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Psicologia Ensino & Formação

versão impressa ISSN 2177-2061

Psicol. Ensino & Form. vol.5 no.1 Brasília  2014

 

ARTIGO

 

O controverso lugar da psicologia na educação: aportes para a crítica da noção de sujeito psicopedagógico1

 

The controversial place of psychology in education: contributions to the critique of the concept of psycho-pedagogical subject

 

 

Julio Roberto Groppa Aquino

Universidade de São Paulo. Doutor em Psicologia Escolar (IP-USP). groppaq@usp.br

 

 


RESUMO

O presente artigo propõe-se a problematizar as alianças contemporâneas entre os campos psicológico e educacional, atentando para os efeitos psicologizantes que tais alianças parecem portar. Valendo-se de um solo argumentativo embasado no pensamento foucaultiano, as discussões devotam-se a uma desconstrução crítica da noção de sujeito psico-pedagógico, oportunizada pela aposta cientificista em uma interioridade humana supostamente estruturada de acordo com o desenvolvimento psicológico dos indivíduos. Tratou-se, assim, de contra-argumentar em favor de uma dessubstancialização do plano psicológico per se, remetendo a experiência subjetiva a uma miríade de formas variáveis de vida. As discussões finais encaminham-se para uma reapropriação analítica do encontro entre as práticas educacionais, seu lastro psicologizante e a racionalidade neoliberal, responsável pela difusão da crença na educabilidade vitalícia dos cidadãos a vetorizar os jogos cruzados entre cidadania, educação e verdade de si.

Palavras-chave: psicologia e educação; sujeito psico-pedagógico; neoliberalismo; educacionalização.


ABSTRACT

This article aims at problematizing the contemporary alliances between psychological and educational fields, underlining the psychologizing effects that such alliances seem to carry. Making use of an argumentative ground based on Foucault's thinking, the discussions are devoted to a critical deconstruction of the notion of psychopedagogical subject, nurtured by the scientistic bet on a human interiority supposedly structured according to the psychological development of individuals. Thus our efforts focused on arguing in favor of a de-substantialization of the psychological scope per se, referring the subjective experience to a myriad of variable life forms. The final discussions head to an analytical reappropriation of the encounter between educational practices, his psychologizing ballast and neoliberal rationality, responsible for the dissemination of the belief in lifetime educability of citizens as an axis of crossed games between citizenship, education and the truth of oneself.

Keywords: psychology and education; psycho-pedagogical subject; neoliberalism; educationalization.


 

 

É preciso acordar desse sono
antropológico, como outrora
acordou-se do sono dogmático.
Michel Foucault

Seja no plano da pesquisa, seja no da militância, é bem conhecida a atmosfera de a mbiguidade que caracteriza as transações entre os campos psicológico e educacional, este último quase sempre tomado como uma espécie de canteiro de obras daquele ou, mais especificamente, como zona livre para o espraiamento de diferentes formulações de teor psi. Plausível seria, portanto, admitir que há uma incessante investida colonizadora das práticas educacionais pelos discursos psi, em especial nas últimas décadas.

E dois são os modos dominantes como tal investida habitualmente se perfaz: de um lado, a psicologia educacional, munida de um arsenal de conceitos alegadamente científicos, os quais pretendem descrever os processos de aquisição cognitiva e, assim, qualificar a ação do docente, auxiliando-o a se aperfeiçoar/atualizar tecnicamente; de outro lado, a psicologia escolar, mormente de orientação crítica, munida de um arsenal de conceitos sensivelmente distintos daqueles da vertente anterior, mas ainda disposta a auxiliar o educador a ampliar suas competências, agora por meio do esclarecimento acerca dos processos políticos subjacentes aos procedimentos pedagógicos tradicionais.

No primeiro caso, vê-se a ascensão de uma psicologia cativa da didática e, como desdobramento, a consolidação de uma pedagogia psicologizada – algo, por sinal, particularmente valorizado no ideário escolar contemporâneo. No segundo caso, desponta uma politização de tipo partidarizante do campo pedagógico e, como desdobramento, o ofuscamento da especificidade institucional escolar, visto que a escola, em suas funções e propósitos tidos como reproducionistas, não se distinguiria substancialmente de outras práticas sociais afins, todas elas aliadas, em maior ou menor medida, ao status quo.

