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Psicologia Ensino & Formação

versão impressa ISSN 2177-2061

Psicol. Ensino & Form. vol.1 no.2 Brasília  2010

 

RELATOS DE EXPERIÊNCIA

 

Reflexões sobre uma experiência de supervisão em psicoterapia de orientação analítica

 

Considerations on a supervision experience over psychotherapy with analytical orientation

 

 

Zeno Germano

Universidade Federal de Rondônia. Psicologo-UFRO. zenoneto@tjro.jus.br

 

 


RESUMO

O presente artigo é uma exposição geral de como ocorreu o estágio curricular em Psicoterapia de Orientação Analítica no curso de Psicologia da Universidade Federal de Rondônia, em 2009. Traz reflexões sobre a supervisão no processo de construção da identidade do psicoterapeuta a partir das concepções psicanalíticas, dentro de características do modelo compreensivo-relacional de supervisão em psicoterapia de orientação analítica e da graduação em Psicologia da Universidade Federal de Rondônia.

Palavras-chave: Psicanálise. Psicoterapia. Supervisão. Estágio.


ABSTRACT

The current work is a general exposition on how the Curricular Probation on Analytical Orientation Psychotherapy occurred at the Psychology Course offered by the Federal University of Rondônia, in 2009. It introduces a few reflections about the supervision in the process of construction of the psychotherapist identity from psychoanalytical conceptions, according to the characteristics of the Comprehensive-Relational model of Supervision in Analytical Orientation Psychotherapy and to the parameters of the Federal University of Rondonia Psychology Graduation Course.

Keywords: Psychoanalysis- Psychotherapy- Supervision- Probation.


 

 

INTRODUÇÃO

O estágio curricular denominado Psicoterapia de Orientação Analítica (POA) é oferecido no curso de Psicologia da Universidade Federal de Rondônia desde que a primeira turma chegou ao 10º período (quinto ano) do curso, em 1993 (o curso de Psicologia da Universidade Federal de Rondônia teve inicio em 1989, na capital, Porto Velho). O estágio é feito no Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) da Universidade, que atende gratuitamente a comunidade e oferece em média 10 vagas por turma a cada ano.

Este artigo é fruto do trabalho exercido junto à turma de estagiários de Psicoterapia de orientação analítica, em 2009, como supervisor, e se justifica pelo intuito de avaliar o exercício dessa atuação.

 

O LUGAR DO SUPERVISOR

Devemos considerar o Estágio Curricular como uma disciplina. Há carga horária a ser cumprida, conteúdos a serem ministrados e notas a serem lançadas. Por outro lado, com a psicanálise, aprendemos que o ensinamento e a sua captação dependem do estabelecimento de uma transferência positiva entre aquele que ensina e aquele que capta, e que o lugar de Mestre (o detentor do saber) não é adequado para o educador psicanalítico. Se tais aspectos não estiverem conscientes e não forem elaborados pelo supervisor, acreditamos que eles virão a primeiro plano na relação de estágio e terão grandes chances de prejudicar o trabalho.

Kupfer (1989) lança ideias sobre o educador psicanalítico que consideramos importantes para o trabalho de supervisão:

(...) o educador inspirado por idéias psicanalíticas renuncia a uma atividade excessivamente programada, instituída, controlada com rigor obsessivo. Aprende que pode organizar seu saber, mas que não tem controle sobre os efeitos que produz nos alunos. Fica sabendo que pode ter uma noção, através de uma prova, por exemplo, daquilo que está sendo assimilado naquele instante pelo aluno. Mas não conhece as muitas repercussões inconscientes de sua presença e de seus ensinamentos (p.97).

É importante considerar que as exigências do Estágio, inerentes ao processo de graduação dos acadêmicos, tornam ainda mais necessárias considerações como as de Kupfer. A necessidade de avaliação representa armadilha para o supervisor que não estiver consciente de seu narcisismo na relação com o aluno. O Lugar do Supervisor deve ser construído para que se possa escapar dessa armadilha e, assim, tornar importante a manutenção de posturas equivalentes às de um analista com seu paciente, principalmente a escuta de como o estagiário se sente ao atender e, com ele, ir possibilitando um significado para o trabalho que está sendo realizado.

