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Psicologia Ensino & Formação

Print version ISSN 2177-2061

Psicol. Ensino & Form. vol.2 no.1 Brasília  2011

 

RELATOS DE PESQUISA

 

Ética e dialogicidade na formação do Psicólogo

 

Ethics and dialogicity in the Psychologist's formation

 

 

Luciana Loyola Madeira Soares

Centro Universitário Celso Lisboa. Mestre em psicologia clínica - UVA. psi.lucianasoares@gmail.com

 

 


RESUMO

Este trabalho é um estudo teórico sobre os processos intersubjetivos na formação universitária do estudante da graduação em Psicologia. Enfatizamos como os processos relacionais vividos em sala de aula entre alunos e entre professor e aluno fomentam a produção do conceito de ética na constituição do aprendizado profissional do futuro psicólogo. A dialogicidade é considerada recurso de intervenção do professor, que tem diante de si o desafio de manejar as trocas intersubjetivas que emergem em sala de aula em meio a conteúdos pedagógicos, em uma formação acadêmica que se caracteriza propriamente pelo estudo da subjetividade.

Palavras-chave: Formação universitária do psicólogo. Subjetividade. Ética. Dialogicidade.


ABSTRACT

This is a theorical study on the intersubjective processes that occur in classroom during the period of the student's graduation in Psychology. We emphasized the relational processes that occur between teacher and students interfere in bringing an ethic condition to the future psychologist as we considered this professional charged with the task of transformation. We consider the dialogical methodology as being the most valid resource a teacher can have in classroom in the context of a graduation course in which subjectivity is the main purpose of the studies.

Key words: : the student in the graduation in Psychology, subjectivity, ethics, dialogical approach.


 

 

INTRODUÇÃO

Muitos aspectos podem ser abordados no âmbito das relações entre professores e alunos, porém aqui faremos um recorte para discutir a importância dessa rede relacional na formação ética do aluno da graduação em Psicologia.

Enfocaremos como, na universidade, o mestre oferece seu próprio encantamento com o aprender e o conhecer, de maneira a permitir ao aluno encantar-se com sua própria relação com o aprendizado e o conhecimento.

Nosso interesse pelo que se passa na graduação em Psicologia está ligado à nossa experiência discente e docente nessa área, na qual vamos constituindo uma história composta de muitas histórias que se montam com a integração de conteúdos pedagógicos e vivências pessoais na tessitura do que seja aprender a ser psicólogo no meio universitário. Entendemos a graduação em Psicologia como necessariamente tecida por fios de sustentação nas relações entre professores e alunos e nas dos alunos entre si. Isso efetivamente é uma compreensão que vai muito além do mero somatório entre conhecimentos teóricos e o acesso a ferramentas de cunho operacional e tecnicista para habilitar alguém que se candidata ao exercício da profissão de psicólogo. Acreditamos que a formação universitária de psicólogos não possa ser regulada pelos ditames de um sistema tecnicista e mercadológico, impondo competitividade e isolamento no interior do alunado e pressa e eficácia no fornecimento e na aquisição de conhecimentos ao par professor/aluno. Pensamos se a hegemonia dessa perspectiva em educação não afasta o psicólogo de uma experiência ética e de uma futura atuação profissional como agente de transformação.

Apresentamos a dialogicidade na relação entre alunos e entre professor e aluno como produtora de ética pela experiência da intersubjetividade. Lançando um olhar à não prontidão do sujeito, estudaremos o processo de aprendizagem do papel do psicólogo através da ativação da rede relacional que se forma entre alunos e entre professor e alunos na graduação em Psicologia, visando aos encontros e desencontros aí contidos.

A ética será apresentada como meio e propósito da experiência compartilhada de aprender, propiciando a transformação do passivo aluno-espectador em um sujeito com senso crítico e reflexivo, conforme postulou Paulo Freire.

 

PERSPECTIVAS ÉTICAS NA FORMAÇÃO ACADÊMICA DO PSICÓLOGO

Temos acompanhado progressiva modificação nos laços entre professores e alunos. Constatamos uma desvalorização da presença do mestre em sala de aula assim como nos processos de aprendizagem. Concomitantemente, o tema da violência nas escolas e contra as escolas é fenômeno mundial, porém notamos que é pouco discutida a descaracterização do mestre como figura de admiração no contexto pedagógico e como mediador das relações em sala de aula.

Interessa-nos a produção de subjetividade na graduação em Psicologia, e, para isso, apoiaremo-nos no encontro dialógico como a fonte de onde emergem os sentidos que produzem a noção de ética do sujeito. Propomos o seguinte questionamento: em um curso de graduação cujo objeto de estudo é justamente a produção de subjetividade, como se investe na vivência ética nas relações de sala de aula? O fato de encontrarmos somente nos últimos períodos do currículo uma disciplina denominada Ética Profissional abarca um desenvolvimento instrumental da noção de ética, ou seja, há de fato a conscientização de em que medida "a ética não é apenas procedimental como, sobretudo, destinada à existência do sujeito como um todo, e ao questionamento da mesma, com suas inevitáveis repercussões no dia a dia profissional?" (Veríssimo, 2008).

Ao valorizarmos a dimensão dialógica da produção de subjetividade, a prática social da educação aqui é compreendida como a própria gênese da ética do sujeito. Por subjetividade, entendemos a busca do que é singular nos processos de sentido e de significação que apontam uma perspectiva multidimensional, rompendo, portanto, dicotomias e linearidades. Consideramos o sujeito como ser ativo e criativo que, na relação, pode manter relativa autonomia e realizar novas construções, reinventando caminhos na parceria educativa, rompendo padrões pré-moldados nos quais sua autoria não aparece. (NEUBERN (data?) apud GONZÁLEZ-REY, 2005). A ética é vista como o leque de possibilidades e impedimentos a que está exposto o sujeito no decorrer de seu ciclo vital, como o mosaico que se forma pela configuração das diversidades humanas que se tocam e trocam em permanente processo de mutualidade, conforme Jurandir F. Costa (2000).

