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Revista Psicologia e Saúde

On-line version ISSN 2177-093X

Rev. Psicol. Saúde vol.13 no.3 Campo Grande July/Sept. 2021

http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v13i3.1292 

ARTIGOS

 

Biobancos privados, biotecnologias e as promessas de segurança biológica

 

Private biobanks, biotechnologies and the promises of biological security

 

Biobancos privados, biotecnologías y las promesas de seguridad biológica

 

 

Vera SomavillaI; Betina HillesheimI; Analídia Rodolpho PetryI; Maria Luisa Panisello ChavarriaII

IUniversidade de Santa Cruz do Sul (UNISC)
IIUniversidad Rovira i Virgile (Espanha)

Endereço de contato

 

 


RESUMO

INTRODUÇÃO: Este artigo tem o objetivo de compreender como a adesão à biotecnologia de armazenamento de células-tronco do cordão umbilical para uso autólogo produz a adoção de práticas, no presente, que visam prevenir riscos em nome de segurança biológica no futuro.
MÉTODO: O material empírico foi constituído de depoimentos extraídos de sites de biobancos privados credenciados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), analisados a partir da análise do discurso.
RESULTADOS: as publicações dos sites estimulam o consumo do armazenamento de células-tronco do cordão umbilical, em nome da obtenção de segurança biológica para o futuro. Discussões: Esta busca é povoada por discursos de riscos que oferecem "garantias" relacionadas a futuros somáticos, associados a práticas educativas que produzem formas de cuidar dos filhos.
CONCLUSÃO: Tais discursos produzem significados acerca de questões que envolvem segurança biológica e riscos, inscrevendo pais e mães em práticas de hiperprevenção em saúde.

Palavras-chave: gestão de risco, prevenção, células-tronco, educação em saúde, criopreservação


ABSTRACT

INTRODUCTION: This article aims to understand how adherence to biotechnology of stem cell storage of umbilical cord for autologous use produces the adoption of practices, in the present, that aim to prevent risks in the name of biological security in the future.
METHOD: The empirical material consisted of testimonies extracted from private biobank sites accredited by ANVISA, analyzed from the analysis of the discourse.
RESULTS: the websites' publications encourage the consumption of the storage of umbilical cord stem cells, in the name of obtaining biological security for the future. Discussions: This search is populated by risk speeches that offer "guarantees" related to somatic futures, associated with educational practices that produce ways of taking care of children.
CONCLUSION: Such speeches produce meanings about issues involving biological safety and risks, enrolling fathers and mothers in practices of hyperprevention in health.

Keywords: risk management, prevention, stem cells, health education, cryopreservation


RESUMEN

INTRODUCCIÓN: Este artículo tiene el objetivo de comprender cómo la adherencia a la biotecnología del almacenamiento de células madre del cordón umbilical para uso autólogo produce la adopción de prácticas, en el presente, que apuntan a prevenir riesgos en nombre de la seguridad biológica en el futuro.
MÉTODO: El material empírico consistió en declaraciones extraídas de sitios de biobancos privados acreditados por ANVISA, analizadas a partir del análisis del discurso.
RESULTADOS: las publicaciones en los sitios fomentan el consumo de almacenamiento de células madre en el cordón umbilical, en nombre de la obtención de seguridad biológica para el futuro. Discusiones: esta búsqueda está poblada por discursos de riesgo que ofrecen "garantías" relacionadas con futuros somáticos, asociados con prácticas educativas que producen formas de cuidar a los niños.
CONCLUSIÓN: Tales discursos producen significados sobre temas que involucran seguridad y riesgos biológicos, inscribiendo a padres y madres en prácticas de hiperprevención en salud.

Palabras clave: gestión de riesgos, prevención, células madre, educación en salud, criopreservación


 

 

Introdução

Biobancos são coleções organizadas de material biológico humano e informações associadas, constituindo-se como uma ferramenta importante para as pesquisas na área da saúde, sendo que a utilização de tais materiais tem se tornado uma preocupação internacional, considerando as questões éticas envolvidas (Marodin, Salgueiro, Motta, & Santos, 2013). Além do âmbito da pesquisa científica, nos últimos anos tem havido tensionamentos em torno do mercado privado relacionado à coleta, armazenamento e disponibilização de material biológico humano (Galindo, Lemos, & Rodrigues, 2014).