Aqui não podemos nos furtar ao questionamento do fato de ser possível tamanha autonomia na relação supervisor-supervisionando. Esse questionamento é ainda mais compreensível quando se refere à avaliação desses supervisionandos. Como negar a relação de poder inerente em qualquer avaliação? A autonomia não estaria comprometida e acabaria em um limite imposto, senão pelo supervisor, pelo próprio programa de estágio, com suas exigências acadêmicas?

Não consideramos que a autonomia proposta aos estagiários deva se equiparar a uma espécie de anarquia, em que não haja imposições de ordem e limites em relação à instituição formadora. Também não devemos pensar que com isso não podemos chegar a uma autonomia que dê aos estagiários condições mínimas para que passem, a partir daí, a seguir seu caminho profissional de forma ética e crítica, sem dogmatismos. Ao supervisor resta possibilitar, facilitar; não impor, e sim, fazer pensar. E claro, ele mesmo deve pensar, não apenas sobre os conteúdos mas também sobre a própria relação com os estagiários.

Valabrega (1992), quando considera a análise, guardadas as devidas proporções, um caminho para a supervisão, afirma:

Para continuar analítica, com efeito, a posição do analista deve ser ao longo de todo o processo, não a do alter-ego ou ego-auxiliar, como na relação de assistência (se bem que efeitos desse tipo, não necessariamente desfavoráveis, se produzam e sejam utilizáveis, como dizia Freud, pela via de sugestão), mas, essencialmente a do terceiro (p.47).

Que o supervisor possa escutar trazendo o simbólico ao momento do encontro, e não somente auxiliando a encontrar a explicação teórica para o que acontece na clínica, eis o trabalho. Fiquemos com Calligaris (2004), em uma dica que, por certo, também daríamos: "A função da supervisão de um jovem terapeuta ou analista, salvo situações catastróficas, deve ser autorizar o terapeuta, inspirar-lhe a confiança em seus próprios atos, sem a qual nenhuma cura vai ser possível" (p.124).

Assim, baseamos tal trabalho em três modelos metodológicos de supervisão dentro da psicoterapia de orientação analítica, enfatizando constantemente o modelo compreensivo relacional, conforme exposto por Zaslavsky e Brito (2005):

No modelo compreensivo relacional, o supervisor participa da experiência de aprendizagem do supervisionando em um nível empático, usa a si mesmo como instrumento para desenvolver, no candidato, as funções essenciais do psicoterapeuta, leva em conta o que se passa na dupla supervisor-supervisionando como forma de entender o material do paciente e abordar a transferência e contratransferência diretamente. Quando necessário, aponta o que o supervisionando deverá levar para seu tratamento pessoal. Esse modelo é centrado na interação da dupla (p. 488-489).

Esses autores ressaltam que, além do modelo compreensivo relacional, existem outros dois modelos também comuns, o modelo clássico e o corretivo. No primeiro há uma ênfase na demonstração constante da técnica por parte do supervisor, enquanto, no segundo, há uma preocupação em mostrar os erros e os acertos do supervisionando. Percebemos que se, no modelo compreensivo relacional o trabalho é centrado na dupla supervisor-supervisionando, no modelo clássico, é centrado no paciente, e, no modelo corretivo, é centrado no supervisionando.

Apesar de claramente adotarmos o modelo compreensivo relacional, não podemos deixar de citar que houve momentos em que os outros dois modelos foram usados, até porque, na prática, os três modelos são complementares. Houve situações em que se fizeram necessárias intervenções nas quais era necessário enfatizar mais a técnica ou a sintomatologia do paciente, e não somente a vivência do estagiário. Entretanto, todo o trabalho foi guiado predominantemente pelo primeiro modelo de supervisão citado.

 

CARACTERÍSTICAS INSTITUCIONAIS DOS ATENDIMENTOS

O Estágio em POA foi exercido no Serviço de Psicologia Aplicada da Universidade Federal de Rondônia (SPA), como tem sido ao longo dos anos em que o curso de Psicologia funciona na Universidade. Trabalharam sob supervisão oito estagiários, que atendiam na clínica tanto no período da manhã quanto no da tarde, entre abril e dezembro de 2009. As supervisões ocorriam uma vez na semana, das 14 às 18 horas, em grupo, sendo que cada estagiário fazia o seu relato e havia interação entre todos os membros, e não apenas com o supervisor. Os estagiários precisavam cumprir um total de 300 horas entre atendimento, entrevistas de triagem e supervisão.

