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Psicologia Ensino & Formação

versão impressa ISSN 2177-2061

Psicol. Ensino & Form. vol.1 no.1 Brasília abr. 2010

 

EM DEBATE

 

Reflexões sobre a formação do psicólogo em psicoterapia: estado da arte e desafios

 

On the formation of the psychologist as psychotherapist: challenges and state of art

 

 

Julieta Quayle

Universidade Anhembi Morumbi. Doutora em Psicologia - PUC SP. jquayle@uol.com.br

 

 


RESUMO

A formação de psicoterapeutas em nosso país acontece em diferentes formas e níveis, refletindo a realidade de um campo fragmentado de conhecimento e atuação. Hoje é consenso que não se deve falar em psicoterapia, mas designar-se o campo em sua forma plural: psicoterapias, visando contemplar essa diversidade. Pelas peculiaridades do ofício e por ser exercida por diferentes profissionais e a partir de diferentes referenciais teóricos e diferentes proposições técnicas, o campo das psicoterapias apresenta dificuldades específicas para seu mapeamento e, conseqüentemente, para a proposição de parâmetros mínimos para o exercício da atividade e a formação de psicoterapeutas. O presente artigo pretende cartografar essa situação e propor encaminhamento para a as questões levantadas, demarcando alguns dos principais desafios e riscos.

Palavras-chave: Formação de psicoterapeutas. Treinamento em psicoterapia. Ensino em psicologia. Formação de psicólogos.


ABSTRACT

The formation of psychotherapists in our country is done at different levels and in different ways, as a reflection of a fragmented scientific and professional field. Nowadays, it is considered adequate to refer to this activity in its plural form: psychotherapies, to contemplate the diversity of this field. Considering the particularities of psychotherapies and the fact that different professions are allowed to exercise it, from various theoretical approaches and techniques, the field of psychotherapies presents specific problems and difficulties to be mapped and, accordingly, to propose guidelines to the profession and the formation of psychotherapists. The present paper aims at mapping this situation and proposing guidelines for the main issues raised.

Keywords: Psychotherapist's formation. Psychotherapist's training. Teaching of psychology. Education of Psychologists.


 

 

A psicoterapia constitui atividade tradicional do psicólogo clínico e de todos aqueles que de alguma forma trabalham em saúde, inclusive no âmbito da saúde pública. Embora às vezes seja vista com desconfiança e desdém por determinados segmentos da sociedade (e da própria profissão), trata-se de modalidade importante de intervenção em psicologia, com eficácia e efetividade comprovadas em uma série de situações humanas, particularmente aquelas em que o sofrimento psíquico se faz presente.

Coube-me aqui, em nome da Associação Brasileira de Psicoterapia - ABRAP, trazer algumas reflexões relativas à formação do psicólogo para o exercício dessa atividade, considerando os cenários que se desenham na pós-modernidade e os denominados "cenários de futuro". Penso ser importante, para cumprir essa tarefa, falar-lhes do recorte que escolhi para fazê-lo: inicialmente, localizar de que perspectiva é proposto esse recorte, apresentando sucintamente a ABRAP e seus objetivos, bem como sua percepção dos principais desafios para o campo na atualidade, a começar pela própria representação da psicoterapia e do psicoterapeuta em nosso meio. A seguir, sumarizar alguns dos principais desafios que, no entender dessa associação, colocam-se na atualidade para o campo; finalmente, contextualizar a questão da formação para o exercício dessa "arte", tendo em vista como ela usualmente ocorre e como pode ser aprimorada, trazendo questões e provocações que possam balizar e incentivar uma discussão proveitosa.

Embora usualmente falemos em "psicoterapia" como se este fosse um campo homogêneo de atividades, intimamente todos temos certeza de que se trata de um campo multifacetado (para não dizer quase fragmentado). Em virtude da diversidade de teorias, métodos, técnicas e abordagens que nele se fazem presentes com maior ou menor intensidade, propriedade, pertinência ou mesmo radicalismo, por vezes tem-se a impressão de que falamos de campos diferentes. Assim, muitos sugerem que devemos utilizar a denominação "psicoterapias"- e eu mesma muitas vezes o faço, nessa perspectiva. É com o objetivo de mapear esse campo e de congregar os profissionais que nele atuam que em 2004 foi fundada a ABRAP.

