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Psicologia Ensino & Formação

versão impressa ISSN 2177-2061

Psicol. Ensino & Form. vol.2 no.1 Brasília  2011

 

RELATOS DE EXPERIÊNCIA

 

Nas vias do vento: a produção de vídeo como estratégia pedagógica na formação profissional de psicólogos

 

In the Ways of the Wind: video production as a pedagogical strategy in the professional training of psychologists

 

 

Nara Maria Forte DiogoI; Denis Barros de CarvalhoII; Juliana Sampaio de AraujoIII; Felipe Sávio Cardoso Teles MonteiroIII; Karla da Silva MachadoIII; Milaynne C. B. do NascimentoIII; Natália de Souza SilvaIII; Neivane Fernandes da SilvaIII; Pamella Oliveira LopesIII

IUniversidade Federal do Piauí. Graduanda em psicologia. naradiogo@hotmail.com
IIUniversidade Federal do Piauí. Doutor em psicologia. denispsi@bol.com.br
IIIGraduandos em psicologia - UFPI

 

 


RESUMO

O trabalho apresenta uma discussão sobre a produção de vídeo como estratégia pedagógica para as disciplinas Psicologia Comunitária e Psicologia Ambiental. O vídeo tinha como tema a história do transporte público em Parnaíba e sua influência na formação de identidades coletivas. Buscou-se retratar a cidade em seu movimento cotidiano e vida, com suas ambiguidades e contradições, presentes no discurso da cooperativa de vans e da população, ao relatar sua história e sua atualidade com relação à problemática do transporte na cidade. O vídeo aparece como uma experiência estética e dá voz aos moradores não apenas como usuários do sistema de transporte mas também como pessoas envolvidas no fazer de sua cidade e que se constroem nesse fazer, incomodadas que estão com a ausência do diálogo sobre questões coletivas.

Palavras-chave: Ensino de Psicologia. Psicologia ambiental. Psicologia comunitária. Produção de vídeo.


ABSTRACT

The paper presents a discussion on video production as a pedagogical strategy for the subjects Community Psychology and Environmental Psychology. The video had the history of public transportation in Parnaíba and its influence on the formation of collective identities as theme. It attempted to portray the city in everyday life and movement, with its ambiguities and contradictions, present in the cooperative of vans and in the dwellers speech to report its history and its present condition in relation to the problem of transport in the city. The video is an aesthetic experience and gives voice to the residents not only as users of the transportation system but as people involved in the problems of their town and who are annoyed with the absence of dialogue on collective issues as well.

Keywords: Teaching of psychology. Enviromental psychology. Community psychology. Video production.


 

 

Cá estou a vos contar uma história que o vento vem a me soprar
De lutas travadas com os tremembés fundada foi uma sesmaria
Da fazenda de gado Testa Branca à Vila São João da Parnaíba
Para a beira do rio Igaraçu a cidade se mudou,
E é aí que a vida se inventa
Beira Rio, Beira Vida, aqui começa uma viagem
Desvelando estradas de uma intrigante identidade.
Bem-Vindos à Via do Vento

(Layane, Natália, Julianna, Milaynne e Kathlenn Bezerra)

 

INTRODUÇÃO

Apresentamos a experiência de produção do vídeo Via do Vento como estratégia pedagógica nas disciplinas Psicologia Comunitária e Psicologia Ambiental. Esse vídeo foi desenvolvido pelos estudantes do curso de Psicologia da Universidade Federal do Piauí, em 2009, com o objetivo de discutir o desenvolvimento urbano de Parnaíba, cidade litorânea do Piauí, à luz da Psicologia Comunitária e da Psicologia Ambiental, tendo como foco a identidade municipal e, como fio condutor, a questão do transporte urbano. O vídeo objetivou, em termos pedagógicos, a articulação entre os conceitos abordados nas disciplinas e a vivência cotidiana dos estudantes, de uma forma reflexiva e vivencial, bem como a produção de material para futuras intervenções relativas ao tema na cidade. Objetivamos descrever a experiência de construção coletiva do vídeo, desde o seu planejamento até a análise e a discussão de seus resultados como produto e processo. O aprendizado é demonstrado no corpo da discussão a respeito da pesquisa feita sobre a cidade, sobre os conceitos para fundamentar a produção e sobre os conteúdos do vídeo.

