretudo nos Estados Unidos da América (EUA). Henning (2015) apresenta duas importantes observações propostas por outras autoras da temática. A primeira é referente à não homogeneidade nos olhares teóricos sobre o tema, uma vez que há um farto número de visões acerca da noção, a qual pode ser concebida como método, paradigma, conceito, teoria, abordagem etc. A segunda observação é relativa às duas vertentes5 possíveis sobre as interseccionalidades. Uma seria chamada de abordagem construtivista, que é marcada por ideias de relação de poder e agência, na qual entende que há efeitos coercitivos, mas que também há possibilidades de fuga e nem sempre estaremos em lugares de opressão. Por outro lado, temos a vertente sistêmica ou estrutural, que se preocupa mais em analisar como o gênero, raça e classe determinam ou estruturam a formação de identidades.

Tendo em vista a profusão de olhares teóricos e conceituais, neste artigo, iremos trabalhar partindo da perspectiva de Crenshaw (2004), localizada na vertente estrutural com foco no direito, buscando explicar que as discriminações sexistas e racistas dificilmente poderiam ser distinguidas (Kerner, 2012) e seria também a maneira mais sensível de pensar a identidade e sua relação com o poder, como bem descreve Akotirene (2019). É preciso ressaltar, entretanto, que, independentemente da forma pela qual esse termo é abordado, a existência das sobreposições de camadas de vulnerabilidades e as inter-relações não podem ser negadas.

A discussão feita por Crenshaw (2004), cujo objetivo é ". . . apresentar uma estrutura provisória que nos permita identificar a discriminação racial e a discriminação de gênero, de modo a compreender melhor como essas discriminações operam juntas, limitando as chances de sucesso das mulheres negras" (p. 8), pode nos ajudar a pensar as maneiras específicas pelas quais travestis e mulheres trans experimentam as inferências que dificultam seu pleno acesso aos serviços e acentuam as situações enfrentadas por esse grupo. Isso porque, como pontua Assis (2019), embora a priori os marcadores de gênero e raça tenham sido foco nos estudos relativos às interseccionalidades, atualmente nota-se uma ampliação de análises que consideram outras intersecções, como geração, identidade de gênero, sexualidade etc. Ao admitir, por exemplo, as vulnerabilidades de travestis e mulheres trans, é possível, a partir daí, tentar capturar eixos de subordinação e como as interseccionalidades atravessam esses corpos.

Destarte, essas compreensões são necessárias para reconhecermos que essas categorias se inter-relacionam e, por consequência, não podem ser vistas separadamente. Como Crenshaw (2004) e Akotirene (2019) colocam, as mulheres negras são afetadas de maneiras específicas e experimentam situações discriminatórias por conta dessa combinação: raça, classe e gênero. Ou seja, ser mulher, pobre e negra, em especial na sociedade brasileira, que ainda está submersa na ideia de miscigenação como argumento para a inexistência de racismo e para o não reconhecimento dos efeitos deste, é ser triplamente vulnerabilizada. Reconhecer a existência dessa sobreposição é importante para entender a discussão elencada pela pesquisa, na qual analisamos mais um eixo de subordinação referente a um grupo historicamente vulnerabilizado, como é o caso das travestis e mulheres trans.

Por certo que ser mulher trans e/ou travesti é perceber-se como sujeito posto à margem, que diariamente experimenta os impactos ao insurgir com seus respectivos corpos e transgredir a lógica imposta. Esses impactos são inegavelmente aguçados quando se é uma mulher trans negra. A produção desses corpos é atravessada pela opressão racista, classista e de gênero, que resulta tanto na tarefa exaustiva de reafirmar-se como mulher trans, como na tentativa de rasurar seu gênero e raça. Assim, a violência ocorre internamente ao buscar o embranquecimento como certificação da sua feminilidade, negando as marcas de um pertencimento étnico-racial para convencer o outro do que se é, bem como externamente, ao ter seu acesso cerceado ou, ainda, quando experimenta diariamente olhares discriminatórios e reprovativos (Brito, 2016).

