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Psicologia Ensino & Formação

versão impressa ISSN 2177-2061

Psicol. Ensino & Form. vol.1 no.2 Brasília  2010

 

RELATOS DE PESQUISA

 

Psicologia no ensino médio: sobre os desafios de ser professor

 

Psychology in high school: challenges of being teacher

 

 

Janaina KlinkoI; Marie Claire SekkelII

I Universidade de São Paulo. Graduanda em psicologia - USP janaina.klinko@gmail.com
II Universidade de São Paulo. Doutora em psicologia escolar e desenvolvimento humano-USP claire@sekkel.com

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo aprofundar o conhecimento sobre a disciplina Psicologia na rede pública de ensino do Estado de São Paulo, em relação aos conteúdos ministrados, bem como às dificuldades e aos sentidos que lhe são atribuídos por seus professores. Realizamos duas entrevistas semiestruturadas com professoras que ministraram Psicologia no ensino médio regular em escolas públicas do Estado de São Paulo no ano 2007. A partir do material produzido, discutimos questões recorrentes ou dissonantes no discurso das entrevistadas, organizando-as em duas categorias de análise, a fim de refletir sobre as implicações de ser professor de Psicologia, passando por temas como a (in)definição desse lugar e algumas das potências e sofrimentos encontrados nos fazeres desse profissional.

Palavras-chave: Psicologia. Ensino médio. Formação. Currículo.


ABSTRACT

This article aims to deepen our understanding about the teaching of the psychology discipline in the public schools of São Paulo: contents offered, as well as difficulties and meanings attributed by their teachers. We conducted two semi-structured interviews with teachers who taught regular psychology in high school in the public schools of São Paulo in 2007. From the produced material, we discuss recurring or dissonant issues in the speech of the interviewees, arranging them into two categories of analysis in order to consider the implications of being a psychology teacher, through topics such as the (un)definition of this role, so as some of the powers and sufferings found in the activity of this professional.

Keywords: Psychology. High School. Training. Curriculum.


 

 

INTRODUÇÃO

O presente artigo resulta de uma reflexão feita a partir da pesquisa de Iniciação Científica Psicologia no Ensino Médio: Limites e Possibilidades1, realizada durante os anos 2007 e 2008 no Instituto de Psicologia da USP. Tivemos como objetivo inicial realizar um estudo que contextualizasse a história da licenciatura em Psicologia no Brasil assim como conhecer a atual demanda e o campo de atuação do professor de Psicologia no ensino médio regular público e privado na cidade de São Paulo.

Logo de início, encontramos grande dificuldade no que se refere à pesquisa bibliográfica. O material produzido na área era escasso e pouco acessível, dificultando a difusão do tema no campo da produção científica. Optamos, então, por investir esforços no levantamento de dados estatísticos e numéricos que pudessem nos oferecer informações sobre a atuação do professor de Psicologia no ensino médio regular. Recorremos à Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, ao Conselho Regional de Psicologia (CRP-SP) e ao Sindicato dos Psicólogos no Estado de São Paulo (SINPSI-SP), além de consultar fontes de informação na internet; no entanto, verificamos que os dados que procurávamos não estavam disponíveis nos órgãos acima mencionados.

Dessa forma, fizemos uma reformulação do projeto de pesquisa, que passou a ter como objetivo reunir elementos para melhor conhecer e refletir sobre a disciplina Psicologia ministrada aos alunos do ensino médio, tornando-se esta uma pesquisa de abordagem qualitativa, uma vez que sugeria um olhar mais atento e próximo da prática do licenciado em Psicologia. Como forma de atingir esse objetivo, seriam realizadas entrevistas com professores de Psicologia do ensino médio e também com grupos de alunos da mesma escola. Posteriormente, pretendíamos aplicar um questionário a todos os alunos da referida disciplina, para conhecer os sentidos atribuídos pelos próprios estudantes aos conteúdos ministrados.