Assim, o vídeo visa, por meio do resgate da memória do lugar, entremeada à vida dos moradores, a caracterizar a representação que os moradores de Parnaíba fazem a respeito das transformações sofridas pela cidade e movimentar discussões a respeito do seu desenvolvimento por meio do transporte. Buscou-se retratar a cidade em seu movimento e vida cotidianos, com suas ambiguidades e contradições, presentes no discurso da cooperativa de vans e da população, ao relatar sua história e sua atualidade com relação à problemática do transporte na cidade.

Abordamos a seguir a metodologia utilizada na produção do vídeo e posteriormente, como resultados, na dimensão científico-acadêmica, a discussão do conceito de identidade municipal na perspectiva da Psicologia histórico-cultural da mente e sua relação com o transporte como um direito, e, na dimensão pedagógica, a produção de vídeo como estratégia de ensino-aprendizagem.

 

METODOLOGIA

A ideia da produção de um vídeo partiu dos estudantes, tendo a turma demonstrado grande entusiasmo por essa realização. Assim, de acordo com os pressupostos freirianos (FREIRE, 1983), que versam sobre a Universidade como lugar de produção de conhecimento socialmente relevante em diálogo com outros sujeitos da realidade, estudantes e professores assumiram postura ativa e produtora de conhecimento, problematizando a realidade na qual a Universidade se insere e a partir da qual se constrói, sendo o professor um facilitador desse processo.

LOCUS

Parnaíba localiza-se no litoral do Piauí, a 340 km da capital, Teresina. Trata-se da segunda maior cidade do Estado do Piauí em dimensões demográficas. Localiza-se no extremo norte do Estado, e tem aproximadamente 140 mil habitantes. Considerada um pólo turístico em potencial, a cidade está crescendo em virtude da expansão da Universidade Federal do Piauí e também por causa da estruturação do Instituto Federal de Educação Tecnológica - IFET. Portanto, além do fluxo dos trabalhadores, habitantes da cidade, uma expressiva movimentação dos estudantes dessas instituições da própria cidade ou vindos de outra região anuncia várias possibilidades de desenvolvimento para Parnaíba. No entanto, o sistema de transporte público é considerado insatisfatório para a demanda dessa população em crescimento e para uma cidade que está se desenvolvendo.

A legislação do Plano Diretor da Prefeitura Municipal de Parnaíba (2007) assegura um programa de participação comunitária, pois considera fundamental a participação da sociedade para a efetivação dos projetos urbanísticos. É a população local que garantirá o eficaz planejamento da rede de transporte coletivo para que se atendam as demandas. A partir da adesão voluntária dos atores sociais através da criação de fóruns de acompanhamento e de negociação das infraestruturas, poderá se efetivar o princípio básico de legitimação da participação comunitária no processo de planejamento das ações que contribuam para o pleno desenvolvimento dos sujeitos em seus espaços de ocupação da cidade.

PARTICIPANTES

O projeto teve início no primeiro semestre de 2009, contando com 25 estudantes do 5º período de universidade que cursavam a disciplina Psicologia Comunitária. Tinham idade entre 20 e 27 anos, residiam em Parnaíba e também em Municípios próximos. O professor Denis Carvalho, formado pela UFRN, recém-transferido para o campus de Teresina por motivo de saúde, tinha lecionado disciplinas com essa turma desde o início de sua formação. A professora Nara Diogo, cearense de Fortaleza, recém-nomeada para a função, é graduada e Mestre pela Universidade Federal do Ceará, e participou no Núcleo de Psicologia Comunitária. O encontro dessas pessoas naquele momento foi construído com afetividade e seriedade acadêmica.

Quanto à população parnaibana não provinda desse grupo, os critérios para selecionar os entrevistados foram encontrarem-se em locais estratégicos da cidade, sendo definidos esses locais principalmente pela concentração de pessoas que iriam utilizar o transporte, além do desejo de participar. Dentre os entrevistados, consideramos importante incluir representantes da população idosa e dos trabalhadores da cooperativa de vans (chamados aqui de cooperados). A população idosa foi destacada devido aos diversos problemas que enfrenta com relação ao transporte, já que é beneficiária do passe livre, e também porque vem presenciando as transformações pelas quais a cidade tem passado. Os idosos deveriam ser capazes de narrar a história dos transportes na cidade a partir da própria vivência, e os cooperados deveriam estar dispostos a falar sobre o que pensam do transporte em Parnaíba.

