SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.1 número1A reinserção da disciplina de psicologia no ensino médio: as especificidades da psicologia e os desafios do atual contexto educacionalA formação em Psicologia e a percepção do meio rural: um debate necessário índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psicologia Ensino & Formação

versão impressa ISSN 2177-2061

Psicol. Ensino & Form. vol.1 no.1 Brasília abr. 2010

 

ENSAIOS & ESTUDOS TEÓRICOS

 

Experiências de investigação da atitude transdisciplinar no contexto de formação de professores

 

Investigation experiences of transdisciplinary attitude in the context of teachers' formation

 

 

Solange M. O. Magalhães

Universidade Federal de Goiás. Doutora em Educação - USP. solufg@hotmail.com

 

 


RESUMO

A universidade contemporânea confronta-se com uma realidade que tem gerado vários desafios relacionados aos processos de formação de professores. Na perspectiva de ruptura com o paradigma atual, surge uma série de estudos sobre inovações que representam uma "nova configuração dos saberes", cujo objetivo é revigorar o ato educativo, ensejando uma dimensão emancipatória - como proposto pela teoria da complexidade. Aqui discutimos docência universitária, inovação e complexidade de forma articulada, para propormos a complexidade como um norte inovador das práticas pedagógicas na formação de professores, e quem sabe, como proposta de intervenção e prevenção da violência no contexto escolar. Apresentamos uma prática pedagógica considerada inovadora, por docentes e discentes, em função dos objetivos alcançados no processo ensino-aprendizagem, na qual destacamos alguns "sinalizadores de inovação pedagógica complexa" para identificar se/como/quais características da atividade poderiam ser relacionadas à teoria da complexidade.

Palavras-chave: Docência Universitária. Inovação. Complexidade. Formação de Professores.


ABSTRACT

The contemporary university faces a reality that has generated many challenges related to the process of teacher formation. In the perspective of rupture of the current paradigm, a series of studies about innovation appear describing a "new configuration of knowledge" with the objective of giving new strength to the act of educating, permitting an emancipator dimension - as it is proposed by the theory of complexity. This study discusses university teaching, its innovation and complexity in an articulated way. It presents complexity as an innovative direction of pedagogical practice in teachers' formation. We present a pedagogical practice considered as innovative, by teachers and students, according to the objectives reached in the process of teaching-learning. We point out some "signals of complex pedagogical innovation" to identify if / how / which characteristics could be related to complexity.

Keywords: University teaching. Innovation. Complexity. Teachers' formation.


 

 

DELINEANDO A TEMÁTICA

Dizer que a universidade brasileira está em crise parece expressar um julgamento consensual a respeito de uma instituição que vive sérios problemas. Com efeito, problemas de difícil solução a dilaceram. Santos (2000) assevera que tanto o modelo pedagógico quanto a pesquisa e o saber produzidos na universidade apresentam sinais de degradação, porque a própria ideia de universidade está em crise. Estes sinais manifestam-se de diversas formas e em amplos aspectos entre si relacionados: crise de hegemonia, crise de legitimidade e crise institucional, frutos da crise da própria modernidade.

Trindade (2001, p. 161-2) analisa o discurso crítico e as metáforas elaboradas sobre a crise das universidades, ele afirma que, além de serem altamente sugestivos no final do século XX, revelam que a crise não se restringe à América Latina. Segundo o autor, os efeitos desagregadores das políticas neoliberais têm produzido metáforas como a "universidade cativa", "naufrágio da universidade" e a "universidade é um dinossauro pousado em um aeroporto". Tais discursos expressam, entre outras coisas, o processo de precarização do espaço público nas universidades diante das "recomendações" do Banco Mundial. Trindade lança um apelo para salvar a universidade com o argumento de que essa degradação nos conduz à perda de nossa identidade nacional e de nossa cultura, ao enfraquecimento de nossa tecnologia e à baixa de nosso nível de vida.

Nessa mesma linha de análise, recorremos a Chauí (1999) para compreender a versão nacional da referida crise. Para ela, as políticas governamentais optaram por uma estratégia de incentivo à iniciativa privada, engendrando uma sintonia fina entre o Ministério da Educação (MEC) e o pensamento do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), com vista a implantar a reforma universitária, cuja lógica da produtividade transformou as universidades em instituições operacionais. Em outras palavras, tratava-se de adequá-las ao mercado.

O Estado passou a regular a autonomia das universidades por meio dos padrões de produtividade. É fácil observar como os padrões de avaliação assumem muito mais prestígio do que os de emancipação, e isso acirra os desafios relacionados aos processos de formação de professores. Envolvidos nessa realidade, parece-nos que inovar significa reagir a esse modelo político que se impõe, e no campo da docência universitária, significa manifestar a vontade de tornar o ato educativo num fazer pedagógico que traduza a preocupação com a formação do ser humano integral, autônomo, cônscio e emancipado.

Essa ação não é simples. Como afirma Cunha (2003, 2004), em sua geração, a inovação carrega o ônus da complexidade da iniciativa, mas tem procurado forças capazes de fazer vigorar uma perspectiva transformadora nos processos de formação docente. Dialogar sobre o tema docência e inovações inspira a reinvenção de cenários pedagógicos tão autônomos quanto possível na criação e articulação de saberes, que conduzam à uma forma mais dinâmica de pensar e, segundo Morin (1991), capaz de superar os conformismos cognitivos e intelectuais para dar conta da complexidade do real.

1. DOCÊNCIA UNIVERSITÁRIA, INOVAÇÃO PEDAGÓGICA E COMPLEXIDADE

Os pressupostos construídos historicamente para a docência universitária, quando não traduzem uma concepção de docência alicerçada na compreensão epistemológica da ciência moderna, remetem-nos a um grande paradoxo: o não-lugar da formação. Para o exercício da docência na educação infantil, fundamental e média, por exemplo, há exigência legal de formação específica. Uma referência importante dessa discussão pode ser localizada no artigo 206 da Constituição Federal (1988) e na Lei de Diretrizes e Bases - LDB (Lei 9.394/96), que exigem a formação do professor em curso superior para os vários níveis de ensino, menos o universitário. Esse estado de coisas continua legitimando a seguinte ideia: quem sabe fazer sabe ensinar.