Esta associação visa também promover intercâmbio entre psicoterapeutas brasileiros das diversas tendências existentes na atualidade, bem como destes com seus colegas que atuam em outros países. Trata-se de uma entidade supra-abordagens, constituindo-se como fórum de discussões, espaço de pesquisa, reflexão e centro de informações acerca de questões do campo psicoterápico.

Entre os objetivos institucionais da ABRAP destacam-se:

• Apoiar o desenvolvimento das bases conceituais e científicas da psicoterapia,

• Servir como um centro de recursos e informações sobre o campo,

• Promover eventos científicos e a integração profissional,

• Divulgar a psicoterapia e favorecer sua presença nos processos de transformações sociais e organizacionais em que ela seja relevante,

• Criar parcerias com entidades nacionais, internacionais e governamentais.

A ABRAP é membro do Fórum de Entidades Nacionais da Psicologia Brasileira (FENPB), da Federação Latinoamericana de Psicoterapia (FLP) e do World Council for Psycotherapy (WCP), contando com o apoio institucional do Conselho Federal de Psicologia, do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo e da Associação Brasileira de Psiquiatria - Departamento de Psicoterapia. De sua fundação participaram, ainda, muitas associações e entidades do campo psicoterápico, refletindo esse espírito "supra-abordagem": Associação Brasileira de Medicina Psicossomática; Associação Brasileira de Psicoterapia Cognitiva; Associação Brasileira de Psicoterapia de Grupo; Associação Brasileira de Psicoterapia e Medicina Comportamental; Associação Brasileira de Terapia Familiar; Federação Brasileira de Psicodrama; Instituto Sedes Sapientiae - Departamentos de Psicodinâmica e Psicodrama; International Psychoanalytical Association; International Association of Group Psychotherapy and Psychodrama; Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo; Sociedade Brasileira de Psicologia; Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica; Sociedade Brasileira de Terapias Cognitivas bem como colegas de diversas outras instituições.

É importante ressaltar que a ABRAP não se propõe a regulamentar o campo psicoterápico no sentido de ser "o" órgão regulador que gerencia o campo de exercício profissional, listando aqueles que podem ou não podem exercer o ofício. Pretende, entretanto, coligir dados que possam, futuramente, fornecer subsídios para essa discussão no âmbito dos conselhos de classe e/ou órgãos governamentais, favorecendo a construção: critérios éticos, justos, científicos e operacionais. E aqui vale salientar mais uma peculiaridade: ela não visa congregar de forma corporativa exclusivamente profissionais desta ou daquela formação, por exemplo, somente psicólogos, ou somente psiquiatras. É uma associação de psicoterapeutas, assumindo os riscos desta escolha. Obviamente, essa opção não se dá de maneira leviana ou acrítica e exige, simultaneamente, que tenhamos claro quais os requisitos mínimos para que um psicoterapeuta seja um associado. Mas disto falaremos depois, uma vez que existe forte relação desse aspecto com a questão da formação em psicoterapia.

E o que é um psicoterapeuta? O que efetivamente caracteriza a psicoterapia, diferenciando-a de outras formas terapêuticas que eventualmente também se dirigem ao sofrer humano? Claro está que essa não é uma definição fácil ou simples, especialmente se quisermos contemplar a miríade de possibilidades do campo psicoterápico. Considerando a etimologia, temos que psicoterapia origina-se de Pysche e Therapéia, do grego, aqui como "tratamento do psiquismo" em uma tradução ao pé da letra. Entretanto, nosso problema não está ainda resolvido. Essa etimologia reporta-se ao mito de Psychê, a amada de Eros, e suas vicissitudes, como fundante mesmo da ideia de psiquismo. Este, por sua vez pode receber tantas definições e conceituações diferentes que mais se assemelha a um camaleão na frente do espelho... E tratamento - tratar, pode significar desde "como me relaciono" (não é à toa, portanto, que tanto se valoriza a relação no processo psicoterápico), até as formas específicas desse "fazer", realizado com os mais diversos objetivos: adaptação, minimização de danos, diminuição do sofrimento psíquico, busca de uma eficácia adaptativa... A lista se prolonga. Na Psicologia, a psicoterapia tradicionalmente é vista como prática da Psicologia Clínica, ocupando-se de quem sofre (sofre de quê? - também aqui a multiplicidade de caminhos que precisam ser adequadamente explorados na busca da consistência do campo).

