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Psicologia Ensino & Formação

versão impressa ISSN 2177-2061

Psicol. Ensino & Form. vol.2 no.1 Brasília  2011

 

ESTUDOS E ENSAIOS

 

Formação em Psicologia: entre a Psicanálise e a Promoção de Saúde

 

Qualification in Psychology: between Psychoanalysis and Health Promotion

 

 

Jerto Cardoso da SilvaI; Edna Linhares GarciaII

IUniversidade de Santa Cruz do Sul. Doutor em estudos da linguagem-UFRGS. jerto@unisc.br
IIUniversidade de Santa Cruz do Sul. Doutora em psicologia clínica- PUC-SP. edna@unisc.br

 

 


RESUMO

Este trabalho consiste em uma reflexão sobre a formação do psicólogo como profissional de saúde fundamentada na ideia de promoção de saúde como algo que envolve as condições de existência e de produção de subjetividades. Consideramos, nessa formação, a dimensão do desejo e do protagonismo dos estudantes e professores na co-produção de práticas e políticas de saúde que impulsionam uma clínica que se amplia e inclui saberes. Nesse sentido, articulamos neste trabalho as noções de sujeito e de desejo trazidos pela psicanálise para a promoção da saúde na busca de uma formação integrada.

Palavras-chave: Formação do psicólogo. Serviço-escola. Psicanálise. Promoção de saúde.


ABSTRACT

This paper consists in a reflection on the qualification of the psychologist as a health care professional based on the idea of health promotion as something that involves the conditions of existence and production of subjectivities. In this qualification work we consider the dimension of the desire and the protagonism of students and professors in the co-production of health and policy practices, which operate a clinic that expands and includes knowledge. Within this context, in this paper we articulate the notions of subject and desire, brought by psychoanalysis in order to promote health in search of an integrated qualification.

Keywords: Psychologist qualification. School-service. Psychoanalysis. Health promotion.


 

 

INTRODUÇÃO

Diante da necessidade de compreender os processos de saúde em uma descrição ampliada, realizamos uma formação em Psicologia na área da saúde fundamentada na ideia de promoção da saúde como algo que envolve as condições de existência e de produção de subjetividades, que busca fortalecer as capacidades singulares e coletivas para criar, impulsionar a construção de projetos com qualidade de vida na busca ativa de alternativas para o viver.

Essa perspectiva exige da Universidade um esforço que transcenda a abordagem multiprofissional. Para sustentar tal perspectiva, fazem-se necessários os processos de produção de subjetividades levando-se em conta a dimensão do desejo e do protagonismo dos estudantes e professores, na co-produção de práticas e políticas de saúde que impulsionem uma clínica que se amplia e inclui práticas e saberes. Nesse sentido, articulamos, no cotidiano de nosso fazer, as noções de sujeito e de desejo trazidos pela psicanálise com a ideia da promoção da saúde na busca de uma formação integrada.

Essas noções são polissêmicas na psicanálise, pois houve diversos desdobramentos teóricos desde a sua concepção por Freud. No entanto, recorremos a esse autor na sua obra Psicologia das Massas e Análise do Eu (1920-21), pois este nos faz compreender que todos os processos histórico-sociais e coletivos acontecem no interior do sujeito, e que, na vida anímica, aparece sempre, efetivamente, o outro.

A perspectiva da invenção freudiana, na verdade, nos lança um desafio, isto é, abre uma via para trabalharmos os impasses na contemporaneidade com respeito à economia e à dinâmica das singularidades psíquicas produzidas em um contexto histórico, social e grupal. Tal como assinalam Pinheiro e Herzog (2003), Freud, ao oferecer com seu arcabouço teórico elementos para se pensar sobre outros modos de subjetivação - o que é possível a partir de suas considerações sobre a constituição de um narcisismo descentrado pelo inconsciente e reformulado -, abre caminho para pensarmos sobre uma forma de estruturação muito mais dinâmica e complexa.

Segundo Silva (2005), o modo de subjetivação deve ser concebido como a produção de um modo de existência, de um processo que traduz uma singularidade pela qual se produz a flexão ou a curvatura de um tipo de relação de forças, atravessada pela formação histórica que a tensiona e que produz sentidos particulares, singulares e coletivos.

Sem pretendermos reduzir a complexidade social à dinâmica libidinal, podemos apostar que a inscrição dessa diversidade se estrutura no sujeito de um modo plural e se manifesta no indivíduo de forma singular, particular e regida por uma construção social e histórica. Como diz Peixoto Junior (2004), a subjetividade procura o signo de sua existência fora de si mesma, em um discurso ao mesmo tempo dominante e indiferente. Como essas categorias sociais são as que supostamente garantem a existência subjetiva, a submissão parece ser o preço a pagar por isso.

