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Psicologia Ensino & Formação

versão impressa ISSN 2177-2061

Psicol. Ensino & Form. vol.2 no.1 Brasília  2011

 

RELATOS DE EXPERIÊNCIA

 

Sentidos para a formação em um grupo de reflexão

 

Meanings for the education in a discussion group

 

 

Erich Montanar FrancoI; Altivir João VolpeII

IUniversidade presbiteriana Mackenzie. Doutor em psicologia social - USP. efranco@bol.com.br
IIUniversidade Presbiteriana Mackenzie. Doutor em psicologia social - USP. aj.volpe@uol.com.br

 

 


RESUMO

Apresentamos um relato de experiência com um grupo de reflexão realizado com estudantes de psicologia. Essa modalidade de grupo visa o trabalho operativo, que enfatiza a dimensão psicossocial da aprendizagem e a integração da ação grupal. O papel do coordenador é favorecer e desencadear vivências criativas e inovadoras que permitam a superação de condutas estereotipadas. No decorrer de cinco encontros, foi possível refletir sobre as escolhas profissionais e as dificuldades do percurso acadêmico. Durante as atividades, o coordenador transitou entre os processos implícitos e o acontecer explícito no espaço institucional. Os universitários deslocaram-se, gradativamente, da constante e forte crítica à instituição para o reconhecimento da grande ligação de todos com a dinâmica institucional, buscando outras referências e novos processos de discriminação e singularização. A atividade foi uma importante experiência de apropriação do percurso acadêmico e das suas relações com a vida universitária.

Palavras-chave: grupo operativo, estudantes universitários, psicologia.


ABSTRACT

We present a report about a reflexive support group carried out with Psychology students that discussed different processes of their academic development. It emphasizes the psychological dimension of the learning process and the integration of group´s action. The coordinator´s single role is to produce a creative and innovative perception that will allow a change of some stereotypical attitudes in the group. All along the five encounters realized, it has been possible to discuss professional choices and difficulties in the academic development. During the sessions, the coordinator was always aware of the group´s reactions face the institutional spaces in-between, even if he always avoided being obvious about it. The students could perceive how their criticism against the institution was somehow invalidated by their strong links with the institution itself, searching for other holdings and for new ways of discrimination and singularization. This group work was a very important step towards a deeper improvement of the construction of their academic life process and of the relation with the institution where the reflexive support group happened.

Keywords: discussion group, students, psychology.


 

 

INTRODUÇÃO

Há muito se reconhece a importância das próprias experiências como organizadoras da prática do psicólogo e do trabalhador da área da saúde mental. É importante salientar a relevância desse processo de reflexão no decorrer da formação de um estudante de psicologia e no dia-a-dia de um profissional, pois as relações institucionais são marcadas por conflitos de toda ordem e, ao mesmo tempo, servem de sustentação e ancoragem para que ambos possam sustentar o trabalho ou as angústias resultantes de relações pouco satisfatórias.

Pretendemos trazer aqui o relato de cinco sessões de uma modalidade operativa denominada grupo de reflexão, analisando seus benefícios para a formação do psicólogo, o tênue limite entre esse tipo de prática e a terapia de grupo, bem como aspectos ligados à função do coordenador do grupo.

 

PROPOSTA DE TRABALHO COM GRUPO

A experiência apresentada não constitui uma pesquisa, antes compõe um conjunto de ações institucionais que integram um programa de orientação psicológica e pedagógica com o objetivo de ampliar as modalidades de apoio oferecidas ao aluno de psicologia no decorrer de sua formação. Essas atividades têm sido orientadas tanto para a resolução de dificuldades pontuais do percurso acadêmico - como a escolha de áreas de estágio ou de temas para o trabalho de conclusão de curso - quanto no auxílio para o enfrentamento de dilemas pessoais por meio da reflexão sobre as possibilidades de atendimento psicoterápico.

Este relato diz respeito, pois, à criação de um espaço continente de expressão de sentimentos e pensamentos de um grupo mediados pela escuta de um coordenador. Com efeito, o que descrevemos nesse trabalho também vem sendo observado em outras iniciativas nos espaços acadêmicos, relacionadas ou não a situações de pesquisa e intervenção. Nesse sentido, Fernandes (2003) comenta que tais atividades são obrigatórias em cursos de formação de analistas de grupo. É possível que elas também ocorram nos cursos de psicologia, mas certamente não têm sido devidamente noticiadas.