Tentativamente, neste momento, tomamos emprestada uma definição que foi oferecida para a elaboração do Rol de Procedimentos em Psicologia, recentemente enviado para a Agência Nacional de Saúde: "Psicoterapia é o processo científico de compreensão, análise e intervenção que se realiza por meio da aplicação de métodos e técnicas psicológicas, promovendo a saúde integral e propiciando condições para o enfrentamento de crises, conflitos e/ou transtornos psíquicos."

Apesar da clareza da definição, em sua preocupação de abranger e incluir diferentes formas desse fazer, evidencia-se que estamos diante de um campo multifacetado, como se fosse uma obra de arte (ainda) inacabada e, quiçá, permanecerá desta forma por muito tempo. Dependendo do ângulo, do enfoque, do momento, do crivo, diferentes facetas e configurações afloram, como nos conhecidos experimentos da Gestalt.

Pessoalmente, penso que muitas vezes uma imagem traduz melhor nossas ideias do que muitas palavras. Tomo então a liberdade de usar uma brincadeira, uma ilustração, quase como uma metáfora desse campo (Figura 1). Na verdade, trata-se de uma dessas figuras disponíveis na internet em que nos pedem para achar/ver "coisas". Nossa tendência inicial (presumo) em relação à imagem é ver dois cavaleiros em um caminho íngreme, pedregoso, como figuras centrais e tema. O que talvez pudesse servir também como metáfora para a tarefa e o percurso de um psicoterapeuta. Todavia, se mudamos nosso crivo, nosso olhar e nossa perspectiva, poderemos perceber, a partir de "outros critérios", uma série de faces se desenhando no lugar onde antes víamos pedras, cachoeira e mato. Interessante, como toda proposta de cunho gestáltico. Atrevo-me a dizer que é reveladora da complexidade e da multiplicidade do campo psicoterápico.

 

 

Podemos também pensar essa figura como um território a ser cartografado. Nesse contexto, a proposição da ABRAP em relação a esse campo é de buscar traçar um mapa desse território, pontuando referências, dificuldades, acessos, mas tendo sempre claro que um mapa nada mais é do que uma das representações possíveis de um lugar, um território, um campo. Considerar o mapa como território pode dificultar ou mesmo inviabilizar o projeto e o trajeto.

Simultaneamente, necessário é salientar a ênfase, na definição adotada, ao termo "científico" que aqui, ouso dizer, refere-se à peculiaridade do processo psicoterápico e seu embasamento teórico, à necessidade de sua filiação aos cânones epistemológicos e ao crivo dos pares. Nesse sentido, essencial se faz, também, que o projeto de mapear o território psicoterápico seja levado a cabo dentro desses cânones, que nosso "cartógrafo" tenha conhecimento de causa e, ao mesmo tempo, capacidade de ser minimamente imparcial em seu desenho cartográfico.

Outra questão relevante ao pensarmos o que é psicoterapia ou quem é o psicoterapeuta pertence ao campo do imaginário social e das representações sociais. Como é "vista" a psicoterapia pela sociedade em geral? E o psicoterapeuta? Por que tantas vezes essa atividade é categorizada como elitista, alienante, dissociada das reais necessidades dos indivíduos e comunidades? Bem verdade que só a primeira dessas questões daria origem a diversas teses de doutorado, dependendo do enfoque, da população estudada etc. Mas penso que não podemos nos furtar a pelo menos uma aproximação desses questionamentos se quisermos, efetivamente, pensar a formação do psicoterapeuta em nosso país. E de novo, vou pedir licença para fazer uma referência pouco usual: Trazer a descrição de uma imagem, uma pintura utilizada como capa de um livro sobre psicoterapia.1