Em ambos os casos, o saldo de tais iniciativas é a subordinação do foro educacional à camisa-de-força de enquadres discursivos exógenos a ele, nublando-se, com isso, a especificidade da ação pedagógica, bem como seus efeitos sempre incógnitos.

Testemunhamos, assim, uma hiperatividade dos saberes psicológicos em oposição complementar à hipotonia dos fazeres pedagógicos, convertendo estes numa lida ainda necessária, mas longe de ser suficiente no que se refere ao equacionamento dos percalços próprios da intervenção educacional. Ademais, é necessário apontar o fosso que se interpõe entre as esferas teórica e empírica como saldo das análises levadas a cabo, uma vez que, nos dois casos, as assertivas dos teóricos parecem emanar não das irredutibilidades do corpo-a-corpo dos protagonistas escolares, mas do próprio jargão teórico-técnico das especialidades em jogo. Tudo se passa como se as práticas escolares devessem, de alguma forma, espelhar o universo conceitual subjacente àqueles pontos de vista conceituais, marcados, cada qual a seu modo, por uma idealização excessiva dos fazeres escolares.

Mais significativo, ainda, é o risco de psicologização das relações escolares inerente à apropriação desenfreada dos discursos psi no terreno educacional, sobretudo quando, nas práticas cotidianas, se diagnosticam entre os alunos problemas psicológicos – essa enigmática expressão evocada aos quatro ventos e, amiúde, em situações de negligência pedagógica, a franquear a justificação dos males educacionais pela via de sobredeterminantes psíquicos ditos implacáveis.

Sua fórmula é velha conhecida: mediante qualquer tipo de evento desestabilizador dos padrões normativos em vigor, recorre-se ao escrutínio não das variáveis conjunturais que o teriam precipitado, mas da índole psicológica dos implicados. E a tática do inquérito confessional torna-se infalível.

A lógica do descrédito de véspera que embasa tal investida tem sua tradução pedagógica na adesão indiscriminada ao cientificismo psicologizante, o qual decreta a irredutibilidade de determinados pré-requisitos (orgânicos, cognitivos, afetivos, morais, sociais, institucionais etc.) para o bom termo do trabalho educacional. Sem eles atendidos, a resolutividade pedagógica encontraria seu grau zero, e o alunado desviante, seu desterro educativo.

Nessa perspectiva, vale relembrar uma crítica dirigida à discutível noção de legalidade científica como critério exclusivo de verdade e, mais diretamente, sua ligação umbilical com os processos de normalização social. No caso específico da psicologia, Osmyr Faria Gabbi Júnior (1986) assevera que,

para poderem fazer uma ciência do homem, os psicólogos são levados a tomá-lo como algo a-histórico, como algo que possa ser descrito com categorias não-históricas. […] O resultado é uma moral imposta que se desconhece enquanto tal. As prescrições do psicólogo são dadas a partir de um aval autoconcedido de cientificidade e não como realmente são, ou seja, como diretivas morais (p.494).

Em um prisma semelhante, Nikolas Rose (2008) apresenta um ponto de vista desmistificador sobre as origens da psicologia moderna, bem como sobre suas inclinações inconfessas. Segundo ele, tal ciência não nascera exatamente nos laboratórios experimentais, assim como reza certa história edificante da disciplina, mas nos porões das instituições destinadas a controlar comportamentos desviantes: as prisões, as fábricas, os hospitais, as salas de aula. A psicologia ter-se-ia constituído, assim, "não como uma disciplina ou uma área profissional, mas como uma cadeia de pretensões de conhecimento sobre pessoas, individual e coletivamente, que permitiria que elas fossem melhor administradas" (p.156).

Reputando-a como um aparato tecnológico de controle social, Michel Foucault (2011b) atribui à psicologia um desconcertante papel histórico.