Por outro lado, é possível localizar experiências com grupos utilizadas como estratégia de formação acadêmica em diversas áreas da saúde. Por exemplo, Colares e Andrade (2009) relatam pesquisa sobre efeito de atividades reflexivas grupais no desenvolvimento profissional de estudantes de medicina. Nesse caso, o uso do sociodrama-educacional favoreceu os seguintes resultados: compartilhamento das dificuldades da formação, integração por meio de vínculos positivos dos alunos de diversas etapas do curso e reflexão crítica sobre a prática médica.

Em outro trabalho (LUCCHESE; BARROS, 2002), desta vez com estudantes do último ano de enfermagem, observa-se como resultado uma proposta de produção coletiva de conhecimento - considerada pelos membros do grupo uma vivência significativa que permitiu o aprimoramento da plasticidade na busca de soluções frente aos impasses do cotidiano. A vivência grupal favoreceu a reelaboração dos vínculos e mobilizou ressonâncias internas que impulsionaram não só a reflexão sobre a produção de respostas mas, antes de tudo, a compreensão de seu caráter sempre provisório.

Zimerman (2002), por sua vez, lembra que a prática dos grupos de reflexão, à semelhança dos grupos operativos de Pichon-Rivière, se desenvolve operativamente sobre determinada tarefa e seu objetivo não é prioritariamente psicoterapêutico, embora efeitos e ressonâncias desse tipo possam ser produzidos. A seu ver, a tarefa operativa permite organizar e integrar a ação grupal.

A respeito dessa modalidade, Coutinho e Rocha (2007) afirmam que o trabalho do coordenador nos grupos de reflexão está voltado para intervenções que desencadeiam processos criativos e vivências inovadoras por meio do entendimento do fenômeno da transferência. Nos termos desses autores, os grupos de reflexão favorecem "a circulação de sentidos e os deslizamentos significantes, com alguma repercussão possível nos modos de gozo dos sujeitos que deles participam, atrelados às identificações e aos lugares ocupados por eles no campo da cultura" (COUTINHO; ROCHA, 2007, p. 76).

A proposta em questão neste relato de experiência também deriva de uma concepção da situação de aprendizagem contrária à chamada educação bancária, tão criticada por Paulo Freire (2007). Desta forma, destaca o aspecto vivencial e transformador do processo em questão. Assim, o processo de ensino-aprendizagem é compreendido como instrumento da emancipação e libertação.

Dentre os autores da perspectiva teórica que sustentam a prática com grupos de reflexão cabe destacar o trabalho de Bleger (2001). Em seu clássico texto sobre grupos operativos no ensino, ele enfatiza a dimensão psicossocial da aprendizagem e revê a relação professor-aluno. Para ele, ensino e aprendizagem são elementos de um percurso dialético no qual devem ocorrer alterações no plano da conduta. No grupo operativo, busca-se o enriquecimento da personalidade por meio da reflexão problematizadora a respeito de padrões estereotipados da conduta.

De acordo com Fernandes (2003), os grupos de reflexão têm sido utilizados em instituições formadoras da área da saúde e da educação e também em unidades de saúde ou hospitais e em órgãos de classe (conselhos de enfermagem, de serviço social, de psicologia dentre outros). O principal objetivo dessa prática é o aprendizado da própria vivência grupal, na medida em que esta prática permite a apropriação dos vínculos entre os pares, funcionários, chefes, alunos e professores e com a instituição à qual pertencem. Nessa forma de trabalho não existem temas predeterminados e os participantes se manifestam sobre aquilo que quiserem. No que diz respeito ao manejo dos aspectos transferenciais, o emergente é institucional, ou seja, os assinalamentos, indagações e possíveis interpretações dizem respeito aos depósitos inconscientes feitos no contexto grupo-instituição.

