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Psicologia Ensino & Formação

versão impressa ISSN 2177-2061

Psicol. Ensino & Form. vol.5 no.1 Brasília  2014

 

ARTIGO

 

Educação, subjetividade e a formação do professor de psicologia.

 

Education, subjectivity, and psychology teacher training

 

 

Fernando Luis González Rey

Centro Universitário de Brasília. PhD em Psicologia - Instituto de Psicologia Geral e Pedagógica de Moscou. gonzalez_rey49@hotmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo visa discutir a formação dos professores de psicologia. Em vista disso, analisa os problemas atuais dessa formação dentro de um conjunto de problemas gerais que apresenta a psicologia como ciência e profissão. Além disso, analisa as razões que estão na base da pouca atenção ao processo educativo no ensino da psicologia. Também, é objeto de atenção a situação particular do ensino da psicologia no Brasil. Finalmente, o autor sugere elementos que devem estar presentes na formação dos professores de psicologia.

Palavras-chave: Ensino. Psicologia. Formação de professores. Teoria.


ABSTRACT

This article aims to discuss the training of psychology teachers. It examines the current problems with said education within the broader set of issues present in the field of psychology as a science and as a profession. In addition, it analyses the reasons as to why little attention is afforded to the teaching process of psychology education, focusing on such education in Brazil in particular. Finally, the author suggests certain elements that must be present in the training of psychology teachers.

Keywords: Education. Psychology. Teacher training. Theory.


 

 

INTRODUÇÃO

A formação de professores é um desafio em todos os níveis de ensino nos dias de hoje. Porém, esse desafio, de certa forma, tem sido enfrentado, particularmente, no ensino fundamental e médio. Nesses níveis, há uma preocupação crescente com a formação e superação dos professores, embora esses processos continuem centrados na superação técnica sobre as matérias ministradas, sem implicar aspetos relacionados ao desenvolvimento pessoal dos alunos.

A formação de professores em ciências sociais e humanas, tanto em nível médio como superior, apresenta-se uma situação ainda mais precária, pois, no ensino médio, essas áreas não são prioritárias, enquanto no nível superior, a formação do professor como pedagogo – profissional com recursos para desenvolver pessoas – tem ficado historicamente em segundo plano. Os professores universitários, em sua maioria, centram-se no domínio técnico da especialidade em que trabalham, sem compromisso com o crescimento do aluno como pessoa.

Algo que constato em minha experiência profissional cotidiana, bem como nas observações e resultados das pesquisas de nosso grupo de Pós-Graduação na Faculdade de Educação da UnB, é a falta de reflexões políticas, literárias, pessoais, enfim, a pouca presença do mundo cultural e pessoal do professor em sala de aula. Esse tipo de espaço mais personalizado e, portanto, de natureza conversacional, em minha opinião, representa um momento privilegiado para estimular a reflexão do aluno, desenvolvendo seus interesses e envolvendo sua subjetividade com o que estuda.

A situação dos professores de psicologia não é diferente. No entanto, neste caso, existe o agravante de os professores se sentirem, com frequência, autossuficientes, sem necessidade de aprenderem mais nada sobre os processos humanos implicados na complexidade do ensino e da aprendizagem. Consequentemente, na prática, vemos professores com representações estreitas sobre o processo de aprendizagem dos alunos, frequentemente, reduzida a um esquema sujeito-objeto, em que o sujeito é o professor que ensina, explica e fórmula as conclusões, ao passo que o aluno apenas reproduz esses posicionamentos do professor. As práticas derivadas dessa concepção separam ensino e educação e, com isso, não desenvolvem recursos subjetivos do aluno como condição para uma aprendizagem criativa e personalizada, integradora de suas experiências de vida.

No presente artigo, vamos nos centrar na situação atual do ensino de psicologia e nos processos que necessitam de reflexões. O objetivo é desenvolver alternativas aos atuais impasses na formação dos professores de psicologia.