Isso posto, perceber esses eixos, ou seja, perceber a importância de usar a lente analítica das interseccionalidades nos serviços de saúde, pode ser uma tarefa difícil se não entendermos os não ditos que permeiam e estruturam nossa sociedade. Crenshaw (2004) defende que esse desafio é ocasionado pela complexidade de pensar e perceber a diferença dentro da diferença.

Reconhecer as especificidades de um grupo já é um desafio na prática dos serviços, ampliar esse olhar ainda mais e perceber que a suposta igualdade de atendimento difere de pessoa para pessoa e que a cor da pele influencia é quase impensável. Isso porque estamos falando de formas sutis de violências que são a todo custo negadas, afinal, não existe mais racismo e todos(as) são tratados(as) sem distinção.

Apesar dos estudos sobre a combinação de formas de subordinação já aparecerem no século XIX, Cresnshaw cunhou esse termo em 1989, e em 2001, o conceito ganhou uma repercussão maior (Henning, 2015; Akotirene, 2019).

São indispensáveis mais estudos que reafirmem a necessidade de uma análise interseccional das vulnerabilidades que intensificam as violências na nossa sociedade (Das Dores et al., 2017). Essa escassez de estudos e discussões sobre esse tema reflete-se na formulação e no desenvolvimento das políticas de saúde.

Um exemplo facilmente observável encontra-se na Política Nacional da Saúde Integral LGBTTI+, que, como foi anteriormente citado, busca fomentar ações de saúde que visem à superação do preconceito e da discriminação. Todavia, ignora que a lógica da discriminação e a interação estrutural desses vários eixos de subordinação operam excluindo as sobreposições (Crenshaw, 2004) e que, para efetivar seus objetivos, é preciso analisar os atravessamentos e determinantes sociais que contribuem para a produção de iniquidades, para a violação de direitos. Assim, afeta a efetivação de suas diretrizes, limitando as chances de acesso ou do bom atendimento desses grupos (Das Dores et al., 2017; Crenshaw, 2004), deixando à margem corpos que carregam várias vulnerabilidades, já que não se discutem e nem se pensam ações no âmbito da política.

O reconhecimento das interseccionalidades, ou seja, da sobreposição de vulnerabilidades, com enfoque neste estudo nas categorias raça, classe e gênero, experimenta a adversidade de nem sequer ser previsto na política, que como veremos, ainda não é tão conhecida e efetivada. Isso é problemático, pois ser travesti ou mulheres trans e negras em um país com altíssimos números de mortes desse grupo revela-se custoso. Nos serviços de saúde, que têm uma política que representa um marco histórico na tentativa de reconhecer as demandas dessa população, tais características atuam como alavanca relevante do atendimento, permeado por violências simbólicas ou não.

Partindo dessa ótica, é possível comparar a experiência de duas interlocutoras do estudo. A usuária Trícia é uma mulher trans, negra, pobre, não terminou os estudos, trabalha como empregada doméstica e profissional do sexo. Ela relata ter tido o atendimento negado ao ir ao posto de saúde e querer ser atendida no Dia das Mulheres, além de não ter seu nome social respeitado:

Porque (inaudível) eles ainda botaram muita dificuldade. Botaram muito mesmo. Eles ainda me botaram foi na fila de homem. - Peço que ela explique. - É porque dia da mulher é na quinta-feira e dia do homem é na sexta. E se eu quisesse ser atendida por ela eu tinha que ir no dia do homem. - Questiono se é um procedimento realizado com toda trans atendida nesse posto e o que ela fez - Eu acho que sim. Eu acho que sim. Aí eu peguei e disse pra ela: mulher, pois eu não vou no dia do homem não, eu vou no dia da mulher. Que não era pra eu ir no dia da mulher não que tinha muita mulher, não sei o que mais lá... (Inaudível) - Eu pergunto o desfecho - Ela negou atendimento. Eu tive que ir na sexta ainda foi depois de todos os homens. (Trícia)