Inicialmente, começando pelas entrevistas de triagem, foi possível enfatizarmos a importância do primeiro contato, não para nos prendermos à demanda inicial que, como se foi verificando, na grande maioria das vezes, mudava ao longo dos atendimentos, mas para aprimorar a escuta do tipo de transferência que o paciente estabelecia, ou seja, se o estagiário iria lidar com uma estrutura de personalidade neurótica ou não. Nessa etapa, uma preocupação foi a de estabelecer que não precisávamos nos prender a uma única entrevista de triagem. Com Mannoni (1997), procuramos valorizar a ideia de entrevistas preliminares e assim nos adaptarmos ao que caracterizava nosso espaço institucional. Houve casos em que foram necessárias duas ou três entrevistas de triagem.

Com os atendimentos, definimos que cada estagiário atenderia cinco pacientes, no máximo, escolhidos com o supervisor a partir das fichas que eram preenchidas na triagem. Havia fichas de pessoas entrevistadas em anos anteriores que nunca foram chamadas ou que já haviam sido atendidas e aguardavam a continuidade da psicoterapia, assim como fichas de novos entrevistados. Esse aspecto marca uma das dificuldades do SPA. Muitas pessoas não podiam ser atendidas, pois a demanda era, muitas vezes, maior do que a oferta.

Outras características do SPA mereciam atenção. O contato com os pacientes era sempre feito pelas secretárias, e não pelos alunos. Tal procedimento fazia com que os vínculos iniciais fossem estabelecidos com a instituição, e não com os futuros psicólogos. Cedaro (2003), ao abordar as instituições e o fenômeno transferencial, chama a atenção para a construção de subjetividade que as instituições proporcionam, uma vez que elas determinam regras de convívio e hábitos do cotidiano. Partindo desse ponto, cita: "Conforme enfatiza Bleger (1984), o ser humano encontra apoio nas instituições, desde que são vistas como provedoras de segurança, identidade e inserção social. É dessa forma que o relacionamento com as instituições é o reflexo da identidade do indivíduo e da sua relação com o meio"(p.154).

Cedaro (2003) prossegue citando outro autor para afirmar que a transferência institucional antecede o vínculo com o profissional: "Guirado (1995) afirma que existe um estabelecimento prévio de relação transferencial entre o cliente e a instituição que ele procura. Isso significa que essa transferência antecede o vínculo com o profissional, pois o paciente é, em primeiro momento, cliente da instituição" (p.154).

Cientes da força institucional, refletíamos sobre como se dava o fenômeno transferencial nas particularidades do SPA, levando em consideração, por exemplo, o fato de se tratar de uma clínica-escola em que os psicoterapeutas ainda não são profissionais de direito, e sim, estagiários. Entendemos que é muito salutar que pesquisas sobre a forma como os pacientes veem o SPA, em todos seus aspectos, pudessem ser realizadas visando talvez à possibilidade de crescimento institucional.

Reflexões sobre o modus operandis do SPA nos possibilitaram refletir também sobre como pode ser o trabalho do psicólogo além das quatro paredes do consultório e as especificidades de instituições nas várias áreas de atuação desse profissional, além das inserções e limites da psicoterapia e da psicanálise nesses espaços.

Voltando à questão da política do SPA, esta defende a ideia de que o vínculo dos pacientes deve ser estabelecido com a instituição, e não com os estagiários. Essa assertiva pode ser facilmente compreendida. Os estagiários ficam no atendimento em um período quase sempre de menos de um ano. Ao findar esse tempo, que é o final da graduação, outros estagiários assumirão a função, e os pacientes, se assim o quiserem, poderão dar continuidade à psicoterapia com outro terapeuta. Como manter isso se defendemos, com base na teoria psicanalítica, o vínculo transferencial com o estagiário? Fatalmente o paciente desejará dar seguimento a sua psicoterapia com o mesmo terapeuta e rejeitará um novo estagiário. Tal situação é sempre passível de acontecer, mesmo com essa política institucional. Em outras palavras, seria possível controlar plenamente as manifestações transferenciais dos pacientes?