 

2 PROBLEMAS GERAIS DA PSICOLOGIA E SUAS EXPRESSÕES NO ENSINO

Mitjáns (2009), em trabalho um recente sobre a formação do psicólogo, destaca: "...consideramos necessário salientar a formação pessoal do profissional como um elemento essencial da formação e a necessidade de utilizar a produção científica em psicologia para promovê-la e estruturá-la" (MITJÁNS, 2009, p.150). A autora nos dá duas ideias centrais que devem orientar a formação do psicólogo. Eu as considero essenciais para a formação do professor de psicologia: em primeiro lugar, a ênfase na formação pessoal, sem a qual o tipo de professor que defendo neste artigo não se faz possível e, em segundo lugar, o uso da produção científica em psicologia para promover e estruturar a formação de professores. A produção científica em psicologia é uma expressão essencial do desenvolvimento da cultura. Está estreitamente relacionada às diferentes representações do homem em momentos históricos, construídas e desenvolvidas de forma especial pelo pensamento filosófico. Porém, a psicologia, em seu "momento norte-americano", em princípios do século 20, separou-se radicalmente da filosofia, embora suas próprias posições expressassem, de forma parcial, pensamentos filosóficos além da própria consciência de seus autores. Essa situação levou a psicologia norte-americana, nesse período ganhando grande espaço no mundo, a se transformar numa psicologia "objetiva", de orientação instrumental, ateórica (DANZIGER, 1990; KOCH, 1992).

A separação da psicologia tanto da filosofia como das outras ciências sociais representou também sua separação da arte e da cultura de forma geral. Isso transformou algumas de suas tendências dominantes do início do século 20 em especialidades técnico-instrumentais, orientadas ao diagnóstico e ao controle do comportamento, como no caso do behaviorismo e da psicometria – perspectivas hegemônicas nessa primeira parte do século passado.

A gênese do behaviorismo, apoiada na psicologia animal e no positivismo experimental, pouco tinha a ver com a cultura, com os processos simbólicos e com as complexas formas de desenvolvimento das diferentes psicologias humanas.

Entretanto, tal corrente, por ser dominante na América do Norte desde então, converteu-se no ramo da psicologia com mais recursos financeiros no mundo, o que repercutiu na quantidade de publicações, congressos, pesquisas financiadas e, de modo geral, em maior presença nas universidades.

A força do behaviorismo nos Estados Unidos influenciou fortemente países da América Latina, pelo número de bolsistas latinos que estudaram nos EUA e pela quantidade de literatura norte-americana que entrou em circulação. Essa influência foi particularmente forte no México, no Brasil e na Colômbia; na Venezuela, no Peru, na Bolívia e no Chile, tal influência era compensada por outras tendências teóricas com forte presença na prática profissional e na academia. A partir dos anos 60, essa situação foi se transformando de forma progressiva em todos os países mencionados, mas a reprodução dogmática e mecânica de teorias dominantes em outras partes do mundo continuou marcante. A Argentina dos 60 foi exceção: desenvolveu uma corrente criativa de pensamento próprio no campo da psicanálise, com figuras da relevância como Bleger, Pichon Riviere, Bauleo, Pavlovsky, entre outros.

Posteriormente, na década de 1980, amadureceu uma psicologia social crítica latino-americana, com pensamento próprio e com importante impacto nos Congressos Interamericanos e outros congressos regionais, contando igualmente com uma prolífica produção científica de profissionais de diferentes países da região (GONZÁLEZ REY, 1995, 2011). Vale ressaltar que outros importantes movimentos críticos têm acontecido na psicologia latino-americana, em áreas como a psicologia comunitária e a psicologia política. Entretanto, tem prevalecido, na psicologia e em seu ensino na América Latina, a apresentação de teorias tradicionais, de forma ahistórica, ignorando as contradições e os contextos do desenvolvimento dessas teorias. Essa situação e a ausência de trabalhos críticos sobre as teorias dominantes têm levado à banalização do uso das teorias psicológicas. Em muitas pesquisas, são usadas definições e conceitos que seus próprios autores superaram no curso de sua obra.