Ainda que o foco seja o exame das dificuldades relacionais presentes durante a atividade de aprendizagem, um dos desafios do coordenador é estar atento para que os encontros não cumpram funções grupoterápicas, solicitação muito frequente que parte dos próprios grupos. Fernandes (2003b), ao debater a proximidade entre as vivências em um grupo terapêutico e um grupo operativo, assinala o manejo da atividade grupal no que diz respeito à interpretação da transferência. Segundo ele, embora alguns analistas latinoamericanos façam uso da interpretação em grupos operativos, o coordenador deve privilegiar o foco institucional. Para ele, é consenso que as intervenções do coordenador devem focar sempre o grupo e não o indivíduo. O lugar de coordenador exige que ele evite demandas no sentido de mediar os conflitos com a universidade, instituição pública ou invada a vida privada dos participantes. Ao explicitar o que acontece implicitamente, o coordenador trabalha com a informação que o grupo revela a cada momento, isto é, o que os participantes toleram e conseguem elaborar naquele momento (FERNANDES, 2003b).

 

FORMAÇÃO DO GRUPO

O convite para os encontros e o esclarecimento quanto à natureza da atividade foram realizados pelos próprios professores da instituição de ensino aos seus alunos nas salas de aula. Os interessados puderam se inscrever no mesmo momento em que tomaram conhecimento do convite, por meio do preenchimento de uma lista na qual indicavam o primeiro nome e um telefone para contato. Em seguida, foram realizadas entrevistas em grupo com os inscritos, cuja finalidade era retomar a proposta e informar novamente aos participantes os objetivos da modalidade do grupo oferecidas, possibilidades de participação e sobre o enquadre propriamente dito (duração, horários, locais, presença de observador, número de participantes, composição do grupo, etc). Nessa entrevista, o coordenador do grupo também pôde esclarecer que não se tratava de um grupo de estudo ou de um grupo terapêutico, mas sim de um grupo operativo que tinha como tarefa a reflexão sobre a própria formação e que isso ocorreria por meio da problematização de questões relacionadas ao cotidiano universitário. Enfatizou-se que o principal objetivo consistia em potencializar processos criativos e vivenciais que enriquecem a vida acadêmica como um todo. Além disso, foi possível realizar um reconhecimento das expectativas dos participantes.

A proposta consistiu na realização de cinco encontros ocorridos em uma sala cedida pela universidade, com duração de duas horas e periodicidade quinzenal. Em função do contexto e das condições de realização das atividades do grupo, apresentaremos em seguida apenas pequenas vinhetas e recortes dos encontros desenvolvidos na instituição de ensino. Todos os nomes de participantes do grupo apresentados neste texto são fictícios.

PRIMEIRO ENCONTRO

Dos 13 alunos inicialmente inscritos para a atividade, apenas dois não compareceram. Após rápidas apresentações dos integrantes fez-se um silêncio de aproximadamente dois minutos. Na seqüência, Pedro falou exaltado durante uns dez minutos sobre o aumento do consumo de álcool e de outras drogas nas proximidades da universidade. Joana polarizou uma discussão intelectualizada sobre as drogas e seus efeitos, e os dois interlocutores polarizam um diálogo no qual forneceram justificativas - a seu ver, sociológicas e culturais da pós-modernidade - para explicar tal crescimento ou mesmo afirmando o direito dos jovens viverem fatos e situações que rompam com o status quo, com a mesmice [sic] dos cursos universitários. Os demais integrantes do grupo fazem pequenos apartes, mas não são ouvidos pela dupla.

Nesse momento, o coordenador - frente a necessidade desses dois participantes se fazerem reconhecer pelos demais integrantes - questiona se esse debate não seria uma forma de sondar as possibilidades de expressão dentro do grupo: "Será que a gente vai poder viajar aqui [sic]? Acho que todos querem saber se poderão falar livremente no grupo".

Os desdobramentos produzem diversas temáticas: dúvidas sobre a proposta inicial do grupo e sobre a escolha pela Psicologia; alternativas que os cursos universitários oferecem; as regras da sociedade e da instituição na qual se encontram (o curso é apontando como exemplo de mais uma dessas regras); o sentimento de impotência frente à grande diversidade de conteúdos a serem estudados; a suposta exigência de ser totalmente equilibrado e não se contaminar com a loucura, como disse um dos integrantes.