A partir do pressuposto de que tais práticas possam ser úteis no futuro, há a organização de biobancos de células-tronco do cordão umbilical. Esse mercado atrai clientes não só porque se exageram os riscos de que as crianças possam precisar de um transplante das células, mas porque é oferecida uma forma de participação na promessa biotecnológica comercial, a qual aposta na cura de doenças existentes e de outras nem sequer imaginadas. No Brasil, existem dois tipos de bancos de sangue de cordão umbilical e placentário: os serviços que constituem a Rede Nacional de Bancos Públicos de Sangue de Cordão Umbilical e Placentário para Transplante de Células-Tronco Hematopoiéticas (Rede Brasil Cord) e os bancos privados de sangue de cordão umbilical e placentário para uso autólogo (BSCUPA). Os bancos privados de sangue de cordão umbilical e placentário para uso autólogo (BSCUPA) são aqueles em que as células-tronco de sangue de cordão umbilical são armazenadas para uso pela própria pessoa (bebê) da qual as células do sangue de cordão foram obtidas (Agência Nacional de Vigilância Sanitária [ANVISA], 2018).

O 8º Relatório de Avaliação dos Dados de Produção dos Bancos de Sangue de Cordão Umbilical e Placentário, referentes ao ano de 2017, apresenta o panorama de distribuição dos bancos de sangue de cordão umbilical no país e expõe os dados de produção dos serviços, dentre estes, a quantidade de unidades de células progenitoras hematopoiéticas (CPHs, também conhecidas por células-tronco hematopoiéticas) de sangue de cordão umbilical armazenadas, o número de unidades desqualificadas, os motivos referentes à desqualificação e o destino das unidades; além disso, divulga os indicadores de qualidade dos bancos (ANVISA, 2018).

Dos 19 bancos privados em funcionamento no país, 16 realizaram coletas em 2017. Houve relato de 1 (uma) unidade utilizada em transplante autólogo, como suporte ao tratamento quimioterápico empregado contra o neuroblastoma. O banco de sangue de cordão umbilical informou à ANVISA que o transplante de células autólogas seguiu sem intercorrências clínicas. Os dados do 8º Relatório de Avaliação evidenciam que o número de unidades coletadas pelos bancos de sangue de cordão do setor privado, em 2017, foi 5,8% menor, comparado às coletas realizadas no ano anterior. Faz-se importante destacar que a diminuição no número de coletas de novas unidades de sangue de cordão para composição do inventário dos bancos de sangue de cordão umbilical tem sido uma tendência mundial, conforme aponta os dados do Relatório Global de Tendências 2017, da Associação Mundial de Doadores de Medula Óssea (ANVISA, 2018).

O mercado do biocapital envolve a ação de companhias e tecnologias que ampliam práticas de consumo e bens comercializáveis. Dentre esses bens comercializáveis, destaca-se a ideia da segurança biológica, que passa cada vez mais a gerenciar a vida (Nobre & Pedro, 2014). No que se refere à regulamentação dos biobancos, a ANVISA dispõe sobre a regulamentação das propagandas de bancos de sangue de cordão umbilical e placentário para uso autólogo. A fiscalização das campanhas publicitárias dos biobancos, realizada por este órgão, apontou que as informações veiculadas possibilitariam interpretações equivocadas a respeito da utilização das células do sangue de cordão umbilical e placentário, resultando em falsa sensação de "segurança" aos pais ao adquirirem um serviço que, de fato, não tem meios de assegurar a saúde futura de seus filhos e filhas (ANVISA, 2018).

Mesmo com a regulamentação da ANVISA sobre publicidade, as campanhas dos sites dos biobancos exploram amplamente o aspecto da coleta e do armazenamento desse material como possibilidade de prevenção de riscos e, consequentemente, de uma maior segurança biológica. A partir dessa observação, este artigo propõe compreender como a adesão à biotecnologia de coleta e armazenamento de células-tronco do cordão umbilical para uso autólogo atua na produção de pais e mães, em relação à adoção de práticas no presente, que visam prevenir riscos em nome da segurança biológica.

As questões que orientam as reflexões que serão desenvolvidas nas páginas a seguir são: como os discursos presentes nos sites, e sua promessa de garantia biológica no futuro, constituem-se e operam nos depoimentos dos pais publicados em sites que comercializam/vendem a coleta e o armazenamento de células-tronco do cordão umbilical? Como estas publicações se constituem como uma dimensão educativa relativa à saúde nesses sites?