Essa imagem, que procurarei descrever tanto objetivamente como subjetivamente, é de autoria de Martin Holt e ilustra a capa de um livro francês de 1998, organizado por Tobie Nathan, professor de psicologia clínica na universidade de Paris VIII. O livro tem por título "Psychothérapies". Holt denominou sua pintura "The Psychologist"- o psicólogo e, sem dúvida, ela corresponde a uma visão datada desse profissional. Uma perspectiva que se refere a um momento do fazer psicológico e a um momento específico do fazer psicoterápico. Todavia, devemos nos lembrar que o livro foi escrito por um psicoterapeuta, um pesquisador; portanto, não deve ser casual sua escolha de capa. Imaginamos que, embora provocativa e sugestiva, não deva tratar-se unicamente de uma crítica cartunesca ou destrutiva. Quando detemos nosso olhar podemos observar que existe um divã, uma analisanda e um analista retratados no interior de um consultório, aparentemente no decorrer de uma sessão de análise. A primeira - colocada em segundo plano - parece bastante concentrada em sua "tarefa", que lhe parece custosa: o detalhe dos pés descalçados e com os dedos virados para dentro, as mãos cruzadas sobre a cintura assim o sugerem. Enquanto isso, em primeiro plano, seu psicoterapeuta/analista/psicólogo admira-se ao espelho, vestindo um casaco de peles que, em minha projeção (sujeita à análise e interpretação), deve pertencer à analisanda. Não parece atento ao que ocorre no setting. Podemos pensar em muitas formas de sublinhar o cuidado autocentrado, quiçá narcísico, desse psicoterapeuta aqui caricaturado; todavia, sobressai o descaso com as necessidades da analisanda e até o "uso" que é feito das "coisas" dela. De novo, algo aberto a muitas interpretações. Mas o que aqui quero enfatizar é que, em grande parte, existe uma correspondência entre essa "caricatura", essa tira quase anedótica, e a representação social da psicoterapia e do psicoterapeuta.

Poderia ser "muito divertido", se não tivesse um caráter trágico, parodiando o linguajar popular. De fato, após alguns momentos de relaxamento, algo nos incomoda nessa representação: ela aponta, em meu ponto de vista, certa falta de credibilidade e, assim, questiona também a aplicabilidade e eficácia associadas à "arte" da psicoterapia, bem como sua aparente distância dos cânones científicos, seu enclausuramento... Pois também no campo das psicoterapias é essencial que se recupere a proposição de pensar a psicologia e suas práticas enquanto ciência e enquanto profissão, sua função social e, nessa perspectiva, quase na intersecção dessa proposta, pensar a formação, o ensino do psicoterapeuta. De maneira similar, à psicoterapia caberia estabelecer-se, cada vez mais, como ciência e como profissão, atenta à interdisciplinaridade de sua constituição e práxis e refletindo acerca das repercussões dessa perspectiva na formação dos novos psicoterapeutas e suas relações com o social.

Inegavelmente essa representação repercute na prática profissional, no assim denominado mercado de trabalho: observa-se que paulatinamente a psicoterapia, em suas diferentes modalidades, conquista espaço na saúde pública e na saúde suplementar - embora essa presença ainda se distancie de maneira significativa da demanda existente. Ainda que a remuneração/reembolso por esse tipo de serviço prestado ainda esteja muito distante das reais necessidades tanto institucionais (no caso do repasse do SUS, por exemplo) quanto dos profissionais envolvidos (no caso dos honorários previstos pelas operadoras de seguro saúde, por exemplo), há que se reconhecer que a própria existência da modalidade "psicoterapia" nesses espaços é uma conquista do cidadão comum e do profissional psicoterapeuta. Entretanto, não é infrequente escutarmos das instâncias gestoras seu receio em face de procedimentos tão "subjetivos", "imensuráveis", "sem fim", "sem metas", "caros", "isolados", "sem resultados palpáveis" etc... Todos já ouvimos isto, e muito mais. Isso deve ser mudado, a partir do próprio campo psicoterápico. E passa, necessariamente, pela formação das novas gerações de psicoterapeutas. Precisamos nos compromissar com a avaliação do processo e o esclarecimento do público acerca dos benefícios e limitações das psicoterapias.