Por um lado, ela [a psicologia] se apresenta como uma ciência do comportamento, analisa mecanismos, determinações, regularidades, estatísticas. Essa forma de saber, essas observações e essas formalizações valem o que valem. Mas, por outro, a psicologia é uma espécie de tribunal que se mistura com todas as outras análises desde que estas tenham o homem como objeto (p.166).

A crítica mais severa e, ao mesmo tempo, mais arguta ao estatuto políticoepistemológico da psicologia talvez tenha sido aquela proferida por Georges Canguilhem, numa conferência proferida em 1956: "De fato, de muitos trabalhos de psicologia, se tem a impressão de que misturam a uma filosofia sem rigor uma ética sem exigência e uma medicina sem controle" (1973, p.104). Faltar-lhe-iam rigor devido ao seu ecletismo, exigência pela ausência de crítica, e controle em razão de sua ligação ao universo nebuloso das doenças mentais.

Alicerçada historicamente em um projeto massivo de correção e (auto)vigilância de grandes parcelas populacionais doravante institucionalizadas, a ciência psicológica conhecerá seu apogeu contemporâneo na onipresente psicologização do cotidiano, sustentada por teorias da subjetividade se propõem a interpretar eventos que elas próprias "ajudaram a produzir, eventos que elas plantaram ao longo de nossa existência, localizando-os em uma interioridade que elas próprias ajudaram a cavar" (ROSE, 2001, p.144).

Operando dessa maneira, os discursos psi parecem responder de pronto a uma insaciável vontade de impingir uma verdade natural e profunda aos diferentes desígnios humanos, convertendo a experiência dos diferentes indivíduos em algo do domínio científico, cognoscível e controlável. O efeito, porém, é um só, como aponta Gabbi Júnior (1986): um acirrado achatamento moral das condutas cotidianas.

Acredita-se que ela [a psicologia] possa produzir essa verdade sobre o sujeito, que ela possa torná-lo bom filho, bom pai, bom esposo, bom trabalhador, bom cidadão, recentemente, bom amante etc. Não há aí uma certa promessa de felicidade? No lugar da salvação, não encontramos hoje a saúde? (p.496).

A essa extensiva promessa de felicidade pessoal, poderíamos acrescentar certa porção de saúde pedagógica, a qual nos alçaria à condição de alunos e professores mais competentes, mais empreendedores ou, quiçá, menos titubeantes no que se refere à missão civilizatória insistentemente delegada à educação. Ora, se a historicidade constitui o principal impedimento ao empreendimento psi, o que pensar de um projeto redentor, nos moldes psico-pedagógicos, mediante a indócil concretude das práticas escolares? Qual, afinal, a magnitude do sonho humanista aí presente, este que levará Foucault (2002, p.192) a sentenciar que "a dimensão do psicológico é, em nossa cultura, o negativo das percepções épicas"?

 

O SUJEITO PSICO-PEDAGÓGICO NA BERLINDA

Aprendemos com os psicólogos educacionais que uma descontinuidade qualquer no desenvolvimento psicológico obstaculizaria, em maior ou menor grau, sua marcha esperada. Daí o ensejo de inquirir histórias pessoais, desbaratar desordens recônditas, corrigir rotas alteradas. Uma ânsia psico-higienista, em suma.

Seu efeito colateral, no entanto, é cortante: a estigmatização de um contingente crescente da infância e da juventude em situação de vulnerabilidade, considerada imatura, imprópria ou, no limite, incapaz ao convívio escolar; aqueles mesmos alunos com os quais os profissionais da educação alegam não mais se sentirem capazes de se defrontar, mas que ali resistem para assombrá-los.

O que embala tal alegação parece ser a invariante crença de que, ao se estabelecerem as supostas origens de determinado fato ou fenômeno psíquico, poder-se-ia descrever sua ocorrência, bem como controlar seus desdobramentos. A fórmula argumentativa é razoavelmente simples: perscrutando-se seus nexos causais, isto é, desvendando-se os segredos do passado, aceder-se-ia ao deslindamento do presente e, por extensão, à predição do futuro.