Existem pacientes que, mesmo com as devidas orientações sobre o funcionamento da clínica, se agarram ao estagiário que os atende. Isso evidentemente pode ser solucionado se o novo psicólogo levar o paciente para seu consultório particular, para outra instituição em que irá atender depois de graduado ou se permanecer atendendo no SPA por mais um tempo. Visando a isso, nossas discussões nunca esqueciam as orientações contidas no Código de Ética Profissional do Psicólogo e a importância de se buscar esclarecer de forma adequada cada situação junto ao paciente, caso contrário, podemos entender que esse seria um dos fatores para que muitos pacientes não permanecessem no serviço esperando outro estagiário.

 

PSICOTERAPIA DE ORIENTAÇÃO ANALÍTICA VERSUS PSICANÁLISE

Um dos pontos de extrema relevância que foi se configurando era a importância de se delimitar de forma adequada os conceitos que marcam as diferenças entre a psicoterapia de orientação analítica e a psicanálise. A primeira tem forte influência do método freudiano, mas se distingue deste em partes de sua execução e em seus objetivos.

A preocupação em demarcar bem essas diferenças foi um dos pontos essenciais do Estágio, sendo que, na verdade, essa é uma temática complexa em alguns aspectos. Antes, Freud (1905/1969) deixou clara a diferença entre a técnica analítica e aquilo que descaracterizava a psicanálise:

(...) há entre a técnica sugestiva e a analítica a maior antítese possível, aquela que o grande Leonardo da Vinci resumiu com relação às artes, nas fórmulas per via di porre e per via di levare. A pintura, diz Leonardo, trabalha per via di porre, pois deposita sobre a tela incolor partículas coloridas que antes não estavam ali; já a escultura, ao contrário, funciona per via de levare, pois retira da pedra tudo o que encobre a superfície da estátua nela contida. De maneira muito semelhante, senhores, a técnica da sugestão busca operar per via di porre; não se importa com a origem, a força e o sentido dos sintomas patológicos, mas antes deposita algo - a sugestão - que ela espera ser forte o bastante para impedir a expressão da idéia patogênica. A terapia analítica, em contrapartida, não pretende acrescentar nem introduzir nada de novo, mas antes tirar, trazer algo para fora, e para esse fim preocupa-se com a gênese dos sintomas patológicos e com a trama psíquica da idéia patogênica (p.244).

Se, no início da psicanálise, a preocupação de Freud era a de separá-la de técnicas sugestivas, a diferenciação entre a psicoterapia analítica e a psicanálise passa por outros pontos. O próprio pai da psicanálise, anos depois, também ressaltava que a conduta do analista, a questão da transferência e das resistências, tinha de ser considerada:

Poder-se-ia esperar que seria inteiramente permissível e, na verdade, útil, com vistas a superar as resistências do paciente, conceder-lhe o médico um vislumbre de seus próprios defeitos e conflitos mentais e, fornecendo-lhe informações íntimas sobre sua própria vida, capacitá-lo a pôr-se, ele próprio, paciente, em pé de igualdade.

(...) Mas, nas relações psicanalíticas, as coisas amiúde acontecem de modo diferente (...). A experiência não fala em favor de uma técnica afetiva desse tipo. Tampouco é difícil perceber que ela envolve um afastamento dos princípios psicanalíticos e beira o tratamento por sugestão (FREUD, 1912/1969, p.156).

Assim, Freud, a partir da conduta do analista, destaca a importância do manejo transferencial e a evitação de intervenções sugestivas:

O médico (psicanalista) deve ser opaco aos seus pacientes e, como um espelho, não mostrar-lhes nada, exceto o que lhes é mostrado. Na prática, é verdade, nada se pode dizer contra um psicoterapeuta que combine uma certa quantidade de análise com alguma influência sugestiva a fim de chegar a um resultado perceptível em tempo mais curto - tal como é necessário, por exemplo, nas instituições - mas é lícito insistir que ele próprio não se ache em dúvida quanto ao que está fazendo e saiba que o seu método não é o da verdadeira psicanálise (FREUD, 1913/1969, p.157).