Precisamos, também, perder o medo de ser científicos. Ou, dito de outra forma, de que ao sermos científicos, deixemos de ser bons psicoterapeutas. Medo de perdermos o glamour, o mistério, de nos afastarmos daquela representação mítica de feiticeiros, pajés xamãs todo poderosos... Foi-se o tempo, por exemplo, em que não dispúnhamos de dados fidedignos acerca da eficácia e efetividade do processo psicoterápico em diferentes contextos e a partir de diferentes abordagens. Hoje, são inúmeras as pesquisas de campo e os estudos de revisão e metanálise apontando a importante contribuição das psicoterapias no campo da saúde mental e como parte integrante de esquemas terapêuticos amplos e integrativos junto a pacientes portadores de diferentes condições médicas. Esses dados precisam ser (re)vistos, estudados, questionados, aprimorados, refutados... Integrados, enfim, à própria formação do psicoterapeuta. Embora este seja um capítulo à parte, à guisa de exemplo mencionarei apenas um dos inúmeros estudos disponíveis sobre o assunto que, contrariando a expectativa, demonstra a favorável equação custo/benefício na utilização da psicoterapia no contexto da saúde. Em seu trabalho "Cost-effectiveness of Psychological Interventions", encomendado pela Canadian Psychological Association, Dr. John Hunsley, da Universidade de Ottawa, esclarece:

As intervenções psicológicas não somente podem ser efetivas em seu próprio campo como também têm demonstrado potencial para de fato reduzir os custos dos tratamentos de saúde.

Ele prossegue:

Evidências recentes têm demonstrado que intervenções psicológicas podem ser mais efetivas em termos de custo-benefício do que as terapias medicamentosas para condições como síndrome do pânico e depressão. Por exemplo, embora as evidências empíricas sobre o tratamento da síndrome do pânico indiquem que o tratamento cognitivo-comportamental e o tratamento medicamentoso tenham efetividade comparável, estimou-se que a intervenção psicológica custaria entre 10% a 50% menos. No tratamento da depressão, metanálises demonstraram que a intervenção psicológica (em especial tratamento cognitivo-comportamental) pode produzir resultados comparáveis ou superiores ao tratamento medicamentoso e que a farmacoterapia apresenta maiores índices de abandono (drop out). Além disso, estudo recente comprovou que num seguimento de dois anos, o tratamento farmacológico custa em média 30% mais. Nos últimos 30 anos dúzias de pesquisas encontraram que tratamentos psicológicos efetivos reduzem ou compensam os custos no sistema de saúde - fenômeno conhecido como "medical cost offset" (...) em inúmeras situações e doenças, incluindo doenças do coração, hipertensão, diabetes, câncer e dor crônica. (grifos meus).

Dá o que pensar, pois é evidente que a questão dos custos operacionais não pode ser negligenciada quando se contempla a utilização ampla dos processos psicoterápicos nos diferentes níveis e contextos do sistema de saúde, especialmente num país com crônica carência de recursos em saúde como o nosso. Aqui, mais um desafio: como se apresentariam esses dados no Brasil?

Considerando, então, esse cenário sucintamente desenhado, qual deve ser a proposta de formação em psicoterapia para o psicólogo brasileiro? E qual ao papel da ABRAP?

Qualquer proposta voltada para a formação do psicólogo deve ser formulada tomando em consideração as últimas formulações das diretrizes curriculares e, ao mesmo tempo, o fato de que a formação de um psicoterapeuta requer tempo, seriedade e dedicação, seja seu objetivo de caráter assistencial ou acadêmico. Além disso, há que se levar em conta as formas tradicionais dessa formação em nosso país. Após essas ressalvas, parece-me lícito sugerir que essa proposta de formação deva tomar em consideração ao menos os seguintes aspectos:

• Os momentos em que essa formação - ou ensino - ocorre;

• A diversidade do campo e suas diferentes abordagens teóricas e técnicas;

• As práticas possíveis em diferentes contextos;

• A dimensão ética e científica;

• O compromisso social do profissional/estudante em formação.