A busca desenfreada por resultados é o alvo de ações e projetos no contexto do mundo contemporâneo, assim como há protagonismo de temas como o da fragmentação, da descontinuidade, da hegemonia do individualismo, da substituição do modo presencial pelo virtual, do culto à juventude e à beleza física e à busca pela felicidade a qualquer preço como manifestações dos processos de subjetivação atuais nas religiões, na ciência, no campo das psicoterapias e também na educação. De qualquer maneira, ainda que se anuncie um esvaziamento de sentido na contemporaneidade, a dimensão relacional constituída a partir do encontro de alteridades permanece como o fio de ligação com a cultura, criando a possibilidade da interlocução. O encontro do aluno com seus colegas e com o professor cria a brecha para a produção de ética, fecundando o desejo de conhecer, e não só de obter informações instrumentalizadoras para uma ação mais eficaz, futuramente, na prática profissional.

Afirmamos, então, que educar é como fazer uma viagem sem a certeza do lugar a que se vai chegar. O professor, aquele que já fez e que ainda faz várias viagens ao ato de conhecer, faz-se presente como líder de um grupo que começa a dar seus passos rumo a descobertas, criações, impasses e superações, tão singulares quanto cada um deles. O desejo de conhecer fica sob o risco de sucumbir aos ditames da sofisticação metodológica e técnico-pedagógica utilizados para solucionar e substituir a relação presencial no aprendizado acadêmico. Apontamos a importância da integração entre o conhecimento teoricamente transmitido na sala de aula e o impacto que é vivenciado pelo sujeito na presença do outro: o outro que aprende e o outro que ensina.

A abertura para conhecer e construir conhecimento a partir da rede relacional em sala de aula cria condições para o favorecimento de um modo de aprendizagem, o qual contribui para uma reflexão sobre o impacto que o aprendizado lhe propõe, seja no plano da experiência subjetiva, seja no plano da necessária articulação que lhe cabe realizar em meio a tantas informações e conteúdos pedagógicos. Apontamos, assim, a significativa presença da disponibilidade para o outro, na abertura para o impacto que o conhecimento produz e como isso pode ser o caminho para o desejo de aprender problematizando. Esse modo de aprender é adquirido preferencialmente em presença do outro, portanto, leva em conta a singularidade dos sujeitos e depende da plena disponibilidade mútua dos participantes de um dado momento dialógico. Entendemos que esse é um modo que dá vez à criatividade na busca por formulações relacionais que façam sentido para os que tomam parte na situação. A dialogicidade é, portanto, a forma que melhor poderá possibilitar ao aluno o desenvolvimento de uma intervenção transformadora no mundo.

Sabemos que o professor acessa o aluno pela fala; ele é um profissional da fala; é, porém, da mesma forma, um profissional da escuta, da atenção às manifestações da singularidade de cada um, que sua própria fala ajudou a suscitar. Então, precisamos pensar em uma fala que esteja articulada a uma escuta diferenciada daquilo a que se dispõe fazer um psicoterapeuta ou psicanalista na clínica bipessoal. Ao reconhecer o investimento que lhe é dirigido, o professor disponibiliza-se para um encontro com o aluno, sem o qual a relação educativa apenas cumprirá a função objetiva de transmissão de conteúdos pedagógicos, sem cuidados, sem criatividade, sem escuta às demandas do aprendiz.

O professor tem a oportunidade de despertar em cada aluno a percepção de que o aprendizado é algo que vai se dar no encontro com a alteridade. No entanto, não se trata de eliminar a agressividade das relações grupais, o que seria uma higienização hipocritamente autoritária.

Transpondo essa afirmação para nosso tema, podemos pensar no estímulo à experiência de criação de projetos e produção compartilhados como um caminho para a canalização do investimento energético dos grupos; seria essa uma possibilidade de colaborar para a transformação de cada elemento da sala de aula em parceiro da construção de aprendizagem.

 

DOIS OLHARES SOBRE AS RELAÇÕES NA CONTEMPORANEIDADE

Walter Benjamin (1915, 2007) considerava que a Universidade se encontrava em situação de franca dissociação dos processos criativos. Segundo ele, o ensino acadêmico já estaria inclinado à profissionalização, preponderando o aprendizado por imitação em detrimento do incentivo ao espírito crítico. Benjamin (2007) alertava para o prenúncio de uma realidade universitária fragmentada e fragmentadora, que se opunha a uma visão integradora do grupo de estudantes e, portanto, da própria sociedade.

Nesse panorama, buscamos estudar as condições de investir em uma perspectiva mais alentadora, discutindo as possibilidades de propiciar o caminho da criatividade e do espírito crítico juntamente à transmissão de conhecimento teórico e técnico na formação do futuro psicólogo durante sua permanência na universidade. A principal característica de nossa proposta consiste em trilhar esse caminho seguindo o viés da ética pela dialogicidade.

Em Z. Bauman (1998), encontramos uma visão crítica do mundo pós-moderno, no qual o valor supremo é a liberdade individual, o prazer pessoal. Segundo o autor, no processo de subjetivação, a partir do século XVIII, surgiu a clássica divisão entre os que detinham o poder e aqueles sobre os quais incidiam as ações e determinações dos primeiros.

A estrutura seccionou a visão do mundo, dividindo os seres humanos em aqueles que fazem e aqueles que 'são feitos', os escultores e os esculpidos, professores e alunos, os treinadores e os treinados, os guias e os guiados. [...]