 

Método

Destaca-se que este estudo se baseia na abordagem qualitativa descritiva exploratória e filia-se à perspectiva teórica dos Estudos Culturais, considerando um olhar pós-estruturalista de análise, com base em ferramentas foucaultianas, tais como discurso e relações de saber-poder (Orlandi, 2009). Portanto, tendo em vista o entendimento de que a mídia (no caso dessa investigação, a Internet) constitui modos de ser e estar no mundo, a produção de dados da pesquisa se deu a partir de sites de biobancos autólogos/privados.

A identificação dos sites ocorreu a partir de uma pesquisa no site da ANVISA, em que estão cadastrados 19 biobancos autólogos. Em seguida, os nomes destes sites foram utilizados no Google para identificação deles. A partir da observação detalhada destes 19 sites, o critério de escolha do material empírico foi de que o site estivesse disponível na rede aberta da Internet e que disponibilizasse um campo/link de acesso aos depoimentos dos pais/clientes sobre a coleta e o armazenamento das células-tronco do cordão umbilical. Seguindo este critério, foram identificados nove sites, que apresentavam 46 depoimentos escritos e 14 vídeos com depoimentos.

Após a identificação destes 60 registros, organizou-se um banco de dados, a partir de um print da tela do depoimento, disponível no site de cada biobanco. Os vídeos foram armazenados, sendo que os áudios foram transcritos fidedignamente. Todos os depoimentos encontrados nos sites foram analisados, ou seja, o número de registros tomados para a análise foram a totalidade de dados encontrados a partir do critério de inclusão descrito.

Para análise, o material foi submetido a um processo de interpretação, no qual buscamos apreender as margens discursivas considerando a opacidade, a não fixidez dos sentidos, as heterogeneidades, as inconsistências e as contradições próprias dos discursos comerciais presentes nos depoimentos dos clientes dos biobancos (Orlandi, 2009). A partir deste pressuposto analítico, os dados foram organizados em categorias que deram origem às discussões/reflexões apresentadas a seguir.

Assim, foi realizada uma imersão nos discursos presentes nos sites que abordavam o que pais e mães, clientes dos biobancos, diziam sobre esta biotecnologia e como tais discursos eram veiculados, tendo por base as ideias de prevenção de riscos e de desejos de obtenção de certo tipo de segurança biológica. Nesse sentido, ocorreram múltiplos acessos a cada depoimento, sendo que cada um foi analisado a partir da perspectiva da análise do discurso, em que o sujeito é compreendido como um produto do discurso e das relações de saber e poder que a ele se apresentam (Orlandi, 2009).

Essa estratégia deu-se por entender que tais depoimentos, de algum modo, expressavam uma série de discursos acerca da adoção desta prática. Mesmo que os sites tenham o propósito de propagandear e vender o serviço, podendo estar impregnados por interesses comerciais, eles promovem a divulgação e a multiplicação de uma série de benefícios do uso de uma tecnologia que anuncia possibilidades de tratamento e cura de "possíveis" doenças. Desse modo, mesmo que tenham o interesse de vender, produzem informações que circulam no cotidiano dos pais e mães que acessam as páginas dos biobancos. A realização desta reflexão é pertinente para o campo da saúde coletiva, considerando que os sites dos biobancos, ao divulgarem tais depoimentos, têm participação nos modos de existência de pais e mães que consomem a coleta e o armazenamento de células-tronco do cordão umbilical.

Tais materiais empíricos constituíram-se de dados secundários disponíveis na rede aberta da Internet; por essa razão, não foi necessária a submissão ao Comitê de Ética em Pesquisa. Salienta-se que, na execução do estudo que deu origem a este artigo, foram observados os princípios éticos da Resolução 466/12. Os depoimentos utilizam nomes fictícios e não citam os nomes dos biobancos de origem.

 

Resultados e Discussão

As ofertas tecnológicas, tais como a criopreservação de células do cordão umbilical, agem enfatizando riscos no sentido de seu consumo e podem ser entendidas na lógica da hiperprevenção. O armazenamento para uso autólogo em biobancos privados é realizado de acordo com o desejo dos pais, ou seja, não se limita à indicação clínica, pois, mesmo aqueles que não têm nenhum histórico que justifique tal prática, por tratar-se de um serviço privado, podem decidir pela armazenagem. Desse modo, é possível pensar que esta é uma conduta de prevenção + precaução + proteção, ou seja, é hiperpreventiva (Ferreira & Castiel, 2015).