Aqui, é possível, então, pensarmos que Freud abria a possibilidade de coexistir com a verdadeira psicanálise, outra forma que combinasse análise com influência sugestiva para resultados mais rápidos? Seria o que hoje conhecemos como psicoterapias psicanalíticas?

Segundo Wallerstein (2005), o surgimento da psicoterapia psicanalítica foi um fenômeno tipicamente americano, resultado da tentativa de aliar a psicanálise à psiquiatria. Citando Knight (1945, p.777), o autor destaca que, até o advento da psicanálise, a psiquiatria carecia de uma psicologia, e que, a partir daí, tem-se a formulação, dentro do marco referencial psicanalítico, do que hoje conhecemos como psicoterapia psicanalítica. Evidentemente, a concepção americana da psicanálise trouxe a urgência de se colocar em prática, de forma sistematizada, questões que antes eram apenas ideias mais vagas, como, por exemplo, maior rapidez no tratamento.

Autores não americanos são também importantes para se entender as transições que levaram a psicanálise a outros patamares que não os elaborados por Freud. Mondrzak (2005) dá ênfase aos ingleses Melanie Klein e Wilfred Bion, a primeira com suas contribuições para o trabalho com crianças e psicóticos, e o segundo, também com pacientes difíceis e seu destaque aos requisitos essenciais ao estado mental do analista para promover o processo. Podemos, a partir daí, inferir que uma importância maior foi sendo dada à figura do analista como mobilizador, e não apenas à dinâmica do paciente.

Mondrzak especifica que, em psicoterapia psicanalítica, faz parte do método a delimitação de áreas preferenciais (focos). Tal delimitação já mostra uma diferença radical da psicanálise clássica, na qual a associação livre e a atenção flutuante organizam o trabalho analítico. Já Eizirik e Hauck (2008) se perguntam como distinguir, na prática, uma coisa da outra.

( ...) e considerando-se a existência da psicoterapia psicanalítica como uma modalidade de tratamento que tem suas próprias indicações e objetivos, o que a define? Uma posição mais atual considera que haja uma clara diferença entre a análise e a psicoterapia psicanalítica, mas há, na prática, superposições das características de uma e de outra em um contínuo em que em um pólo está a psicanálise, e, em outro, está a psicoterapia psicanalítica, com áreas em que tal diferenciação nem sempre é facilmente realizável (p.159).

No que tange à questão dessa demarcação das diferenças, provavelmente nada é mais importante do que o manejo da transferência. Não era à toa que a transferência aparecia, com frequência, como dúvida entre os estagiários. O próprio Freud (1913/1969), em sua obra Sobre o início do tratamento, já alertava a respeito do manejo da transferência e das resistências que mereciam maior atenção dos novos analistas:

Com bastante freqüência, a transferência é capaz de remover os sintomas da doença por si mesma, mas só por pouco tempo - apenas enquanto ela própria perdura. Nesse caso, o tratamento é por sugestão, e não, de modo algum, a psicanálise. Só merece o último nome se a intensidade da transferência for utilizada para a superação das resistências (p.186).

Eizirik, Libermann e Costa (2005) escrevem, sobre a diferença entre POA e psicanálise pelo manejo transferencial:

A psicanálise se caracteriza por estimular o aparecimento de reações transferenciais, visto que a analise sistemática da transferência é o ponto central da técnica psicanalítica. (A estruturação do setting, o uso do divã, a freqüência de quatro a cinco sessões por semana, a associação livre, a neutralidade do analista, a duração prolongada, etc.) promove a regressão do paciente e a repetição de elementos contidos nas suas relações de objeto primitivas (p. 77).

Seguindo os autores, apontamos sempre que, em psicanálise, os conflitos precisam ser trabalhados no terreno da transferência, e que essa concentração de conflitos na situação analítica, chamada por Freud de neurose de transferência, não se configurava em POA. Nesta, a abordagem da transferência é limitada, pois essa não seria objetivo da POA.

A posição do paciente e do terapeuta (sentados frente a frente), a freqüência das sessões (uma a duas por semana), e o tempo menor de tratamento são fatores que realçam a realidade da relação, limitando a ocorrência de fenômenos regressivos como aqueles vistos em análise (EIZIRIK; LIBERMANN; COSTA, 2005, p. 77).