A mesma divisão constituiu os pensadores, os cultos, os instruídos, como professores, educadores e mentores morais - simultaneamente os domadores de animais selvagens e ourives magistrais. Por fim, constituiu o mundo como o teatro do seu encontro: o reino da socialização, educação, ensino e aprendizado. (p.162).

Vemos que isso marca até hoje a produção de subjetividade na Academia. Bauman (1998) utiliza a expressão fábrica de ordem para nomear a noção de cultura nos processos de subjetivação nas instituições na modernidade, modelo que cuidava da "coerência e coesão das condições, na esperança de que a unidade das circunstâncias resultasse na uniformidade da conduta dos pupilos." (p.163). Com o termo cooperativa de consumidores (p.168), Bauman (1998) indica a tendência a reunir sujeitos pelo foco no consumo da cultura. Observamos isso nas relações do âmbito da educação, inclusive na graduação em Psicologia, onde encontramos alunos buscando adquirir individualmente um saber como se fosse um produto em um shopping-center. O papel de consumidor parece, portanto, aplicar-se também à atitude na Universidade.

A metáfora da cooperativa de consumidores é complementada pela metáfora de mercado, que pode ser visualizado como um local do jogo de oferta e procura. Além disso, o processo de mercadorização é simultaneamente o ato de nascimento do consumidor: mercadorias potenciais e compradores potenciais realizam-se juntos. (Bauman, 1998, p.172).

Concordamos com Bauman, pois, em nossa prática docente, nós nos deparamos com esse novo paradigma em subjetivação que aparece no empenho individualizado de adquirir o ofício de psicólogo pelo domínio de ferramentas básicas para o exercício futuro da profissão. Essa perspectiva indica a tendência ao afastamento da construção do papel de psicólogo por meio de uma formulação intersubjetiva, que propicia o desenvolvimento do coletivo. Entendemos que o professor tenha também sua parcela de responsabilidade no investimento relacional em uma formação universitária que pode tanto limitar-se a ficar voltada para o mercado consumidor, formando consumidores que serão consumidos por outros consumidores, ou agir de modo a contribuir para habilitar seus alunos para uma prática criativa e crítica, formando agentes de transformação.

 

REUNINDO VISÕES SOBRE A FORMAÇÃO UNIVERSITÁRIA EM PSICOLOGIA

Focalizando autores brasileiros que têm estudado os temas ligados à formação acadêmica do psicólogo, consultamos a revista Psicologia: Ciência e Profissão, editada pelo Conselho Federal de Psicologia como veículo representativo das publicações e comunicações da nossa categoria profissional. Encontramos autores (em geral, docentes universitários) comprometidos com essa discussão, especialmente em textos datados da última década do século passado, quando se debatia a reformulação dos currículos na graduação em Psicologia, visando a um curso que se adequasse aos novos movimentos sociais e políticos do País e às novas demandas que interpelam o psicólogo.

Pardo, Mangieri e Nucci, pesquisando os aspectos mais presentes nas publicações que se referissem ao tema da formação universitária do psicólogo, dos quais pudessem obter um modelo de análise para a profissão, afirmaram que "a profissão é um fenômeno composto de outros fenômenos" (1998, p.16). Segundo os autores, os fenômenos que compunham à época da pesquisa o fenômeno da profissão eram: o objeto de estudo, procedimentos e técnicas, o Código de Ética e, por fim, a legislação (p.18). Tendo elencado fenômenos que compunham um modelo de análise para a formação acadêmica do psicólogo, os autores demonstraram que os resultados obtidos evidenciaram que a maioria dos textos pesquisados enfatizava aspectos estruturais do curso de Psicologia, enquanto a minoria (cerca de 2,4%) se referia a questões de ética. Os aspectos relativos à atuação do professor e à do aluno foram também pouco contemplados nos trabalhos científicos avaliados na pesquisa. Essas informações revelam que os aspectos intersubjetivos na formação do estudante de Psicologia não vinham sendo privilegiados como objeto de atenção e estudo por parte do próprio psicólogo na produção de textos científicos. Uma busca por artigos publicados recentemente em periódicos indica que parece não haver significativo aumento do número de produções voltadas para o tema da ética e para a relação entre professor e alunos e dos alunos entre si durante a formação acadêmica do psicólogo, o que nos permite concluir que o quadro apresentado pelos autores ainda não apresentou considerável mudança.

Holanda (1970, p.5), em um texto em que examinou a relação entre formação profissional e exercício profissional, defendeu a necessidade de uma parceria mais integrada entre universidades, Conselhos Federal e Regionais de Psicologia e psicólogos em favor de uma articulação e desenvolvimento da formação, da ciência e da profissão. O autor indicou que, para as inquietações quanto à formação do psicólogo, o caminho tentado para o exame do problema ainda era o da reforma do currículo, que, do nosso ponto de vista, até hoje não consegue gerir a crise na formação acadêmica. Nessa mesma linha, Holanda afirmou: "É preciso que o psicólogo assuma seu papel como transformador da realidade e, para isso, é fundamental que a formação seja engajada com um compromisso ético." (p.6).

Moura também nos apresentou uma discussão sobre a urgência de se considerar a graduação em Psicologia sob a perspectiva da formação de um psicólogo transformador. A autora criticou a visão psicologizante da realidade que dominava à época a formação do psicólogo, levando-o a um raciocínio moldado pelas explicações individualizadas e individualizantes dos sujeitos, como se não fossem participantes do contexto cultural e social. Moura apontou uma prática curricular generalista e crítica como o caminho para a formação de um profissional da transformação: "... Já temos uma referência sobre o que precisamos e queremos fazer: construir um profissional capaz de empreender uma prática pluralista, crítica e transformadora, que saiba reconhecer as demandas de intervenção e propor caminhos que atendam a essas demandas." (1999, p.19).