Esse não-lugar de formação coloca a possibilidade de a docência universitária ser realizada a partir de elementos que o professor traz de sua trajetória de aluno e/ou de esquemas prévios e/ou da rotina que lhe é colocada. Entretanto, esse conhecimento não é suficiente para o exercício da docência. Hoje, a discussão sobre a docência universitária passa pela profissionalidade, saberes, práticas, e por elementos não menos concretos, como: a tradição, a política, a ampliação do ensino privado, os marcos regulatórios do Estado e suas agências, a pressão das agências internacionais de financiamento, a produtividade quantitativa, o mercado, o aumento da carga de trabalho, os baixos salários, dentre outros. Tais aspectos fizeram e fazem com que a docência universitária seja vista como uma profissão paralela, um bico.

Vale ressaltar que, historicamente, inclusive na psicologia, a licenciatura é um grau complementar e opcional, e tem desaparecido dos cursos de formação, manifestando sua desvalorização bem como deste campo de atuação profissional. Como consequencia, a preocupação com os conteúdos pedagógicos ficou distante da formação do docente universitário, mas devemos reconhecer a necessidade de saberes próprios para o exercício da profissão, assumindo-se que no ensino superior há um saber pedagógico presente, hoje denominado de pedagogia universitária. Este campo tem ajudado o professor a "ser professor", a ocupar o espaço da docência consigo mesmo, com seus pares (estudantes e outros professores) e com a instituição em que trabalha.

Aqui se insere a temática "inovação" que tem recebido a atenção de vários pesquisadores sob vários aspectos: disciplinas ou grupo de disciplinas, currículos dos cursos, atividades extracurriculares, processos de parcerias com a sociedade, outras formas de gestão, novas tecnologias. Estes estudos indicam que a compreensão do que vem a ser inovação no trabalho docente exige vários olhares (FREIRE e SHOR, 1986; CONTRERA, 1997; SACRISTAN, 1999; VEIGA, RESENDE E FONSECA, 2002; VEIGA e CASTANHO, 2000; CUNHA e LUCARELLI, 2007),

Como é sugerido por Cunha (2001a), vamos definir, em primeiro lugar, qual conceito de inovação relacionamos à docência. Em autores como Havelock (1970) e Huberman (1989), a inovação deve promover uma melhoria sensível, mensurável, deliberada, duradoura e pouco susceptível de se produzir frequentemente.

Não podemos deixar de destacar as contribuições de Freire (1975, 1980, 1992, 1996) no que se refere às ideias pedagógicas contemporâneas inovadoras. Mesmo não tomando a docência inovadora como ponto particular de análise, Freire delineou uma revolucionária forma de ver a educação e seus agentes. Suas colocações somam-se a nossa definição de inovação, pois Freire afirma que somente um professor compromissado com um projeto pedagógico e político-social pode promover a superação da atual racionalidade técnica. Em parceria com Schor, traçou elementos fundamentais para que os professores entendessem melhor a construção de seus saberes profissionais, valorizando os chamados saberes da prática, além de promover a educação com base em uma perspectiva historicamente construída (FREIRE e SCHOR, 1986).

Lucarelli (2000), por sua vez, relaciona a temática docência universitária e inovação, afirmando que a aula universitária deve procurar alterar as relações unilaterais de uma classe tradicional. Inovar para a autora significa alterar o sistema intersubjetivo do estudante como sujeito, ainda que a aula universitária não esgote as estruturas subjetivas.

A produção de Fuenzalida (1993) também trata da proposta de inovação na educação universitária. O conceito de inovação proposto pela autora reúne as ideias de progressão, de ordem, de novo, de intencionalidade, de melhoria sensível, de aperfeiçoamento consciente, e de emancipação. Com Fuenzalida e Cunha (2004; 1998) definimos nosso conceito de inovação: inovar significa promover a ruptura com a forma tradicional de ensinar e aprender e/ou com os procedimentos acadêmicos inspirados nos princípios positivistas da ciência moderna; significa também desenvolver uma gestão participativa, por meio da qual os sujeitos do processo inovador sejam protagonistas da experiência, desde a concepção até a análise dos resultados; promover a reconfiguração de saberes, com a anulação ou diminuição das clássicas dualidades entre saber científico/saber popular, ciência/cultura, educação/trabalho; reorganizar a relação teoria/prática, rompendo com a clássica proposição de que a teoria precede à prática, dicotomizando a visão de totalidade; construir uma perspectiva orgânica no processo de concepção, desenvolvimento e avaliação da experiência desenvolvida; promover a mediação entre as subjetividades dos envolvidos e o conhecimento, englobando a dimensão das relações e do gosto, do respeito mútuo, dos laços que se estabelecem entre os sujeitos e o que se propõe a conhecer; desenvolver a autonomia e o protagonismo, compreendido como a participação dos alunos nas decisões pedagógicas; valorizar a produção pessoal, original e criativa dos estudantes, estimulando processos intelectuais mais complexos e não repetitivos. Em termos de concepção pedagógica, ainda acrescentamos a proposta de Hargreaves (1998, p. 218): docência inovadora deve ter como "princípio a colaboração mútua", o que nos encaminha para a compreensão de que a mudança no âmbito da docência universitária inclui, ao mesmo tempo, mudanças paradigmáticas, ou seja, no plano epistemológico.

Como argumentam os autores, todas as características de uma ação docente inovadora ligam-se ao esforço humano e esses, em nossa opinião, alicerçam os pilares da complexidade.

Com base na visão crítica da Educação, surge, no início de século XXI, o paradigma inovador, emergente ou da complexidade (MORIN; LE MOIGNE, 2000, p. 206). Morin (1991) entende a complexidade como um tipo de pensamento que não separa, mas une e busca as relações necessárias e interdependentes de todos os aspectos da vida humana. Trata-se de um pensamento que integra os diferentes modos de pensar, que considera todas as influências recebidas (internas e externas) na construção do conhecimento e, ainda, enfrenta a incerteza e a contradição presentes no viver, reforçando-se o conviver com solidariedade.

A base epistemológica da complexidade advém de três teorias surgidas na década de 1940: a teoria da informação, a cibernética e a teoria dos sistemas, cujos impactos e aplicações práticas só se manifestariam mais tarde, nas décadas de 1960, 1970 e 1980.