No entanto, em 21 de dezembro de 2007, foi publicada, no Diário Oficial do Estado de São Paulo, a Resolução SE/92, que, ao estabelecer "diretrizes para a organização curricular do Ensino Fundamental e Médio nas escolas estaduais", retirava a disciplina Psicologia (assim como Sociologia) do ensino médio. Nota-se, no Estado de São Paulo, a decisão de fortalecer o ensino médio técnico. O fracasso do sistema de progressão continuada, mediante o qual muitos alunos chegam sem dominar os conteúdos mínimos previstos ao final de cada ciclo, serve também de justificativa para o aumento de carga horária desses mesmos conteúdos.

A partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN - de 1996, podemos observar um aumento da atenção voltada para a qualidade do ensino básico no País, visando a ampliar a formação crítica dos estudantes. Nesse documento, consta que "a educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores" (BRASIL, 1996, art. 22°). Nesse sentido, podemos considerar que estamos diante da difícil e complexa tarefa de ressignificação da educação e da retomada de seu valor.

Em meio a essa discussão, os posicionamentos quanto ao oferecimento da disciplina Psicologia no ensino médio são muito diversos: enquanto a matéria é excluída do currículo no Estado de São Paulo, alguns grupos se organizam e lutam para a inserção da mesma na LDB, e correm discussões a respeito dos conteúdos que deveriam ser abordados e também sobre os cursos de formação de professores. Em meados de 2008, a Associação Brasileira do Ensino de Psicologia (ABEP), em parceria com a Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE), com o Conselho Federal de Psicologia (CFP) e também com o Fórum de Entidades Nacionais de Psicólogos Brasileiros (FENPB), lançou a campanha Oito razões para aprender Psicologia no ensino médio2, em defesa da reinserção da disciplina no ensino médio brasileiro. A fim de possibilitar uma reflexão a respeito dessas questões, faz-se necessária uma contextualização histórica.

Por volta de 1983, acompanhando a abertura política brasileira após quase 20 anos de ditadura militar, a Psicologia passa a poder integrar a parte diversificada do currículo do ensino médio regular. De acordo com Souza (2007),

As disciplinas representadas pela Filosofia, Psicologia e Sociologia ocupavam um lugar político de destaque na formação dos jovens, até então feita pela disciplina denominada "OSPB - Organização Social e Política Brasileira", braço ideológico da ditadura militar no campo educacional, em muitas escolas ministradas por militares ou simpatizantes do regime que defendia, dentre outros temas, a chamada Doutrina de Segurança Nacional (p.263).

A inclusão de disciplinas como Psicologia, Sociologia e Filosofia teve em vista a formação de cidadãos críticos e envolvidos com a realidade social e política. Nesse sentido, a formação não é entendida apenas como técnica - visando a melhor desempenho em um mercado de trabalho competitivo, ou ainda nos vestibulares universitários - mas também como uma construção para que o sujeito habite e opere mudanças na sociedade.

Em 1992, é publicada a Proposta Curricular de Psicologia para o Ensino de Segundo Grau (SÃO PAULO, 1992), documento que apresenta um curso de Psicologia preocupado em situar o homem historicamente, de forma a promover condições para a compreensão do contexto social de forma mais ampla e de seus efeitos na constituição do sujeito.

Posteriormente, a partir da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, a disciplina Psicologia passa a ser oferecida, em caráter não obrigatório, em um número cada vez mais reduzido de escolas. E, por meio da publicação, em 21 de dezembro de 2007, da Resolução SE - 92 no Diário Oficial do Estado de São Paulo, Psicologia e Sociologia são retiradas da possibilidade de compor a matriz curricular estadual, permanecendo apenas a disciplina Filosofia. Faltam-nos dados sobre os rumos dessa disciplina nos outros Estados brasileiros.

Tendo em vista o momento histórico no qual a referida pesquisa se desenvolveu, tivemos como objetivo principal aprofundar o conhecimento sobre a disciplina Psicologia na rede pública de ensino do Estado de São Paulo: os conteúdos ministrados, bem como as dificuldades e os sentidos encontrados por seus professores. Partimos do pressuposto que, compreendendo o lugar que tal disciplina ocupa, seu valor, seus objetivos e dificuldades, poderemos contribuir para a reflexão sobre sua relevância na atualidade.