Ora, apostar em uma continuidade sequencial, ordenada e progressiva no que tange às razões sobre o que se nos passa parece carrear uma função meramente apaziguadora aos contemporâneos: protege-nos da angústia de reconhecer que não é possível conhecer, de fato e de direito, aquilo que o futuro, sempre incerto, nos reserva. E a psicologia, caçula das ciências, parece não fugir a esse destino. Ao contrário, sua vertente desenvolvimentista, em particular, encarnaa com uma veemência digna de espanto.

As proposições advindas das linhagens teóricas que se debruçam sobre o desenvolvimento psicológico ratificam, sem cessar, a premissa de que as transformações pelas quais o ser humano passa (em especial, na primeira infância) seguiriam um curso lento, mas gradual, contínuo e ordenado. Além disso, tais transformações, ou aquisições psíquicas, seriam inexoravelmente direcionadas, progressivas e, portanto, previsíveis.

Esta parece ser uma das principais pretensões que tais psicólogos têm legado ao mundo: de que seria possível se antecipar, via o emprego de tais e quais instrumentos de mensuração, à construção do traçado humano, com vistas ao descortino de seu desenrolar desenvolvimentista. Em suma, o projeto para uma ciência da interioridade humana, fortemente embalado por um sotaque humanista.

Ora, cumpre-nos lembrar que

a história das disciplinas psi não é diferente, nesse sentido, de uma narrativa mais ampla, que descreve a história das ciências humanas como uma história de progresso e avanço. O que certas perspectivas pós-estruturalistas têm nos ensinado é que essa narrativa se esquece de nos contar outras coisas, talvez não tão edificantes, sobre essas disciplinas. Como saberes e conhecimentos sobre o homem e a mulher, essas disciplinas estão implicadas na própria produção do ser que pretendem descrever ou descobrir (SILVA, 1998, p.11).

Do ponto de vista não apenas epistemológico, mas sobretudo ético-político, o saldo do discurso psi finda por atribuir aos itinerários existenciais um caráter utilitarista e determinista, fazendo com que o viver se fizesse assemelhar a uma marcha mais ou menos linear rumo a um imponderável progresso, tomado como aperfeiçoamento das potencialidades individuais. A nós cabe postular: até que ponto é possível sustentar que desenvolvimento é sinônimo de aprimoramento? É-se mais íntegro com o transcorrer do tempo? Viver resumir-se-ia a conquistar destrezas sucessivas?

Foucault é contundente na suspeita da lógica que sustenta tal aparato discursivo.

Será que o sujeito, idêntico a si mesmo, com sua historicidade própria, sua gênese, suas continuidades, os efeitos de sua infância prolongados até o último dia de sua vida, etc., não seria o produto de um certo tipo de poder que se exerce sobre nós nas formas jurídicas mais antigas e nas formas policiais recentes? [...] A individualidade, a identidade individual são produtos do poder (POLDROIT, 2006, p.84).

Como produto do poder, a individualidade seria, também e paradoxalmente, um campo de luta perene contra si própria. Segundo o pensador francês, tratar-se-ia de "[...] nos liberarmos tanto do Estado quando do tipo de individualização que a ele se liga. Temos que promover novas formas de subjetividade através da recusa deste tipo de individualidade que nos foi imposto há vários séculos" (1995, p.239).

Ora, se Foucault estiver correto quando propõe que a tarefa primordial do pensamento não é o desvelamento, mas a recusa do que somos, torna-se patente que a noção de sujeito – porte ela quaisquer predicativos – poderia ser preterida ética e politicamente em favor de outras forças informes, não capturadas de véspera em nenhuma espécie de enquadramento descritivo. Formas de vida, apenas.

A interpelação foucaultiana aponta para o fato de que é passada da hora a exigência de uma revisão paradigmática dos aportes conceituais assim como dos nortes ditos científicos das teorias psicológicas, em especial daquelas devotadas ao desenvolvimento humano, concebidas e praticadas, em geral, como uma espécie de impávida ciência biográfica.