A teoria da informação é uma ferramenta para o tratamento da incerteza, da surpresa, do inesperado. Desse modo, a informação que indica o vencedor de uma batalha resolve uma incerteza; aquela que anuncia a morte súbita de um tirano traz o inesperado e, ao mesmo tempo, a novidade. A cibernética é uma teoria das máquinas autônomas. A idéia de retroação, introduzida por Norbert Weiner, rompe o princípio da causalidade linear e introduz a idéia de círculo causal. A age sobre B e B age, em retorno, sobre A. A causa age sobre o efeito e o efeito sobre a causa (...) Esse mecanismo, denominado 'regulação', é que permite a autonomia de um sistema (...). A teoria dos sistemas lança igualmente as bases de um pensamento de organização. A primeira lição sistêmica é que 'o todo é mais do que a soma das partes'. Isso significa que existem qualidades emergentes que nascem da organização de um todo e que podem retroagir às partes. Assim, a água tem qualidades emergentes com relação ao hidrogênio e ao oxigênio que a constituem. Acrescento que o todo é igualmente menos do que a soma das partes porque as partes podem ter qualidades que são inibidas pela organização do conjunto (MORI; LE MOIGNE2000. p. 201-2).

O pensamento da complexidade se apresenta, pois, como um edifício de muitos andares, cuja base está formada a partir das três teorias (informação, cibernética e sistema), em seguida vem o primeiro andar, metaforicamente, sustentado por três princípios, que são o princípio dialógico, o princípio de recursão e o princípio hologramático. Para Morin (1991) primeiro princípio - dialógico permite manter a dualidade no seio da unidade. O termo dialógico quer dizer que duas lógicas, dois princípios estão unidos sem que a dualidade se perca nessa unidade; associa dois termos que são complementares e antagônicos, ao mesmo tempo. A dialogia parte da ideia que os antagonismos podem ser estimuladores e reguladores. O segundo princípio é o da recursividade organizacional no qual os produtos e os efeitos são, ao mesmo tempo, causas e produtores daquilo que os produz. Por exemplo, a sociedade é produzida pelas interações entre indivíduos, mas, essa mesma sociedade, uma vez produzida, retroatua sobre os indivíduos e os produz. O terceiro princípio é o hologramático, que indica que não só as partes estão no todo, mas também o todo está nas partes. A ideia do holograma transcende o reducionismo e promove o holismo que procura ver o todo. Da mesma forma, o indivíduo é parte da sociedade e a sociedade está presente em cada indivíduo por meio da linguagem, da cultura, entre outras formas.

As bases conceituais da teoria da complexidade sobre o educar buscam a superação da lógica linear e a superação de uma prática pedagógica organizada nos moldes da disjunção dos pares binários, tais como: simples-complexo, parte-todo, local-global, unidade-diversidade, particular-universal, subjetivo-objetivo, procurando a superação da descontextualização do agir pedagógico, da subdivisão do conhecimento em áreas, institutos e departamentos, nas quais cada um delimita suas próprias fronteiras epistemológicas (MORIN, 2001).

Esse referencial propõe reconceitualizações da visão de homem, de realidade, de sociedade e de mundo. Ontologicamente o sujeito complexus é um ser não-dicotomizado, possui natureza multidimensional íntegra, capaz de superar a fragmentação do saber, ir além das perspectivas limitadoras. A realidade, sociedade e o mundo são constituídos por processos complexos, dinâmicos e relacionais, formados por objetos interconectados por fluxos de energia, matéria e informação. A educação tende a ser mancipadora, favorece a reflexão do cotidiano, estabelece o diálogo entre os conhecimentos e os diversos tipos de pensamento, assegurando o pluralismo e a diversidade de opiniões e pontos de vista, além de estimular um modo de pensar marcado pela articulação. (MORIN, 2002a).

Petraglia e Almeida (2006, p. 03), no livro Estudos de Complexidade, discutem a relação entre educação e complexidade como um dos caminhos para a superação da fragmentação do saber. Na sua discussão destacam sete ideias complementares e interdependentes para a reforma do pensamento linear: a compreensão das noções de "homo complexus"; a utilização de diversas linguagens no contexto educacional; presença da dialogia na educação; suporte na transdisciplinaridade; convivência com a incerteza; desenvolvimento e aprendizagem da autoética e reforma do pensamento. Vejamos cada uma delas: o humano complexus é também sapiens e demens na relação consigo, com o outro e com o universo. Manifesta ampliação da consciência de mundo, reelaboração do pensamento, aceita o outro como "diferente" de si, ao mesmo tempo é autônomo e dependente. Para educar esse homo complexus, a complexidade pressupõe que se leve em consideração as diferenças e peculiaridades de cada sujeito. Para sua educação, exige-se a utilização de diversas linguagens na educação, de modo a facilitar a aprendizagem. É importante notar que há vários tipos de inteligência, hábitos, facilidades, dificuldades e perspectivas entre os integrantes dos grupos, o que torna imperioso considerar as inúmeras experiências e possibilidades numa sala de aula cuja heterogeneidade aponta para a necessidade de se desenvolverem atividades e métodos também diversos, a fim de se atingir o maior número de sujeitos (PETRAGLIA; ALMEIDA, 2006).

Essas ações procuram compreender a presença da dialogia no universo educacional. Segundo Petraglia e Almeida (2006), seria o mesmo que identificar a presença dos contrários, unindo dois princípios indissociáveis em uma mesma realidade. Sob as mais diversas formas, a dialogia está constantemente em ação nos mundos físico, biológico e humano, permitindo assumir racionalmente a inseparabilidade de noções contraditórias para conceber um mesmo fenômeno complexo.

O termo trans de transdisciplinaridade significa o que está [...] entre as disciplinas, através delas e além, dando uma ideia de transcendência e de inter-relações no mundo e na vida. A transdisciplinaridade propõe o diálogo entre as diferentes áreas do saber, de forma a articular a multidimensionalidade do ser humano e do mundo (MELLO, 1999; NICOLESCU, 2000, p. 15).

Morin (2002b) trata a transdisciplinaridade como esquemas cognitivos reorganizadores que atravessam as disciplinas. Em situações práticas, o termo transdisciplinar tem sido empregado para designar projetos dos quais participam mais de uma disciplina, no sentido de um trabalho comum para se buscarem respostas amplas e criativas. Lembremos que não é mais possível, hoje, a compreensão de determinados problemas sem que se tenha um grande contingente de informações circundantes e circulares, capazes de gerar intersecções de ideias e circunstâncias. O diálogo entre os diferentes tipos de pensamento propicia a transcendência do aqui e do agora na elaboração do conhecimento íntegro, sistêmico e complexo. Segundo Morin (1982, p. 140), "é impossível conhecer as partes sem conhecer o todo e vice-versa."