Já Ticiane é uma travesti, branca, classe média, trabalha como profissional do sexo, tem um nome unissex e durante o dia veste-se com roupas masculinas, inclusive para ir ao posto de saúde. Ambas fogem da norma e, portanto, são estigmatizadas, sofrem violências, preconceito e discriminação. Todavia, em seus relatos, como nas falas a seguir, é possível perceber qual delas tem esses aspectos intensificados:

Eu, particularmente, não tenho esse problema (com o nome social - grifo nosso), mas eu tenho amigas que comentam que elas costumam ir ao hospital e lá eles não querem tratar pelo nome social delas, querem chamar pelo nome de homem, essas coisas, aí querem preencher toda a ficha com o nome de homem, e elas não aceitam porque elas se consideram trans, querem ser tratadas como mulher. (Ticiane)

Podemos notar, a partir dos relatos, que há um tratamento diferenciado e, certamente, resultados desiguais. As sobreposições de vulnerabilidades desencadeiam relações distintas com os serviços de saúde. Seguramente, se a interlocutora Ticiane fosse negra e sua performance de gênero, em especial nos serviços, fosse outra, a relação com o serviço não seria descrita de tal forma. Sua vestimenta e aparência a aproxima da norma e diminui as violências. É evidente que sua vivência é permeada por discriminações, preconceitos e violências, mas esses são abrandados. Diferentemente da usuária Trícia, que, ao que parece, enfrenta situações de preconceito de classe, raça e gênero nos serviços de saúde. Assim, não podemos desconsiderar a raça como um eixo que pode sim ter influenciado e distinguido a experiência de ambas.

De fato, é preciso, como Crenshaw (2004) pontua, percebermos que a as relações estabelecidas serão experimentadas de maneiras diferentes, principalmente no que tange às questões de gênero e racismo. Deslocando essa perspectiva para o presente estudo e ampliando as sobreposições, é possível pensarmos como a discriminação de gênero, os estigmas, os preconceitos quanto à identidade do grupo trabalhado que foge à norma e o racismo podem operar juntos na direção de afetar negativamente a vida em todos os cenários, mas em especial no da saúde, tema desta pesquisa.

 

Desconhecimento da Política Nacional de Saúde Integral de LGBTTI+

O avanço representado pela criação da política é inquestionável, todavia, temos clareza de que isso não é suficiente e não garantirá que a população tenha conhecimento de sua existência e que os(as) profissionais irão, de fato, conhecê-la na íntegra e, assim, efetivá-la.

A subversão da lógica heterossexual dominante e dos padrões de gênero vigentes faz com que mulheres trans e travestis não acessem devidamente os serviços públicos de saúde. Essa dificuldade tem menos relação com as especificidades do grupo e mais com o preconceito enfrentado nos serviços. Tagliamento (2015), ao discutir a dificuldade de acesso desse grupo, aponta a necessidade de repensar a formação de modo que haja discussões que propiciem reflexões sobre essa realidade nos serviços.

Os preconceitos que ainda atravessam o manejo destes profissionais dificultam o atendimento e podem diminuir o acesso dessa população aos serviços de saúde. A manifestação de condicionantes sociais, coletivas e individuais provoca exposição e adoecimento físico e psíquico do grupo que busca o atendimento (Sampaio & Germano, 2014; Ferreira et al., 2018).

Quer dizer, o propósito de amparar nos serviços de saúde as categorias que integram pessoas cujos respectivos modos de existir são questionados, já que se integram no avesso da norma, fica invalidado. Isso em razão de que é na prática, na relação assimétrica de poder existente entre profissional e usuário, que a política será de fato consumada ou não.