De acordo com as referidas orientações, foram entrevistadas catorze pessoas: oito transeuntes que passavam pelos locais de maior movimentação da cidade, dois idosos e quatro cooperados.

PROCEDIMENTOS DE PRODUÇÃO E ANÁLISE DE DADOS

A turma foi inicialmente dividida em 05 equipes, que produziriam textos sobre:

01) A história de Parnaíba;
02) Transportes em Parnaíba;
03) Plano Diretor de Parnaíba;
04) Identidade municipal e sujeito comunitário;
05) Produção de roteiro para vídeo.

Foram realizados seminários, de modo que a turma toda acompanhasse o andamento das produções de cada equipe e pudesse influir na construção, levantando questões a serem respondidas e dando sugestões de aprofundamento. Ao final do semestre, o trabalho foi compilado no formato de um projeto e submetido à avaliação da Cajuína Filmes - produtora juvenil, parte das ações do projeto Aliança Mandu, coordenado pelas instituições CARE Brasil, Universidade Federal do Piauí, Floravida, Embrapa Meio-Norte e com o apoio da Fundação W. K. Kellogg.

O apoio foi conseguido e, no segundo semestre de 2009, iniciaram-se as filmagens. Os mesmos estudantes, então no 6º período, reorganizaram-se de modo a cuidar dos contatos para a realização das entrevistas e da viabilização da filmagem com o auxílio técnico da Cajuína Filmes. O enfoque teórico centrou-se na discussão das questões de espaço, lugar e apropriação (POL, 1996), dentro da disciplina Psicologia Ambiental.

Para coleta dos dados, foi utilizada a entrevista orientada (RICHARDSON, 1985), que acontece com base em alguns pontos que o entrevistador formula de modo simples e direto, para facilitar o processo de levar o sujeito a uma reflexão sobre sua caminhada. Tais pontos não foram seguidos de modo linear. A ordem e o ritmo de abordagem foram definidos no processo, pois tratou-se de uma conversação, não de um inquérito.

A entrevista procurou, por meio de perguntas-chave referentes aos temas e de perguntas auxiliares, utilizadas na medida do necessário, convidar o participante a introduzir-se no tema que se queria abordar, a aprofundar-se um pouco mais sobre o assunto, a esclarecer algum ponto ou a voltar à questão a ser trabalhada.

Dados coletados, passou-se à edição do vídeo, procurando nesse momento enfatizar os aspectos estéticos da vivência cotidiana em Parnaíba bem como o discurso dos moradores e cooperados em relação ao desenvolvimento urbano e à questão dos transportes. É preciso ressaltar a qualidade e a beleza das imagens, o cuidado na escolha da trilha sonora, produzida por uma banda local, bem como a articulação dessa beleza com a dura realidade da temática pautada, que resultaram na experiência estética que o vídeo promove. A análise da experiência evidenciou as dimensões acadêmico-científica, de cidadania e pedagógica. Essas dimensões se constituem a partir de uma análise das falas dos entrevistados bem como dos diálogos entre estudantes e professores a respeito do processo de confecção.

Procuramos cuidar não apenas do produto mas também do processo, estabelecendo um clima propício à participação e à colaboração, fundamentando-nos pedagogicamente em Freire (1992/2006), mais especificamente, em sua ideia a respeito do diálogo:

O diálogo entre professoras ou professores e alunos ou alunas não os torna iguais, mas marca a posição democrática entre eles ou elas, Os professores não são iguais aos alunos por n razões, entre elas, porque a diferença entre eles os faz ser como estão sendo. Se fossem iguais, um se converteria no outro. (...) Diálogo, por isso mesmo, não nivela, não reduz um ao outro. Nem é favor que um faz ao outro. Nem é tática manhosa, envolvente, que um usa para confundir o outro. Implica, ao contrário, um respeito fundamental dos sujeitos nele engajados, que o autoritarismo rompe ou não permite que se constitua. (...) A relação dialógica, porém, não anula, como às vezes se pensa, a possibilidade do ato de ensinar. Pelo contrário, ela funda esse ato, que se completa e se sela no outro, o de aprender, e ambos só se tornam verdadeiramente possíveis quando o pensamento crítico, inquieto, do educador ou da educadora não freia a capacidade de criticamente também pensar ou começar a pensar do educando (p.117-118).