Carvalho e Sampaio (1997), em um estudo em que examinaram a formação do psicólogo e as áreas de atuação profissional contempladas pelo curso de graduação em Psicologia, verificaram que, na época de sua regulamentação pela Lei nº 4119, de agosto de 1962, o curso se voltava para a formação teórica e técnica, não considerando os aspectos subjetivos e intersubjetivos presentes no processo pedagógico. Os autores salientaram que as defasagens entre currículo e efetivo preparo para o exercício da profissão tornaram os estágios, em alguma medida, ainda hoje em dia, lugares de descarga da tensão que se estabelece ao longo dos períodos do curso.

Sensíveis a essa questão, os Conselhos Regionais de Psicologia, o Conselho Federal de Psicologia e a Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP) têm mantido fóruns de discussão acerca da necessidade de se rever essa visão inicial do currículo de Psicologia. As novas diretrizes curriculares recomendam que, no chamado núcleo comum da graduação, sejam oferecidas mais atividades práticas entremeadas às disciplinas teóricas, de modo a antecipar as aproximações entre estudantes e comunidade e ampliar o conhecimento de recursos de observação e de intervenção. Mesmo que o objetivo dessa medida não seja especificamente o âmbito relacional, trata-se de um significativo avanço nas possibilidades de investimento nos processos dialógicos na formação universitária do futuro psicólogo. Essas atividades, assim como os estágios, por serem acompanhados e supervisionados em grupos pequenos, proporcionam ao aluno uma proximidade maior entre si e com o supervisor, até então pouco conhecida ou até mesmo desconhecida. Isso propicia ao supervisor e a seu grupo de estagiários um campo de experimentação intersubjetiva e de construção ética através de vivências e reflexões sobre a prática, com respectiva articulação teórica. Entendemos que essa troca intersubjetiva é o que efetivamente faz a diferença em se tratando do futuro exercício profissional do psicólogo.

Para Carvalho e Sampaio (1997), só a reformulação curricular não é suficiente para o aprimoramento da formação universitária do estudante de Psicologia. Os autores propõem uma permanente atitude científica que contemple a perspectiva da intenção pesquisadora ao longo da graduação, apresentando uma linha de trabalho na Academia que privilegia a atitude crítica como provocação permanente ao estudante.

Em outro trabalho, apontamos que "[...] não pretendemos formar um aluno da graduação em Psicologia repetidor de teorias e mero aplicador de técnicas, totalmente dominado pela fala de seus mestres - isso seria formatar, e não formar um futuro profissional." (Soares, 2009, p. 40).

Entendemos que a relação entre alunos e entre professor/aluno na graduação em Psicologia corresponde à recíproca promoção de senso crítico, criando abertura à mútua instigação que o contato com os conteúdos pedagógicos do curso de Psicologia provoca e que permanentemente os convoca a desenvolver a ética.

 

DESTACANDO O PAPEL DO PROFESSOR NA PRODUÇÃO DE ÉTICA

Sublinhamos o lugar fundamental que o investimento afetivo ocupa no aprendizado, pois subverte o engessamento do senso comum do contrato pedagógico, que pressupõe posições/papéis previamente determinados e determinantes em um contexto de dominação educacional, ao envolver os sujeitos no processo de aprendizagem através de uma relação em que os afetos, as histórias de vida e a atitude crítica tomam parte e abrem espaço para criar o que não está aí, retirando de cena o primado do que vem pronto para ser repetido, consumido e não digerido.

Em nossa dissertação de mestrado, colocamos nosso entendimento acerca do que é no âmbito relacional:

Pensando no cenário que na Academia se monta para o aprendizado, cabe perguntar quem é o protagonista. Na visão do aluno, é o professor? E, na visão do professor, é o aluno? Neste trabalho, pretendemos colocar como protagonista a relação entre professor e alunos, e entre alunos entre si, como o que muito se ignora e que, no entanto, efetivamente marca a diferença na formação do psicólogo. No entanto, como olhar para a relação 'protagonista' da cena educativa, em meio a tantas outras relações que lá se presentificam? Como lidar com ela? Propomo-nos a dirigir nosso olhar ao que circula entre alunos e entre professor e aluno, ao que está aí e ao que não está tão evidente, ao que pode ser criado, construído, trazido ao olhar, 'des-coberto'. (Soares, 2009, pp.41-42).

De fato, o que sabe um professor sobre um aluno? Apenas sabe que não sabe sobre ele mais do que o próprio possa vir a saber. Ao dar espaço ao que não sabe, ele enseja abertura ao que o aluno não sabe, oferecendo-lhe assim a oportunidade de aprender sobre seu próprio modo de vir a conhecer. O professor oferece sua relação com o conhecimento; seu encantamento com o seu peculiar aprender a ser psicólogo indica sua própria caminhada em direção a conhecer e a conhecer-se como sujeito da aprendizagem. Isso não significa tornar-se um modelo de aprendizagem para o aluno, mas pode servir-lhe de instigação para que ele veja o seu próprio desejo de conhecer. Atento à alteridade, o professor cria uma abertura para receber o modo como o aluno aprende, encantando-se com a singularidade de seu aprender, favorecendo, assim, o encantamento do aluno com seu próprio aprender a ser psicólogo.

O professor aprende ensinando e ensina aprendendo - sobretudo aprende e ensina a partir da perspectiva de que é um permanente aprendiz de si mesmo, do outro e do modo como este aprende a conhecer. Não insinuamos ingenuamente que o professor deva ser mais um aluno em sala de aula; a diferença de papéis e funções precisa estar claramente definida, pois a troca intersubjetiva se dá em presença da alteridade. Naquele cenário, passam diferentes histórias, diferentes experiências, conhecimentos, objetivos, projetos, aprendizados, a diferença possibilitando o encontro.

