SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.7 número1A Criminalização das Identidades Trans na Escola: Efeitos e Resistências no Espaço Escolar índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psicologia Ensino & Formação

versão impressa ISSN 2177-2061versão On-line ISSN 2179-5800

Psicol. Ensino & Form. vol.7 no.1 São Paulo  2016

http://dx.doi.org/10.21826/2179-58002016718789 

DOI: 10.21826/2179-58002016718789

Homenagem a colaboradors da ABEP

MV e a Pedagogia do Tensionamento*

MV and the Pedagogy of tensioning

MT e la Pedagogía del Tensionamiento

 

 

Mônica LimaI

I Universidade Federal da Bahia

 

 

Marcus Vinicius de Oliveira Silva, ou MV como carinhosamente o chamamos, atuava com a Pedagogia do tensionamento: uma arte-técnica, antes de ser um método de ensinar. Fruto da interrogação: “como transmitir matéria que articule objetividade e subjetividade, num fazer que se situe nos limites entre a técnica e a arte?” (Silva, 2008, p. 11). Este enunciado interrogativo continua ecoando em minha cabeça e na de muitas outras pessoas que tiveram a incrível oportunidade de trabalhar com MV e também das que lerão seus escritos inspiradores.

A Pedagogia do tensionamento é constituída de um princípio óbvio, embora muito difícil de ser empregado por alguém que não o próprio MV, porque fica sem a potência daquele que me inspira a nomear, assim, um determinado modo de dizer/fazer as coisas em uma Psicologia do compromisso verdadeiramente social. Compromisso social fruto de um trabalho coletivo e tenso que sempre lhe fez exigências subjetivas e objetivas na vida. MV não quis passar nada além do que já tivesse se auto-exigido, não pedia nada que não pudesse dar de volta ou que ele mesmo não fosse capaz de suportar. O ponto de partida do MV, para preparar psicólogas(os) para a clínica da psicose, era desenvolver uma atitude que gerasse uma postura para suportá-la.

Na sua Pedagogia do tensionamento o discurso é ação, não se resume ao mero dizer algo. O modo como operava o discurso de MV nos vários âmbitos públicos de sua vida (militante, acadêmica, sindicalista, cidadã...) é muito próximo ao que nos revela John Austin na dimensão realizativa do discurso, ou seja, “[...] emitir la expresión es realizar una acción y que ésta no se concibe normalmente como el mero decir algo” (Austin, 1995, p. 6).

Destacar esta dimensão tão presente no modo de MV fazer as suas bravuras é fazer jus a sua maneira peculiar de dizer/fazer as coisas. Ele, em vários momentos, era temido, embora causasse uma atração irresistível para uma parcela grande de pessoas que teve a oportunidade de aprender com ele. Na Universidade Federal da Bahia, passar por MV – inicialmente responsável pela cadeira de Metodologia Cientifica e Pesquisa, depois pelo componente curricular de Psicologia da Saúde, em algum momento pelo Psicologia, Ciência e Profissão, e durante muito tempo pelo Estágio Supervisionado em Saúde Mental – gerava necessariamente alguma mudança profunda, que variava da desistência do campo da Psicologia e recondução para uma posição mais consciente com uma outra escolha profissional, ao engajamento ou à consciência do não engajamento, ético-técnico e político relativamente à Psicologia como “ciência” e profissão. 

Em uma de suas facetas, a Pedagogia do tensionamento opera uma clínica tensa: tensa para dentro e tensa para fora. Do ponto de vista de uma proposta de formação em Psicologia podemos supor que ela pretende expor as(os) interessadas(os) ao vigor próprio da vida– situações teóricas-práticas que permitam produção subjetiva das(os) agentes para lidar com a coisa mental e desenvolver habilidades de mediação das necessidades dos sujeitos e das exigências da cultura (Silva, 2008).

Concordo muito com este meu mestre, amigo e colega que um modo de praticar a arte-técnica de formação de psicólogas(os) tem que estar alicerçado no vigor próprio da vida, o que culmina na indicação de não fomentar uma formação protegida, que mima e seda as(os) aspirantes, que não lhes permite crer que são agentes de mudanças subjetivas que operam nas condições objetivas da vida (Silva, 2008).

Por sorte, e não por disciplina e diletantismo, MV inscreveu, no sentido atribuído por Paul Ricouer (1989), fixando os significados do seu discurso sobre um modo de fazer as coisas, particularmente o lidar com a coisa mental, no “Programa de Intensificação de Cuidados a Pacientes Psicóticos” (PIC), já que ele não era aficionado pela produtividade acadêmica e escreveu menos do que produziu na vida. Há alguns poucos textos preciosos sobre o que nomeio de Pedagogia do tensionamento (Cortes, Silva, & Jesus, 2011; Silva, 2008). O PIC, como era carinhosamente apelidado, e seus desdobramentos, como o “Programa de Atenção Somiciliar à Crise de Pacientes Psicóticos” (PADAC), já produziram agentes que hoje estão na linha de frente na produção de dispositivos de saúde mental tenho certeza, irão inspirar outras(os) professoras(es) nesta tarefa contraditoriamente árdua e gratificante de ensinar e formar psicólogas(os). As experiências profissionais de MV também influenciam e influenciarão outras(os) profissionais que não só as(os) de Psicologia, considerando suas contribuições para textos de referências de atuação de profissionais de saúde na atenção básica à saúde, no nível ministerial (Brasil, 2013).