 

MÉTODO

A partir da redefinição dos objetivos, o estudo se estruturou como a busca dos elementos subjetivos dos professores, constituídos a partir das vivências com a disciplina Psicologia no ensino médio. Entendemos aqui a subjetividade como produto da relação entre e indivíduo e ambiente, ou seja, constituída a partir das características específicas do sujeito, das relações intersubjetivas e dos ambientes sociais nos quais estas se estabelecem. Os sentidos atribuídos pelos professores à sua prática e as dificuldades por eles percebidas sofrem determinações de todos esses âmbitos, e dar voz aos professores é o meio possível de ter acesso a esses conteúdos.

Por estarmos diante de um objeto complexo e multideterminado, optamos pela utilização da epistemologia qualitativa, que, segundo González Rey (2005), "defende o caráter construtivo interpretativo do conhecimento, o que de fato implica compreender o conhecimento como produção, e não como uma apropriação linear de uma realidade que se nos apresenta" (p. 5). Dessa forma, os conteúdos trazidos pelos professores devem ser considerados frente às determinações que os afetam.

Para acessarmos os conteúdos subjetivos, é necessária a criação de oportunidades de narrativa, portanto, escolhemos como procedimento a entrevista semiestruturada. Dessa forma, as professoras puderam falar de sua experiência e também dos sentidos atribuídos às suas práticas profissionais.

Foram realizadas duas entrevistas semiestruturadas com professoras que ministraram Psicologia no ensino médio regular em escolas públicas do Estado de São Paulo no ano 2007. Segundo Ludke e André (1986), a entrevista semiestruturada seria a mais adequada metodologia para a investigação escolar, pois esse instrumento dá lugar à interação entre entrevistado e entrevistador, a partir de um roteiro previamente elaborado, mas que, por ser flexível, permite a adequação ao ritmo, à organização e aos conteúdos priorizados pelo entrevistado.

É importante ressaltar que tivemos dificuldade em encontrar participantes para a pesquisa, devido à pouca disponibilidade destes ou à falta de profissionais que atuassem nessa área. Conseguimos estabelecer contato com duas professoras por meio de mensagens de correio eletrônico, a partir de endereços adquiridos em um e-group sobre Psicologia no ensino médio.

A primeira entrevista foi realizada com Paula, em um espaço público, em horário de pouco movimento, e teve a duração de 35 minutos. Essa participante atuou como professora de Psicologia no ensino médio durante os três anos que antecederam a pesquisa. Já a segunda entrevista se deu no local de trabalho de Márcia, a segunda participante, em uma sala isolada, e durou aproximadamente 50 minutos. Márcia atuava como professora de Psicologia no ensino médio há vinte anos.

A fim de estabelecer parâmetros éticos, foi apresentado um termo de consentimento livre e esclarecido às participantes, que explicitava os objetivos da pesquisa e a forma de utilização de seus resultados. Após a realização, as entrevistas foram transcritas e apresentadas às professoras, que aprovaram as mesmas. As participantes também tiveram seus nomes alterados por uma questão de sigilo.

A partir do material produzido, foram discutidos as questões e os temas recorrentes ou dissonantes no discurso das entrevistadas, que foram organizados em categorias, procedendo-se à análise dos mesmos.

 

RESULTADOS: ANÁLISE DAS ENTREVISTAS

No presente artigo, organizamos a análise em duas categorias: a primeira discute a indiferenciação entre os papéis de psicólogo clínico, psicólogo escolar e professor de Psicologia, enquanto a segunda se refere às principais dificuldades e facilidades encontradas pelas profissionais entrevistadas.

1. DELIMITAÇÕES ENTRE OS PAPÉIS DO PSICÓLOGO CLÍNICO, DO PSICÓLOGO ESCOLAR E DO PROFESSOR DE PSICOLOGIA

No decorrer das entrevistas, aparece com frequência uma indefinição entre os papéis assumidos pelo psicólogo em diferentes contextos de trabalho. Seguiremos a presente análise a partir de fragmentos que contam cenas e posicionamentos referentes à prática do professor de Psicologia, problematizando, assim, as implicações decorrentes dessa atuação.