O coordenador assinala as diversas temáticas abordadas pelo grupo e chama a atenção para a grande mobilização de todos frente a elas. A fala de Bruno pontua esse momento: "É difícil ponderar ou escolher diante de tanta coisa, corre-se o risco de ficar contaminado ou se desequilibrar".

SEGUNDO ENCONTRO

Dentre as temáticas que mobilizaram o grupo nesse encontro, destaca-se a ausência de muitos integrantes presentes ao primeiro encontro. Fala-se sobre a vontade de vir e, ao mesmo tempo, a dificuldade de resistir à vontade de não vir e fazer outras coisas. Também são retomadas as dúvidas a respeito da proposta inicial do grupo, que oscilaram entre as possibilidades terapêuticas e o foco da reflexão sobre a instituição. Alguns imaginavam que o objetivo era discutir a própria instituição. Durante boa parte do encontro, as falas giraram em torno das regras da instituição, sua inflexão e pouca abertura. Por fim, Maurício, Fernanda, Gislaine e Marcela refletem sobre sua dependência e expectativas em relação ao coordenador que, supostamente, deveria trazer soluções rápidas para o tumulto e a multiplicidade de caminhos surgidos. Por fim, Maurício expressa seus sentimentos: "Eu me sinto em uma encruzilhada".

Então, o coordenador assinala que o grupo mostra certa flexibilidade para se organizar, mas se assusta com a responsabilidade da tarefa, e imagina que ele, coordenador, poderia encontrar alternativas rápidas para a convivência e para os trabalhos acadêmicos naquela universidade ou, até mesmo, resolver os conflitos com a instituição. Os participantes oferecem ao coordenador o papel de salvador, pois se sentem incapazes de agir, de pensar suas insatisfações ou alternativas com as quais se deparam.

Maurício, Fernanda e Luís Felipe mudam de assunto e expressam a necessidade urgente de ter armários para guardar suas coisas e que iriam conversar a respeito com seus colegas e professores do grupo de pesquisa do qual participam para tentar resolver esse problema. O coordenador reflete com o grupo: "nosso grupo também pode ser um espaço para guardar e organizar nossas questões, tomar decisões, correr riscos (...)".

TERCEIRO ENCONTRO

Nesse encontro, a temática regra predomina. Questionam-se as normas da instituição, a necessidade de estabelecer tantos prazos, de preencher tantos formulários e declarações. Diante disso, os integrantes do grupo fazem tentativas de desafiar o que a instituição impõe e, ao mesmo tempo, se dedicam prolongadamente a criticar um dos integrantes que propunha o fim das regras. Fernanda, Bruno e Roberto falam de como lidam com as regras e seu funcionamento no cotidiano (maior ou menor exigência; maior ou menor tolerância à frustração; perdas e danos).

As intervenções do coordenador assinalam que, à medida que o grupo avança em sua tarefa, cada um pode falar de suas possibilidades e limites, de seus medos e temores de não ser reconhecido e valorizado.

QUARTO ENCONTRO

Depois de longo silêncio, comenta-se a necessidade/obrigatoriedade de falar no grupo (relacionada à não-diretividade do coordenador) e sobre a dificuldade para estar ali em uma semana de provas e entrega de relatórios com prazos muito curtos. Na seqüência, Cristina, Fernanda, Luís Felipe e Ricardo comentam que se sentem bem no grupo, que já existe clima para brincadeiras e que vão sentir saudades durante o feriado que se aproxima. Brincam com a possibilidade de mais encontros (semanais e não quinzenais). O coordenador, que ficara boa parte do encontro sem se manifestar, assinala que apesar do desconforto com o a sensação de obrigatoriedade, existe a vontade de passar mais tempo com o grupo.

QUINTO ENCONTRO (PRIMEIRO APÓS O FERIADO)