Garcia oferece-nos suas reflexões acerca da importância da relação entre professor e aluno nos cursos de formação de profissionais. Embora em seu texto o autor aborde especificamente a formação de professores, articulamos suas ideias com as nossas quanto à formação de psicólogos:

Na relação pedagógica, o que se aprende não é tanto o que se ensina (o conteúdo), mas o tipo de vínculo educador-educando que se dá na relação. Se o vínculo é autoritário - ainda que maneira paternalista ou 'democrática' - os alunos, os futuros professores, em nosso caso, assumirão uma postura autoritária diante de seus próprios alunos, apesar de lhes haver sido ensinado enfaticamente que a educação deve ser 'libertadora'. O educando modifica suas atitudes (aprende) porque estabelece um vínculo com o educador - e com o saber, como veremos; o caráter desse vínculo condiciona o caráter da aprendizagem. (1989, p. 346).

Afirmamos que, para ser psicólogo, não basta ter contato com os ensinamentos contidos no currículo, nas pesquisas acadêmicas, nas palestras e eventos dos quais se participa, pois, se assim fosse, bastaria ler livros e passivamente assistir ao que se passa na universidade para tornar-se psicólogo, e bem sabemos que não é esse o caso. Reiteramos que isso não condiz com a formação do psicólogo como agente de transformações.

Concordamos com Garcia que a estereotipia estabelece a reprodução de repetidores de um modelo profissional formatado no conceito de detenção de poder do conhecimento dos fenômenos psicológicos, sem compromisso com o fluir subjetivo. Concluímos que, na estereotipia, ficam engessadas as subjetividades por impedimento das produções compartilhadas, portanto, não há condições para a gênese de ética.

Ponderamos também que a noção de aprendizagem como um acontecimento singular do sujeito não se coaduna com a noção de autonomia se esta corresponder simplesmente à ideia de uma independência desvinculada do outro. A aprendizagem, como experiência subjetiva e intersubjetiva, envolve tanto as noções de autonomia e heteronomia quanto a de mutualidade.

Cunha, ao estudar a constituição do papel e da função do professor pelas noções de subjetividade e intersubjetividade no dia a dia da sala de aula, valorizou a subjetividade nos papéis sociais que se estabelecem nos processos de docência, dos quais não se pode excluir a presença de um sujeito para o outro em benefício dos conteúdos pedagógicos (2005, p.197). A autora afirma que "os funcionamentos interpsicológico e intrapsicológico guardam entre si uma relação dialética, o que permite pensar a relação inter-intrapsicológico em termos de dialogia e da participação do outro na constituição do sujeito" (p.203). Para Cunha, a singularidade do processo de aprendizagem reside na interação, que produz subjetividade através da transformação de papéis e de funções sociais em funções psicológicas superiores:

A subjetividade constitui-se a partir de redes (relações) comunicativo-dialógicas que se estabelecem entre as pessoas; por isso, um estudo sobre professores não pode deixar de considerá-los como sujeitos e de buscar compreendê-los na relação com grupos e subgrupos da escola: os alunos e outros profissionais que participam diretamente da construção do dia a dia dessa instituição. (2005, p.210).

Nessa linha, Tacca enfatiza a importância de se compreender todo processo de aprendizagem através das relações que são estabelecidas em sala de aula. Encontramos sua convicção de que a aprendizagem se dá por processo de trocas intersubjetivas e que a subjetividade se constitui e se reconstitui no sistema de interações do sujeito em seu contexto de relações:

Podemos destacar a sala de aula e a escola como contextos precípuos de configuração da subjetividade, [...] pela força que sabemos ter em nós os amigos e os professores com os quais convivemos. (2005, p.216).

Nesse sentido, é impróprio considerar uma lógica do intrapsíquico e outra do interpsíquico. [...] Tal sujeito é, assim, a expressão de seu sistema atual de interações, bem como a expressão da história de suas relações. (2005, p.216).

O processo de aprendizagem, assim, só pode ser analisado, interpretado e compreendido acontecendo na integração do individual com o social [...] (pp. 216- 217)

Pensando na graduação em Psicologia, as contribuições de Garcia, de Cunha e de Tacca nos lembram que o sentido daquilo que é transmitido emerge da malha intersubjetiva que se forma entre alunos e entre professor e alunos. Portanto, juntamente com a transmissão do conteúdo pedagógico, é criado o sentido de papel e função profissional, que cada aluno vai elaborar de maneira única em sua experiência de aprender. Postulamos, então, que a aprendizagem brota junto com um sentido. Na graduação em Psicologia, ao lidar com o conteúdo pedagógico, o aluno presentifica a possibilidade de criar uma relação singular com a futura profissão.

Fernández aborda a importância do professor universitário na permissão ao aluno para o desejo de conhecer. Ela indica que, ao perceber-se criando e recriando sua relação com o conhecer, o professor não obstrui a visão do aluno na direção do conhecimento, e é precisamente isso que encanta o aluno: descobrir que pode encantar-se com sua singular caminhada rumo ao conhecer e conhecer-se, legitimando-se como sujeito da aprendizagem. A esse respeito, a autora comenta sobre a impossibilidade de um docente interessado em motivar os alunos para aprendizagem, em pautar suas atividades em técnicas: "A questão básica a considerar é uma mudança de atitude, não uma mudança de técnica. Temos tido muitas técnicas, e certamente vai haver muitas outras melhores. Além disso, as técnicas são necessárias, mas não resolvem a questão." (1994, p.165).