Paula fala sobre fazer orientação vocacional durante as aulas, e comenta que, apesar de alguns colegas professores não aprovarem um trabalho nesse sentido, ela o considera válido, uma vez que reduz a angústia dos alunos:

Muita gente fala 'Ah, não tem que trabalhar orientação vocacional, porque você não é psicólogo na escola...', mas eles estão angustiados, eles querem saber que profissão seguir ou não seguir, então, se possível, ou tentar envolver outros professores para fazer isso, ou você mesmo fazer um pouco...

A partir desse trecho, podemos pensar também na questão da disciplina Psicologia como algo que supre uma necessidade não contemplada pela escola. Se os outros professores não fazem, a Psicologia entra como uma espécie de tapa-buraco - resolvendo um problema, diminuindo uma angústia, etc.

Corroborando essa ideia, Paula, ao descrever algumas práticas do seu cotidiano como professora do Ensino de Jovens e Adultos (EJA) além do ensino médio regular, conta:

E nós discutíamos várias coisas, dificuldades com professores que eles traziam, nós acabávamos abordando; questão de família, de mercado de trabalho, de continuar estudando, porque 'Poxa, será que eu vou conseguir? (...) Já tenho 50 anos..., 45...', 'será que eu vou ter pique?', e a gente motivando: 'não, você consegue, você já chegou até aqui', resgatando e valorizando aquilo que foi readquirido com essa experiência de estudo.

A professora configura, dessa forma, o espaço de aula como um lugar no qual questões e dificuldades pessoais eram trabalhadas, assim como as práticas escolares e seus efeitos na vida desses alunos, evidenciando uma confusão a respeito do papel do professor de Psicologia. Além disso, notamos forte presença de uma psicologia de senso comum.

Márcia traz um novo argumento para a discussão quando diz: "O cotidiano do professor de Psicologia dá a possibilidade desse aluno ter uma confiança e compreender. Por que o professor de biologia pode discutir? Pode, mas nós teríamos que ter uma formação menos preconceituosa." A entrevistada parece elencar, como especificidade do ensino de Psicologia, uma prática diferenciada - uma atitude menos preconceituosa por parte de seus profissionais. Tal concepção deve ser questionada, na medida em que os profissionais da área não estão isentos das mazelas sobre as quais desenvolvem seu trabalho.

É importante, também, refletirmos sobre uma comparação muito aproximada que Paula faz de uma situação de aula com a cena de um consultório psicológico:

(...) Porque você poder estar numa sala de aula, com 40 alunos, 30 que seja, 50... E você consegue passar alguma coisa que, no consultório, por exemplo, só pra uma pessoa, não consegue. Entendeu? Eu acho que a Psicologia, mesmo passando conteúdos assim, atinge muito mais gente do que só dentro do consultório, com uma pessoa. (...) Porque abarca muito mais, mais gente tem contato, que de repente, no futuro, as pessoas possam até procurar um psicólogo...

Notamos que a professora equipara a profissão de psicólogo clínico à de professor de Psicologia, deixando de lado as especificidades de cada atuação. Fica confuso, a partir da fala de Paula, se a função do psicólogo que trabalha no consultório seria transmitir conteúdos a seus pacientes, ou então, se o professor deveria apresentar a Psicologia clínica a um público maior, a fim de promover esse exercício específico. A indefinição de papéis é evidente, e permeia as práticas em sala de aula.

Sabemos que as interfaces entre a Psicologia e a educação sofreram grandes impactos com os trabalhos produzidos a partir da década de 80, que tinham como base um referencial crítico, em contraposição à Psicologia clássica, científica e adaptacionista. Dentre esses estudos, enfatizamos A Produção do Fracasso Escolar (PATTO, 1990), que problematiza as explicações do fracasso escolar em diferentes épocas e por diversas correntes da Psicologia. No entanto, para a autora, a reflexão crítica sobre as práticas escolares é um meio de romper um modelo diagnóstico-clínico que se sustentava principalmente na culpabilização de alunos, famílias, ou mesmo do professor. Trata-se de considerar a educação em um processo histórico, enfatizando a produção das práticas escolares em sua relação com a dinâmica da sociedade.