Mezan (1998) é pontual quando se posiciona a respeito da relação entre psicanálise e psicoterapia psicanalítica:

(...) A psicoterapia não é mera forma inferior e degradada da psicanálise, mas sim, uma modalidade clínica que requer um analista experimentado e capaz de trabalhar em condições mais difíceis do que a que está habituado. Ele pensará analiticamente, mas a forma de contato com o paciente será outra, até porque o próprio processo se desenrola de forma diferente do que na análise clássica (p.326).

A observação de que na vivência do atendimento não é tão fácil apreender as diferenças foi um dos pontos frequentes do trabalho de Estágio. Os estagiários colocavam questionamentos que apontavam essa direção, não apenas sobre o que seria diferente se fosse psicanálise, mas também sobre como perceber o que se caracterizava como transferência, qual o momento de se interpretar, como manejar o silêncio e como estabelecer o foco.

Em relação ao manejo técnico, consideramos importante o estudo frequente, com leituras e discussões de textos, e era comum compartilhar a vivência do supervisor ao longo dos anos de prática clínica, assim como, desde o começo, foi enfatizada a importância de os estagiários estarem em processo de análise para que completássemos aquilo que Freud colocou em sua obra sobre o tripé necessário para a formação do analista: os estudos, os atendimentos e a análise pessoal.

Aqui, um aspecto que consideramos importante e merecedor de discussão diz respeito ao fato de o acadêmico de Psicologia, principalmente se segue a psicoterapia, dever ser ou não obrigado institucionalmente, como o fazem as sociedades freudianas, a passar pela psicanálise, ou se isso caberia exclusivamente ao Conselho Federal de Psicologia. Consideramos o tema relevante, pois são comuns relatos de que novos psicólogos abrem consultórios sem ter passado por análise pessoal. Como a psicanálise, como método psicoterapêutico, pode ser inserida no ensino superior, se não há a exigência de o aluno se submeter à análise pessoal, tal como Freud postula em sua obra?

Voltando às diferenciações, Cordiolli e Gomes (2008) afirmam que muito dessa demarcação passa também pela compreensão do que seriam indicações e contraindicações entre POA e psicanálise. Para os autores, a psicanálise está indicada para pessoas com problemas de caráter e transtornos de personalidade, está contraindicada para crises agudas, psicose, transtornos de ansiedade, transtornos graves de personalidade, transtornos de humor e dependência química. Quanto à POA, colocam as indicações de transtorno de personalidade independentes do grau e dos traços desadaptativos, e as contraindicações praticamente semelhantes às da psicanálise.

Na atuação do Estágio, foram seguidas basicamente essas orientações, entretanto, foi também uma característica importante compartilhar com os alunos o fato de que outros autores pensam de forma diferente, e que a psicanálise e a psicoterapia psicanalítica, a partir de Lacan ou Winnicott, por exemplo, buscaram tratar também os psicóticos e outros pacientes difíceis. Assim, apesar de seguir bem as orientações, não chegamos a recuar totalmente em situações que fugiam do terreno da neurose.

Nesse sentido, novidade foi podermos pensar sobre a aparente linha tênue entre a psicoterapia analítica e a psicanálise clássica, pois, se se tornaram claras para nós as delimitações que marcam as diferenças, não podemos questionar que há muito em comum entre elas, o suficiente para reivindicarmos chamar a POA de uma psicanálise?

Se retomarmos Mezan, entendemos que, em seu texto, citando Freud, há também essa possibilidade quando ressalta o que o pai da psicanálise entende ser necessário para se usar a designação psicanálise: "(...) Freud caracterizou o método clínico da psicanálise por quatro elementos: o inconsciente, a interpretação, a transferência e a resistência. Esses quatro elementos são essenciais para que um trabalho clínico possa ser chamado de psicanálise" (p.317). Ora, a POA trabalha com esses mesmos elementos. Não seria então também uma psicanálise? Esta só pode ser classificada de forma clássica e não pode também se dar fora do setting habitual? (Aqui não pensamos apenas sobre as mudanças no setting do consultório, mas também sobre as intervenções feitas fora dele, talvez na busca de uma psicanálise peripatética, que permite o passeio e que pode ocorrer em qualquer lugar, uma psicanálise para além da atuação clínica.) Se não, o que, afinal, faz o psicanalista no hospital? No presídio? Ou junto aos psicóticos? Fica a reflexão.