Mesmo que as diretrizes da ANVISA (2010) determinem que as propagandas não veiculem as palavras "seguro" ou "segurança" nos sites que divulgam os serviços dos biobancos, o armazenamento de células é discursivamente descrito como um tipo de seguro biológico. Estas palavras aparecem reiteradamente na maioria dos depoimentos dos pais, assim como em outros campos nos sites dos biobancos, sob distintas formas, como as evidenciadas no depoimento a seguir:

Eu gosto muito de ler. Eu vim acompanhando já o que vem sendo feito dentro do tratamento via células-tronco. É uma nova fase da medicina. É isso, eu vejo que é um caminho realmente sem volta. Pra nós, para as meninas e para meu marido, é uma segurança ter a célula-tronco das meninas armazenada. E, também, todo esse processo de estudos e pesquisas em cima traz muita segurança para nossa saúde, e para nossa vida também. [grifo nosso]

Tais manifestações propagam discursos que objetivam divulgar ações para assegurar e proteger o futuro de incertezas. Percebe-se, por meio do depoimento citado, assim como nos publicados nos sites dos biobancos, o acirramento de práticas relacionadas à antecipação do futuro expresso nos cálculos de suscetibilidade e num mercado de investimentos biológicos direcionados à precaução/prevenção dos riscos. Os investimentos relacionados à gestão racional dos riscos se articulam com a busca racional por segurança, o que tem gerado ambientes afetados pela elevação irracional da sensação de risco, com desdobramentos indesejáveis em termos de ansiedade aumentada pela incerteza e insegurança (Ferreira & Castiel, 2015).

No caso das propagandas dos sites, as publicações de depoimentos de pais clientes dos biobancos buscam estimular o consumo do armazenamento em nome da obtenção de segurança. Esta busca por segurança é geralmente povoada pela prevenção de riscos de supostos adoecimentos, oferecendo garantias relacionadas a futuros somáticos. Neste contexto, o risco não compreende algo objetivo ou passível de ser conhecido independentemente dos valores e das crenças sociais: o que se identifica como risco constitui-se a partir do conhecimento e de discursos preexistentes, aplicáveis a certos contextos socioculturais (Gaudenzi, 2017). Especialmente no campo da saúde coletiva, a noção de risco assume uma imposição internalizada, mediante o estabelecimento, por parte dos especialistas, de determinados discursos, políticas e ações em saúde que incitam a avaliação, por parte de cada indivíduo, de seu risco de adoecimento, bem como a mudança de comportamentos considerados desejados ou indesejados conforme tal avaliação (Galindo, Rodrigues, Lemos, & Almeida, 2017). Tais aspectos são evidenciados nos recortes das falas dos pais, extraídos dos sites analisados.

As falas apresentadas nos sites, exemplificadas pela fala citada, evidenciam o desejo de adotar condutas de hiperprevenção (Castiel, Varelo, & Silva, 2011; Ferreira & Castiel, 2015), considerada um estado no qual ambas as acepções objetivas e subjetivas relacionadas com a prevenção se hipertrofiam e se confundem, tanto no encaminhamento dito racional quanto sob a via não racional. Prevenção é um termo dicionarizado que apresenta duas interessantes perspectivas semânticas em suas acepções: uma delas própria da conhecida lógica preventiva, de caráter, digamos, "objetivo", na qual aparece a "ação ou resultado de prevenir-se" e "conjunto de medidas ou preparação antecipada de algo que visa prevenir um mal". Por outro lado, há formas "subjetivas" de base não racional vinculadas à noção de ameaça: opinião desfavorável antecipada; ideia preconcebida e sentimento de repulsa para com alguém ou algo, sem base racional; preconceito (Gaudenzi, 2017). Assim, é possível compreender o armazenamento de células-tronco como foco de uma noção de prevenção generalizada, cuja meta produz uma profunda aversão aos muitos riscos e perigos que rondam, no caso da coleta e do armazenamento de células-tronco do cordão umbilical, as crianças por nascer e que podem não ter perspectiva de êxito.