Para tanto, faz-se imperioso recusar as renitentes noções de personalidade, identidade, (a)normalidade, déficits, superávits e quetais – todas elas aspirantes ao posto de objetos universais. Ora, o psiquismo, se compreendido como efeito cambiante de um conjunto insuspeito de acontecimentos díspares, urge outro tipo de interlocução com os teóricos que a ele se dedicam. Tal interlocução ocorreria, e com fecundidade, desde que se pudesse abrir espaço e vazão para aquilo que o arsenal teórico disponível não tem demonstrado alcançar: o imprevisto, o arbitrário e o aleatório.

Tal procedimento requereria uma torção tal no pensamento de modo que ele se tornasse capaz de se voltar exatamente àquilo que tem permanecido fora de sua jurisdição clássica: as descontinuidades, as rupturas, as dissonâncias. Assim, recusar toda forma de determinismo e de normatividade nas teorias psicopedagógicas passa a ser o alvo principal desses, então, interlocutores da diferença, da estranheza e das idiossincrasias.

No enfrentamento analítico aqui proposto, trata-se, mais especificamente, de promover certa visada sobre as práticas educacionais a partir de seus movimentos interiores, seus clamores, suas astúcias, suas intermitências. Portanto, nem o bemestar pedagógico, nem o bem-fazer político, como querem as teorias explicativas dominantes, mas tão-somente uma perspectiva de análise que permita apreender as práticas escolares como ocasião generativa de formas de vida sem fundamento nem destinação apriorísticos. Modos de subjetivação inconclusos, mais precisamente.

Nem o sujeito das estruturas cognitivas ou afetivas (como pregam as psicologias educacionais), nem o das estruturas macrossociais (como preferem as psicologias escolares), mas formas de vida inexoravelmente tributárias das relações de poder/saber nas quais estão inscritas historicamente. Daí não haver a possibilidade de conceber subjetividades em abstrato, matriciadas em objetos descritivos estanques, as quais se atualizariam de maneira temporal e socialmente desenraizada.

Ao contrário, nossa opção teórica recai sobre uma incontornável dessubstancialização do plano psicológico per se, remetendo-o a uma derivação de enquadres sócio-históricos concretos. Daí as tantas possibilidades de subjetivação, sempre transitivas e multifacetadas, propiciando aos indivíduos uma gama de atributos não lineares, não padronizados, não coerentes, inclusive.

Se assim perspectivado o que nos acostumamos a denominar subjetividade, talvez pudéssemos corroborar a estimativa de Italo Calvino (1990) quando afirma que "cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis" (p.138).

Desta feita, atentar para a díade psicologia/educação de modo não pragmatista, nem utilitarista, mas como um plano de pensamento enigmático e sempre por se refazer, requer uma visão complexa e paroxística da lida educacional, tomando-a não apenas como um conjunto de reveses, mas também como incessante novidade. De um lado, a instigante iniciação na vida pública e nos mistérios do mundo, que lhe é requisito; de outro, a rotina, as repetições, as regularidades, que lhe são contingentes. No mesmo golpe, portanto, a ordem e a transgressão; o conhecimento reiterativo e o pasmo intelectual; poder e liberdade em confronto perpétuo.

Conclui-se, portanto, que, se assim ajuizado analiticamente, o âmbito educacional desponta não como palco de minoridade técnico-científica – como o querem os discursos desenvolvimentistas – ou de ardis doutrinários – como reza boa parte dos estudos que o tomam no viés criticista –, mas como laboratório de imposição de formas de vida e, ao mesmo tempo, espaço de resistência e de criação; lugar onde, nos detalhes, se destilam o óbvio e a novidade, o veneno e seus antídotos.

 

OUTRO LUGAR POSSÍVEL PARA A PSICOLOGIA NA EDUCAÇÃO

Partindo do pressuposto de que outro tipo de endereçamento às relações entre psicologia e educação funda-se numa recusa obstinada das místicas subjetivistas – para além do invólucro de todo e qualquer substrato internalista, seja ele mental, cognitivo, afetivo, linguístico etc. –, restar-nos-ia tomar as práticas educacionais não como mero suporte reverberativo de sujeitos psico-pedagógicos x ou y, mas como maquinaria produtora de uma miríade de relações de poder/saber e das formas pontuais de vida que lhe são correlatas.