A convivência com a incerteza, segundo pensamento complexo, é compreendida tal como formulado por Heisenberg, físico quântico e um dos fundadores da mecânica quântica. (CHIBENI, 2005). Esse princípio tem sua base assentada na falibilidade lógica, no surgimento da contradição e na indeterminabilidade da verdade científica. O pensamento complexo, que é desprovido de fundamentos de certezas absolutas, permeia os diversos aspectos do real. Viver no risco e na incerteza é o grande desafio da condição humana, e a universidade deveria preparar o sujeito para conviver com essa dualidade ambivalente - limite e possibilidade.

O desenvolvimento e aprendizagem da autoética, segundo o Morin (2005), envolvem três dimensões da ética que são complementares e inseparáveis: antropoética - relativa à espécie humana; socioética - da comunidade, sociedade e autoética - a ética individual de cada sujeito para consigo e com o outro. A autoética segue influências da moral, das tradições e dos costumes dos povos, das culturas, dos hábitos familiares e dos pressupostos da criação, como também das determinações paradigmáticas dos tempos. No entanto, é no âmago e no que há de mais íntimo e particular de cada ser que ela se desenvolve; trata-se da cosmovisão individual e da compreensão de homem enquanto autor de sua auto-eco-organização e de sua história (PETRAGLIA e ALMEIDA, 2006).

Afirma Morin (2005, p. 147) que a "autoética remete à ética da comunidade que a precede e a transcende." Seu desenvolvimento pressupõe o exercício permanente e constante de auto-observação, autoanálise e autocrítica para que possamos nos conhecer mais e melhor e perceber as maneiras como agimos diante de nossas crenças, nossos valores e expectativas. Seu desenvolvimento envolve o cultivo pessoal, propicia o engajamento da responsabilidade pessoal em cada prática.

A reforma do pensamento promove conscientização que, segundo Freire (1980, p. 26), manifesta-se como um teste de realidade, ou seja, quanto mais conscientização, mais se "des-vela" a realidade, mais se penetra na essência fenomênica do objeto frente ao qual nos encontramos para analisar. Por essa mesma razão, a conscientização não pode existir fora da "práxis", ou melhor, sem o ato ação-reflexão. Essa unidade dialética constitui, de maneira permanente, o modo de ser ou de transformar o mundo que caracteriza os homens (SCOCUGLIA, 1999).

Colaborando com essa linha de pensamento, Morin (1999) coloca a universidade como instituição ao mesmo tempo conservadora, regeneradora e geradora. É conservadora porque integra, memoriza e ritualiza saberes, ideias e valores culturais; regenera, pois rediscute e atualiza saberes e os propicia às novas gerações; é geradora porque cria, elabora e processa os novos saberes que serão herdados sucessivamente. Desse modo, o ensino deixa de ser somente formador de profissionais e técnicos para facilitar ao sujeito revisitar seu destino como cidadão sensível.

Entendemos que a reflexão sobre a docência e inovação passa necessariamente por esses pressupostos complexos. Sua utilização pode nortear as ações pedagógicas no sentido de promover um pensar mais abrangente, multidimensional e contextualizado. Isso exige "novas" metodologias de ensino para que os sujeitos possam se assumir como seres completos-complexus.

2. INVESTIGAÇÃO DA ATITUDE TRANSDISCIPLINAR NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Com base no referencial proposto, empreendemos uma pesquisa qualitativa, realizada no ano de 2008/02, no curso de Pedagogia, Faculdade de Educação, da Universidade Federal de Goiás, que analisa práticas pedagógicas consideradas inovadoras, por docentes e discentes, em função dos objetivos alcançados no processo ensino-aprendizagem. O segundo momento da pesquisa que aqui relatamos procurou verificar se e como essas práticas apresentavam características que as enquadrassem no paradigma da complexidade.

Esta atividade retrata a possibilidade metodológica integradora proposta pelo Projeto Político Pedagógico do Curso de Pedagogia da FE/UFG, cuja concepção de formação é estruturada como processo de inserção crítica dos licenciandos no universo da cultura, do pensamento, da crítica, da autonomia, da liberdade, da justiça, da democracia e da solidariedade1.

A prática pedagógica foi proposta na disciplina Psicologia da Educação, 32 alunos do primeiro ano noturno do curso de Pedagogia. O conteúdo programático - "Jean Jaques Rousseau", é integrante do currículo formal do curso que compõe a base da compreensão do "conhecimento pedagógico moderno." O pensamento de Rousseau é um frutífero marco de reflexão sobre o relevante papel projetivo que a educação possui, além de promover o necessário repensar das atuais concepções de educação e do processo de ensino-aprendizagem sem dissociá-los dos dilemas, exigências e desafios mais amplos da vida coletiva.

Os alunos deveriam esclarecer se o discurso de Rousseau, sua proposta educacional, foi um discurso pedagógico ou político; e ainda, concepção de ensino-aprendizagem, críticas, contribuições e o sentir sobre o conteúdo e a atividade. Eles deveriam articular estes conceitos aos conteúdos propostos nas demais disciplinas do semestre - Filosofia da Educação I, Sociologia da Educação e Sociedade, Cultura e Infância, o que caracterizou o trabalho como interdisciplinar.

Quatro fases compuseram a atividade. Na primeira, os alunos foram levados ao laboratório de informática para acessarem o site http://www.videos.es/reproductor/jeanjacquesrousseau-suavida-(pJ46xmN6Lc4, que contém seis vídeos sobre a biografia do filósofo iluminista suíço, sua proposta educacional, o contrato social, filosofia francesa iluminista, liberdade, revolução. Os estudantes organizaram-se em pequenos grupos para assistir aos vídeos. Na segunda fase, houve reunião em grupo para discutirem o conteúdo e elaborarem um texto escrito para posterior debate em sala de aula. As perguntas norteadoras dessas duas fases foram: "Quem foi Rousseau? Quais eram os seus conceitos de infância e educação? Qual sua contribuição para o conhecimento pedagógico? Como o autor concebia o processo de ensino-aprendizagem?" Na terceira fase os alunos apresentaram o conteúdo e, no quarto momento, articularam o conteúdo construído por eles com as temáticas das outras disciplinas - Filosofia, Sociologia, Sociedade, Cultura e Infância.