À medida que uma verdadeira escolha é aparentemente impossível, tendemos a nos subordinar como única possibilidade de existência, pois essa somente é possível através dos cuidados do outro. Somos absurdamente vulneráveis diante do outro e, ao mesmo tempo, absolutamente potentes para o desenlace, mesmo que ilusório, desse enredamento, que pode se traduzir em um sofrimento absurdo e doentio. Poderíamos pensar que a estruturação do sujeito é a busca de uma subjetividade que se constitui em torno de um sentido que vai sempre em direção de alguma coisa, em direção a outra significação, em direção ao encerramento, mesmo que ilusório, da significação de si. Ela sempre remete a alguma coisa, ao mundo das coisas, aliena-se nele, e volta-se sobre si mesma. Nessa forma, o sujeito se produz, produzindo sentido. Trata-se, com efeito, de um discurso que produz uma existência que não deixa de ser afetada pela concretude das coisas, embora esteja sempre mais além (LACAN, 1997).

Não pretendemos, neste trabalho, esgotar a complexidade dessa relação entre modos de subjetividade e de constituição do sujeito, mas trazer para a formação do psicólogo, na sua prática em um serviço-escola, essa problemática.

A compreensão de desejo nos remete à afirmativa de David-Ménard:

O termo désir (desejo) designa o campo de existência do sujeito humano sexuado, em oposição a toda abordagem teórica do humano que se limitaria ao biológico, aos comportamentos ou aos sistemas de relação. No desenho desse campo, a obra de Lacan, com a distinção que estabelece entre necessidade, demanda e desejo, é decisiva. Essa automatização do campo do desejo, pela qual se define a subjetividade humana em sua contigüidade com a ordem biológica das necessidades e da reprodução e em sua anexação necessária à linguagem - que faz com que o homem demande o absoluto do amor e faz todo objeto outorgado parecer possivelmente perdido - explica também que se possa expor o que é o desejo tanto por uma teoria das formações do inconsciente quanto por uma leitura comentada de Em busca do tempo perdido, de Proust (1996, p. 114).

Em tal articulação existe a inclusão de uma prática costurada na e pela linguagem, que integra processos de saúde e de adoecimento, processos e relações de e no trabalho, processos educativos e produção de conhecimento, processos comunitários e movimentos sociais, transversalizando-a, na formação dos psicólogos, com a noção de um sujeito desejante.

O Serviço Integrado de Saúde (SIS) da Universidade de Santa Cruz do Sul, Brasil constitui um desses lugares que fomentam essas relações. O setor se acha diretamente ligado à Pró-Reitoria de Graduação, cujo principal encargo é realizar atividades integradas pertinentes aos cursos de Psicologia, enfermagem, Medicina e nutrição.

Um dos âmbitos do trabalho desenvolvido nesse espaço se centra no desafio de articular teorias e práticas, ao mesmo tempo em que presta atendimento à comunidade acadêmica e regional, a partir da realização de projetos e de atividades de ensino, de pesquisa e de extensão. Esse serviço se beneficia de um grande número de trabalhadores-estagiário(a)s, de modo que consegue propor um espaço de ações em saúde sustentado no movimento tensional da relação entre autonomia e controle que, segundo Merhy (1999), provoca novos territórios de poder.

A formação praticada comporta o incentivo ao exercício de práticas profissionais perpassadas por diferentes possibilidades de atuar e a criação de processos clínicos em diferentes perspectivas teóricas. A interdisciplinaridade é um componente desse serviço-escola. Pensar sobre essa diversidade atrelada à dimensão do desejo e a seus deslocamentos é um de nossos desafios, aos quais se soma o fato de se tratar da formação de psicólogos, e não de analistas. Falamos, portanto, da formação de profissionais que escolhem essa abordagem e que realizam seus atendimentos pautados pelas noções e práticas psicanalíticas, em um serviço de saúde pública e não estatal.

Propomos, nesse lugar formativo que comporta relações intencionais e tensionais, a produção de espaços de potência, de criação que possibilite reinventar novas noções de saúde, que fortaleça a capacidade de reflexão, de investimento em si e na relação com o mundo, uma prática profissional que sustente o movimento do sujeito no processo de ressignificação de sua capacidade de amar e de trabalhar.

 

PSICANÁLISE E PROMOÇÃO DE SAÚDE: RELAÇÕES (IM)POSSÍVEIS?