A definição das atribuições e responsabilidades de cada um partiu da iniciativa própria dos estudantes e do envolvimento que estavam dispostos a ter com o projeto em cada uma das etapas. Obviamente, a consideração das singularidades proporciona distância da homogeneização.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Trazer considerações no âmbito da Psicologia comunitária e ambiental, do trânsito como um direito demonstra como a confecção do vídeo foi rica como estratégia pedagógica em termos do aprendizado acerca dos conceitos e da formação profissional, o que dá relevância e estofo à utilização dessa forma de trabalho acadêmico.

DIMENSÃO ACADÊMICO-CIENTÍFICA: IDENTIDADE MUNICIPAL NA PERSPECTIVA DA TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL

A discussão teórica subjacente à produção do vídeo fundamentou-se nos campos de estudo da Psicologia Comunitária e da Psicologia Ambiental, tendo como ponto de encontro o território como lugar significativo e de vinculação afetiva que faz parte da construção dos sujeitos a ele relacionados.

A Psicologia comunitária, de acordo com Góis (2005), problematiza a construção dos sujeitos da comunidade e de agentes externos a partir do modo de vida da comunidade, focalizando a transformação das condições de opressão que marcam as relações sociais latino-americanas. Debruça-se, portanto, sobre questões decorrentes desse modo de vida, segundo Góis (1994),

como uma área da Psicologia social que estuda a atividade do psiquismo decorrente do modo de vida do lugar/comunidade: estuda o sistema de relações e representações, identidade, consciência, identificação e pertinência dos indivíduos ao lugar/comunidade e aos grupos comunitários. Visa ao desenvolvimento da consciência dos moradores como sujeitos históricos e comunitários, através de um esforço interdisciplinar que perpassa a organização e o desenvolvimento dos grupos e da comunidade (p. 43).

Estão claras, portanto, suas vias de encontro com a Psicologia ambiental, uma vez que, para Moser (1998), "a Psicologia ambiental estuda a pessoa em seu contexto, tendo como tema central as inter-relações - e não somente as relações - entre a pessoa e o meio ambiente físico e social" (p.121).

Uma das interseções mais claras entre Psicologia ambiental e Psicologia comunitária é a noção de apropriação, advinda da Psicologia histórico-cultural, que foi iniciada por Vigotski e desenvolvida por Leontiev como um mecanismo básico de desenvolvimento do ser humano na passagem do intersubjetivo ao intrasubjetivo. Daí ela passa, em Psicologia ambiental, a ser estudada como apropriação do espaço. Pol destaca duas vias principais para que a apropriação aconteça: a da ação-transformação e a da identificação simbólica, em que os sujeitos agem sobre o espaço e identificam-se com aquele lugar transformado pela sua ação.

Aqui as contribuições de Bomfim, Pascual e Ponte são relevantes, pois agregam a essas noções as questões apontadas pela Psicologia histórico-cultural que são ressaltadas na Psicologia comunitária. De acordo com esses autores, "a perspectiva histórico-cultural da identidade de lugar entende que, além da produção de sentidos e significados sobre o espaço, o que acontece é o reconhecimento do próprio sujeito nesse processo de significação" (BOMFIM; PASCUAL; PONTE, 2009).

A relação do ser humano com os espaços e lugares passa pela atividade semiótica afetivo-política, como apontou Sawaia (2000, 2006). Observamos que, no vídeo, há uma passagem emblemática dessa questão: uma senhora, ao expressar sua indignação quanto aos transportes em Parnaíba, conclui que "somos nós, pobres, que construímos esse país", e expressa sua força de vida ao afirmar seu movimento, "nem que seja de carroça."

A identidade municipal emerge aqui como fenômeno a ser considerado em ambas as perspectivas. De acordo com Góis (2003), na sociedade atual, percebe-se a influência que a globalização, com ênfase no modelo capitalista, exerce sobre os sujeitos que a constituem. O fenômeno do êxodo rural leva ao distanciamento das raízes históricas e culturais, fazendo com que os sujeitos percam importantes ferramentas na própria constituição e se enfraqueçam para o embate que é a transformação de sua realidade pessoal e coletiva. É a partir da relação com o lugar, com a sua cultura e com a sua história que o ser humano se constitui como sujeito, sendo que tais reflexões são apontadas como tarefas históricas para uma Psicologia da Libertação (MARTÍN-BARÓ, 1998), fundamentando a perspectiva da Psicologia comunitária.