Os alunos conseguiram apresentar os conceitos de infância, sociedade, educação e processo ensino-aprendizagem articulados às propostas das disciplinas, o que demonstrou a construção de um saber muito mais rico. Para tanto, elaboraram um vídeo com as propostas de Rousseau, respondendo de forma satisfatória às questões que nortearam essa fase da atividade, quais sejam: "qual a relação dos conceitos de infância e de educação propostos por Rousseau com os conteúdos das outras disciplinas? O discurso de Rousseau, sua proposta educacional foi um discurso pedagógico ou político? Explique isto articulando o conteúdo das outras disciplinas."

A prática pedagógica caracterizada como inovadora constituía uma proposta de intervenção pedagógica planejada, implementada e acompanhada. A idéia principal foi promover uma aprendizagem significativa. O trabalho mostrou-se bastante complexo, das inquietações iniciais que buscavam experiências inovadoras direcionamo-nos a uma nova questão: quais características da prática inovadora poderiam ser relacionadas à complexidade?

Nosso próximo passo na análise foi partir dos princípios de inovação propostos por Cunha (1998, 2004): ruptura com a forma tradicional de ensinar e aprender; gestão participativa; reorganização da relação teoria/prática; perspectiva orgânica no processo de concepção, desenvolvimento e avaliação da experiência; mediação, respeito mútuo, protagonismo, valorização da produção pessoal, original e criativa e associá-los às ideias de Petraglia e Almeida (2006) para definir, segundo nossa leitura complexa, sinalizadores pedagógicos complexos.

Tais sinalizadores seriam capazes de identificar as características de novas estratégias pedagógicas que favorecessem a redefinição dos caminhos propostos para a produção do conhecimento na formação de professores.

Tomamos por base a seguinte lógica na apresentação e análise da atividade: primeiro destacamos o sinalizador complexo identificado e trabalhado, a forma como foi observado nas práticas pedagógicas, falas dos estudantes e, finalmente, nossa reflexão.

A associação das ideias das referidas autoras define os seguintes sinalizadores na atividade analisada:

a) Dialogia, mediação e respeito mútuo, compreendidas nas atividades como características presentes na vida que favorecem o entendimento das contradições como indissociáveis.

A dialogia não comporta a síntese ou resolução do conflito, mas acolhe a insuperabilidade como possibilidade e como compreensão do conhecimento proposto. Com a presença da dialogia, o estudante entende que o conhecimento, tido como impossível, emerge nas interações marcadas pela ética do debate presente no diálogo estabelecido durante as atividades.

[...] preciso rever meus conceitos. Pensei que não conseguiria fazer a atividade, mas agora percebi que posso. É engraçado como a universidade faz isso [...] aprendemos coisas que nunca imaginamos. No início tudo parece difícil, mas aos poucos isso vai se resolvendo (Sujeito 02).

A importância da dialogia pode ser observada na ação e na reflexão dos sujeitos, como por exemplo, acessar o site, em duplas, assistir aos vídeos e discutir o conteúdo, exigiu diálogo e interlocução entre os estudantes, resultando na integração, uma exigência para a realização do "trabalho cooperativo". Foram necessárias negociações e adequações entre o conhecimento de uns (aqueles que sabiam navegar) e o desconhecimento de outros, exigiu o entendimento das diferenças e a presença da tolerância nas relações. As diretrizes para a construção do pensamento complexo preveem que é essencial saber conviver com a incerteza e conseguir conceber a organização do pensamento. Os estudantes demonstraram que podiam contratualizar, reconhecer o singular, o individual e o concreto na ação proposta.

A resolução dos conflitos (internos e externos) propicia a reforma do pensamento porque aposta na participação dos estudantes que possuem atributos racionais, empíricos, imaginários, religiosos, míticos, sagrados, emocionais. O diálogo estabelecido entre o "eu" e o "outro" pressupõe respeito diante da diversidade de ideias e propicia o desenvolvimento da ética de compreensão.

O entendimento do tempo da aprendizagem cooperativa foi essencial principalmente para superar as dificuldades apresentadas e partir para o segundo momento: solicitação de um trabalho escrito. Lembramos que os vídeos só apresentam imagens e narram a história do autor, com pouco texto escrito. O trabalho solicitado exigiu maior disposição para o diálogo, respeito e o mútuo entendimento para a construção do conhecimento. De acordo com a teoria da complexidade, o conhecimento é um problema de todos e cada um deve levá-lo em conta desde muito cedo, bem como explorar as possibilidades de erro para ter condições de ver a realidade.

b) Convivência com a incerteza/ruptura com a forma tradicional de ensinar e aprender, esse sinalizador complexo foi observado na mudança de ambiente; ou seja, sair da sala de aula para desenvolver a atividade no laboratório de informática, rompeu com o tradicional e implementou um caráter motivador entre os estudantes. Eles depararam-se com novos limites e/ou novas possibilidades:

[...] aprendi entrar na internet, agora posso fazer isso sozinha [...] agora que sei onde esta a matéria, vou ver mais vezes em casa para facilitar a elaboração do trabalho (Sujeito 10).

[...] adoro a ideia de poder ouvir várias vezes a história de Rousseau, isso vai facilitar minha aprendizagem [...] me sinto motivada a fazer outras atividades assim (Sujeito 05).

Numa perspectiva tradicional de educação, a representação da sala de aula pode ser compreendida como espaço da certeza da aprendizagem, da regulação, no qual o professor profere sua aula e o aluno a recebe de forma direta. Os alunos, em muitos casos, preferem a certeza, a repetição dos modos de dar aulas porque já os conhecem e sabem todas as maneiras de driblar o autoritarismo do sistema. Mas a repetição não provoca entusiasmo, parece-nos que o encanto pode vir com a novidade.

Lembramos que a escola é o espaço onde só se ensinam as "certezas" construídas pela ciência, ignorando-se o fato de que a vida não é previsível e o imprevisto tende a ser negligenciado. Trocar de ambiente, ir para o laboratório de informática, onde os estudantes seriam os construtores do conhecimento foi motivo de resistência inicial; eles tiveram que tomar consciência de que as aulas podem acontecer em lugares variados, mas isto exigiu participação em estratégias que puderam ser (re)corrigidas no processo da ação pedagógica. A incerteza incitou a coragem.

Considerar o conhecimento prévio dos estudantes, colocá-los diante do computador para que pudessem entrar na internet e, se preciso fosse, ensinar o seu parceiro, como proposto por Souza (2008), propiciou o desenvolvimento da autonomia e da criatividade dos grupos de trabalho. Com agilidade, eles se posicionaram, desenvolvendo-se a cooperação e autonomia.