Essa questão se coloca para que nos perguntemos: o que se entende por promoção de saúde? O que se promove quando se promove saúde? Em que medida a proposta de promover saúde não redunda na prevenção de doenças, incluindo aí a problemática da prevenção de sofrimento e adoecimento na área de saúde mental, na formação de psicólogos? Tão importante quanto refletir sobre essas questões é a análise e o desenvolvimento de uma posição crítica sempre alerta para identificarmos quando e em que dimensão as propostas de promoção de saúde veiculam, sub-repticiamente, modos de exercício de um poder sobre o corpo para, dessa forma, controlar os sujeitos, individualizando-os e destituindo-os de desejos.

Como afirma Foucault (2004), o fundamental desse processo é reconhecer que saber e poder se implicam mutuamente, sendo indissolúvel a relação de poder e a constituição de um campo de saber, bem como reconhecer que todo saber constitui novas relações de poder. Em relação ao que se entende por saúde e suas dimensões disciplinares, trata-se de regular as populações por normas que agem sobre o humano com o objetivo de assegurar a existência de tecnologias de dominação (FOUCAULT, 2008). Questões como saúde, normalidade e qualidade de vida, entre outras, estão ligadas não apenas a um poder disciplinar, mas a um tipo de poder determinado que se exerce em nível do sujeito e da coletividade, com o objetivo de gerir a vida do corpo social, ou seja, o âmbito político e suas relações de poder.

Na perspectiva de uma reflexão sobre a psicanálise e sobre as tentativas de aprisionamento do humano, vale lembrar que a psicanálise já nasce fazendo frente à captura e ao assujeitamento alienante do humano, na medida em que devolve ao sujeito o seu direito de fala, do reconhecimento de verdades veiculadas nos seus discursos e o de ser reconhecido como desejante. O método da psicanálise resiste ao poder dominador do saber disciplinar biocentrado e lança luzes sobre as psicogêneses dos adoecimentos aflitivos, abrindo espaço para a palavra, a palavra franca em uma associação livre (FREUD, 1912).

Isso nos possibilita refletir sobre as relações entre a psicanálise e a promoção de saúde, pois requer o estabelecimento de novos pontos de partida acerca do que se compreende por saúde e por sua promoção, e, sobretudo, exige o entendimento acerca da noção de sujeito e do movimento de seus desejos como um modo de existência avesso às capturas do que lhe é essencialmente humano.

No entanto, a constituição do sujeito é complexa e não escapa as suas sobredeterminações, em especial às do inconsciente e às do poder. O sujeito não é dono de si mesmo, e sofre as determinações de sua fundação, mas, ao mesmo tempo, transforma-as continuamente quando tem condições de deslocar, na via de seu desejo, seus pontos de fixidez.

Alguns conhecimentos psicológicos, assim como muitos outros, quando aplicados à saúde, edificam uma série de regulamentos e de modulações que estabelecem os modos como o sujeito deve se relacionar com o mundo e consigo mesmo, de forma a controlá-lo e discipliná-lo. Para discutir o conceito de saúde, é preciso levar em conta como os saberes sobre saúde se constituem, como se transformam; é preciso, portanto, estabelecer relações entre os saberes (FOUCAULT, 2004). Nessa perspectiva, considerar a presença da psicanálise na formação de psicólogos implica inserir na produção do conhecimento acadêmico a noção de sujeito desejante.

À luz dos subsídios teóricos psicanalíticos, é possível problematizar a ideia de promoção de saúde vinculada à definição de saúde formulada pela OMS. Distanciando-se da noção de saúde como um perfeito e permanente bem-estar físico, mental e social, o constructo teórico psicanalítico produz uma nova compreensão de saúde, na medida em que toma o ser humano como um sujeito em eterno conflito entre seus desejos, necessidades e demandas, em um permanente equilíbrio instável, como assinala Bezerra (1994).

A designação de saúde está intimamente vinculada ao momento histórico no qual é produzida. Ao longo do tempo, essa noção foi sendo cooptada às próprias condições de produção das ciências biomédicas. Notamos, a partir daí, a reincidência de duas vertentes no interior dessas ciências: a de vincular a saúde a um estado particular do sujeito humano, isto é, às suas particularidades e vicissitudes orgânicas, e a de atrelar, a esses componentes biológicos, questões psicossociais na evolução ou no retrocesso do estado de saúde dos sujeitos (BIRMAN, 1991).