Voltando a Garcia, as funções de um docente comprometido com a educação libertadora seriam: romper o estereótipo do vínculo dependente, mesclando diretividade com não diretividade, isto é, ter objetivos, sem ser autoritário. Concordamos, acrescentando que o docente deve instar os alunos a verificar seus próprios objetivos e os modos de lidar com os colegas, com o professor, com o conhecimento e com sua maneira de conhecer. Dessa forma, pretendemos favorecer no aluno uma revisão dos modelos já assimilados em contraste com a singularidade de seu propósito com a própria formação profissional. Garcia acrescenta que cabe ao professor desvelar os ditos e os não vistos na dinâmica do grupo de alunos da turma, estabelecer uma parceria com o processo de aprendizagem do aluno, de modo que este possa ser estimulado à autonomia de estudar, pesquisar, refletir, duvidar, criticar, enfim, de manejar criativamente sua relação com o conhecimento e de sinalizar os fenômenos relacionais e aproveitá-los para o aprendizado coletivo. Acreditamos, porém, que seja possível uma atitude pedagógica que abarque as articulações no interior do grupo, de modo a trazer à tona tudo o que contribua para um entendimento dos fenômenos relacionais que facilitam ou obstruem a aprendizagem.

O assinalamento do professor pode ser não diretivo, pois não tem o intuito de correção, mas sim, o de sugerir que se perceba algo que ali está dando o sinal de sua presença. Nesse contexto, o grupo passa a poder dedicar-se à tarefa de aprender a ser psicólogo através de um vínculo/parceria de construção coletiva a partir do encontro com a alteridade, uma vez que o professor entra em cena como um facilitador das experiências de conhecer pelo ato de conhecer-se como sujeito da aprendizagem.

Sem receber a palavra do aluno, não há como conhecê-lo, não há como saber-se participando de sua formação, nem como identificar sua demanda. Em cada palavra dirigida ao professor, há tanto um pedido quanto um oferecimento. Cria-se uma possibilidade de encontro de singularidades - um evento intersubjetivo, que é o que aqui nos importa. O pedido e o oferecimento do aluno podem vir sob formas e tonalidades afetivas diversas. Venha como vier, ali está o aluno presentificando-se, ousando ir além da formatação do passivo recebedor de ferramentas que o habilitarão tecnicamente. Mais que informação, ele solicita algo ao professor: minimamente ser percebido em sua singularidade, oferecendo-se subjetivamente em meio à massa de alunos da turma.

Ao acolher esse pedido/oferecimento/apresentação, o docente estabelece uma validação daquele sujeito, medida que se alinhava ao dado objetivo da informação referente ao conteúdo pedagógico em foco. Pondo lado a lado a confirmação do sujeito e a investigação do conhecimento relativo ao conteúdo da disciplina, o professor encarna propriamente o regente, aquele que rege, integrando e harmonizando diferentes sons, vozes. O professor pode encaminhar a cena pedagógica na direção de transformar a sala de aula em um campo para as experiências subjetivas da turma, que, enquanto lidam com o conteúdo da disciplina, criam-se e recriam-se no encontro intersubjetivo, dando vez à experiência ética, portanto.

Na rede intersubjetiva da sala de aula na graduação em Psicologia, não há como professores e alunos esquivarem-se do impacto que o conteúdo das disciplinas relativas ao estudo dos fenômenos psicológicos provoca e evoca. Entendemos que esse impacto produz mobilizações imprevisíveis, revivescências, questionamentos, curiosidades e inquietações. Tudo isso cria as condições para aquecer a malha relacional tecida pelas implicações singulares dos sujeitos no processo acadêmico, tanto do professor quanto dos alunos.

Desviar-se desses impactos e não reconhecer o espaço relacional acadêmico como um dispositivo produtor de ética pode constituir-se em uma antiaprendizagem, ou antiensino, o que redunda em direcionar a Universidade para o treinamento de técnicos destinados a assumir o posto de responsabilidade pela reificação dos fenômenos psicológicos, profissionais descomprometidos com a ação transformadora. Afinal, como aprender sobre subjetividade desviando-se da troca intersubjetiva?

 

DIALOGIDADE E GÊNESE DA ÉTICA NA GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

Paulo Freire nos inspira a pensar sobre a educação pela perspectiva dialógica indicando o processo de ensino e aprendizagem como uma prática na qual tanto alunos quanto professor estão pessoalmente envolvidos. Seu percurso como educador mostra uma dedicação singular ao processo: a cada relação com cada turma, com cada aluno, age como se estivesse se deparando com a docência pela primeira vez, procurando o novo como novo, olhando com olhos de quem quer conhecer, e com a audição de quem quer efetivamente escutar.

Amatuzzi (1989) estudou a fecundidade do método pedagógico de Paulo Freire a partir da perspectiva dialógica. Interessado na força transformadora da palavra própria, Amatuzzi coloca que, para Freire, o movimento do qual esta emerge é o da ação transformadora. Freire crê no movimento do sujeito em direção à autenticidade, o que está relacionado à busca pela transformação do mundo. Segundo ele, o que permite que a palavra própria do aluno surja é a disposição do professor para a escuta (2001, p.74). Freire destaca a mútua disponibilidade para a escuta e a ousadia de expor-se ao responder ao interlocutor, enfatizando o falar com e o ouvir-participar como resgate para a fala própria, o que em si já constitui a ação transformadora no mundo a partir das relações em sala de aula. Para ele, isso é diferente do falar para, falar sobre e ouvir-observar.

De acordo com Amatuzzi (1989), a educação não pode vir simplesmente para preencher o sujeito de conteúdos; a palavra autêntica questiona enquanto designa uma busca. Ainda segundo esse autor, a palavra própria surge dos encontros dialógicos entre os sujeitos juntamente à formulação de sentido acerca do mundo. Assim, a palavra autêntica emerge como possibilidade intersubjetiva, da mesma maneira como a ação transformadora do mundo.

Paulo Freire (1996) defende a ideia de que o movimento crítico, reflexivo e dialógico que flui em sala de aula deve ser o ponto de partida para a ação, pois, praticando o reconhecimento da alteridade e o diálogo entre as diferenças a partir da relação professor/aluno e alunos/alunos, o estudante já estará praticando a atitude revolucionária, em uma construção intersubjetiva, agindo pela transformação.