Se essas são ações ou simples comportamentos, lembramos que também exigem regulação, autoprodução e auto-organização. O estudante demonstra que é necessário compreender não só os outros, mas suas próprias dificuldades, assumí-las num processo em que o sujeito se autoexamina, analisa suas dificuldades e procura superá-las. A construção do conhecimento envolve a utilização de sistemas que não são constituídos apenas de partes ou de elementos constituintes, mas também de ações e de interações entre unidades complexas. As simples ações comportamentais exigiram o estabelecimento de interações e de partilha de determinados conhecimentos, assim os pensamentos determinam as práticas que se estabelecem e se desenvolvem entre as pessoas.

De acordo com Morin (2002b), a aprendizagem desvela-se pela mudança de atitude e de comportamento, e esse processo desencadeia o desenvolvimento e aprendizagem da autoética que também exige a utilização de unidades complexas que envolvem o aprender a aprender, aprender a fazer, aprender a ser e aprender a conviver.

c) Protagonismo, valorização da produção pessoal, original e criativa: a complexidade pressupõe a utilização de diversas linguagens na educação, de modo a facilitar a aprendizagem. Considerando que há vários tipos de inteligências, hábitos, comportamentos, dificuldades, valores, normas dentre os integrantes do grupo, a sala de aula apresenta-se como espaço propício para se desenvolverem atividades e metodologias diversas com vista a atingir o maior número de estudantes. Por exemplo, há aqueles com maior facilidade de apreensão das informações com linguagem auditiva; para estes ouvir o conteúdo sobre Rousseau foi essencial; outros, cuja memória é estimulada com recursos visuais, depositaram na atividade especial atenção. Outra forma de atuação poderia ser uma dramatização que é um recurso enriquecedor. As artes podem, pois, ajudar a trabalhar a dimensão estética, despertar a sensibilidade e afetividade. Essa subjetividade, por sua vez, pode aprimorar o pensamento reflexivo e crítico do sujeito, bem como ampliar sua capacidade criativa e lógica, como podemos depreender do recorte a seguir:

[...] gostaria de fazer um vídeo com a proposta de Rousseau (Sujeito 14).

[...] vamos fazer algo além do vídeo, associar outros vídeos para que o conteúdo fique completo (Sujeito 05).

Estimular a criatividade, o questionamento e a curiosidade como estratégia de ensino-aprendizagem é um dos recursos que favorecem o despertar de uma nova visão do mundo, porque os estudantes tornam-se sujeitos questionadores que, longe de serem submetidos a ordens ou crenças impostas, caminham para a liberdade de seu espírito.

A atividade pensante incita invenção, criação e propicia mudança na nossa maneira de ver o mundo. O pensamento complexo propõe a aceitação das contribuições sugeridas pelos sujeitos e abre possibilidades para uma prática docente em que possa existir a partilha entre aquele que ensina e aquele que aprende. Freire (2003), em seu tempo, assim também já afirmava.

d) Perspectiva orgânica no processo de concepção/princípio sistêmico ou organizacional: exige que o sujeito tenha conhecimento do todo. Na prática os professores, em sua grande maioria, desconsideram a contextualização do conhecimento, disjuntando a parte do todo. Com este tratamento, o conhecimento perde sentido por não trabalhar sua relação com o todo. Esse modo de ensinar ignora a dimensão poética, ética, utópica, filosófica, histórica, social e cultural do conhecimento.

Entendemos que se faz necessário favorecer o surgimento de novos significados, pois na medida em que o conhecimento avança, cresce e incorpora outros saberes antes desconhecido. Essa postura favorece a visão de totalidade que, por sua vez, possibilita o trabalho cooperativo, motivado e autônomo. Como afirma a Teoria da Complexidade, a visão de totalidade é um processo de auto-organização do indivíduo, e isto se realiza pela e nas relações que ele constrói com o seu meio. Os estudantes demonstraram vivenciar o processo auto-organizativo que acabou por transformá-los, promovendo uma reorganização ativa, segundo suas próprias necessidades:

[...] com o vídeo do Rousseau passei a compreender que as sociedades mudam ao longo do tempo. Pude ver roupas diferentes, pessoas diferentes. Enfim, era outro contexto [...] não pensava a historicidade das coisas assim, o conceito de criança muda, o de educação, o de sociedade também [...] (Sujeito 25).

[...] entendo que o conceito de infância não foi igual ao que conhecemos hoje, ele modificou ao longo do tempo [...] Também aprendi com as outras disciplinas (Filosofia e Sociologia) que a sociedade também mudou, o homem mudou, e a infância também tinha que mudar [...] (Sujeito 30).

[...] Entendo a mudança histórica, acho importante, mas o que aprendi de novo foi que hoje existem várias infâncias, e que ela pode ser olhada através de várias lentes (Filosofia, Sociologia). Aliás, dentro da minha sala de aula existem várias infâncias: a infância cidadã, a infância que não é cidadã porque é vítima de vários tipos de violência, a infância que não tem infância [...] enfim, entender a história da infância me fez entender nossas várias infâncias da modernidade (Sujeito 14).

Trabalhar a educação complexa tende a superar a mesmice da docência superior, reencanta o aprender, pois resgata o prazer da aventura de adentrar no mundo das ideias. Morin (2002b) afirma que a aprendizagem desvela-se pela mudança de atitude e de comportamento que também exigem a utilização de unidades complexas. Para ele, importa menos uma "cabeça bem cheia" que acumula saberes, do que uma "cabeça bem-feita" que reflete e trata os problemas, organiza e religa conhecimentos e a eles confere sentido.

e) A reforma do pensamento liga-se ao princípio da reintrodução do conhecimento em todo conhecimento. Conforme proposto por Morin (1991), o sujeito deve revelar a percepção da teoria científica. Na atividade analisada, os estudantes respondem às questões: "qual a relação dos conceitos de infância e de educação propostos por Rousseau com os conteúdos das outras disciplinas? O discurso de Rousseau ou sua proposta educacional é um discurso pedagógico ou político? Explique isto articulando sua resposta com o conteúdo das outras disciplinas."

Para tanto, os estudantes prepararam um vídeo com as propostas de Rousseau. O vídeo representou uma nova atividade ou reelaboração do conhecimento, demonstrando que houve produção de sentido. Eles foram capazes de construir seu próprio percurso de aprendizagem. O vídeo compôs, de forma satisfatória, a reflexão sobre as questões propostas pela professora acerca do conteúdo.

Todo discurso pedagógico é político. Devemos procurar entender o objetivo do discurso pedagógico [...] o que está por traz dele (Sujeito 29).