A psicologia, historicamente, tem se caracterizado pela fragmentação, tanto entre as teorias, que permanecem isoladas entre si, como entre as áreas de produção do saber psicológico. Essa fragmentação também aparece na relação entre pesquisa e prática profissional, bem como entre as mesmas áreas da prática profissional dos psicólogos. O mau uso das teorias em psicologia é responsável pela postura dogmática e pouco reflexiva entre os psicólogos: as teorias são consideradas macro sistemas portadores de um saber verdadeiro, o que leva seus seguidores a aplicá-las de forma acrítica, sem estimular a produção de pensamento e de teoria.

A hegemonia da concepção empírica de ciência e de prática profissional tem transformado muitos psicólogos em meros executores. Nesse contexto, as teorias se tornam verdadeiros sistemas normativos que devem ser seguidos à risca tanto na pesquisa como na prática profissional. Em pesquisa sob minha orientação, que fundamentou uma dissertação de mestrado (SOUZA, 2012), realizada com alunos dos últimos semestres de psicologia de duas instituições de ensino superior do Distrito Federal, o uso da teoria como sistema normativo e o posicionamento pouco reflexivo do futuro profissional de psicologia ficaram evidenciados nas respostas estereotipadas frente às situações-problema apresentadas. Essas situações eram apresentadas em protocolos escritos que representavam situações da prática profissional do psicólogo no Brasil.

Na pesquisa de Souza (2012), ficou evidente a incapacidade dos alunos para formular hipóteses e fazer conjeturas, ou seja, para aplicar os conteúdos estudados à situação particular que estavam analisando. Em lugar disso, os alunos tentavam aplicar de forma rígida os conceitos e definições das teorias que aprenderam, desconsiderando completamente as especificidades do contexto social e cultural em que os problemas eram apresentados.

Uma psicologia que assume teorias como verdades, sem reflexão e sem questionamento, não pode aspirar a formar profissionais críticos e criativos. A falta de discussão teórica e epistemológica na história da psicologia, perpetuada até hoje, faz do ensino uma atividade essencialmente reprodutivo-instrumental. Os alunos estudados na referida pesquisa representam os testes psicológicos como instrumentos provedores de verdades, o que impede o mais simples questionamento desses recursos de produção de informação.

A fragmentação do saber e da prática na psicologia levam a uma concepção igualmente fragmentária de seu ensino. O professor em psicologia educativa ou escolar raramente reflete sobre as expressões e consequências dessa área em outros campos da psicologia, como a psicologia clínica ou a psicologia social. Ele, tampouco, analisa as consequências, na psicologia educativa, das concepções desenvolvidas nessas outras áreas da psicologia. Essa situação é semelhante em cada área da psicologia e na sua relação com as outras. Esse nível de distanciamento e fragmentação chega ao extremo: cada área tem os seus próprios conceitos, linguagens e teorias de referência. Um psicólogo escolar, frequentemente, acha que a teoria das representações sociais não tem nada a ver com a escola; por outro lado, um psicólogo social amiúde ignora que a escola é um cenário essencial para o estudo do comportamento da sociedade.

O ensino da psicologia apresenta outra dificuldade: o pensamento e as discussões da vanguarda do pensamento psicológico raramente são apresentados aos alunos, pois os claustros de cada faculdade, ou departamento, são dominados por posicionamentos teóricos fechados ao diálogo. Os alunos de graduação não são estimulados a ler literatura crítica sobre o estado atual da psicologia; as revistas mais importantes do mundo raramente são indicadas ao aluno. Com freqüência, muitos professores permanecem circunscritos ao que lhes foi apresentado em sua formação, sem ler nada diferente do que já conhecem.

Ainda hoje, muitas instituições de ensino da psicologia estão centradas no ensino das teorias mais tradicionais, sem referência a teorias mundialmente debatidas, como o construcionismo social, as versões de construtivismo póspiagetiano ou as interpretações e novas revisões em diversos campos teóricos, como o diálogo crescente entre psicanálise e cultura, e as discussões derivadas de revisões do legado de Vygotsky.