Assim, a distância social existente entre profissionais e usuários(as) que pode ser percebida, por exemplo, a partir de uma linguagem por vezes incompreensível utilizada pelo profissional, pode inviabilizar o acesso desse grupo ao cotidiano dos serviços. À vista disso, torna-se imprescindível que a sensibilização de profissionais por meio da formação seja uma estratégia que, para além da teoria, passe a olhar e atender a população LGBTTI+ de maneira mais respeitosa e acolhedora (Gianna, 2015; Guaranha, 2013; Cerqueira-Santos et al., 2010; Sontag, 1984; Muller & Knauth, 2008). Portanto, é preciso que as capacitações aproximem os(as) profissionais da temática da diversidade de gêneros e identidades sexuais sem dar enfoque apenas ao aspecto biológico, mas sim considerando outras dimensões como culturais e, sobretudo, simbólicas.

É importante pontuar que há uma resistência que é atravessada pelo desconhecimento integral da política por profissionais, sobretudo por usuários(as), e que certamente influencia na incorporação das ações. As falas (SIC) de profissionais e usuárias abaixo ao responderem à pergunta "O que você sabe sobre a política?/Você já conhecia a política?" esboçam o desconhecimento dessa política específica:

Não. Eu não sei sobre essa política. (Talita, Graduanda)

Muito pouco. Conheço muito pouco e o que eu conheço dela é exatamente nas nossas conferências e reuniões que realizamos. Porque sempre é um eixo de discussão, mas como eu sou professora eu acabo discutindo o eixo de educação ou participando mais das rodas de educação, elas são simultâneas, uma sala, uma sala de educação aí eu vou pra de educação. Eu acabo conhecendo alguns detalhes do plano de saúde como um todo, mas não especificadamente, o que acaba sendo uma falha de todos nós usuários dos serviços. Porque nós nunca conhecemos de fato os serviços, talvez porque também não precise tanto, talvez acabe conhecendo, mas conheço pouco. (Tainá, professora universitária)

Eu sei da existência dela, não sei de falar detalhes, as diretrizes e tudo direitinho eu não sei te dizer ao certo, mas eu sei que ela existe, eu conheço. (Pereira, profissional da Enfermagem)

Vou te confessar. . . eu não. . . eu nunca vi assim nenhum documento que me deixasse bem informada sobre isso. Nunca tive nenhum interesse não. (Pinheiro, profissional e técnica de enfermagem)

De todos os interlocutores da pesquisa, apenas dois (uma usuária trans e um profissional) conheciam a existência da política, mas não sabiam ao certo as diretrizes. Isso é um ponto essencial a ser discutido, pois esse avanço no campo da saúde não está chegando em seu ínterim aos que estão diretamente relacionados com ele. A importância de ações que favoreçam o conhecimento da política é reconhecida pelos profissionais e pode ser representada pela fala de Pinheiro:

Eu acho que intensificar a questão da política porque eu mesmo nunca tive a curiosidade de pegar assim pra ler, até mesmo na internet. Acho que fazer uma. . . uma intensificação voltada para os profissionais da saúde, para cada setor. Quando tiver capacitações e tudo. Ter essa pauta, sobre isso. Seria uma boa estratégia. (Pinheiro)

Um aspecto importante quando se trata do desconhecimento dos(as) usuários(as) da política específica é o controle social, que compõe os princípios do SUS e constitui-se como meio garantido da democracia interna do sistema de saúde. Sabe-se, como pontua Souto, Sena, Pereira e Santos (2016), que a participação social é um elemento estruturante nas respostas possíveis do Estado quanto à efetivação da política. Contudo, quem está na ponta, ou seja, no cotidiano dos serviços de saúde, experiencia diariamente as discriminações. Em sua grande maioria, não tem um grau de escolaridade muito alto, desconhece os mecanismos garantidos e, portanto, não os utiliza. Além disso, não está sendo beneficiado(a), já que essa informação não está chegando até eles(as). O controle social e as políticas específicas precisam ser enunciados e elucidados com afinco, para que façam sentido.