Nessa última perspectiva, propomos considerar a noção de saúde não a vinculando apenas à ausência de sintomas, mas conectando-a às condições do sujeito de sofrer menos na sua relação consigo mesmo, diante do incessante e inevitável processo de produção do seu imaginário, de suas construções simbólicas e das constantes e insistentes emergências do real, incluindo o seu corpo orgânico e o seu mundo material. Não se trata de extirpar o sofrimento, mas de lidar com suas falhas, incompletudes e alteridade pela via da linguagem. E, na relação com o outro, com o seu exterior constitutivo, não desprezar o fato de que as suas condições materiais de existência, entre outras, as sanitárias e as de subsistência, produzem um impacto profundo sobre ele (SEGRE & FERRAZ, 1997).

Ao enlaçarmos algumas noções de psicanálise e promoção de saúde, compreendemos que essa última noção se amplia a partir de uma dimensão preventiva, baseada na proposta de eliminar as doenças ou o seu agente, para alcançar uma dimensão na qual extinguir ou evitar o sofrimento não seja a principal meta de cuidado do profissional de saúde, mas sim, trabalhar com o sofrimento como constitutivo do sujeito, como um elemento que pode ser transformador e sinalizador de novas possibilidades de viver.

Segundo Buss (2003), as bases conceituais e políticas contemporâneas da promoção de saúde foram estabelecidas a partir da Conferência Internacional sobre Atenção Primária à Saúde, com a declaração de Alma Ata, em 1978, fortalecendo-se na I Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, em 1986, no Canadá, onde foi redigida a carta de Ottawa, sucedendo-se quatro Conferências Internacionais: Austrália, 1988, Suécia, 1991, Jakarta, 1997, e México, 2000.

Em cada uma dessas conferências, concretiza-se uma abertura para a compreensão da saúde como algo que transcende aquela noção de completo bem-estar, para incluir as condições de vida nas quais está imerso o sujeito, transcendendo o modelo monocausal para alcançar um entendimento multifatorial e sobredeterminado do humano.

Nessa esteira, encontra-se a formulação da Política Nacional de Promoção da Saúde, que tem como objetivo promover a qualidade de vida e reduzir vulnerabilidade e riscos à saúde relacionados aos modos de viver, às condições de trabalho, de habitação, ao ambiente, à educação, ao lazer, à cultura e ao acesso a bens e serviços essenciais, em um movimento que resiste à medicalização da vida.

Essa realidade se impõe, apesar de a definição de saúde ainda ser uma definição negativa e atrelada ao conceito científico de doença. E, sobretudo, não há uma consciência prática dos limites do conhecimento científico que dá suporte a esse conceito. As práticas de saúde que se organizam com base no conceito de doença não levam em consideração a distância entre esse conceito e o adoecimento propriamente dito, ou seja, a experiência de vida do sujeito (CZERESNIA, 2003).

Piera Aulagnier (1979) nos ajuda a restabelecer outra distância da noção hegemônica da saúde definida a partir da doença, na medida em que compreende que o sujeito é capaz de fazer trabalhar em si mesmo as ofertas identificatórias que lhe servem de referência, tensionando-as, transformando-as e sendo transformado nesse mesmo processo.

Dessa forma, temos a ampliação não apenas da noção de saúde, mas de promoção de saúde, pois nossa saúde não é exclusivamente resultado das condições de vida e trabalho, na medida em que somos ativos na produção da vida e do trabalho atravessados pelo desejo. Em outros termos, ressaltamos que o sujeito não é apenas uma instância instituída ou passiva, mas também instituinte, na medida em que se produz pela apropriação que realiza dos enunciados identificatórios, formulados pelos primeiros objetos investidos, passando, muito rapidamente, a enunciar seus próprios pensamentos, pondo à prova seus desejos e afetos. O sujeito é constituído, portanto, de duas dimensões: a identificada, que diz respeito aos enunciados, aos pré-enunciados proferidos pelos pais e ao social dirigidos à criança, e à dimensão identificante, que realiza um trabalho de apropriação e de transformação para enunciá-los como instância enunciante. Assim, entende-se a saúde como o modo como o sujeito lida com as suas condições de viver, de trabalhar e de amar, ou seja, de ser e de estar no mundo.

 

PSICANÁLISE E PROMOÇÃO DE SAÚDE EM UM SERVIÇO-ESCOLA

O ensino de psicanálise ocupa, no Brasil, um amplo espaço nos currículos de formação do psicólogo, cabendo ao psicanalista professor universitário o ensino dos conceitos e da ética da área, ao mesmo tempo em que reconhece um limite nessa transmissão, isto é, o fato de que não resulta desse processo a formação de um psicanalista, uma vez que esta pressupõe as três dimensões, quais sejam: a análise pessoal, o estudo teórico e a prática.