Os integrantes passam a maior parte do tempo discutindo o reinício e as dificuldades que resultam disso. O tema da morte permeia toda a sessão em forma de anedota. Comentam que é como se estivessem em um novo grupo. Em seguida, o foco passa a ser a dificuldade de cada um se expressar no grupo e quais as perspectivas de cada um ali. Luís Felipe e Marília falam sobre as diferentes maneiras de se defender ou se proteger dentro do grupo. Maurício lembra aos demais os objetivos iniciais do grupo e os desdobramentos havidos no decorrer dos encontros. Fernanda e Cristina trazem possíveis explicações para as desistências, a seu ver, conseqüência das diferentes expectativas trazidas pelas (novas) tarefas propostas. Bruno comenta que esperava aprender a trabalhar em grupo e que o clima existente agora permite brincar e se comunicar com todos. Diz: "(é) Como se o coordenador não existisse". Em seguida Maurício comenta: "E depois? O que vai acontecer com o grupo? Não quero ficar pensando só como é bom viver o momento presente!". Pouco depois (após breve silencio), Fernanda fala sobre dificuldades individuais e de sua necessidade de busca pela psicoterapia. Essa temática mobiliza o grupo e muitos expressam que sentiam a mesma necessidade.

Por fim, os membros do grupo e seu coordenador retomam a trajetória do grupo, suas dificuldades e conquistas no percurso e ponderam sobre a possibilidade e a importância de atividades para refletir conjuntamente sobre a formação.

 

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

No decorrer das atividades com o grupo foi possível perceber que os participantes demonstravam grande interesse e ao mesmo tempo experimentavam certa desconfiança. Os primeiros encontros foram marcados por um forte ataque à instituição e a suas normas, como um teste às reações do coordenador. Também é possível pensar que esse tenha sido um recurso do grupo para suportar angústias da vivência grupal, ou seja, a partir desse pacto contra a instituição, o grupo se consolida como tal. Como afirma Kaës (2005, p. 133):

(...) trata-se de uma aliança inconsciente, uma formação psíquica intersubjetiva construída pelos sujeitos de um vínculo para reforçar, em cada um deles, certos processos, certas funções ou certas estruturas vindas do recalque, ou da recusa, ou do desmentido e da qual eles obtêm um benefício, tal que, o vínculo que os liga, adquire, para sua vida psíquica, um valor decisivo. As alianças inconscientes enodam-se para que os sujeitos de um vínculo estejam assegurados de nada saber sobre seus próprios desejos, nem daqueles que o precederam.

Pedro e Joana, talvez como líderes da resistência à mudança, trouxeram ao primeiro encontro um saber intelectualizado, como se só admitissem os conteúdos do conhecimento já pronto, sem abertura para a incorporação do novo no campo grupal. Nesse interjogo das tarefas, é preciso saber não-saber, suportar esse estado e buscar sua superação. Essa dupla pareceu não suportar a ferida narcísica resultante dessa condição. Talvez, por isso não tenham retornado ao grupo depois do primeiro encontro. Pode-se pensar que essa aliança no ataque à instituição seja anterior ao grupo, isto é, já se estabelecera no espaço institucional, e acabara por se fazer mais visível e, por que não dizer, consciente no espaço do grupo de reflexão.

Assim, oscilando entre o ataque à instituição e uma reflexão sobre a dependência em relação à mesma, o grupo pôde pouco a pouco deslocar seu foco da instituição e do instituído para suas próprias questões. Isso se explicitou em diversos momentos do grupo. Por exemplo, a fala de Bruno ao final do primeiro encontro reflete um movimento ambivalente frente ao objeto a conhecer, como se, diante do novo conhecimento, sentissem medo de uma desorganização geral dos conteúdos da experiência que já possuíam nesse início do grupo. Conforme Kaës (1991), frequentemente o sofrimento institucional revivido é um meio para o estudo e acesso às estruturas psíquicas nas instituições.

Cabe destacar outra possibilidade em relação a esse movimento pendular: como alguns integrantes do grupo tinham sido alunos do coordenador, é possível pensar que o vínculo típico da relação professor-aluno tenha resistido ao enquadre do grupo de reflexão. Dessa forma, essa sobreposição de papéis pode, por um lado, ter facilitado a formação do grupo, uma vez que os alunos tinham uma boa relação com o professor. Por outro lado, é possível que ela tenha dificultado o reconhecimento do grupo como um espaço não-disciplinar, tanto em relação aos estudantes como ao coordenador. Por isso, embora possam ser facilitadoras do vínculo, tais condições de trabalho também exigiram atenção redobrada do coordenador e fizeram-no refletir sobre um tempo mais prolongado de trabalho com o grupo. Ao coordenador coube refletir sobre os riscos e benefícios da formação de grupos nessas condições.