Rousseau transformou o conceito de ensino-aprendizagem de sua época porque colocou o sujeito criança no centro do processo (Sujeito 02).

O processo ensino-aprendizagem continua, ainda hoje, sendo resignificado pelas ideias de Rousseau (Sujeito 21).

A posição assumida pelos estudantes demonstrou a forma como estavam dialogando com o conhecimento e a realidade, reestruturando-se e retendo o que era significativo. Na prática, a metodologia os estimulou a produzirem o próprio conhecimento. A função docente passa a ser a de facilitar diálogos com os saberes, respeitando-se a diversidade e as características de cada um dos participantes do processo educativo, aceitando-se cada aluno como um ser indiviso, com estilo próprio de aprendizagem e diferente forma de resolver problemas.

Os estudantes construíram sua autorreferencialidade, bem como a multirreferencialidade2 promovida pela atividade pedagógica. Percebemos nas falas dos estudantes a valorização da natureza humana, o que também está presente no pensamento de Morin (1991): o pensar complexo é pensar em movimento, ou seja, em processo. É dialogar com as diversas visões, e o religar e contextualizar são incessantes.

Observamos ainda que uma das dificuldades a ser em superadas pelas práticas inovadoras, na perspectiva da complexidade, é a incapacidade dos estudantes articularem os conhecimentos, o que demonstra a perspectiva reducionista da educação. Em meio a um contexto no qual o conhecimento encontra-se fragmentado nas diversas disciplinas, a inversão lógica da construção do conhecimento encontra sérias resistências. O sinalizador pedagógico complexo da reintrodução do conhecimento em todo conhecimento favoreceu a avaliação do rigor do processo ensino-aprendizagem; isto significa que por meio dele podemos entender que todo o conhecimento é dinâmico, pois está sempre aberto a novos conteúdos. Perceber essa dimensão é muito difícil, mas possível.

 

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Esta pesquisa tem demonstrado que os processos de inovação, ao indicarem novas propostas paradigmáticas do conhecimento, favorecem a superação do pensamento dominante que, por sua vez, tendem a reorientar práticas sociais no contexto escolar. Neste sentido, os pesquisadores do grupo procuram ampliar a revisão sistemática e rigorosa das práticas educativas consideradas inovadoras, no sentido de identificar se os princípios que as germinam são capazes de provocar embriões de rupturas e transformações, sobretudo no fenômeno da violência escolar.

No âmbito geral da pesquisa, além de promover a superação da excessiva fragmentação e compartimentalização do conhecimento, a inovação, sobretudo na perspectiva complexa e transdisciplinar, tem circunscrito um novo entendimento do ser humano, superando a proposta formadora que o traduz apenas como um indivíduo racional, egocêntrico ou econômico. Essa proposta tem auxiliado os professores na interlocução de conteúdos e experiências que permitem aos envolvidos no processo vislumbrar relações interdisciplinares. Como define Morin (2000), a formação não se restringe à constituição e à proliferação das disciplinas, mas abrange ao mesmo tempo a ruptura entre as fronteiras disciplinares, a invasão de um problema de uma disciplina por outra, a circulação de conceitos, a formação de disciplinas híbridas que acabam se tornando autônomas.

A docência universitária e inovação, como aqui analisadas, favorecem o apreender dos fenômenos por meio de um processo que, ao mesmo tempo, separe e associe os saberes concebendo os vários níveis de emergência da realidade, sem os reduzir a unidades elementares e nem às leis gerais. Pensamos que essa proposta pode encaminhar novos rumos de intervenção na violência escolar, pois problematiza a razão, opondo a racionalidade aberta à racionalização fechada, o que tem se mostrado como um caminho alternativo sobre a relatividade das noções de "definição" e de "objetividade" no campo educacional.

A realidade tomada na sua complexidade religa dialeticamente a ação pedagógica através da práxis. O diálogo deve nos conduzir ao entendimento do plural (ARDOINO, 1998). Contudo, isto não significa apego à ilusão de que essa abordagem será capaz de resolver todos os problemas educacionais, mas ela nos faz compreender que aqueles sujeitos formados por/em processos disciplinares são os mesmos envolvidos em tentativas educativas complexas e transdisciplinares, cujas possibilidades de construção vão estar mediadas pelo (re)conhecimento dos próprios limites disciplinares. Então, para que a prática inovadora complexa traga "bons resultados", inclusive nos casos de violência escolar, pensamos que se faz necessária a superação (coletiva) desses mesmos limites disciplinares ainda presentes na educação superior.

Ainda que não tenhamos discutido as relações de poder que estão presentes no contexto da universidade, como aponta Cecílio (2000), a construção de uma proposta que une docência, inovação e complexidade não se afasta das questões importantes de deslocamentos de poder construídos, legitimados, dentro, além e aquém das instituições. Os efeitos de poder que estão ligados à instituição e ao funcionamento de um discurso científico que hierarquiza ordenam e homogeneízam os campos disciplinares em nome de um conhecimento verdadeiro (FOUCAULT, 1985). Neste sentido, identificar a teia que engendra as questões de poder/autonomia em relação à construção da inovação complexa parece ser o próximo desafio da pesquisa. Essa condição exige uma tessitura paciente de esforços e energias que envolvem a condição de escuta e de espera afetiva sem, entretanto, abrir mão da condição de análise crítica e reflexiva que ajuda na compreensão dos acontecimentos e dos contextos que os envolvem. Certamente isso implica consolidar a complexidade como ramo epistêmico no campo de formação de professores mas, apesar da vontade do encontro, ainda nos deparamos com muitos obstáculos.