 

SER PSICOTERAPEUTA; O ESTÁGIO COMO FATOR DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE

A construção de uma identidade como psicoterapeuta, para cada um dos estagiários, ou o início dessa construção, uma vez que devemos considerá-la como um processo que se estende para além da graduação, também constituiu meta de trabalho. Nossa preocupação se voltou para facilitar o desenvolvimento dos estilos próprios de cada estagiário, dentro dos alicerces da teoria psicanalítica, porém longe de quaisquer formas de ortodoxias. Nesse sentido, escreve Szasz (1983):

É claro que tanto o analista quanto o analisando devem ser deixados em liberdade para se conduzirem como acharem melhor, desde que se mantenham nos limites das regras do jogo da análise. O analista competente desenvolverá, dessa forma, seu estilo próprio de analisar; esse estilo tem probabilidade de variar um pouco de paciente para paciente e pode também se modificar à medida que o analista se torna mais velho e é submetido a experiências diversas (p. 230).

Sobre a formação de uma identidade na clínica, escrevem Zaslavsky e Brito (2005):

Como mencionamos, uma das funções básicas do ensino da psicoterapia de orientação analítica é proporcionar condições para a formação de uma identidade de psicoterapeuta. Essa identidade começa a formar-se por meio da experiência emocional que o psicoterapeuta tem ao entrar em contato com seus conflitos inconscientes, entendê-los, elaborá-los com o objetivo de promover mudança psíquica e nos padrões de relação de objeto que seu tratamento pessoal pode proporcionar (p. 484).

Não podemos deixar, com essa afirmação, de correlacionar a qualidade do trabalho do psicoterapeuta com sua análise pessoal. Mesmo não sendo obrigatória, a análise de cada um foi, constantemente, uma orientação dada, pois as entendemos, atendimento e análise pessoal, como experiências que não podem ser dissociadas.

Calligaris (2004), escrevendo sobre a vocação para ser psicoterapeuta, enfatiza que o psicoterapeuta não deve esperar reconhecimento ou agradecimento de seus pacientes, e que devemos escolher outra profissão, se isso for importante para nós, por duas razões:

Primeiro, na vida social, o psicoterapeuta não encontra nada parecido com a espécie de gratidão que em geral é reservada ao médico (como um agradecimento preventivo caso acabemos em suas mãos). (O psicoterapeuta encontra uma atitude nem sempre escondida por trás da polidez dos costumes) que é uma mistura de temor com escárnio (...)

Segundo, o psicoterapeuta não deve esperar a gratidão de seus pacientes. Nada de presentes no Natal ou nas outras festas. Nas curas que proporciona, o psicoterapeuta é, por assim dizer, ele mesmo o remédio. E, nos melhores dos casos, quando tudo dá certo, ele acaba exatamente como um remédio que a gente usou e que fez seu efeito: uma caixinha aberta com as poucas pílulas que sobraram, no fundo do armário do banheiro (p.5-6).

Para o autor, nenhuma psicoterapia deve almejar a dependência do paciente, e, se a terapia faz seu efeito, o paciente para de idealizar o psicoterapeuta. Essa compreensão de que a psicoterapia psicanalítica deve visar à autonomia do paciente foi, a nosso ver, ficando cada vez mais viável para os estagiários à medida que os trabalhos prosseguiam. Já a questão de não se esperar nada do paciente, o que nos remetia inevitavelmente a conteúdos contra-transferenciais, foi o aspecto mais difícil de se lidar. Era comum, em supervisão, o relato dos estagiários sobre seu incômodo quanto a pacientes que desistiam do tratamento ou que faltavam às sessões. Em vários momentos, falávamos mais desses sentimentos do que do manejo dos conteúdos do paciente.

As ansiedades percebidas eram cuidadosamente pontuadas, pois enfatizávamos que a supervisão, por mais que trabalhasse a contratransferência, não constituía uma análise de grupo, e que determinadas manifestações precisavam ser levadas para sua análise pessoal. Aqui podemos ressaltar que tais ansiedades não são patrimônio da fase em que se encontram. Nossa experiência já percebeu que manifestações assim acontecem também com alguns profissionais que têm maior vivência no trabalho psicoterápico.