Segundo Amatuzzi, Paulo Freire afirmava que a transformação por ele defendida só ocorre mediante dialogicidade, a qual envolve um profundo senso de união e de amor diante das diferenças entre os sujeitos - um fala com o outro. Não se pode esperar transformação, e sim, repetição, quando não há diálogo. Esse modelo estático e engessado de relação formata alunos, exclui a compreensão e os conserva sujeitos sem palavra própria e sem conseguir manejar seu desejo de aprender e de produzir seu saber.

Em trabalho de 2009, afirmamos que, ao olhar o aluno com olhos de quem quer conhecer, o professor dirige-se ao modo como ele, em sua singularidade, aprende naquele grupo. Perguntamo-nos se essa atitude favorece o aluno para que ele também possa perceber para onde dirige seu olhar. O professor pode encantar o aluno com seu modo de conhecer, levando-o, pela dialogicidade, a encantar-se em descobrir seu próprio modo de vir a conhecer produzindo conhecimento. Habilitado a fazer uma leitura crítica do mundo ao fazer uma leitura crítica das relações em sala de aula, amplia-se também sua experiência amorosa na relação com o mundo.

Em outro texto (Soares & Veríssimo), indicamos que

[...] a reflexão sobre a aplicação da metodologia pedagógica de Paulo Freire seja especialmente proveitosa, se na universidade estamos formando profissionais da escuta, da atenção, da compreensão, comprometidos com a transformação e capacitados a contribuir para que outros sujeitos resgatem a condição de pronunciar sua própria palavra. Quando o professor se pensa 'formado', transmite ao aprendiz a noção de que em breve ele também estará 'formado', no sentido de estar 'pronto', o que encerra as possibilidades de fomentar o permanente desenvolvimento. (2010, p.599).

O reconhecimento à manifestação das subjetividades indica a não neutralidade dos processos educacionais. O modo como o professor identifica, acolhe e maneja as relações em aula também não é neutro, pois depende de sua atitude ética. Para Freire (1996), a prática docente é, necessariamente, profundamente ética, pois traz como exigência a interlocução entre as diferenças. Toda manifestação em sala de aula precisa, segundo ele, ser acolhida, lida e tratada pelo diálogo entre as alteridades. Isso é bem diferente da ética de mercado, que preconiza o fatalismo, a competitividade como opção única, as vantagens pessoais; é a ética universal do humano (Freire, 1996, p.15) que nos interessa, aquela que abarca a diversidade das possibilidades humanas.

Defendemos a ideia de que, sem essa ética, a formação do psicólogo perde sua característica de movimento de contracultura e de valorização de relações repletas de conteúdo de memórias e de afetos (Soares, 2009). Acreditamos que as chamadas leis de mercado não devem impor ao estudante uma formação com ênfase nos aspectos técnicos em detrimento de uma proposta que o leve a refletir sobre sua condição de sujeito sociohistórico, dotado de histórias pessoais, de afetos e de sonhos.

De outra maneira, formaremos psicólogos-anestesistas, a partir de estudantes que estão sendo formatados em relações de saber exclusivamente reprodutoras das epistemologias e das técnicas instituídas, para futuramente formatar em outras relações de exclusão. Mais tarde, já de posse do diploma, ficará o psicólogo legitimado a agir em duas direções: aprofundar as relações de exclusão e reprodução ou, como preferimos, promover a reflexão para a transformação.

Acreditamos na urgência de indagarmos se, na graduação em Psicologia, estamos alfabetizando estudantes para habilitá-los a uma leitura crítica e afetiva das relações das quais participa, de modo a favorecer que venham a proferir sua própria palavra e, a partir disso, uma ampliação da percepção e da compreensão. É questionável formar futuros psicólogos que na Academia só aprenderam a falar a palavra do enquadramento disciplinar que trazem consigo. Estaremos favorecendo a visão de uma prática profissional elitizada e elitizante?

O pensamento de Paulo Freire é ilustrado filosoficamente com Martin Buber (2007), que pretende uma ontologia da existência humana a partir do diálogo: a existência dialógica. Esta se caracteriza por: palavra, relação, diálogo, mutualidade, reciprocidade, disponibilidade, subjetividade, pessoa, responsabilidade, decisão/liberdade, inter-humano, compreensão. Buber enfatiza a importância do com e do entre. Diálogo autêntico é diferente de palavreado; falar não é necessariamente dialogar. Vejamos as palavras do próprio Buber: "Decididamente, a maior parte daquilo que se denomina hoje entre os homens conversação deveria ser designado [...] de palavreado. Em geral, os homens não falam realmente um-ao-outro, mas, cada um, embora esteja voltado para o outro, fala, na verdade, a uma instância fictícia, cuja existência se reduz ao fato de escutá-lo" (2007, p.145). De acordo com Amatuzzi, para Buber, dialogar é falar com o outro em uma perspectiva de mutualidade. O diálogo genuíno enseja o vir-a-ser, pois permite possibilidades até então não experimentadas. O sujeito constitui-se na relação, assim como a constitui. O ético emerge no encontro de subjetividades que se constituem reciprocamente.

Buber (2006) contempla duas palavras-princípio: EU e TU e EU-ISSO. Necessariamente, ambos os participantes conectam-se no encontro. Entre EU e TU, não há objetivos ou metas, desejos ou antecipações, somem os jogos de conceitos, as ideias preconcebidas, as memórias se ressignificam. EU e TU somos responsáveis pela criação. Na relação dialógica, o que acontece se dá entre EU e TU. EU-ISSO se refere à relação objetivada entre homens e à relação entre homens e coisas. O que se apresenta diante de um EU pode ser um TU ou um ISSO, tudo depende da atitude do EU. A palavra-princípio EU e TU só pode ser falada com todo o ser; a palavra-princípio EU-ISSO, jamais.