Quando discutem a atuação do psicólogo escolar, tendo como base o pensamento crítico, Meira e Tanamachi defendem (2003):

O objeto do psicólogo em uma instituição de ensino é o encontro entre os sujeitos e a educação, e a finalidade central de seu trabalho deve ser a de contribuir para a construção de um processo educacional que seja capaz de socializar o conhecimento historicamente acumulado e de contribuir para a formação ética e política dos sujeitos (p. 42).

Notamos que as diferenças entre o psicólogo escolar e o professor de Psicologia residem justamente no fato de a intervenção do psicólogo escolar ser feita no sentido de propiciar condições para o funcionamento da instituição, a fim de que o processo educacional aconteça. Acreditamos que o professor, por sua vez, seja responsável pela apresentação e socialização dos conhecimentos da Psicologia como ciência.

Ao definir as especificidades do ensino de Psicologia, Souza (2007) afirma que esse

É um espaço eminentemente de formação, de socialização do conhecimento acumulado no campo da Psicologia, de reflexão sobre a constituição da subjetividade humana. Ao adentrarmos o campo do ensino da Psicologia, estamos possibilitando estudar a complexidade da formação do ser humano, do que nos permite construir a cultura, os valores, os sentimentos, os sentidos e os significados, que nos permitem interpretar o mundo que está a nossa volta, desnaturalizando o estabelecido, mostrando sua dimensão histórico-social, analisando as relações de poder, de constituição das instituições, incluindo a escola, as relações sociais que nela se estabelecem (p. 262).

A constituição múltipla do conhecimento psicológico, como teoria e prática, pode se tornar ocasião de equívocos quando as atuações possíveis do psicólogo em uma instituição de ensino se confundem e perdem suas especificidades. Dessa forma, entendemos como desafio delimitar o exercício do professor de Psicologia, pois este aparece pela força do senso comum, antes de tudo, como um psicólogo, alvo das expectativas e mitos nele depositados pela nossa sociedade.

Aparece também, no relato de Paula, a utilização da Psicologia como ferramenta de trabalho em cargos administrativos nas escolas: "E se você, de repente, consegue entrar como coordenador, você pode usar seu conhecimento também da Psicologia para auxiliar na dinâmica daquela escola para melhorar", emprestando à ciência em questão um caráter de habilidade ou atributo para os profissionais da área da educação.

Márcia destaca como características fundamentais para um professor de Psicologia um caráter especializado e um bom conhecimento da teoria, "porque ele tem que pegar a teoria e utilizá-la de uma forma coloquial." Destaca ainda, de forma sucinta, a importância do respeito mútuo entre alunos e professores: "Porque você respeita, confia, acha que dá conta, eles apostam." Nesse relato, parece estar claro que a função do professor é a de socializar um conhecimento específico e, com isso, contribuir para a formação do aluno, na medida em que vão ao encontro de suas expectativas (apostas).

2. DIFICULDADES E POSSIBILIDADES

Quanto às dificuldades referentes ao exercício da profissão, as duas entrevistadas criticam enfaticamente a própria formação, ressaltando que é privilegiado o enfoque na Psicologia clínica e dizendo que pouco se pensa a respeito do ensino de Psicologia.

Márcia diz: "(...) E quando se fala porque a Psicologia no ensino médio não deu certo, não deu certo primeiro porque nós não fomos bem formados (...)". E ainda, em outro momento da entrevista, retoma: "(...) A grande questão é quando eu não tenho uma boa formação, e não me percebo enquanto um sujeito histórico social, eu não posso passar isso para eles [alunos]." A entrevistada Márcia também conta que sua formação foi falha: "(...) Quando eu me formei, eu prestei dois concursos, tanto em um como em outro a faculdade não ajudou em nada", e ainda, que esta se deu principalmente através da prática profissional.

As entrevistadas apontam outra dificuldade a fragmentação da classe de professores de Psicologia. Paula, em determinado momento, diz: "É uma classe muito desunida, os psicólogos, de forma geral, são uma classe muito desunida, como os professores também são, como outras áreas...". Corroborando essa ideia, Márcia comenta: "Os professores esqueceram que eles são trabalhadores, e, como tal, têm que estar unidos, não é uma profissão liberal" e se queixa por não encontrar pares em sua profissão.