Pensando sobre o lugar do coordenador de grupos, ocorre-nos a fala inspiradora de Avenburg (1998). Para ele, a função do coordenador é:

(...) a daquele que mantém a comunicação em permanente circulação. Os papéis, o de coordenador inclusive, devem ser intercambiáveis em função da tarefa; toda liderança é funcional e não deve cristalizar-se. O coordenador transita entre os processos implícitos e o acontecer explícito, no espaço transicional entre o dito e o não-dito do homem-em-situação, o já e o ainda não (AVENBURG, 1998, p. 237).

Apesar das dificuldades, no decorrer do processo grupal foi possível refletir sobre a importância daquele espaço institucional para a formação dos estudantes. Os participantes questionaram suas escolhas profissionais, o que o curso de psicologia oferece, as regras da sociedade e da instituição e a importância destas para a segurança psíquica de todos e de cada um. Isto é, apesar do reconhecimento dos funcionamentos institucionais autoritários e burocratizados (no sentido grupal e político), foi possível tornar consciente a íntima relação de dependência de cada um com esses aspectos tão criticados. As dificuldades do curso e o sentimento de impotência frente à grande diversidade de conteúdos a serem trabalhados, além da fantasia acerca da possibilidade ou necessidade do pleno equilíbrio psíquico do psicólogo também vieram à tona e puderam ser elaborados.

Embora seja consenso, entre aqueles que praticam grupos, a riqueza e a utilidade do dispositivo utilizado, cremos que ainda merece destaque a potencialidade dessa prática grupal para favorecer a identificação e o reconhecimento das necessidades pessoais e grupais durante o percurso acadêmico. Nesse percurso grupal ocorre um trabalho psíquico que permitiu a superação de estereotipias que reproduzem posições ideológicas institucionais (em seus diversos níveis) acerca do que é importante para cada um e para o grupo como indivíduos em formação. Nesse sentido, a aprendizagem ocorre no interjogo entre o subjetivamente concebido e o objetivamente percebido no campo grupal.

A noção de trabalho psíquico remete à possibilidade de criação e transformação. Ou seja, no âmbito intersubjetivo os processos psíquicos são atualizados pelo grupo e o funcionamento e as formações psíquicas do outro atuam no psiquismo do Sujeito Inconsciente (FERNANDES, M. I. A., 2003).

Apoiados nas reflexões de Kaës (1997), podemos afirmar que o dispositivo grupal se constitui como uma fronteira entre mundo externo e mundo interno. Em relação ao fora do grupo, ele torna-se uma barreira que o protege contra os perigos externos; em relação ao intragrupo, desempenha o papel de barreira de contenção, assegurando que aspectos "bons" permaneçam em seu interior. Como membrana filtrante, o grupo favorece as trocas, o trânsito dos intermediários, a circulação da comunicação - em função da presença da palavra polifônica (sintaxe e semântica) e pela expressividade emotiva ou motora (risos, choros, cantos, movimentos...).

Cada um e todos se tornam pouco a pouco interlocutores e estranhos, estabelecendo um entrejogo marcado por aproximações, identificações e afastamentos recíprocos. Nesse sentido, formar um grupo é suscitar a tensão fundamental entre contribuir para certa unidade ou coesão grupal e estabelecer um movimento de diferenciação dos sujeitos (KAËS, 2005). Estar junto e, ao mesmo tempo, perceber-se indivíduo, separado dos demais.

É uma experiência acima de tudo intersubjetiva: supõe da parte do coordenador que não invada o espaço onde se forma a ilusão dos sujeitos. Trata-se de facilitar a criação de um espaço de compartilhamento de experiências, dúvidas, temores, expectativas, na tentativa de elaborar crenças estabelecidas, lacunas, ausências ou rupturas sofridas, protegendo os integrantes do grupo, nesse sentido, das intrusões às quais estão expostos, das invasões da subjetividade do coordenador (ou dos demais integrantes do grupo).