O discurso do risco, associado à hiperprevenção, atua no sentido de gerar ansiedade nos pais e mães, constituindo-se como elemento estruturante dos seus modos de se organizar em relação às práticas de cuidado de saúde de seus filhos e filhas e de sua família, como se observa no excerto a seguir:

Quando fiquei grávida, nossa maior preocupação era como preservar a saúde do nosso filho. Claro que nunca pensamos no pior, mas precaução é essencial nos dias de hoje, então, decidimos criopreservar as células-tronco do nosso filho, nosso lindo e saudável bebê. O processo foi rápido, prático e contamos com a atenção e apoio dos profissionais. Hoje, sentimos segurança e conforto e sabemos que o nosso filho estará amparado no futuro. Indicamos e aconselhamos a todos os papais que façam a coleta e colaborem com essa importante descoberta da medicina. Deem segurança aos seus filhos e familiares queridos. [grifo nosso].

Esses teores de ansiedade, que aparecem no depoimento aliados às ofertas da tecnociência, agem como um dos mecanismos que atuam na posição que pais e mães adotam, legitimando suas demandas e respostas de gestão de riscos de modo cada vez mais acirrado, em nome de maior segurança para as crianças e para a família. Tal atitude tem gerado efeitos tecnicistas e resulta em possibilidades de forjar uma suposta eficiência e produtividade na constituição da saúde dos filhos. É assim que a criopreservação das células visa também permitir que, num futuro próximo ou distante, seja possível evitar a doença ou revitalizar o corpo doente (Galindo et al., 2017).

Os desejos de maior segurança para a vida e as descobertas acerca de novas doenças e de como combatê-las no nível molecular associam-se à compreensão da vida e das doenças, a partir das descobertas genéticas que têm consequências nas distintas formas pelas quais as pessoas são governadas e pelos meios adotados para gerenciarem a si mesmas (Rose, 2013). Essas formas de governamentalidade criam uma obrigação de agir no presente em relação a futuros potenciais que, a partir das descobertas das biotecnologias genéticas, passam a ser entrevistos. Os discursos e as práticas da genética ligam-se ao do risco, introduzindo uma dimensão qualitativa nova e criando novas categorias de pessoas, cheias de anseios por mecanismos de segurança, adotados em nome da prevenção (Rose, 2013).

A coleta e o armazenamento de células-tronco do cordão umbilical, por ocorrer durante o parto, reforça a ação do presente no intuito de prevenir riscos no futuro e também coloca a infância como um mercado lucrativo e promissor para os que desejam realizar empreendimentos da vida, no campo das governamentalidades neoliberais, considerando que, nas sociedades modernas, gera-se um conjunto de performances biológicas e culturais, com vistas a capitalizar e a empreender mercados pela regulação da vida no plano do governo da saúde, da educação, da seguridade, da política social e dos investimentos em tecnologias, como os biodiagnósticos, a criopreservação de células humanas e os exames técnicos de perícias de cálculos de riscos virtuais (Ferreira & Castiel, 2015).

Governar o futuro traz a lógica da gestão do risco para o presente, instituindo mecanismos para evitar, defender e proteger a sociedade daquilo que teme; portanto, visa-se à prevenção como tentativa de controle biologizante e político. Trata-se do que podemos nomear como futuros biológicos dos bebês, expressão adotada para aludir à confiança nas tecnologias que armazenam partes do corpo para intervenções médicas possíveis em um futuro próximo ou distante e que se materializam nas práticas de cuidado (Galindo et al., 2014) e são pulverizadas, a partir das falas dos pais divulgadas e propagandeadas nos sites dos biobancos.

Tais práticas de cuidado com a saúde, apresentadas nos depoimentos dos pais, assumem relevância dentro de um campo político e ético. São campos nos quais as pessoas estão cada vez mais obrigadas a formular estratégias de vida, a buscar e maximizar oportunidades, a empreender ações a fim de aumentar a qualidade de suas vidas e a agir prudente e preventivamente em relação a si mesmas e aos outros. As práticas de cuidado com a saúde vêm sendo vistas como um empreendimento estratégico de segurança. A partir da ampliação da visibilidade das linguagens genéticas, reorganizam-se novas formas e novos valores acerca do que nós somos e do que devemos fazer. O pensamento genético e o pensamento no âmbito molecular produzem novas responsabilidades, neste caso, mais especificamente, para os pais (Zorzanelli, Speroni, Menezes, & Leibing, 2017).