Essa falta de cultura sobre a própria psicologia é ainda mais dramática na relação com outras ciências sociais. Mesmo em programas com sociólogos, antropólogos ou filósofos em seu corpo docente, com disciplinas específicas sobre esses outros campos, é evidente uma subjetividade social que afasta esses professores e suas disciplinas, de modo que esses conteúdos se tornam marginais ou secundários em relação aos núcleos privilegiados para a "formação do psicólogo". Essa tendência é contrária ao pensamento de vanguarda na psicologia contemporânea, no qual a presença da filosofia e de outras ciências sociais é cada vez maior. Atualmente, autores como Geertz, Foucault, Merleau Ponty, Marx, Canguilhem, Levinas, Touraine e Cassirer, entre muitos outros, têm forte presença nos trabalhos que mais impactam os novos desenvolvimentos da psicologia. De fato, as teorias mais relevantes da psicologia sempre tiveram, entre suas fontes principais, filósofos, antropólogos e sociólogos.

O tópico da cultura dos psicólogos em relação às questões do desenvolvimento humano e da sociedade é realmente importante. O enfoque objetivo-instrumental, que, por décadas, dominou o pensamento psicológico e se institucionalizou nos países da América Latina e em países como a Espanha, prejudicou o desenvolvimento da teoria e da relevância da cultura para a psicologia. Essa situação grave é expressa de forma magistral por R. Lazarus ao final de sua vida. Lazarus foi uma das figuras mais importantes da psicologia cognitiva no campo da saúde e partilhou, ao longo de sua vida científica, uma visão experimental na pesquisa. Entretanto, em um de seus últimos trabalhos, o autor escreveu:

... são muitos os psicólogos que se mostram resistentes a adotar uma postura subjetiva (grifos do autor) em nossa pesquisa e teoria. Deixamos para as humanidades o exame de nossa vida interior. O leitor que conheça algo dos meus trabalhos anteriores pode ter esperado que eu tivesse melhorado essa ideia. Com freqüência tenho pensado que os grandes escritores descrevem melhor às pessoas seus apuros e suas vidas interiores que a maioria dos psicólogos em nosso empenho de sermos científicos (LAZARUS, 2000, p.23).

Creio que a formação objetiva-instrumental dominante no ensino da psicologia traz como resultado a formação de um profissional centrado no seguimento de normas e na aplicação de instrumentos, tendência evidenciada também na pesquisa de nosso grupo (Souza, 2012). Penso que devemos ter uma reflexão educativa que, sem dúvidas, terá importantes implicações políticas nos objetivos da formação do psicólogo, favorecendo a formação do psicólogo como sujeito de seu saber, e não como executor de um repertório rígido de técnicas e conceitos.

 

3 A EDUCAÇÃO DO PSICÓLOGO: UMA PROPOSTA QUE ABRE NOVOS DESAFIOS.

Mitjáns afirma:

Os conhecimentos científicos são produzidos por seres humanos em diferentes momentos e em contextos de perspectivas filosóficas, epistemológicas, ideológicas e teóricas também diferentes. Além disso, são utilizados pelos indivíduos com objetivos e intenções muito diversas... Considerar o indivíduo como o eixo da produção e utilização do conhecimento psicológico numa prática comprometida com o desenvolvimento, a justiça e a equidade social coloca em primeiro plano a discussão sobre a subjetividade do psicólogo e especialmente de sua condição de sujeito (MITJÁNS, 2000, p. 145).

Como destaca a autora, a produção de conhecimentos aparece sempre num contexto histórico carregado de produções humanas, o que torna inviável pensar as teorias científicas como verdades a-históricas. As teorias não são instrumentos que requerem um executor; as teorias são modelos de pensamento para ensejar ideias que, com base numa cosmovisão geral, produzam novos espaços de inteligibilidade sobre os problemas da pesquisa e da prática profissional. Esse uso da teoria necessita de psicólogos que sejam sujeitos de sua atividade profissional.