Outro ponto é que, ao serem questionados(as) sobre o possível conteúdo da política, nota-se que os(as) profissionais entrevistados(as) não partem do princípio de equidade ao se referirem aos direitos e às especificidades da população LGBTTI+. As vulnerabilidades deste grupo em questão não são reconhecidas nas suas colocações sobre a política, e sim na defesa de uma suposta igualdade no tratamento. Essas colocações evidenciam o desconhecimento da política e as razões pelas quais ela foi criada.

Em um estudo recente sobre a universalização dos direitos e a promoção da equidade da população negra, Faustino (2017) faz pontuações sobre esses aspectos na política específica da referida população que podem ser captadas para esta discussão. Ele pontua que a universalidade abstrata que aparece nos discursos, e é desejo de muitos, não abrange a diversidade implícita nela. Podemos observar esse aspecto na fala dos participantes a seguir:

. . . mostrar que eles não são grupo de risco, nós também somos porque todo mundo é igual, que o atendimento deles tem de ser iguais aos nossos. (Pereira)

Acho que se fosse pra um era pra fazer pra todos. Porque todos nós tem direito, né? (Trícia)

A ideia de igualdade defendida pelo profissional Pereira e pela usuária Trícia em suas respectivas falas evidencia como o princípio de equidade e, consequentemente, as especificidades dessa população não são considerados.

Torna-se visível como os planos estratégicos para a operacionalização da política ainda representam um grande desafio para a efetivação de suas diretrizes. Há, para além do desconhecimento, outros aspectos que aparecem nas falas dos(as) participantes e explicitam tal desafio. Por exemplo, o número de casos de automedicação e utilização de hormônio sem acompanhamento ainda é grande e parece já fazer parte da vivência dessa população. Há um não dito que ronda a vivência dessas mulheres, de modo que, ao se reconhecerem como travestis e/ou mulher trans, elas necessariamente já saibam que esses processos farão parte do seu desejo e das suas possibilidades. E o que parece óbvio apenas denuncia a falta de suporte e acompanhamento que existem nesses casos, como podemos perceber nas falas a seguir:

Era hormônio, tipo ciclo 21, perlutan, eu mesmo aplicava, me automedicava e tomava. (Ticiane, Profissional do sexo)

Tipo, o silicone na bunda foi da temporada que eu decidi, digamos que virar mulher, aí eu fui passei um ano em São Paulo, nesse período que eu passei lá, em uma semana que eu já tava lá, aí eu fui e coloquei o silicone industrial na bunda. (Ticiane)

Na fala da usuária Ticiane, é possível notar que se tornar mulher, ou seja, adquirir características físicas que performem sua feminilidade, é pouco cogitado no âmbito do Sistema Único de Saúde, em especial no que tange ao uso de hormônios. E, quando raramente o é, o serviço mostra-se pouco resolutivo, pois não há profissionais capacitados. Esse uso, que deveria ser orientado por profissioais, é direcionado por amigas, que provavelmente também acreditam serem as únicas maneiras viáveis para as trasnformações que anseiam. A recorrência dessas práticas é interessante, pois, como foi citado no decorrer do texto, o uso dessas substâncias em épocas passadas impulsionou a criação da política, uma vez que, como pontua Simpson (2015), a negligência de cuidados básicos traz complicações e tornou-se um enorme problema relacionado à saúde dessa população. Como podemos observar nas falas seguintes, essa prática e suas complicações ainda são bastante recorrentes:

Não, foi uma amiga minha que me ensinou, aí ela me deu três comprimidos. No primeiro, eu não me senti muito bem, fui parar no hospital. E na segunda. . . Aí foi (inaudível). (Trícia, empregada doméstica e profissional do sexo)