O Município é o lugar no qual os indivíduos crescem, vivem, interagem com os outros, constroem sua história baseada no contexto e nos aspectos presentes ao seu redor. É mais precisamente na comunidade que se encontra o melhor espaço para constituição e reconhecimento da identidade pessoal, social e municipal. De acordo com Góis,

A identidade municipal é um aspecto da identidade social, é o sentimento e a noção que o indivíduo tem de pertencer a certo espaço físico-social (Município) que o faz e que por ele é feito, e de compreender essa relação como de integração e de diferenciação de si mesmo em relação à coletividade municipal, implicando aí o significado histórico, cultural, valorativo e vivencial dessa pertinência. Contém a consciência do modo de vida do lugar e a capacidade de apropriação desse espaço físico-social (GÓIS, 2003, p. 95).

Essas discussões possibilitaram aos estudantes um novo olhar sobre a vida na cidade de Parnaíba, um olhar que atentava para a dimensão da cidadania e da participação e que os questionava sobre o papel da universidade e deles mesmos nesse contexto. O transporte emergiu como uma problemática que diz respeito à vida cotidiana dessa cidade, posto que tem se agudizado com o desenvolvimento recente de Parnaíba.

DIMENSÃO DE CIDADANIA: O TRANSPORTE COMO DIREITO E O TRANSPORTE COMO MEIO DE HUMILHAÇÃO SOCIAL

O trânsito guarda relação com o Direito, pois articula o pessoal e o coletivo. A definição de trânsito proposta por Rozestraten enfatiza a integridade da pessoa, ou seja, afirma que ela deve alcançar sua meta sem sofrer nenhum dano. Para esse autor, trânsito "é o conjunto de deslocamentos de pessoas e veículos nas vias públicas, dentro de um sistema convencional de normas, que tem por fim assegurar a integridade de seus participantes" (ROZESTRATEN, 1998, p. 04).

Dentro dessa lógica, observamos que o transporte tem sido visto não como direito, mas como fonte de lucro, e acaba constituindo-se como meio de humilhação social em Parnaíba. O segmento populacional mais favorecido não utiliza o transporte público por ser de má qualidade, enquanto a população pobre repete as soluções individuais baseadas na motocicleta ou na bicicleta, em lugar de soluções coletivas, que ficam abandonadas, identificando o transporte público com mais um instante de sofrimento. De acordo com Filho (1998), o transporte é um direito, e a relação do direito com o pobre é uma relação negativa, o que o trecho de Weil ilustra muito bem.

Saindo do dentista (terça de manhã, eu acho, ou talvez quinta de manhã) e subindo no ônibus, reação estranha. Como eu, a escrava, posso entrar neste ônibus, usá-lo graças a meus 12 centavos como qualquer um? Que favor extraordinário! Se me obrigassem brutalmente a descer dele dizendo que meios de locomoção tão cômodos não são para mim, que eu só devo andar a pé, acho que me pareceria natural. A escravidão me fez perder totalmente o sentimento de ter direitos. Parece um favor ter momentos em que não preciso aguentar a brutalidade humana (WEIL, 1979, p. 87).

Assim podemos começar a entrever os mecanismos que mantêm a população usuária da cooperativa de transportes em Parnaíba calada em seu sofrimento. O morador de Parnaíba sabe que merece um transporte de melhor qualidade, e esse discurso aparece no vídeo, mas, ao mesmo tempo, o sofrimento é de cada um, individual.

As falas dos entrevistados da cooperativa, por sua vez, são relativas à defesa dos próprios interesses, como expressou o cobrador no seguinte trecho: "A cooperativa é uma unificação do transporte aqui da cidade onde vários cooperados se agrupam para lutar pelo bem de si próprio" (cobrador).

Não parecem sentir suas condições de trabalho como indignas. Compreendemos, com Guareschi (2006), que a exclusão social deslocou o debate da exploração do trabalho para a da ausência de oportunidades no mercado, o que poderia explicar a defesa ao que consideram seus interesses - ou seja - a sobrevivência da cooperativa no mercado, sobrevivência essas que eles sabem ameaçada, como se pode notar pelo relato a seguir.