Nossa definição de sujeito (GONZÁLEZ REY & MITJÁNS, 1989; GONZÁLEZ REY, 1995, 2002, 2005, 2007, 2014) especifica o caráter ativo, o posicionamento próprio da pessoa em seu caminho. A pessoa como sujeito se caracteriza por seu caráter reflexivo e seus posicionamentos pessoais. O sujeito não é uma condição inerente à pessoa, expressa em todas as áreas da vida. O conceito de sujeito qualifica um posicionamento das pessoas grupos numa relação humana, num sistema de relações ou na realização de um tipo de tarefa. Nesse sentido, a definição do "sujeito que aprende" destaca o aluno capaz de refletir sobre os caminhos escolhidos em seu processo de formação. O aluno como sujeito, em qualquer nível de ensino, não atribui igual importância a todas as matérias que cursa. Esse aluno-sujeito vai produzindo seu "próprio curriculum" segundo suas preferências e projeções.

O destaque ao conceito de sujeito foi uma reação contra a tendência recente da "morte do sujeito", que, representada pelos principais autores do pósestruturalismo francês, anulou o lugar do indivíduo na tomada de decisões, na sua criatividade e em seu caráter ativo frente à vida, explicando os posicionamentos individuais dentro de sistemas de práticas discursivas. Diferentemente desse posicionamento, nossa proposta sobre a subjetividade, numa perspectiva culturalhistórica, atribui um lugar importante à pessoa como sujeito na própria produção da subjetividade social. A subjetividade individual e a social não formam uma relação de domínio ou determinação de uma sobre a outra, mas um relacionamento dialético e recursivo no qual os atos ou processos em cada um desses níveis podem levar a produções subjetivas no outro. A ação individual acontece num tecido social. As normas, valores, representações sociais dominantes num espaço social se configuram de forma singular nos indivíduos que se relacionam nesse espaço. Por outro lado, os questionamentos, ações e comportamentos de indivíduos concretos dentro desses espaços podem se transformar em novos processos de subjetivação que modificam a subjetividade social dominante.

A formação de professores de psicologia expressa uma subjetividade social dominante no Brasil, país em que o professor não se sente valorizado e o profissional prefere assumir sua identidade como psicólogo. Essa tendência tem consequências problemáticas na prática educativa, pois o profissional sem identidade e sem formação de educador irá "pregar" a teoria que defende, procurando que os alunos "assimilem" seus ensinamentos técnicos, sem se preocupar em fazer de sua sala um espaço de desenvolvimento desses alunos como pessoas. Desse modo, ele termina por se esquivar da responsabilidade de criar recursos para a emergência do sujeito capaz de aprender, questionar e criticar, capaz de buscar seu caminho, aprender com a diversidade e abrir mão da comodidade do instituído. Porém, é importante destacar que toda ação do sujeito se fundamenta num saber aprofundado do tema do qual se assume como produtor. O questionamento superficial e o protesto sem domínio representam mais um exibicionismo individual do que a emergência do sujeito.

Vygotsky, entre 1932 e 1934, deu uma importância ao conceito de perezhivanie, com o qual definiu o caráter emocional da função ou do processo psíquico implicado num fazer criativo que o autor, num primeiro momento de sua obra, associou com a criatividade artística (VYGOTSKY, 1965). No fim de sua obra, porém, Vygotsky definiu perezhivanie como a unidade psicológica que expressa a integração da criança com o meio em que vive. A relevância do conceito de perezhivanie, nesse momento da obra de Vygotsky, se deve ao lugar ativo que a pessoa tem no significado que uma influencia social pode ter desenvolvimento. Uma influência social será relevante para o desenvolvimento infantil não pelo seu caráter "objetivo", pelo que ela aparenta ser, mas pela perezhivanie gerada pela influência na criança, o que, segundo Vygotsky, dependerá, em grande medida, de sua personalidade.