Seguramente, esta Pedagogia do tensionamento não se restringe ao campo da saúde mental. No entanto, boa parte dos princípios advém da experiência com a clínica da psicose ou a clínica da presença, tendo o gosto pela dimensão política desse dizer/fazer, que sustenta teórica e tecnicamente um modo de estar presente nas situações de cuidados intensivos, no manejo das relações vinculares, uma clínica em que se não separa, agora o social, agora o psiquismo, que não tem hora nem data nem lugar definidos e no investimento humano que é a tecnologia fundamental deste modo de operar a coisa mental (Silva, 2008). Além disso, concomitantemente, os princípios da Pedagogia do tensionamento fazem jus à virada epistemológica no campo da saúde mental, virada produzida também pelos movimentos sociais e políticos - dos quais MV sempre foi um agente dedicado e incansável - que nos incentivam a interrogar a loucura e as dimensões psicossociais do sofrimento humano, a defender os direitos humanos, o direito à saúde (Silva, 2003) e compreender a dimensão subjetiva da desigualdade social (Santos, Mota, & Silva, 2013).

Mais do que nos presentear com um modo de ensinar e formar psicólogas(os), isso por si só já justificaria a homenagem, as contribuições de MV sempre foram, e continuarão, preciosas para Associação Brasileira de Ensino em Psicologia (ABEP), espaço que conheci graças a seu convite  (que MV estendeu a muitas outras pessoas). Um dos espaços de dizer/fazer Psicologia fundamentado pelo Movimento Cuidar da Profissão, o qual ele foi um dos criadores e politicamente ofereceu a comunidade psibrasileira articulada à comunidade latino-americana como alternativa para enriquecer nossa militância. MV inscreve uma postura ético-política com a qual as(os) abepianas(os) produtiva e criticamente podem repensar a formação e lutar por políticas internas à área e externas ao campo, de modo a promover ainda mais a participação ético-política e técnica das(os) profissionais para a mudança social, que o Brasil tanto necessita.

Paul Ricouer, em alguns dos seus escritos, diz mais ou menos assim: ler um texto é matar a(o) autora(r). Esta sua concepção de texto sempre me causou impacto porque, de uma maneira inconsciente, quando lia um texto nunca imaginava a(o) autora(r) de fato viva(o). Esta noção de Ricouer é muito mais complexa e não convém desenvolvê-la agora. Ela aqui é um pretexto para marcar um sentimento forte que me abate sobre as condições de morte do meu amigo, mestre e colega. A perda de MV, no plano físico, e a leitura dos seus escritos e ecos dos seus discursos me fizeram recordar esta metáfora para dizer que ele conseguiu, porque de fato morto, me proporcionar a experiência de ressuscitar o autor na leitura do seu texto, talvez, na esperança angustiante de um dia poder aceitar sua morte e, na leitura dos seus textos, matá-lo apenas para interpretar suas ideias.

 

Referências

Austin, J.L. (1995). Como hacer coisas conpalabras. Conferencia I. Escuela de FilosofíaUniversidad ARCIS. Disponível em http://www.philosophia.cl         [ Links ]

Brasil, Ministério da Saúde. (2013). Cadernos de Atenção Básica. 1. ed. Brasília: Editora MS.         [ Links ]

Cortes, L. A. S.;,Silva, M. V., & Jesus, M. L. (2011). A atenção domiciliar em saúde mental realizada por estagiários de psicologia no Programa de Intensificação de Cuidados. Psicologia: Teoria e Prática, 13, 76-88. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/ptp/v13n2/v13n2a06.pdf        [ Links ]

Ricoeur, P. (1989). Do texto a acção: ensaios de hermenêutica II. Portugal: RÉS-Editora.

Santos, L., Mota, A., & Silva, M.V. (2003). A dimensão subjetiva da subcidadania: considerações cobre a desigualdade social Brasileira. Psicologia: Ciência e Profissão, 33, 700-715.         [ Links ]

Silva, M.V. (2003). Os Direitos Humanos na Prática Profissional dos Psicólogos. 1. ed. Brasília: Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia.         [ Links ]

Silva, M. V. (2008). IN-tensa / EX-tensa: A Clínica Psicossocial das Psicoses. 1. ed. Salvador: LEV - Laboratório de Estudos Vinculares / UFBA.         [ Links ]

 

 

Recebido: 22/07/2016

Aprovado: 31/07/2016


* Texto produzido a convite da Revista Psicologia: Ensino & Formação da Associação Brasileira de Psicologia em homenagem ao Professor Marcus Vinicius de Oliveira Silva.

Creative Commons License