Outra questão importante diz respeito à desconstrução de ideias estereotipadas, de senso comum, intensamente associadas à Psicologia. Márcia comenta que, principalmente no começo das aulas, esta constitui tarefa importante e de certa urgência, visto que o período letivo não é muito extenso: "Então, o início é muito ruim, né? Porque, na verdade, a Psicologia é para louco, então a grande questão é como você vai lidar e desconstruir um conceito... Porque você não tem muito tempo...". Essas expectativas, de acordo com Márcia, são construídas de diversas formas: "como a televisão mostra o psicólogo, como o psicólogo se mostra, como eles viram, quer dizer, a identidade desse professor de Psicologia não foi construída ainda."

Márcia traz à tona uma oposição interessante entre a função da disciplina Psicologia e o funcionamento das escolas quando diz: "É uma questão que a gente vai tentando reconstruir, apesar de toda a burocracia da escola pública. Então, a gente vai na contramão...", ou ainda "(...) A escola que eu trabalho, para garantir seu lugar de melhor escola pública de São Paulo, a repressão e o autoritarismo é muito grande, e aí tem o professor de Psicologia, que tenta resgatar justamente o outro lado."

Uma série de outras questões aparece como dificuldades encontradas pelas professoras, entre elas a ausência da disciplina Psicologia na Lei de Diretrizes e Bases: "Enquanto a Psicologia não estiver na LDB, não adianta", comenta Márcia, ou ainda a marginalização da disciplina na grade horária semanal, o que indica certa desvalorização. Paula afirma: "Eu dava aula toda sexta-feira, eram as duas últimas aulas do período. Então, até aí, você percebe o quanto alguns diretores privilegiam, até a questão do horário que eles colocam Psicologia pro aluno."

Ainda no âmbito das dificuldades, Márcia aponta a questão da medicalização:

Eu já consegui uma coisa muito legal; muitos dos alunos vão tomar remédio, principalmente quando é terceiro ano, e eu consegui que muitos largassem os remédios. (...) Então, eu consigo ver quando o aluno é oprimido, e a medicalização passa a ser a grande questão. Hoje, rotular o aluno de hipertenso, ou disléxico, ou expulsá-lo porque ele não corresponde às expectativas, é uma forma de cada vez mais controlá-lo. Eu acho que, se você conseguir mostrar a importância da Psicologia, é super importante.

Temos, a partir do relato da professora, a Psicologia como estratégia de luta contra aquilo que ela própria produziu - a medicamentação, assim como a individualização dos problemas. Nesse sentido, o que aparece como dificuldade revela também uma potencialidade da disciplina Psicologia em questionar e transformar os problemas criados no âmbito da saúde e que são alvo de acirradas críticas na atualidade.

Quanto aos conteúdos abordados em sala de aula, Márcia apresenta uma ideia geral de currículo que desenvolve de acordo com a resposta e o interesse dos alunos. Essa estrutura, nas suas palavras, teria como um dos objetivos principais "poder instrumentalizar esse sujeito [aluno], para lidar com esse mundo." Nesse sentido, a professora revela que prefere trabalhar temas próximos ao cotidiano de seus alunos. As teorias e autores da Psicologia contribuem para a ressignificação desses temas, e possibilitam "pensar nesse sujeito do ensino médio, em cima da realidade em que está inserido." Esse modo de conceber e planejar o trabalho está de acordo com Leite (2007), que defende a ideia de que, ao optar pela organização dos conteúdos em eixos temáticos, o professor cria oportunidade para abordar assuntos que mobilizam as condições de vida dos jovens. Assim, as correntes psicológicas permitiriam uma análise a partir dos temas escolhidos, diferentemente das propostas burocratizadas de transmissão das teorias.