Assim, deriva-se a noção de que o ensino deve gerar expressões emocionais nos alunos e no professor, de modo a facilitar o desenvolvimento pessoal de ambos, aluno e professor. O professor que não se emociona em suas aulas é aquele que repete um roteiro impessoal ao longo do tempo. Uma aula é um ato dialógico de criação e reflexão professor-aluno, aluno-aluno. Para o ensino se tornar um processo educativo, é fundamental o envolvimento emocional dos participantes, condição primeira para a emergência do sujeito que aprende.

A sala de aula é um espaço social e a educação requer transformar esse espaço num espaço de diálogo, reflexão e questionamento. Apenas assim o pensamento fará parte do aprendizado do aluno. O pensamento não aparece como processo motivado pelo seu caráter lógico-formal; o pensamento reflexivo e questionador aparece subjetivamente configurado dentro da ação atual da pessoa. A emergência desse pensamento é uma condição subjetiva da emergência do sujeito no processo de aprender. A subjetividade definida em nossos trabalhos expressa uma qualidade humana inseparável da condição cultural do homem e do próprio desenvolvimento da cultura. O ser humano não é reflexo do mundo em que vive; ele produz, num nível simbólico-emocional, as suas experiências nesse mundo, ou seja, a subjetividade é uma produção humana e, portanto, tem um caráter imaginário. Sua objetividade não é definida pela reprodução de algo externo, senão que por sua própria existência, sem a qual a qualidade específica do humano não seria possível.

Em nossos trabalhos, os conceitos de sentido subjetivo e configuração subjetiva expressam a qualidade simbólico-emocional distintiva dos processos humanos, sejam eles sociais ou individuais. Os sentidos subjetivos expressam a diversidade de processos simbólico-emocionais que caracterizam uma ação humana, aparentemente motivada por uma situação conjuntural que a pessoa enfrenta. Por exemplo, uma criança não se integra ao grupo escolar não apenas por ser meramente recusada pelo grupo. Há, por trás, um conjunto de sentidos subjetivos que expressam sua condição familiar, suas relações ou não com outras crianças na vizinhança, sua condição socioeconômica e muitas outras situações relevantes para essa criança e que não são percebidas diretamente pelos que a rodeiam. Então, esse distanciamento do grupo pode estar perpassado por emoções de vergonha que expressam múltiplos sentidos subjetivos associados com o que ela sente e com os processos simbólicos associados a esse sentir. Sentimentos como sentir a preferência da mãe pelo irmão, como a sentir inferioridade pelo tipo de roupa que usa ou pela forma como sua mãe se veste são produções de sentido subjetivo com complexas relações entre si, expressando-se na vergonha que a criança sente em situações sociais. No entanto, só avançando na compreensão dos diferentes sentidos subjetivos que convergem em determinado comportamento, poderemos entender de forma mais ampla e complexa esse comportamento, que nunca será uma simples reação a situações de sala de aula.

As configurações subjetivas representam essa integração de sentidos subjetivos diversos que caracterizam o estado subjetivo de uma pessoa numa situação concreta, de modo que os diferentes processos e reações da pessoa nessa situação serão parte dessa configuração subjetiva. Só as funções que aparecem como expressão das configurações subjetivas têm uma valor motivacional. É por isso que, na formação de professores e no processo de educação, a subjetividade dos professores e alunos têm relevância particular. As operações associadas a uma exigência externa podem ser cognitivamente adequadas, mas, sem emoções e sem envolvimento pessoal – condição necessária para os sentidos subjetivos nessa atividade concreta –, essas operações não geram as emoções e a energia necessárias à ação criativa. As emoções só se expressarão nesse nível constante e progressivo dentro da configuração subjetiva da ação em curso, na qual a unidade da emoção com os processos simbólicos será responsável pela imaginação, aspecto principal de toda criação humana.

O mais importante, para um professor em sala de aula, não é expor brilhantemente o que ele sabe, mas facilitar a reflexão e a discussão dos temas apresentados e, pela emergência das emoções dos alunos nesse processo, facilitar o aprofundamento em leituras sobre o tema e ajudar a resolver questões com base em reflexão sobre o conhecimento adquirido. Estimular a imaginação tanto dos professores como dos alunos é essencial para a qualidade do ensino. A leitura é um momento crucial para a organização reflexiva de um tema estudado.