Outro ponto importante: as fantasias referentes a como devemos nos comportar em sociedade, uma vez que decidimos ser psicoterapeutas. Um discurso quase frequente parece querer impor determinados estereótipos para a imagem do futuro psicoterapeuta, mostrando que idealizações e representações sobre a forma de se comportar como psicólogo estão presentes entre os estagiários, assim como uma preocupação sobre que imagem o paciente deve ter em relação ao psicoterapeuta. Calligaris (2004) é preciso quanto a isso:

Você não deve se vestir, conter seus gestos, modular sua aparência ou inibir sua vida pública de forma a compor a vinheta de uma normalidade desejável. Deveria, ao contrário, comportar-se pública e privadamente como seu desejo manda (p.150).

Leituras radicais de como Freud considerou a psicanálise no final do século XIX tinham a pretensão de delimitar o que deve ser considerado verdadeiro e o que não deve ser considerado. De modo geral, a mentalidade dos estagiários era aberta o suficiente para que pudéssemos avaliar as vicissitudes sofridas pela doutrina freudiana ao longo do século XX e as variações provenientes da psicoterapia.

Nosso grupo, desde o começo, se familiarizou com os debates que caracterizavam as guerras entre os freudianos clássicos e os neofreudianos, a Psicologia do ego e os lacanianos, Klein versus Anna Freud, etc. Enfim, tivemos sempre a preocupação de poder considerar todos os lados da história psicanalítica, e não nos limitamos a defender nenhuma bandeira específica, por mais que houvesse maiores afinidades entre uns e outros. Sempre acreditamos que a ortodoxia seja prejudicial para a identidade do psicoterapeuta, e deixávamos isso claro durante a supervisão. Nesse sentido, citamos Rezende e Gerber (2001):

De um analista que só aprendeu um certo tipo de pensamento e de lógica: 'eu sou kleiniano, eu sou lacaniano, eu sou kohutiano'..., isso querendo dizer que, fora daquele estilo, ele não sabe pensar nem dialogar. Também isso é resistência, às vezes consciente e muitas vezes inconsciente (p. 228).

Sobre a resistência do analista, Lacan (1985) foi enfático ao sustentar que:

Existe apenas uma resistência, é a resistência do analista. O analista resiste quando não entende com o que ele tem de lidar. Não entende com o que ele tem de lidar quando crê que interpretar é mostrar ao sujeito que o que ele quer é tal objeto sexual. Engana-se. O que ele imagina aqui com sendo objetivo é apenas pura e simples abstração. Ele é que está em estado de inércia e de resistência (p. 287).

Enfim, o estágio possibilitou que cada um começasse a construir o seu estilo, e a supervisão teve que facilitar tal processo e compartilhar experiências da clínica que já trilhavam um caminho longe dos engessamentos típicos de algumas leituras psicanalíticas ainda comuns na graduação.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS.

O Estágio em Psicoterapia de Orientação Analítica realizado pelo Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Rondônia mostrou-se uma vivência de grande importância em termos profissionais e pessoais. Em um ano em que se discutiu muito a psicoterapia como prática na profissão do psicólogo, a partir dos debates promovidos pelo Conselho Federal de Psicologia, acreditamos ter sido possível construir um momento no qual o processo de formação do psicólogo chegou perto de seu ápice, mesmo com todas as lacunas da plural e complexa Psicologia.

Evidentemente, não nos organizamos pautados por dogmas ou ecletismos fúteis. Nosso intuito foi sempre o de possibilitar reflexões e vivências que foram o início de uma identidade profissional pautada no comprometimento e na ética. Ao supervisor, o mesmo deve ser aplicado, com o adendo do fortalecimento de uma identidade já construída, porém sempre passível de reformulações.

Enfim, com a psicanálise que acreditamos, estaremos sempre na posição de questionar. Realizar uma supervisão que não se paute na autonomia será algo diferente de um simples exercício de poder?

 

REFERÊNCIAS

CALLIGARIS, C. Cartas a um jovem terapeuta; reflexões para psicoterapeutas, aspirantes e curiosas. São Paulo: Alegro, 2004.         [ Links ]

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Recebido em: 16 de dezembro de 2009.
Aceito em 16 de maio de 2010

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