Nessa perspectiva, a formação do psicólogo sustentada por conceitos psicanalíticos capacita-o a compreender os fatores e as condições presentes na constituição de um sujeito efeito do inconsciente. Esse profissional que leva em conta o inconsciente assume uma práxis que tem na escuta do sofrimento, e não apenas nos sinais da doença, o seu diferencial. A dinâmica que essa práxis envolve, sustentada por esse conceito, viabiliza o estabelecimento de vínculos atentos às diferentes formas de manifestação do sofrimento. Nessa medida, não toma como primeiro foco a doença, nem a eliminação dos seus sintomas, mas conduz quem sofre a trabalhar para além, isto é, a promover uma ação sobre o seu adoecimento e, a posteriori, a buscar uma via de não estagnação, mas de movimento que o impulsione a ressignificações do seu modo de viver.

Nessa perspectiva, desloca o olhar do estudante não no sentido de prevenir a doença, mas no de promover a vida e a saúde, sentido esse intimamente relacionado à determinação social do processo de saúde e de doença, redimensionada por uma busca ativa de qualidade de vida. Não se trata mais de considerar a saúde como um simulacro de cura, através da eliminação de uma doença provocada por um fator unicausal, controlável, evitável e vigiável. Trata-se de compreender o adoecimento como um signo social, que precisa ser trabalhado para que possa produzir sentido e ser decifrado. Desse modo, é a partir do próprio sofrimento que o sujeito produz saúde - ou seja - o enfrentamento e a solução daquilo que, na vida particular, coletiva e histórica dos homens, faz com que adoeçam (LEFEVRE & LEFEVRE, 2007).

Em um serviço-escola, a atividade de supervisão realizada por um profissional que tem o modelo de ensino sustentado nos pressupostos psicanalíticos produz, nos supervisionandos, uma reflexão sobre os processos de saúde e de doença que resgata um sujeito falante, com seu desejo e com sua história. Portanto, promover saúde não é prevenir o sofrimento, mas dar-lhe significado, dotando-o de sentido e, dessa forma, fazendo com que ele possa ser transformado em uma qualificação e, sobretudo, em uma humanização da vida. Consideramos humanização um conceito ligado à experiência de um homem em processo de produção de si e de sua saúde atrelado às suas condições de vida. Por humanização, entendemos, portanto, menos a retomada ou a revalorização da imagem idealizada do Homem e mais a incitação a um processo de produção de novos territórios existenciais (BENEVIDES & PASSOS, 2005).

Assim sendo, o sujeito que sofre passa a ser compreendido não apenas como portador de uma patologia, mas de uma história, de uma dimensão social e afetiva que faz dele não apenas alguém que sofre mas também alguém que enuncia possibilidades. A linguagem, então, toma um lugar central na práxis e na escuta desse supervisionando.

Em consequência, podemos dizer que pensar sobre psicanálise e promoção de saúde na formação do psicólogo é potencializar a sua clínica visando a ampliá-la. As noções psicanalíticas proporcionam ao estudante uma capacidade de reflexão crítica sobre os modos de sofrimento contemporâneo, ressignificando-os e produzindo o deslocamento de um olhar predominantemente organicista para abarcar uma clínica do sujeito.

Podemos, dessa forma, dizer que a psicanálise e seus pressupostos teóricos ajudam a produzir, na formação do psicólogo, um ponto de vista diferenciado na promoção de saúde, na medida em que subvertem a ordem, nos cuidados à saúde, ao alocarem no centro de sua escuta um sujeito inscrito e constituído por linguagem, não mais o entendendo como dualidade clássica sujeito e corpo, mas sim, como sujeito-corpo.

É imprescindível assinalar, para concluir o presente trabalho, o reconhecimento que fazemos da diversidade de metodologias e teorias usadas nos serviços-escola de formação em Psicologia. Salientamos, no entanto, que os fundamentos que sustentam muitas dessas práticas podem ser problematizados pela ótica psicanalítica. Evidentemente, ao trazer para discussão aspectos que fundamentam a formação que realizamos, iluminando-os com reflexões advindas de reuniões coletivas entre estudantes-estagiários, professores e supervisores interessados em psicanálise, deixamos sob sombras muitos outros aspectos, não menos importantes, mas merecedores de novas reflexões que poderão contribuir para uma formação plural e potencializada pelo intercambiar dessas discussões.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido: 14 de dezembro de 2010
Aceito: 28 de março de 2011.

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