Isso implica uma mudança radical na organização da docência universitária, na qual as conferências do professor continuam sendo o foco das disciplinas. Ainda que o professor não possa evitar seus posicionamentos, os quais devem representar desafios à reflexão dos alunos e facilitar a compreensão dos conceitos da disciplina, ele deve expressá-los de forma mais conversacional e provocadora do que expositiva. Porém, isso não é uma capacidade espontânea. O professor precisa ser educado e assessorado no desenvolvimento dessa nova forma de desenvolver sua prática profissional.

Como formar professores de psicologia que sejam educadores e sujeitos do exercício profissional? Penso que os seguintes pontos nos ajudam a responder:

- Despojar o professor do "narcisismo acadêmico", tão comum nas universidades. O professor deve ser respeitado, sem o qual a docência universitária vira "festejo de boteco", mas o respeito se associa à sua capacidade de reflexão, à sua cultura, à sua capacidade de trazer constantemente temas enriquecedores para o aluno. Nesse sentido, ensinar o professor a usar a conversação como recurso de docência é fundamental. Para isso, é necessário usar modelos que reproduzam processos de sala de aulas. Infelizmente, o "narcisismo acadêmico" e a pouca importância que muitas universidades atribuem à formação no âmbito da graduação são fortes empecilhos para alcançar esse objetivo.

- Treinar o uso de recursos complementares em sala de aula. Eles devem facilitar dinâmicas conversacionais que permitam ao aluno usar o conhecimento para refletir sobre a profissão e sobre a vida. Nesse sentido, o uso de filmes, mesas redondas e outras atividades que impliquem o posicionamento reflexivo do aluno são fundamentais.

- Desenvolver uma cultura psicológica ampla, assim como de uma cultura geral. A organização de palestras e seminários de discussão com profissionais gabaritados em diferentes teorias e áreas, assim como com escritores, cientistas sociais e filósofos, deve fazer parte da formação dos professores de psicologia.

As atividades elencadas acima seriam facilmente organizadas em qualquer instituição universitária. As instituições universitárias podem usar seus profissionais para realizar essas atividades. A discussão com colegas é sempre um recurso de enriquecimento para qualquer profissional, em especial, para um professor. Nas universidades, com frequência, os professores evitam o diálogo e a reflexão coletiva, preferindo se isolar em pequenos grupos que compartilham as mesmas ideias.

Ademais, considero importante que os alunos de cursos superiores, nos quais o professor ministra suas aulas, assim como orientandos de pós-graduação (no caso de um professor de programa de pós-graduação), participem das aulas juntamente com o professor. Essa é uma iniciativa que costuma influenciar positivamente o formando e também a turma que o recebe, pois cria um espaço no qual os envolvidos são motivados a pensar questões de debate, algo que, muitos alunos, inclusive em nível de pós-graduação, têm sérias dificuldades de fazer.

Não pretendo, com este artigo, dizer a última palavra em relação a tão complexo problema. O intuito é aportar reflexões gerais que, apoiadas na experiência como professor universitário na área da psicologia, em minha opinião,

devem estar presentes no debate sobre a formação dos professores desta especialidade, tanto em nível médio como superior.

 

UMA REFLEXÃO COMO CONCLUSÃO

O presente artigo tentou mostrar a estreita relação entre um conjunto de problemas que caracterizam o desenvolvimento atual da psicologia e seu ensino. As universidades, com frequência, lamentavelmente se fecham nas posições dominantes, quando, na realidade, deveriam fazer exatamente o contrário: abrir-se a todo novo saber que se produz na área, preocupando-se em incluí-lo no programa de estudos. Por fim, acredito que seja preciso maior supervisão do ensino de psicologia no país. Sugiro que os critérios de avaliação dos programas não dependam exclusivamente dos exames de rendimento dos alunos, alguns dos quais, aliás, apresentam sérias deficiências.

 

REFERÊNCIAS

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