As condições para haver diálogo genuíno, para Buber, segundo Amatuzzi, são a genuinidade/autenticidade, quando os participantes se mostram sem querer parecer algo (ISSO) um para o outro; existe a percepção do parceiro - olhar com olhos de quem quer ver, tendo uma visão não acumulativa de dados sobre o sujeito da interlocução, sem pretender controlar, sem reter poder, visão de reflexão, não de imposição mútua - de respeito à diferença, à autonomia, de confirmação mútua - de legitimar o sujeito da interlocução sem necessariamente concordar com ele; imprevisibilidade - de não se poder determinar o que vai acontecer; de participação ativa dos sujeitos em interlocução; fecundidade - novos sentidos surgem no acontecer e no desdobrar-se do diálogo.

Buber (2007) distingue três tipos de diálogo: o autêntico, o técnico e o monólogo disfarçado de diálogo. O primeiro é o que o autor considera o mais raro atualmente; o segundo é da ordem das trocas de informações objetivas, e é bastante utilizado; o terceiro refere-se a muitas das situações de palavreado que são vividas no dia a dia disfarçadas de diálogo. Em síntese, constatamos um nítido predomínio da palavra-princípio EU-ISSO, em detrimento da EU e TU.

Buber (2006) ressalta que a educação não pode ser traduzida como diálogo pleno (do primeiro tipo), pois nesse contexto há uma diferenciação de papéis que é essencial para definir o que se passa entre os interlocutores. Afinal, a desigualdade de poder na relação é incompatível com a mutualidade. Porém, mesmo assim, Buber prefere definir a relação professor-aluno como um tipo específico de EU e TU, pois não há o mesmo envolvimento de ambas as partes devido à obrigatoriedade de diferença de papéis.

Refletimos sobre as trocas verbais e não verbais em sala de aula como classificáveis entre o segundo e o terceiro tipos buberianos de diálogo. De fato, o professor fala aos alunos, estes falam entre si e com o professor, porém de um modo em que as alteridades nem chegam a perceber-se na maioria das vezes, embora se manifestem a todo momento. O tom predominante é o das trocas de informações genéricas e predeterminadas pelos conteúdos programáticos, sem que se dê espaço para uma fala e uma escuta as mais autênticas possível; o palavreado os engessará em uma condição de isolamento e de aprendizado segmentado por individualidades cortantes e não interpenetrantes, de onde também não brotará a ética. Enfim, propomos que o sentido ético na formação universitária do futuro psicólogo pode advir de tentativas autenticamente dialógicas nas experiências cotidianas em sala de aula.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme expusemos, a noção de dialogicidade aqui foi mostrada como o viés para a experiência compartilhada de aprender, propiciando a transformação do passivo aluno-espectador em um sujeito com senso crítico e reflexivo, conforme postulou Paulo Freire, partidário que era da perspectiva dialógica em educação. Posicionando professor e aluno no plano do encontro pela palavra, referimo-nos à abordagem dialógica de Martin Buber fundamentada na dialogicidade, que, no entanto, não representa igualdade ou unanimidade no ato educativo.

Indicamos que a tarefa do mestre de futuros psicólogos é a de investir na relação com o aluno de modo a prepará-lo para a realização de uma leitura do mundo, o que inclui trazer para as relações de sala de aula a afetividade e a sensibilidade através da dialogicidade. Na graduação em Psicologia, essa tarefa assume a função de produtora de subjetividade na formação de profissionais que trabalharão com a subjetividade.

Apontamos na direção de um aprendizado para a autonomia de pensamento e de ação enfatizando, no entanto, que, dialeticamente, o aprendizado da autonomia se apoia na heteronomia: todos em sala de aula como parceiro(s) para a experiência compartilhada do aprender sobre si, sobre o outro, sobre o mundo. As interrogações e interpelações dos alunos indicam o caminho para que o professor conduza os processos relacionais em sala de aula de modo a levar cada aluno a se interrogar sobre o que quer e precisa saber, sobre o sentido de sua busca, sobre o conhecimento que está obtendo e sobre o que está fazendo para viabilizar seu próprio aprendizado.

Assim, sinalizamos a importância de o professor colocar-se para os alunos como um preceptor: aquele que os precedeu, mas que não conhece o final do caminho por não ter chegado lá, e que sabe que nem ele nem ninguém mais chegarão. O mestre de futuros psicólogos não tem o saber concluído, não dispõe de fórmulas de sucesso nem de garantias de apaziguamento, porém, pode lidar com o que emerge a cada situação, reconhecendo as alteridades, fazendo parte de um aprendizado e de um crescimento coletivos. Entendemos que isso é a própria ética indispensável à formação acadêmica do futuro psicólogo.

Acreditamos que, ao estabelecermos pontes entre os pensamentos dos autores aqui elencados, estabelecemos uma nova configuração que venha a abrigar os contrastes e a favorecer o intercâmbio e o entendimento na formulação de novas possibilidades nas relações entre professores e alunos na formação universitária do futuro psicólogo.

Entendemos que educar é possibilitar a transformação sem impedi-la; inicialmente, faz parte da habilidade do professor perceber o encantamento do aluno pelo modo como o mestre se encanta com o conhecer, porém, sem tornar o aluno refém do narcisismo do próprio mestre. Defendemos uma prática pedagógica libertadora, em que o professor permita que o aluno, conhecendo-se através de sua busca pelo conhecer, encante-se com sua maneira singular de aprender e de produzir conhecimento e assim, transforme-se e torne-se um profissional da ética, um psicólogo agente de transformação.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido: 19 de janeiro de 2011
Aceito: 19 de abril de 2011.

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