Na direção da discussão da vida como um empreendimento, é possível empregar o conceito de biovalor (Cooper & Waldby, 2014), para referir-se aos modos pelos quais a própria vitalidade tem se tornado uma fonte potencial de valor. Nos biobancos privados, as células-tronco tornam-se objeto de investimento econômico para a segurança, em nome do afeto e da garantia de competência dos pais na administração da vida de seus filhos. Ao trazer a discussão sobre biovalor, considera-se que as recomendações e informações divulgadas, especialmente nos sites que realizam a coleta e o armazenamento de células-tronco do cordão umbilical, podem ser compreendidas como um conjunto de práticas educativas que reposicionam e responsabilizam os pais no que se refere aos cuidados de saúde direcionados a seus/suas filhos/as, constituindo-se como uma das facetas do controle de risco que visa a garantir segurança biológica no futuro. Neste sentido, a biomedicina, a biotecnologia e a genômica têm influenciado uma nova forma de cidadania biológica, que envolve o consumo de mecanismos de segurança também no âmbito biológico. Assim, as pressuposições biológicas, explícita ou implicitamente, têm embasado muitos projetos de cidadania, modelando o que significa ser cidadão (Rose, 2013).

No caso da presente análise, trata-se de pensar a perspectiva da cidadania biológica que objetiva incorporar uma exigência de proteção particular à saúde. Assim, é possível pensar a comercialização de novos produtos baseados em fontes biológicas, tal como ocorre na relação comercial estabelecida pelos biobancos no armazenamento de células-tronco do cordão umbilical, como formas biológicas de cidadania. Nesta relação, os pais podem ser descritos como pessoas prudentes, empreendedoras, que modelam ativamente o curso de suas vidas no âmbito biológico mediante seus atos de escolha no presente em nome de um futuro seguro (Petry & Somavilla, 2016).

A cidadania biológica contemporânea age envolvendo tecnologias, aspirações profissionais, ambições comerciais e desejos pessoais entretecidos e remodelados (Galindo et al., 2014), - no caso do armazenamento de células - pela possibilidade de adquirir um tipo de segurança no âmbito biológico. Utilizamos "remodelados" para referir que a cidadania biológica contemporânea (Lupton, 2013) assumiu formas diferentes em diversos contextos nacionais, e em relação a diferentes tipos de doenças, pois os cidadãos contemporâneos são todos, independentemente de estarem doentes ou não, assunto de rastreamento genético para suscetibilidades. As discussões acerca deste tema destacam que a esperança se tornou elemento crucial no âmbito da cidadania biológica, e não apenas a esperança de cura dos já doentes, mas daqueles que têm expectativas de não adoecerem e de estarem seguros. Assim, muitos pais e mães envolvem-se em novas formas de administrar a vida de seus filhos, agora com a possibilidade de ter à disposição um elemento biológico próprio - células do cordão umbilical - personalizado, compatível, que, exatamente por isso, parece oferecer maior esperança em termos de segurança para a saúde.

No contexto da criopreservação de células do cordão umbilical, os cidadãos biológicos contemporâneos performam comportamentos e uma variedade de informações que possibilitam colocar em prática um tipo de cidadania ativa, na qual esses cidadãos assumem um papel dinâmico a partir de instruções científicas oriundas especialmente do campo biomédico. Neste sentido, as páginas dos sites dos biobancos promovem a divulgação de informações científicas, reforçando a construção da cidadania biológica nos sujeitos, conforme depoimento a seguir:

A satisfação em poder contribuir para que um filho seja sempre saudável não tem preço, de forma plena e absoluta a satisfação foi alcançada. Indico sempre a criopreservação das células-tronco, pois é um meio de obter tranquilidade em relação à saúde de quem você ama. Seu filho! Estamos muito felizes e confiantes de que, havendo uma necessidade, nossa família pode contar com este avanço da medicina que tanto tem auxiliado no tratamento de várias doenças. Fizemos e recomendamos a todos os pais que, assim como nós, se preocupam com o futuro e com a saúde de seus filhos. Decidimos fazer a coleta do cordão umbilical da nossa filhota, pois nos conforta saber que, se, no futuro, ela vier a precisar, terá mais esta alternativa. Como sou oncologista, presenciei por muitas vezes a dor e a incerteza das mães que aguardavam um doador de medula compatível para salvar a vida de seus filhos doentes. Por isso, resolvi criopreservar as células-tronco do meu filho. O processo é simples e eu indico, pois esse gesto pode salvar vidas. [grifo nosso].