Como se viu, as associações livres e ações dos participantes do grupo fornecem pequenos esboços, desenhos rascunhados sem que se conheça sua forma final. Daí a pouca utilidade de o coordenador e os sujeitos esperarem uma obra acabada, da pressa em colher o fruto antes da hora. Existem vazios e fissuras, o que entreabre a possibilidade da conversa e do compartilhamento; dos encontros e confrontos; do brincar e do humor; enfim, da criação e utilização de experiências intermediárias. A partir do movimento em direção ao outro é possível a passagem do conhecido ao desconhecido, separando e aproximando os sujeitos; passado e presente.

Como já sinalizamos, esse tipo de trabalho grupal favorece situações muito próximas daque las reconhecidas como próprias de processos psicoterápicos. Tomaremos a experiência vivida pelo coordenador para pensar sobre esse ponto a partir de agora.

Temas relacionados à finalidade do grupo e seus possíveis efeitos surgiram em diversos encontros do grupo. Em relação a essa temática, o quinto encontro parece ter sido o momento de maior elaboração. É importante que retomemos o contexto desse acontecimento. Era a primeira vez que o grupo se reencontrava depois do feriado e alguns integrantes não haviam comparecido. Tratava-se de um reinício, onde todos checavam se as questões ou temas não haviam mudado, mas também pode-se pensar que já era sabido que a atividade se encaminhava para seu desfecho. Talvez essa seja uma das razões porque o tema luto e morte surgiram tantas vezes naquele encontro.

Já acostumado ao grupo e confiante de boa vinculação com os integrantes, o coordenador sentiu-se, a princípio, bem à vontade para interagir com o grupo. De fato, isso ocorreu de forma bem descontraída. Pouco a pouco, sentiu necessidade de oferecer respostas aos integrantes do grupo e participar de uma descoberta mais profunda e íntima. Ao se dar conta desse sentimento e se incomodar com sua própria atuação (por julgá-la excessiva), o coordenador convidou o grupo a refletir sobre as necessidades e as possibilidades do grupo. Nesse sentido, ele manteve certa tensão entre dois lugares necessários e correlatos. No grupo, é o iniciador do processo e, ao mesmo tempo, fica à escuta, para compreender e nomear.

Essa reflexão parece ter causado efeitos diversos nos integrantes e o grupo todo se mobilizou fortemente, permanecendo um longo período em silêncio. Todos compartilharam seus sentimentos sobre essa longa reflexão. Ao final, pensaram juntos sobre a necessidade da psicoterapia e como isso vinha se acentuando à medida que avançavam no curso de psicologia. O trabalho psíquico no espaço intersubjetivo permitiu um pensar não-estereotipado sobre essa questão. Isto é, no caso dos participantes, a busca da psicoterapia não se caracterizou por um processo de reprodução dos constantes alertas feitos aos estudantes de psicologia sobre a necessidade instrumental e pessoal do acompanhamento psicoterapêutico.

Pode-se pensar que a insegurança dos laços fragmentários e a incerteza quanto ao futuro, características próprias da contemporaneidade, tenham levado os participantes a experimentar a ambiguidade dos tempos modernos. Essa se traduz, por exemplo, na busca por outras configurações vinculares ou de religamento institucional, o que nos leva a pensar que é sempre entre o risco contínuo de perda das referências e a possibilidade de constituição de outros espaços ou de busca de reasseguramento que se processa o intenso trabalho próprio do devir humano.

Os integrantes do grupo, em um espaço de escuta, puderam experimentar e buscar outros marcos de referência e sentidos, com novos processos de discriminação e singularização. Partindo de uma certa ilusão de completude e amálgama presentes no início do trabalho, puderam viver a separação e desilusionamento trazidos pela aceitação progressiva da realidade. Tratam-se de experiências não excludentes, tarefa nunca acabada entre o e o ainda-não, entre o que se encontra e o que se cria.

Cabe assinalar a importância da ampliação e divulgação de experiências com diversas modalidades do trabalho grupal. Pois, além de sua grande eficácia como estratégias de intervenção psicossocial em campos como o da saúde e da educação, o trabalho grupal diversifica e aprofunda a formação de psicólogos que são solicitados a trabalhar com grupos. Nesse sentido, grupos de reflexão constituem importantes organizadores intersubjetivos para o cotidiano desses profissionais, com desdobramentos nas formas de pensar e de agir e, consequentemente, nos espaços sociais que ocupam.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido: 07 de dezembro de 2010
Aceito: 30 de agosto de 2011.

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