Com efeito, tendo em vista as intensas transformações societárias das últimas décadas e, em particular, os processos de desinstitucionalização (DUBET, 1998) ou de desregulamentação (BAUMAN, 1998) em curso, torna-se imprescindível levar em conta seu impacto nos modos de subjetivação contemporâneos. Soma-se a isso a diluição das fronteiras entre as esferas pública e privada.

Richard Sennett (1988) é o teórico que oportunamente caracterizou o tempo presente como aquele do declínio do homem público, redundando no triunfo das tiranias da intimidade. Segundo o autor, "o mundo dos sentimentos íntimos perde suas fronteiras; não se acha mais refreado por um mundo público onde as pessoas fazem um investimento alternativo e balanceado de si mesmas" (p.19). É notório que grande parte das instituições nucleares que suportam a vida coletiva, e que cada um de nós (re)produz cotidianamente, está, em maior ou menor grau, perpassada pelo paradoxo público/privado. E dessa guinada radical na concepção e no enfrentamento dos modos comuns de viver não se pode evadir. Força bruta, mas insinuante, a intimização do homem – essa força que o remete incessantemente para dentro de si mesmo – parece esculpir lentamente os contornos que balizam o viver, desde as questões prosaicas até aquelas idiossincráticas.

Numa esteira analítica semelhante, Gilles Lipovetsky (1983) aponta, em seus primeiros escritos, o surgimento da era do vazio oriunda, sobretudo, do processo de personalização que "promoveu e encarnou maciçamente um valor fundamental, o da realização pessoal, do respeito pela singularidade subjectiva, da personalidade incomparável" (p.9).

Stuart Hall (2003) é, do mesmo modo, um dos autores que oferece um quadro analítico elucidativo das transformações da contemporaneidade e suas implicações no plano subjetivo. Para ele, tanto o âmbito cultural quanto as identidades pessoais estariam atravessadas por processos de fragmentação, de descontinuidade e de provisoriedade, os quais teriam uma marca comum: a descentração do sujeito, da qual derivaria a consolidação de identidades abertas, fragmentadas, contraditórias e inacabadas.

Numa linha argumentativa paralela, Zygmunt Bauman (1998) propõe uma imagem-síntese do homem contemporâneo: a identidade de palimpsesto. Mediante a incerteza e a indeterminação do mundo atual, tratar-se-ia, no plano subjetivo, de angariar certa coesão por meio da compilação de imagens instantâneas marcadas por uma sucessão de novos começos – estratégia refratária, portanto, à lenta e gradual construção identitária assegurada pela durabilidade e constância, já em desuso, dos suportes socioculturais.

Essa é a identidade que se ajusta ao mundo em que a arte de esquecer é um bem não menos, se não mais, importante do que a arte de memorizar, em que esquecer, mais do que aprender, é a condição de contínua adaptação, em que sempre novas coisas e pessoas entram e saem sem muita ou qualquer finalidade do campo de visão da inalterada câmara da atenção, e em que a própria memória é como uma fita de vídeo, sempre pronta a ser apagada a fim de receber novas imagens (p.36-37).

A identidade de palimpsesto, segundo Bauman, seria consoante a quatro grandes movimentos em curso no mundo contemporâneo: a nova desordem do mundo, por meio do desaparecimento da cisão entre os dois blocos políticos de poder (comunista e capitalista); a desregulamentação universal, advinda da "irracionalidade e cegueira moral da competição de mercado" (p.34); o enfraquecimento das redes de segurança representadas pela vizinhança e pela família; e a incerteza radical ofertada pela indústria da imagem: "Há pouca coisa, no mundo, que se possa considerar sólida e digna de confiança, nada que lembre uma vigorosa tela em que se pudesse tecer o itinerário da vida de uma pessoa" (p.36).

Premidos por tais circunstâncias, teríamos nos confinado subjetivamente, segundo Bauman, na condição de coletores de sensações, colecionadores de experiências; experiências que, vale acrescentar, só nos caberia sintetizar no plano da consciência individual.