Evidencia-se, a partir dos depoimentos analisados, que os sites dos biobancos constituem-se como um tipo de centro de informações em que os pais podem apreender e divulgar conhecimentos sobre a coleta e o armazenamento de células do cordão umbilical. Estes depoimentos são utilizados como forma de propagandear e vender um serviço, são usados para que as pessoas compreendam o quanto armazenar as células é importante para a vida de seus filhos. Nesta direção, a realização da coleta e do armazenamento envolve uma série de justificativas, tais como a busca por satisfação, confiança, alternativa, salvação, segurança.

 

Considerações Finais

Os entrelaçamentos dos depoimentos dos pais com a propaganda dos biobancos é visto aqui como exemplo dos modos como tais sites promovem um tipo de educação biológica, fomentando o consumo de uma determinada biotecnologia que, de algum modo, promete segurança biológica. Cabe pontuar que este consumo está articulado às novas formas de cidadania biológica contemporânea. As novas formas de cidadania, discutidas neste estudo, referem-se a comunidades que têm interesses biossociais comuns, seja em relação ao corpo, seja quanto às escolhas de cuidado de si e do destino dos filhos.

O desenvolvimento contemporâneo da biomedicina, assim como a ampliação da divulgação dos conhecimentos especializados, especialmente ampliados pelo acesso à Internet, têm apresentado novas formas de cidadania biológica, com novas subjetividades. Esta midiatização da saúde, possibilita que determinados aspectos da vida, não estão mais sendo colocados apenas do lado do destino; eles se tornam objetos de escolha, de decisão, de desejo, criando novas esperanças vinculadas a novas possibilidades de obter algum tipo de segurança para a vida, que atinge inclusive os aspectos relacionados ao campo biológico e molecular.

É possível dizer, então, que os depoimentos publicados nos sites dos biobancos divulgam que os pais que armazenam as células de seus filhos são prudentes, empreendedores e que, a partir desta decisão, são cidadãos biológicos ativos nas escolhas relacionadas com a saúde perante o medo da doença e o gerenciamento dos riscos. Assim, estes discursos ensinam aos pais que acessam tais sites sobre a importância de consumirem esta biotecnologia, que, de acordo com as publicações, oferece maior segurança para a vida das crianças.

Com base nisso, entendemos que pais e mães pensam sobre a vida dos filhos e sobre suas vidas a partir de uma percepção de riscos, lançando mão de estratégias biotecnológicas. É sobre os vetores do cálculo de risco que o mercado das células-tronco do cordão umbilical se sustenta, agregando e divulgando discursos de prevenção e precaução em prol de uma pretensa garantia de segurança biológica para o futuro.

 

Referências

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Endereço para contato:
Vera Somavilla
Liberato Salzano Vieira da Cunha, 105, Santa Cruz do Sul
Rio Grande do Sul, Brasil. CEP 96820-110
Telefone: (051) 3717-7480 / 98126-4053
E-mail: veras@unisc.br

Recebido em: 11/04/2020
Última revisão: 10/07/2020
Aceite final: 21/07/2020

 

 

Vera Somavilla: Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora na Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), departamento Ciências da Saúde, nos cursos de graduação em Enfermagem e em Medicina; e no Programa de Pós-Graduação em Saúde Mental e em Psicologia.
E-mail: veras@unisc.br
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9759-8659
Betina Hillesheim: Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professora na Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), departamento de Ciências da Saúde, no curso de graduação em Psicologia, nos Programas de Pós-Graduação em Educação, em Saúde Mental e em Psicologia.
E-mail: betinah@unisc.br
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9486-5459
Analídia Rodolpho Petry: Doutora em Enfermagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora na Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), departamento de Ciências da Saúde, no curso de graduação em Enfermagem, e no Programa de Pós-Graduação em Promoção da Saúde.
E-mail: analidiapetry@gmail.com
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8995-0138
Maria Luisa Panisello Chavarria: Doutora em Enfermagem pela Universitat Rovira i Virgili. Professora no curso de graduação em Enfermagem na Universidad Rovira i Virgili, campus de Tortosa, Catalunha, Espanha.
E-mail: panisello.marisa@gmail.com
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4824-2637

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