Tradicionalmente, em nosso país o ensino e a formação em psicoterapia ocorrem prioritariamente em quatro diferentes contextos:

1. No nível da graduação, com caráter inegavelmente introdutório e lacunar, dentro do processo de formação de um profissional generalista, usualmente dentro do viés da psicologia clínica. A rigor, todo recém-formado pode trabalhar com psicoterapia.

2. No nível de pós-graduação lato sensu e de especialização e formação, por vezes em instituições de caráter associativo vinculadas a determinadas práticas ou teorias, onde a tendência acaba por ser um olhar específico e segmentar dentro do viés desta abordagem e/ou teoria. O aspecto comum refere-se à época da formação em que tais estudos e treinamentos ocorrem, ou seja, após a obtenção do certificado de conclusão do curso de formação de psicólogos.

3. No nível de pós-graduação stricto sensu, com um viés acadêmico, voltada para a realização de estudos e pesquisas de caráter exploratório, comparativo ou de revisão em diferentes paradigmas, seja no que concerne à efetividade do processo psicoterápico, seja no que diz respeito, por exemplo, à função de variáveis diferenciadas no devir desse processo, em diferentes linhas, abordagens ou práticas. Nem sempre tais estudos são realizados por psicoterapeutas mas, em princípio, visam a qualidade do processo e seu aprimoramento e a produção de um conhecimento voltado para a realidade brasileira e suas necessidades.

4. No nível de grupos de estudo mais ou menos informais, organizados e conduzidos por psicoterapeutas ou pequenos grupos de psicoterapeutas, dentro da tradição da psicologia clínica. Neles "estudam-se" determinadas fontes e textos de caráter teórico e de descrição de casos clínicos, visando a formação dos participantes do grupo. Nesse contexto, o coordenador/responsável pelo grupo desempenha, simultaneamente, o papel de supervisor.

Inegavelmente, ao lado desses níveis de formação, a qualidade da formação, a priori, depende também da excelência da instituição formadora/de ensino, dos profissionais envolvidos e da seriedade da proposta.

O que se observa, muitas vezes, é a combinação de "pedaços" desses modelos de formação, que cada vez com menos frequência se apresentam em sua "forma pura". Comparativamente, cada um deles apresenta alguma vantagem em relação ao outro, bem como importantes limitações, que vão, por exemplo, desde o acompanhamento próximo, quase cotidiano, que o grupo de estudos possibilita, até o pequeno reconhecimento social e legalidade de certificados eventualmente expedidos por seu coordenador. Poderíamos listar numa matriz quase infindável vantagens, desvantagens, limitações, desafios e possibilidades de cada um desses modelos, tanto em relação ao ensino, como à formação e ao treinamento de futuros psicoterapeutas. Resistirei, aqui, a esta tentação, deixando tal tarefa para outro contexto. Todavia, não há como ignorar alguns dos riscos que se delineiam numa profissão que muitos caracterizam como "quase" autofágica. Entre eles, considero importante salientar:

a) O processo de mercantilização dos cursos de formação como caminho para garantir a sobrevivência institucional em uma realidade globalizada e altamente competitiva, como, aliás, já se observa nos cursos de graduação privados. Não podemos imaginar que o próprio mercado, sozinho, resolverá esse problema em curto ou médio prazo: é necessário que pensemos estratégias para lidar com essa questão de forma eficiente, considerando a própria credibilidade do processo e sua faceta de prestação de serviços à sociedade.

b) A oferta de uma produção científica de qualidade por vezes duvidosa, sem investimento adequado, como forma de garantir um "lugar ao sol", e responder às exigências mínimas de elaboração de TCC's, monografias e artigos monográficos de conclusão de curso, esquecendo-se que, de fato, malgrés lui, o psicoterapeuta é um pesquisador, mesmo que não se dê conta disso: cada interpretação, cada manejo clínico, por exemplo, parte de hipóteses de trabalho consistentes com uma determinada abordagem teórica e são paulatinamente ajustadas/aceitas/refutadas de acordo com sua eficácia terapêutica, evolução clínica etc. Tal fato deveria ser explorado de maneira mais adequada no próprio curso, favorecendo a elaboração de trabalhos consistentes.