Nós somos hoje 40 carros, e a gente trabalha e nós não temos concessões dessas linhas. Hoje nós somos permissionários. Essas linhas é da prefeitura, é ela que distribui as linhas e a gente trabalha com essa permissão. Cada carro hoje tem seu itinerário dado pela prefeitura, e a gente vai fazendo esse trabalho dessa forma. A prefeitura hoje é o órgão principal que comanda hoje o transporte de um modo geral (motorista).

Os trabalhadores das vans têm na rua seu espaço de trabalho. A apropriação da cooperativa aparece em seu discurso como a defesa de seus interesses. Ao se esquecerem de que o produto do seu trabalho tem a ver com o bem comum, e não apenas com a lógica do capital, alienam-se de sua condição de trabalhadores. De acordo com Da Matta (1986), a rua se mede pela luta, pela competição, em que o tempo é ditado pelo relógio, forjando uma perspectiva de mundo. O trecho citado demonstra a consciência do caráter público do serviço e contrasta com a percepção de servir aos próprios interesses. Além disso, destacamos que essa defesa dos próprios interesses parece colidir com os interesses da população, uma vez que os horários, a quantidade de passageiros e a manutenção dos veículos obedece ao lucro da cooperativa, e não à qualidade do serviço que ela presta. O caráter privado da cooperativa entra em embate com a demanda pública de transporte com serviço de qualidade, em que a população se sente privada de um serviço que atenda às suas necessidades, como exemplificado nos relatos a seguir: "Agora nós temos um transporte chamada van, na qual quando entro dentro, eu rezo 10 ave-maria, 20. Porque é meio estressante, cansativo" (entrevistada). "A demanda daqui de Parnaíba é grande, né? Só que os transportes ainda tão muito precários..." (estudante do sexo feminino).

Antigamente era melhor de que agora, porque tinha ônibus coletivo, todo mundo andava, e hoje não existe, só essas [vans] aí carregando o pessoal na marra, nem os velhos eles querem levar, então tem que ter alguma melhoria pro povo aqui de Parnaíba" (entrevistado).

É possível aprofundar uma análise de tais contradições com Da Matta tecendo considerações sobre os espaços da casa, da rua e do trabalho, pois a confusão entre o público e o privado, cuja clivagem foi instaurada pela modernidade, pode ser o que sustenta tais práticas e discursos.

DIMENSÃO PEDAGÓGICA: PRODUÇÃO DE VÍDEO COMO ESTRATÉGIA PEDAGÓGICA

Como resultados pedagógicos, ressaltamos, além do aprendizado contextualizado a respeito dos conceitos já apresentado ao longo dos tópicos anteriores, que essa primeira experiência foi o passo inicial para a formação do psicotrama, grupo de estudantes de Psicología da UFPI interessado na promoção de peças teatrais e de vídeos dentro de temáticas relevantes para a Psicologia.

O vídeo pode ser definido, a partir de Almenara (2002), como um meio de comunicação com elementos simbólicos determinados que permite a criação de mensagens pelo usuário, cuja concepção técnica é a imagem configurada a partir de instrumentos tecnológicos controlados por esse usuário. É, ainda, meio de expressão estética e de comunicação, proporciona a interação de dimensões lúdicas, de pesquisa, de avaliação, e estreita os laços entre pesquisa e criatividade.

Segundo Almenara, a produção de vídeo tem sido cada vez mais utilizada pelo interesse que o recurso desperta, pela facilidade progressiva de uso dos equipamentos, pela diminuição de custo e pela diversidade de usos possíveis do material produzido. De acordo com Almada, Bonilla e Pretto, a produção de vídeos de curta duração e sua visualização é uma atividade crescente. Para eles, a participação efetiva do sujeito na produção do vídeo possui um imenso potencial educacional, possibilitando o desenvolvimento do pensamento crítico, a aprendizagem interdisciplinar e a produção de cultura. Almenara lembra ainda que a aprendizagem não se encontra em função do recurso, e sim, da utilização deste, sendo o professor indispensável para a contextualização e para facilitar o processo de ensino aprendizagem, no qual o estudante exerce papel ativo. O autor ressalta a não existência de super-recursos. A escolha deve ter a ver com os objetivos do trabalho. Almada, Bonilla e Pretto alertam, porém, para o fato de que entender as novas tecnologias somente a partir do aspecto instrumental reduz o sentido de sua utilização.