Quando perguntada sobre o planejamento das atividades que propõe, a professora conta que leva em consideração a sua experiência, a formação universitária, os feedbacks dos estagiários dos cursos de licenciatura, além do interesse dos alunos. Márcia ressalta, dessa forma, a importância de uma construção curricular coletiva, na qual a troca de experiências entre profissionais e a confrontação de olhares diferenciados compõem o caminho a ser percorrido durante o ano letivo. A própria participação do aluno também é valorizada, uma vez que seu interesse, ou demanda, é considerado na proposição dos temas estudados. É possível perceber uma abertura à experiência e uma concepção democrática de educação na forma como Márcia concebe seu papel de professora. A abertura à experiência é necessária para a compreensão do outro, do diferente, e é um elemento fundamental para a educação humana. Segundo Adorno (1995), a educação emancipatória deve ser uma educação para a experiência, que insere a necessidade de reflexão sobre as ações e promove, portanto, a autonomia.

Por fim, no discurso de Márcia, surge ainda outra possibilidade, que coloca o engajamento político, por exemplo, a criação de grêmios estudantis nas escolas, como forma de expressão fundamental, porém não relaciona o incentivo a essa prática como parte de sua função como professora de Psicologia:

Outra coisa que eu busco trabalhar, mas aí não é a Psicologia, como eu sempre busco pensar nesse sujeito histórico-social, a questão do grêmio é uma coisa que eu faço questão de toda escola ter, incentivo... porque, na verdade, é assim, quando o aluno se sente respeitado, e quando ele tem lugar de inserção e pode falar, não vai precisar usar a violência, porque ele tem outra forma de expressão.

Corroborando essa concepção de formar um cidadão crítico e politicamente envolvido, Chauí (1980), quando discute a educação, afirma que "aqueles que privilegiam o polo formação/aprendizagem/conscientização tem a esperança de que a educação possa ser um instrumento de conhecimento e de transformação do real, graças a sua compreensão crítica" (p. 34).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste estudo, ficou evidente a dificuldade que os profissionais da área têm quanto à delimitação do papel do professor, o que pode constituir uma barreira no processo de consolidação do ensino de Psicologia na educação básica. Muitas vezes, na fala das entrevistadas, o lugar do professor se confunde com o do psicólogo escolar ou aparece relacionado a práticas clínicas: orientação vocacional e situações de terapia em grupo - nas quais o que parece estar em jogo é a diminuição da angústia dos alunos.

Além disso, os obstáculos iniciais para a execução desta pesquisa mostram uma desarticulação no que se refere ao ensino de Psicologia, e, com isso, a atuação do licenciado em Psicologia se mostra enfraquecida. É difícil precisar, por exemplo, o número de profissionais atuantes, onde estão localizados e como desenvolvem seu trabalho. A falta de articulação dos professores de Psicologia dificulta inclusive a discussão da própria categoria, que, diante da polêmica que se coloca com a retirada da disciplina Psicologia do ensino médio em São Paulo, responde lentamente e encontra dificuldades em posicionar-se.

Tendo em vista a escassez de material produzido na área, pensamos que se faz necessária a realização de outras pesquisas relacionadas ao tema. Uma via de investigação seria o levantamento de dados em outros Estados brasileiros que ofereçam a disciplina Psicologia para o ensino médio. Poderia ser interessante, também, realizar entrevistas com estudantes que já tenham cursado ou estão cursando a disciplina em questão, a fim de recolher impressões e de construir uma reflexão a partir do olhar não só de seus profissionais mas também dos alunos.

Debruçamo-nos sobre a fala de duas professoras do Estado de São Paulo, a fim de entender e delimitar os lugares que a disciplina Psicologia ocupou na formação básica de alunos da rede pública. Nesse percurso, tivemos a pesquisa atravessada pelas dificuldades, tanto políticas quanto metodológicas, do ensino de Psicologia e também por suas potencialidades, trazendo à tona a importância dessa área do conhecimento como possibilidade de enriquecer a formação desse aluno, contribuindo, assim, para a reflexão sobre as condições de existência do homem.

 

NOTAS

1 KLINKO, J.; SILVA, V. V. G. Psicologia do Ensino Médio: Limites e Possibilidades. Orientadora: Profa. Dra. Marie Claire Sekkel. Entidade fomentadora: Pró-Reitoria de Graduação da USP (Programa Ensinar com Pesquisa). Relatório de pesquisa jul/2008.
2 http://www.abepsi.org.br/web/8razoes.aspx

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em: 06 de agosto de 2009.
Aceito em: 27 de abril de 2010

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