c) Corolário dos riscos já mencionados, existe o da possibilidade de uma maior rejeição do processo psicoterápico em diferentes esferas e contextos, podendo favorecer não só a diminuição de sua oferta na saúde pública e suplementar, como também a diminuição da procura dessa modalidade de intervenção em geral, com o correspondente aumento do sofrimento psíquico de significativa parcela da população. É essencial que se desça do pedestal e que se trabalhe com a mídia e a sociedade no sentido de esclarecer a função e o papel da psicoterapia e do psicoterapeuta, as limitações e alcances do processo, visando não a promoção pessoal ou institucional mas, de fato, a facilitação da circulação de informações fidedignas que possam subsidiar o processo de tomada de decisão dos candidatos ao processo.

d) A diminuição da interlocução e da interdisciplinaridade, bem como de parcerias institucionais. Além do discurso voltado para a abordagem "global e integrada", é necessário que se participe, efetivamente, desse esforço.

e) Um risco de caráter paradoxal, e que já vem se desenhando tanto na saúde pública como na saúde suplementar e que afeta diretamente a formação dos psicoterapeutas, decorre da demanda crescente da "produção (quantitativa) de atendimentos psicoterápicos" tendo como balizadores aspectos predominantemente ou exclusivamente econômico-financeiros, as denominadas "metas", sem que se atente para questões clínicas importantes tais como: a duração de um dado atendimento; o tempo consignado para a realização de um processo; as formas mais adequadas de intervenção; o tempo necessário para registros clínicos adequados; intervalos entre sessões de atendimento de pacientes visando garantir a qualidade do trabalho. Isto só para mencionar alguns poucos itens espinhosos. Se, de fato, as metas são importantes fatores de planejamento e devem ser propostas e contempladas, faz-se mister que, paralelamente, sejam discutidos os critérios que diferenciam, por exemplo, a realização, a complexidade, a expertise, o tempo necessário e os valores pagos para uma intervenção psicológica e uma avaliação de pressão arterial, por exemplo: uma anamnese clínica de um plantonista e um atendimento de família numa UTI etc. É essencial que o psicoterapeuta possa participar da formulação de metas administrativas tangíveis a partir da implantação de planejamentos terapêuticos (clínicos) adequados às circunstâncias, sendo, ainda, capaz de "dar conta" do desenvolvimento do tratamento, seu registro etc. tanto na esfera pública como privada.

Em face de esses riscos (entre inúmeros outros que aqui não foram contemplados) e ao cenário anteriormente delineado, pergunto: que psicoterapeuta queremos formar? Para atuar em que contextos e a partir de que nível de formação? Como podemos conseguir isso? Que face(s) queremos para a(s) psicoterapia(s) brasileira(s)? Quais os desafios concretos que esses contextos de formação e riscos apresentam, incluindo, aqui, o questionamento de sua manutenção? Por último, mas não menos importante, é preciso que se pondere qual pode e deve ser a contribuição da ABRAP nessa construção. Existe uma convergência desse desafio com alguns dos objetivos inicialmente mencionados e, entre eles, ressalto:

• Mapear, sem a pretensão de regulamentar, a prática e as propostas de ensino/formação formuladas pelas diferentes abordagens e associações, visando a construção de uma prática consistente e compromissada.