De modo distinto de Bauman, François Dubet (1998) também destacará o conceito de experiência como modo de ordenação subjetiva do quadro societário atual. Segundo ele, desinstitucionalização é o termo mais profícuo para designar as transformações dos modos de produção dos indivíduos nos atuais contextos socioculturais. Isso porque uma instituição era definida como o conjunto de papéis e valores que fabricavam individualidades por meio da interiorização de seus princípios gerais.

Tal modelo clássico de organização societária ter-se-ia desestabilizado, dando lugar a uma crise progressiva. No cenário institucional clássico, a personalidade individual posicionava-se como fundo, enquanto os papéis institucionais despontavam como figura dos processos de socialização. Aqui, a crise anunciada por Dubet revela-se de acordo com a seguinte equação: "No curso dos processos de desinstitucionalização, a personalidade pensa antes do papel. É ela que constrói o papel e a instituição" (p.31).

De acordo com os autores inventariados até o momento, é possível concluir que os processos de subjetivação contemporâneos parecem encontrar sua expressão máxima no fato de os próprios indivíduos terem de ordenar o sentido de seu itinerário existencial, antes hipotecado aos lugares e papéis ofertados pelas diferentes instituições disciplinares, cujo modus operandi se encontraria em declínio.

Do ponto de vista analítico, isso implicaria tomar os processos de subjetivação como ordenamento sempre provisório de uma sucessão de experiências fragmentárias, dispersivas e, sobretudo, não mais significadas de modo coletivo ou consensual.

O que, no entanto, para esses autores é tido como ponto de chegada de um processo generalizado de desregulação ou de crise no plano macrossocial, para outros teóricos pode ser compreendido, de modo menos peremptório, como efeito da emergência de uma forma histórica contingente e, ao mesmo tempo, indefectível: o homem neoliberal. Segundo Sylvio Gadelha (2009, p.156), este seria

um indivíduo cuja identidade, cujo "Eu", cujas maneiras de pensar, de agir e de sentir, já não são, apenas e tão somente, constituídos por uma normatividade "médico-psi", mas cada vez mais produzidos por uma normatividade econômico-empresarial.

Em sua proposta analítica, Gadelha visa contemplar um giro teórico operado por Foucault em um de seus cursos, a partir do qual despontam a noção de governamentalidade e sua lógica correlata – a neoliberal – como vetores analíticos dos modos de subjetivação contemporâneos, incluídos aqueles em operação na seara educacional.

Nesse diapasão, as práticas educacionais – ou, mais precisamente, educacionalizantes, já que não se trata apenas, ou não mais, da iniciativa escolar, mas da difusão, a olhos vistos, de um sem-número de investidas pedagógicas de caráter não formal no tecido social – teriam o papel fundamental de sediar tais modos de subjetivação junto às novas gerações, firmando-se como um bem ou serviço crucial para a produção da cidadania democrática contemporânea, esta ancorada, por sua vez, em modelos existenciais fortemente marcados por apelos concorrenciais, empreendedorísticos, customizados etc.

Sem pretendermos conferir ao neoliberalismo um valor hermenêutico similar àquele de que desfrutava a ideologia nos estudos críticos, capaz de explicar de pronto as múltiplas injunções que se avolumam no vastíssimo terreno das práticas educacionais, toca-nos, no entanto, reconhecer a pertinência da problematização da aliança entre as práticas educacionais e o ideário neoliberal.

Ponto pacífico, o homem do neoliberalismo é, antes de mais nada, uma entidade em formação perene. Capital humano converte-se, assim, em sinônimo imediato de capital pedagógico/autoformativo. E as práticas educacionais findam por se confinar a um ritual interminável de oferta de saberes pontuais por sujeitos consumidores que se creem livres, conquanto responsáveis pela gestão de seu próprio aprendizado, este tornado fulcro da verdade de si, já que coroado pelos expedientes da livre expressão, da espontaneidade criadora, da conquista da autonomia etc.

E quem haveria de negar que tal espectro existencial atende exatamente pela designação de sujeito psico-pedagógico?