 

REFERÊNCIAS

ARDOINO, J. Prefácio. In: BARBOSA, J. (Coord.). Multirreferencialidade nas ciências e na educação. Tradução Sidney Barbosa. São Carlos: EdUFSCar, 1998. p. 14-17.         [ Links ]

ABREU, L., O Conhecimento transdisciplinar. O cenário epistemológico da complexidade. Piracicaba: UNIMEP, 1996.         [ Links ]

CECÍLIO, L. C. de O. A avaliação transdisciplinar e poder: levantando algumas questões. Revista Interface - comunicação, saúde, educação. Botucatu, v. 4, n. 7, p. 122-125, 2000.         [ Links ]

CHAUÍ, M. A universidade em ruínas. In: TRINDADE, H. (Org.). Universidade em ruínas. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.         [ Links ]

CONTRERAS, J. D. La autonomia del profesorado. Madrid: Morata, 1997.         [ Links ]

CUNHA. M. I. Inovações pedagógicas: tempos de silêncios e possibilidades de mudanças. Interface Comun Saúde Educ; v. 7, n. 13, p. 149-52, 2003.         [ Links ]

______. Formatos avaliativos e construção da docência: implicações políticas e pedagógicas. Avaliação. Revista da Rede de Avaliação Institucional de Ensino Superior, v. 6, n. 20, p. 17-32, jun. 2001.         [ Links ]

______. Impacto das políticas de avaliação externa na configuração da docência. In: ROSA, D.; SOUSA, V. C. Políticas organizativas e curriculares, educação inclusiva e formação de professores. Editora Alternativa/DP & A, 2002. p. 39-56.         [ Links ]

______. O professor universitário na transição dos paradigmas. Araraquara: JM, 1998.         [ Links ]

______. Inovações pedagógicas: tempos de silêncios e possibilidades de produção. Interface - Comunicação, Saúde, Educação. Interface Botucatu. Botucatu, v. 7, n. 3, ago. 2003. Print ISSN 1414-3283.         [ Links ]

______. Diferentes olhares sobre as práticas pedagógicas no ensino superior: a docência e sua formação. Educação. Porto Alegre, v. 54, n. 3, p. 525-36, 2004.         [ Links ]

CUNHA, M. I. ; LUCARELLI, E. Inovações na sala de aula universitária e saberes docentes: experiências de investigação e formação que aproximam Argentina e Brasil. Anais do Congresso Internacional de Estudos Comparativos em Educação. Argentina, 2007.         [ Links ]

CHIBENI, S. S. Certezas e incertezas sobre as relações de Heisenberg. Rev. Bras. Ensino Fís. [online], v. 27, n. 2, p. 181-192, 2005. ISSN 1806-1117.         [ Links ]

FUENZALIDA, A. V. Aporte a la discusión de ideas sobre innovación y estrategias en la educación superior. In CINDA. Innovación en la Educación Universitária en América Latina: modelos e casos. Santiago, Chile: Centro Interuniversitário de Desarrollo, 1993. (Colección Políticas y Gestión Universitaria).         [ Links ]

FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Tradução e organização Roberto Machado. 5. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985. 295p.         [ Links ]

FREIRE, P. Conscientização: teoria e prática da libertação uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Cortez & Moraes, 1980.         [ Links ]

______. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.         [ Links ]

______. Pedagogia da Esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.         [ Links ]

______. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.         [ Links ]

FREIRE, P.; SCHOR, I. Medo e ousadia. O cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.         [ Links ]

HEARGREAVES, A. Profesorado, cultura y postmodernidad. Madrid: Morata, 1996.         [ Links ]

HAVELOCK, R. Guide to innovation in Education. Ann Harbor: Michigan Press, 1970.         [ Links ]

HUBERMAN, M. La vie des enseignants: évolution et bilan d.une profession. Paris: Neuchâtel (Swizerland): Delachaux et Niestlé, 1989.         [ Links ]

LUCARELLI, E. Teoría y práctica como innovación en docencia, investigación y actualización pedagógica. Cuaderno de Investigación, n. 10. Instituto de Ciencias de la Educacion/UBA, Universidade de Buenos Aires, Argentina,1997.         [ Links ]

MORIN, E. Ciência com consciência. Lisboa: Europa-América, 1982.         [ Links ]

______. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Piaget, 1991.         [ Links ]

______. Complexidade e transdisciplinaridade: a reforma da universidade e do ensino fundamental. Natal: EdufRN, 1999.         [ Links ]

______. A religação dos saberes: o desafio do século XXI. Trad. Flavia Nascimento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.         [ Links ]

______. Educação e complexidade: os sete saberes e outros ensaios. São Paulo: Cortez, 2002a.         [ Links ]

______. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002b.         [ Links ]

MORIN, E. O Método 6: ética. Porto Alegre: Sulina, 2005. 222 p.         [ Links ]

MORIN, E.; LE MOIGNE, J. L. A Inteligência da Complexidade. São Paulo: Petrópolis, 2000.         [ Links ]

PETRAGLIA. I. ALMEIDA; C. Estudos de Complexidade. São Paulo: Ed. Xamã, 2006.         [ Links ]

SACRISTÁN, J. G. O que é uma escola para a democracia? Patio, ano 3, n. 1, p. 56-62, 1999.         [ Links ]

SANTOS, B. de S. A crítica da razão indolente. Contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000.         [ Links ]

SOUZA, R. C. C. R. de. Universidade processo de ensino-aprendizagem e inovação. FE/UFG. Anais do IX EPECO, Brasília, 2008.         [ Links ]

SCOCUGLIA, A. C. A história das ideias de Paulo Freire e a atual crise de paradigmas. João Pessoa: Editora Universitária, 1999.         [ Links ]

TRINDADE, H. Saber e poder: os dilemas da universidade brasileira. Estudos Avançados, v. 14, n. 40, p. 123, 2000.         [ Links ]

______. (Org.). Universidade em ruínas na república dos professores. Petrópolis: Editora Vozes/Cipedes, 2001.         [ Links ]

VEIGA, I. P.; CASTANHO, M. E. (Org.). Pedagogia Universitária: a aula em foco. Campinas: Papirus, 2000.         [ Links ]

VEIGA, I. P.; RESENDE, L.; FONSECA, M. Aula universitária e inovação. In VEIGA, I. P. A.; CASTANHO, M. E. L. M. Pedagogia Universitária: a aula em foco. 3. ed. Campinas: Papirus, 2002. (Coleção Magistério: formação e trabalho pedagógico).         [ Links ]

 

 

Artigo recebido em: 8 de março de 2009.
Aceito em: 28 de junho de 2009

 

 

1 Projeto Político pedagógico Curso de Pedagogia FE/UFG - http://www.fe.ufg.br/uploads/files/reforma_curricular.pdf
2 Multirreferencialidade do conhecimento é o princípio que rege os temas transversais, muda o conceito de conhecimento. Passa-se da disciplinaridade (lógica clássica) à transdisciplinaridade (lógica do terceiro termo incluído). O conhecimento é concebido como uma rede de conexões (do arbóreo passa-se ao conceito rizomático), o que leva à multidimensionalidade do conhecimento e à distinção de vários níveis de realidade. A multidimensionalidade diz respeito ao reconhecimento dos diferentes níveis de realidade no processo cognitivo.

Creative Commons License