Por causa do silicone, sim. Tem uma amiga minha que o dela tá descendo "pro" pé. E o médico disse que não tem jeito. (Trícia)

Já tentei, já tentei. Mas ele disse que os profissionais não são bem. . . Não tem profissionais capacitados pra fazer esse procedimento, não sei o quê. . . E fica difícil. (Talita)

No tangente a essas práticas, Simpson (2015) ainda coloca que, mesmo nas iniciativas voltadas à redução de danos e riscos do uso de hormônio, por exemplo, há falhas, pois os riscos que as travestis e as pessoas transexuais correm têm origem no anseio da incompreensão, e o SUS demorou a conceber como caso de saúde pública a rápida modelação de seus corpos para obter os modelos sonhados. De qualquer forma, é uma estratégia para reduzir os danos à saúde da população LGBTTI+.

Tais constatações reafirmam e evidenciam a necessidade da constante análise e do monitoramento da Política Nacional de Saúde Integral de LGBTTI+ garantida em seu texto, que possibilita e incentiva o debate em torno da sua implementação e operacionalização (Brasil, Ministério da Saúde, 2013). A necessidade de sempre estar alerta quanto às iniquidades decorrentes da discriminação e preconceito no SUS é reconhecida no texto, visto que as ações de enfrentamento podem desencadear o reforço de estigmas, como aconteceu na época da epidemia de HIV/aids, ainda hoje presente no imaginário da sociedade (Guaranha, 2013).

E, claro, o exercício de reavaliação crítica precisa ser pensado a partir dos fatores que dificultam a operacionalização desta política, como a destinação orçamentária e, ao mesmo tempo, pontuar esses fatores como sinais que justificam a existência da política, sobretudo a necessidade de discussões paulatinas sobre o tema.

 

Violências Simbólica x Institucional

No que tange às várias formas de violência vivenciadas pela população LGBTTI+, especialmente às mulheres trans e travestis, recorte deste estudo, cabe pontuar a constante presença delas nos espaços e serviços de saúde. Dentre as várias formas de violência, a simbólica é a mais constante por ser mais sutil e não manifesta. Essa violência passa despercebida pelas usuárias, que, questionadas sobre o atendimento, dizem não sofrerem violência nos serviços, mas, em falas posteriores, relatam situações de violência de cunho simbólico bastante forte e o incômodo de ir ao serviço, o que resulta na limitação do seu acesso. Podemos observar essa relação nas falas a seguir:

Não, não tem um motivo específico, é porque, sei lá, eu não gosto muito, eu acho bobagem sair lá de casa pra pegar fila, porque demora demais, aí eu prefiro me automedicar. (Ticiane)

. . . eu não me sinto muito à vontade em hospital. (Trícia)

O caso da usuária Trícia, como já exposto no tópico sobre interseccionalidades, que afirma ser tratada bem nos serviços, mas, durante a entrevista, revela dificuldades e violências que ela vivenciou, denota a sutilidade das violências nos serviços. Certamente, tais situações configuram-se como um dos motivos não ditos para que as entrevistadas não queiram voltar ao serviço ou queiram utilizá-lo somente em último caso. Ao serem questionadas sobre o porquê, apontam a demora no atendimento, o que é um fato, mas que não justificaria caso encontrassem acolhimento nos serviços.

Outra forma de violência encontrada nos serviços é relacionada ao nome social, que, como sabemos, é garantido desde a promulgação da carta dos direitos do usuário do SUS, em 2006. Há uma resistência muito grande por parte dos(as) profissionais em respeitar a performance de gênero dos(as) usuários(as) e o não uso do nome social é uma das práticas violentas que aparecem com frequência nas falas de entrevistadas do público T (Cerqueira-Santos et al., 2010; Guaranha, 2013). As falas a seguir esboçam o uso de tais práticas:

A última vez que eu tive uma consulta foi agora nesse mês passado, só que a agente de saúde lá ainda nem tinha botado meu nome lá como meu nome social e eu já tinha dado pra ela, o número do cartão do SUS, o número da carteirinha e ela ainda não tinha botado lá no prontuário. (Trícía)

Não. Meu nome social ele não é respeitado. Incrível que pareça, parece que. . . que assim. . . parece que na recep. . . quando a gente chega no hospital, né?, que a gente vai ali na recepção fazer a ficha pra passar pro. . . parece que é, tipo. . . um degrau. Eles lançam teu nome civil atual, pessoal da recepção, e quando você chega no médico aí é que o médico pergunta como é seu nome social. Parece que o médico é mais preparado do que o resto da equipe. (Talita)

Eu sinto preconceito . . . como eu já observei. . . não foi nem preconceito, mas foi a questão de nomes, né. A pessoa vai à recepção e eles têm um nome social e muitas vezes eu sinto que o preconceito começa daí. Das críticas, até na forma mesmo deles serem tratados do início da recepção até passar pelo atendimento médico, eu sinto que eles são discriminados. É diferente, eu já percebi isso. (Pereira)

A presença de diretrizes que garantem há doze anos o direito pleno do uso do nome social nos serviços, ainda hoje, não impede que essas situações aconteçam. As situações de constrangimentos decorrentes dessa insistência dos(as) profissionais em não usar o nome social geram, como pontua Guaranha (2013), desconforto nas usuárias que, por vezes, optam por evitar o serviço. A revelação pública da condição trans das usuárias, em especial pelos(as) profissionais da linha de frente dos serviços, é uma forma de frear, através das estruturas do Estado, a construção identitária daqueles corpos e reconduzi-los à abjeção.

 

Considerações Finais

Perante o exposto, ainda é possível constatar no sistema de saúde situações violentas de cunho simbólico que fazem parte da vivência do público estudado e refletem de maneira negativa na prevenção, na qualidade dos serviços, na busca por atendimentos e, por consequência, na saúde de travestis e mulheres trans. Percebe-se a emergência de repensar os planos de gestão em saúde nos âmbitos, sobretudo, das secretarias estaduais e municipais para formular estratégias que possibilitem que os(as) profissionais de saúde tenham acesso à Política Nacional de Saúde Integral de LGBTTI+, conheçam as diretrizes e sejam cobrados quanto a sua implantação e efetivação no cotidiano dos serviços de saúde. Além disso, é preciso pontuar o desconhecimento da política tanto por parte dos(as) profissionais de saúde quanto por parte dos(as) usuários(as). Isso diz respeito ao grau de implicação do Estado e de gestores(as) em implantá-la na rotina dos serviços de saúde.

Para isso, a linguagem utilizada na política precisa ser pensada e reavaliada, de modo que a população em geral e grupos específicos tenham acesso ao seu conteúdo, e de forma que possa se aproximar do princípio da equidade defendido nas políticas e no SUS. Assim, tal linguagem permitiria que o controle social pudesse ser entendido e pleiteado nos mecanismos previstos para tal. Ademais, a política precisa ser divulgada não só para profissionais nos serviços de saúde, ela precisa chegar àqueles(as) que, de fato, precisam e são a razão da criação dela. Os movimentos sociais podem ser aliados, haja vista que as conquistas no campo da saúde foram permeadas por suas lutas.

No que tange às interseccionalidades, é preciso repensar a política para que em seu conteúdo seja reconhecida a necessidade de discussões paulatinas para refletir as sobreposições de raça, classe e gênero. Pensar esses construtos sociais de maneira separada é não garantir na política que as ações implantadas nos serviços estejam direcionadas para, de fato, evitar discriminação e preconceito nas suas mais variadas formas, inclusive as sobrepostas, postergando o cumprimento dos objetivos que nortearam sua criação. Essas ações e práticas precisam partir de um compromisso ético-político em vários âmbitos que reconheçam as sobreposições de vulnerabilidades e, portanto, as especificidades de cada grupo, e garantam que essas categorias sejam discutidas através da educação permanente e, assim, facilitem as práticas de equidade.