Assim, elas precisam ser compreendidas como estruturantes dos processos de transformações que estamos vivenciando em todos os âmbitos da sociedade para que as possibilidades no ensino-aprendizagem sejam ampliadas, levando em consideração os diferentes contextos sociais, as culturas, a forma de vida das pessoas que estão participando do processo, ou seja, que a partir do fortalecimento das culturas e dos valores locais possamos ampliar a vivência de mundo dos sujeitos sociais e, assim, dinamizar a construção do conhecimento (ALMADA; BONILLA; PRETTO, 2009).

Ressaltamos aqui ainda que o ensino na universidade é pouco debatido. Esquecemos, como aponta Martinez (2003), o período em que os estudantes ingressam nas universidades públicas, em sua maioria, na juventude, momento estratégico da vida. Há uma proximidade dos jovens com o tipo de linguagem e expressão constituintes das novas tecnologias. O ensino nas universidades tem sido avaliado em uma perspectiva meramente quantitativa, sem mencionar o sucateamento provido por anos de política neoliberal, sucateamento esse do qual começamos com vagar a nos recuperar. A sala de aula da Universidade precisa estar articulada à extensão e à pesquisa, que foram o tripé da produção de conhecimento e da formação de profissionais capazes de pensar e agir de modo crítico e sensível diante de seus contextos.

A Universidade, segundo Bernheim e Chauí (2008), se constitui em relação a um contexto, ou seja, forja-se a partir dele, refletindo-o em suas contradições e paradoxos. Compreendemos, exatamente por concordarmos com tal visão de que a universidade deve procurar avançar com esse contexto - e não sobre ele -, que a resolução das problemáticas deve ser pautada por essa realidade, assumindo a postura dialógica afirmada por Freire (1983), que não reduz o outro a objeto da ação do universitário, mas reconhece-o na produção de saber sobre si mesmo e sobre seu entorno.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os objetivos da produção foram suficientemente atingidos, restando cuidar de sua continuidade. A articulação entre os conceitos abordados nas disciplinas e a vivência cotidiana dos estudantes foi demonstrada durante o texto, e o material produzido destina-se a futuras intervenções relativas ao tema na cidade. A experiência de construção coletiva do vídeo, desde o seu planejamento até a análise e a discussão de seus resultados como produto e processo, foi descrita, com vistas a compartilhar da experiência que não tem compromisso com um "replicar o experimento". O vídeo aparece como uma experiência estética, na perspectiva de Benjamin, quando "de espetáculo atraente para os olhos, a obra de arte convertia-se em um tiro" (BENJAMIN, 1994, p. 192). O cinema rompe a anestesia cotidiana pela sequência de choques promovidos pela rapidez, fragmentação e deslocamento das imagens no vídeo. Os estudantes, como produtores de mídia, deslocam-se do lugar de consumo, muitas vezes alienado. O produto visou, sobretudo, a divulgar o olhar dos acadêmicos e dos moradores sobre a questão, e revela, ao fim, uma beleza provocadora. Contrapor a beleza das paisagens parnaibanas à dureza da mobilidade nesse lugar provoca no espectador um estranhamento de si e do seu cotidiano, tanto para aqueles que fazem parte daquela realidade como para os outros que são tocados pela temática, comum a tantas experiências urbanas.

A escuta dos moradores, não apenas como usuários do sistema de transporte mas também como pessoas envolvidas no fazer de sua cidade e que se constroem nesse fazer, incomodadas que estão com a ausência do diálogo sobre questões coletivas, também apareceu como relevante na avaliação realizada junto à comunidade acadêmica.

Conclui-se, portanto, a partir do demonstrado nas discussões acima, que a produção de vídeo como estratégia pedagógica é relevante para a articulação de elementos teóricos e para a vivência cotidiana, colaborando sobremaneira na formação do profissional de Psicologia, em um momento histórico em que a ciência psicológica pauta a contribuição desse saber-fazer no processo de transformação social. A riqueza desse caminho apresentou-se no produto final, em sua qualidade e potência já enfatizadas. Consideramos que o processo de construção coletiva do percurso e a reflexão sobre a caminhada foram fundamentais para a riqueza dessa experiência em termos de formação profissional.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido: 29 de março de 2011
Aceito: 29 de setembro de 2011.

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