• Subsidiar e sugerir diretrizes, sem impor paradigmas, no que concerne às formas "ótimas" e às formas "aceitáveis" de ensino, formação e treinamento de psicoterapeutas, a partir de subsídios colhidos no país, na América Latina e outros locais com tradição na área, promovendo ampla discussão do tema entre os interessados e estabelecendo parcerias para que essa discussão seja profícua e supra-abordagens. Aqui cumpre informar que existe a ideia de uma parceria ABRAP-ABEP para que essa discussão ocorra em nível nacional e que efetivamente se tome em consideração os diferentes segmentos envolvidos. Penso ser importante que aqui se esclareça brevemente como ocorre, atualmente, o processo de credenciamento de cursos para a concessão do título de Especialista em Psicologia Clínica - área de especialização onde se concentra a quase totalidade dos psicólogos psicoterapeutas com título de especialista. Para a obtenção desse título, é necessária da comprovação de conclusão de curso credenciado pelo CFP ou a realização de prova específica que ocorre regularmente e que é de âmbito nacional É importante ressaltar que a ABRAP não faz vistoria de cursos de formação ou especialização para viabilizar seu credenciamento, fornecendo pareceres oficiais sobre quais devam ser credenciados como de especialização ou não. A ABEP firmou um convênio com o CFP para a realização dessa tarefa. E a vem realizando a contento, tanto no que concerne à orientação dos cursos interessados quanto ao desenvolvimento da avaliação de cursos propriamente dita. Por outro lado, penso que a ABRAP deveria participar da construção de subsídios que pudessem balizar essa árdua tarefa e participar desse processo de credenciamento quando os cursos se propõem a formar psicoterapeutas.

• Ser um interlocutor que não se supõe ingenuamente neutro, mas que não seja reacionário, simplesmente "reagindo" às circunstâncias de forma acrítica ou a partir de pré-conceitos, posições pré-existentes e similares; tal atuação pode favorecer, em médio prazo, o diálogo entre aparentes opositores e a formação articulada de uma "massa" crítica que participe ativamente da construção de referências atinentes à formação do psicólogo psicoterapeuta e ao ensino em psicoterapia. Aqui, é fundamental que se considere a questão da globalização, de um lado, a propor uma série de paradigmas para a formação de psicoterapeutas, muitas vezes difíceis de serem implantadas em um país de dimensões continentais como o nosso e com recursos e culturas tão diferenciados.

Nesse contexto tal interlocutor deve considerar, ainda, as culturas regionais e particularidades contextuais que demandam formas diferenciadas, mas efetivas, de intervenções psicoterápicas, de interlocução e de formação. Ressalto que não se trata, entretanto, de formar "psicoterapeutas" de primeira ou segunda categoria, em virtude de sua área (física e entorno sociocultural) de intervenção, mas que na formação e no treinamento do psicoterapeuta seja tomado em consideração o aspecto cultural, étnico, social e econômico daquele que sofre e que eventualmente formula a demanda de atendimento psicoterápico ou que se "sujeita" ao diagnóstico de terceiros nessa direção. Aqui é fundamental que se desmistifique a versão ainda vigente da psicoterapia como ação terapêutica voltada exclusivamente ou prioritariamente para as "elites" nacionais: cada vez mais inserida na saúde pública e suplementar, e mesmo nos consultórios e clínicas particulares, as psicoterapias assumem criticamente seu compromisso e papel social com o indivíduo e a sociedade sem, todavia, "tomar" ou "formar partidos". Tal posicionamento deve ser intensivamente divulgado e pensado, visando, inclusive, a percepção do processo psicoterápico como uma estratégia de inclusão social e cidadania. Promover e participar de uma ampla discussão, de caráter nacional, acerca da conceituação, limites e alcances do processo e do profissional que o desenvolve.

• Engajar-se no incentivo à produção de conhecimento nacional que subsidie práticas efetivas em diferentes abordagens e que possam ser socializadas, inclusive (talvez devesse dizer "principalmente") nos diferentes centros de ensino, formação e treinamento.

Penso que são essas as provocações que podemos enfrentar inicialmente, e espero que elas suscitem muita conversa e discussões na roda que ora se forma

 

REFERÊNCIAS

HUNSLEY, J. Cost-effectiveness of Psychological Interventions. Ottawa: Canadian Psychological Association, 2002. (ISBN 1896538703)        [ Links ]

NATHAN, T. Psychothérapies. Paris: PUF, 1998.         [ Links ]

 

 

Artigo recebido em: 4 de março de 2009.
Aceito em: 24 de junho de 2009

 

 

1 O texto ora apresentado corresponde à transcrição e adaptação de palestra inicialmente apresentada no VI Encontro Nacional da ABEP, realizado em Belo Horizonte, 2007.
2 Para os curiosos, a figura pode ser acessada no seguinte endereço: http://shadma.com/gallery/-c-22.html?osCsid=2e5e80f18fdbeada3a7527f254cc6afb

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