As limitações deste estudo estão relacionadas ao receio de alguns/algumas profissionais de saúde em abordar o tema e conceder entrevistas, sob a justificativa de possíveis problemas institucionais, assim como a disponibilidade das usuárias em fornecer entrevistas nos serviços de saúde e/ou outros locais.

Por fim, este estudo oferece, para além de considerações, provocações sobre a discussão das interseccionalidades na referida política de saúde e nas demais, de modo que o que está posto é provisório e precisa ainda ser intensamente discutido.

 

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Endereço para contato:
Francisco Jander de Sousa Nogueira
Rua Cel. Antônio de Sousa, 150, Ap. 302, Cond. Castro e Silva, Bairro Reis Velloso
Parnaíba, PI. CEP: 64204-085.
Telefone: (085) 98918-8586
E-mail: jander.sociosaude@gmail.com

Recebido em: 07/02/2020
Última revisão: 29/06/2020
Aceite final: 10/07/2020

 

 

Francisco Jander de Sousa Nogueira: Mestre e Doutor em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Estágio de Doutorado em Antropologia no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE/LISBOA). Especialista em Educação Comunitária em Saúde pela Escola de Saúde Pública do Ceará. Bacharel em Ciências Sociais. Professor adjunto do Curso de Medicina da Universidade Federal do Piauí (UFPI), campus Parnaíba. Integra o quadro de docentes do Programa de Pós-Graduação em Saúde da Família (Fundação Oswaldo Cruz - FIOCRUZ / Universidade Federal do Piauí-UFPI). Membro do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES). Investigador Associado do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA), ISCTE/LISBOA. Coordenador do Grupo de Pesquisas e Estudos em Antropologia, Saúde e Sexualidade (GEASS).
E-mail: jander.sociosaude@gmail.com
Orcid: http://orcid.org/0000-0003-4390-1709
Elaine Soares de Freitas Leitão: Graduanda em Psicologia na Universidade Federal do Piauí (UFPI)/CMRV.
E-mail: elainesoares30@hotmail.com
Orcid: http://orcid.org/0000-0001-8954-9160
Emylio César Santos da Silva: Doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com estágio sanduíche na Universidade Autônoma de Barcelona. Mestre e graduado em Psicologia pela PUC-SP. Professor no Curso de Psicologia da Universidade Nove de Julho (UNINOVE), São Paulo, SP.
E-mail: emylios@gmail.com
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-4151-0336

 

 

1 Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros, Intersexuais e o sinal de mais " + " é usado em respeito a todos os grupos que estão juntos na causa.
2 Nogueira (2013), baseando-se na compreensão e discussões cunhadas por Judith Butler, discorre sobre conceito de heteronormatividade como sendo ". . . a legitimação do modelo heterossexual como norma regulatória das relações sexuais e de gênero na sociedade ocidental contemporânea. Seu principal argumento de legitimação é que a sexualidade é orientada por aspectos biológicos. Como consequência, a associação entre heterossexualidade e reprodução é concebida como natural" (p. 38).
3 Abjeto é um conceito trabalhado por Judith Butler. Para ela, que explicou em entrevista para Prins e Meijer em 2002, tal termo ". . . não se restringe de modo algum a sexo e heteronormatividade. Relaciona-se a todo tipo de corpos cujas vidas não são consideradas 'vidas' e cuja materialidade é entendida como 'não importante'" (p. 161).
4 À época, a política nacional de saúde integral fazia referência apenas à sigla LGBT. Hoje a sigla tem se ampliado e incluído outros segmentos, como destacamos anteriormente.
5 Citaremos apenas as duas principais, mas, em seu estudo, o autor discorre sobre cinco delas.

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