Eis aqui, a nosso ver, o ponto exato de fusão entre as práticas educacionais, seu lastro psicologizante e a racionalidade neoliberal, perpetrando àquelas a condição de exercício sine que non para a conquista de uma liberdade e uma autonomia tão consensuais quanto improváveis, já que regidas, segundo Nikolas Rose, por "uma imagem do ser humano que o vê como foco psicológico unificado de sua biografia, como o lócus de direitos e reivindicações legítimas, como um ator que busca 'empresariar' sua vida e seu eu por meio de atos de escolha" (2001, p.140).

Julia Varela (1999, p.102) expõe com precisão os efeitos subjetivadores da imbricação entre educação e neoliberalismo, alavancada por aquilo que intitula pedagogias psicológicas:

Trata-se de formar seres comunicativos, criativos, expressivos, empáticos, que interajam e comuniquem bem. Essas personalidades flexíveis, sensíveis, polivalentes e "automonitorizadas" – capazes de autocorrigir-se e auto-avaliar-se – estão em estreita interdependência com um neoliberalismo consumista que tão bem se harmoniza com identidades moldáveis e diversificadas em um mercado de trabalho cambiante e flexível que precisa de trabalhadores preparados e disponíveis para funcionar.

Se, por um lado, é certo que o âmbito educacional não se reduz à condição de lócus de reprodução ou de atualização automáticas da racionalidade neoliberal, por outro, ele próprio revela-se responsável por produzir e fazer difundir, de ponta a ponta e segundo quaisquer colorações ideológicas, a crença onipresente na educabilidade vitalícia dos cidadãos ora como requisito da vida democrática, ora como salvo-conduto individual num tipo de mundo tido como instável, hostil etc.

Se correto for tal raciocínio, correto também será concluir que os modos de subjetivação contemporâneos, operando em íntima consonância com as normatividades médico-psi e econômico-empresarial – como o quer Gadelha –, têm sido igualmente solapados pelo implacável imperativo educacionalizante que vetoriza os jogos cruzados entre cidadania, educação e verdade de si; jogos por meio dos quais estaríamos assistindo à conversão da população em geral em um alunado obediente e voraz, e do próprio convívio social em uma frenética e infinita sala de aula.

Caber-nos-ia, no entanto, indagar: como desbaratar a lógica educacionalizante que preside com mão de ferro as relações sociais hoje? Como abdicar de uma herança sem a qual, no entanto, não somos capazes de nos reconhecer como habitantes do presente?

Ora, apenas uma vontade resoluta de de-formação e, por extensão, um ferrenho compromisso de des-psico-pedagogização dos modos de viver seriam capazes de nos fazer ganhar alguma distância crítica de nós mesmos. Apenas uma espécie de ignorância de si – ativa, feliz e forte em si mesma – seria capaz de nos fazer reinventar nosso sôfrego presente.

Se compreendido e efetivado desse modo, o trabalho de existir – incluído aquele esculpido em uma sala de aula – talvez se aproximasse, mesmo vagamente, daquilo que Foucault (2011a, p.107-108) tanto se ressente de ter desaparecido entre nós.

A arte de viver implica matar a psicologia, criar consigo mesmo e com os outros individualidades, seres, relações, qualidades inominadas. Se não pudermos chegar a fazer isso na vida, ela não merece ser vivida. Não faço diferença entre as pessoas que fazem de sua existência uma obra e aquelas que fazem uma obra em sua existência. Uma existência pode ser uma obra perfeita e sublime, o que os gregos sabiam. Nós o esquecemos completamente, sobretudo depois do Renascimento.

 

REFERÊNCIAS

AQUINO, Julio Groppa. Docência, poder e liberdade: dos processos de governamentalização à potência de existir nas escolas. São Paulo, 2009. 210p. Tese (Livre-docência) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo.         [ Links ]

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.         [ Links ]

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1 O presente artigo consiste na atualização de um conjunto de ideias dispersas em várias publicações anteriores do mesmo autor, aglutinadas em sua tese de livre-docência (AQUINO, 2009).

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